A SEMPRE INTRINCADA QUESTÃO ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

June 5, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Literary Theory
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A SEMPRE INTRINCADA QUESTÃO ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Cunha e Silva Filho


Sempre que um escritor de ficção se defronta com
um entrevistador, este geralmente um jornalista literário ou cultural ou
até mesmo um ficcionista também, pessoalmente ou numa entrevista por
telefone, uma das questões mais comuns se encaminha para a discussão algo
bizantina de um tópico que me parece nunca desejar ser tomado na sua
profundidade de jogo dialético.
O jornalista, a certa altura da conversa lança, orientado por
um número de perguntas listadas em seu questionário previamente organizado,
a seguinte pergunta: "O seu livro recentemente lançado é uma ficção ou nele
a matéria recolhida e pesquisada se fundamenta mais na realidade?
O entrevistado pára um pouco, reflete, organiza o pensamento e
um pouco desajeitado, com ar de quem não é dono da verdade, por fim declara
algum conceito do que entende da pergunta proposta, sem antes ter
consciência de que um, dois ou mais caminhos teria que escolher para
desenvolver seu raciocínio da forma mais breve possível, uma vez que o
contexto ali não lhe daria tanto tempo para longas digressões teóricas ou
mesmo acadêmicas. "Na verdade, na composição desse livro comecei por fazer
um levantamento onde o peso dos dados referenciais históricos, contra minha
vontade, tomou logo vulto, o que me deixou encalacrado na direção que, a
princípio, traçara para a elaboração da obra.
Não sendo eu um historiador mas apenas um leitor da História,
isso me deixou, segundo assinalei, num dilema de difícil solução, uma vez
que a minha intenção primeira era dar prioridade aos dados ficcionais, ou
seja, criar uma história, personagens, um enredo(se possível), um tempo e
espaço históricos e uma linguagem que procurasse ao máximo fugir do
jornalismo-reportagem ou de um tratado de História.
Este desvio a que me vi compelido a fazer foi o que salvou o
meu romance de uma rotulação híbrida, meio ficção, meio História. Quer
dizer, na minha ficção, misturando dois campos distintos de uso da
linguagem, salvou-me aquilo que o relato histórico não sabe administrar
porque se vê esgotado na coleta da pesquisa exaustiva, quer sobre figuras
reais, quer sobre esclarecimentos de certos pontos controvertidos com que
se depara o historiador.
Nesses vazios é que entrou a minha capacidade de fabulação, de
penetração no que poderia ter acontecido da aventura humana de um
determinado período histórico no qual sombras de entendimentos somente se
mostram permeáveis pela força ficcional.
O nó da questão se põe nestes termos: o de privilegiar a
linguagem narrativa, objetivo principal de quem pretende fazer literatura.
Na linguagem literária a matéria da vida se constrói pela deformação
mimética de concepção aristotélica. Trabalha-se a linguagem no domínio da
realidade possível, do verossímil ou do fantástico ou maravilhoso, cujo
produto se torna mais estético quanto maior potencial de talento ou vocação
revela o autor no tratamento exigido pela forma artística por ele
alcançada.
O entrevistador, talvez, insatisfeito com o testemunho do
escritor, lhe faz notar que em outras obras do escritor consideradas por
este de ficção continha igualmente elementos do universo da História do e,
no entanto, tinha sido rotulada de romance
O entrevistado então lhe acrescentou que um tipo de narrativa
se distingue de um mero relato ou ensaio histórico na medida em que pode
colocar uma "questão central" não respondida pelo concurso da História. Ou
como faz o escritor espanhol Javier Cercas:(1) elabora sua obra na
confluência da história e da ficção "... em todo romance, a pergunta
central fica sem resposta, o importante é a investigação", conclui ele.
Posto que a questão da fronteira entre História e ficção não deixe de
embaralhar os espíritos, o que, em meu juízo, torna-se decisivo para a
classificação em gênero ficcional seria, repito, a forma intencionalmente
de criação literária que o autor imprime à sua narrativa sem a ausência
daquele elemento diferenciador intrínseco, a linguagem artística.
O que o entrevistado, em geral enfatiza é o componente essencial
na economia do discurso ficcional, acompanhado de seus múltiplos recursos
retóricos, de seu emprego desprovido da exposição meramente factual ou
empírica que obstaria a refundação de um mundo à parte, capaz de suscitar
a curiosidade e o prazer do leitor, não para que este se afunde num mundo
sem consistência de vida plena, de verdades artisticamente convincentes, de
uma arquitetura ficcional equilibrada no seu todo mercê da capacidade
técnica e dos poderes de invenção e imaginação do autor. Seria, dessa
maneira, aquele chamado "pacto narrativo", no qual o leitor é arrastado ou
atraído pelo que uma narrativa lhe oferece como forma de conhecimento real 
proveniente da naturalidade de experiências alegres, tristes,
problemáticas, conflituosas e extraordinárias.
Saber ficcionalizar - acrescenta o entrevistado - é libertar
o leitor do caos da vida real para uma nova visão mais completa e
variegada de perceber o mundo. . Em amplos recortes da realidade. o
ficcionista assume, sem constrangimentos, a condição de também poder
levar o leitor a partilhar essas imensas possibilidades de ver a
existência de uma perspectiva privilegiada que só a arte pode 
propiciar num compromisso em que valores morais e estéticos se sobreponham
sempre à selvageria e à anarquia como propôs F. Schiller (1759-1805) já na
sua época e que tão atual ainda soa aos nossos ouvidos contemporâneos.
Essas possibilidades de conhecimento, por via da literatura, só
se tornam patentes quando o leitor se vê ante uma realidade tão fundamente
"real" e até mais totalizadora de uma narrativa enraizada sob a chama viva
da recriação de mundos e vidas, de seres, de espaços, de paisagens, de
tempos habilmente manipulados e sobretudo costurados com os instrumentos
necessários do talento de um criador. Este, pela linguagem e para a
linguagem recodificada, em termos de originalidade e estilo literário,
daquilo que os formalistas russos denominaram literariedade, muitas vezes
tem a capacidade de surpreender outros criadores e de mudar-lhe hábitos e
concepções de narrativa.
Seria exemplo o da romancista Nathalie Sarraute (1900-1999)
que, após a leitura da famosa obra de Marcel Proust, À a recherche du temps
perdu, declarara se impossível ver o mundo como o tinha visto ate então,
tal o choque e reação provocados pela obra de Proust. Para ela Proust
representava 'uma certa ordem de sensação.' Ou seja, essa visão nova
apreendida da ficção proustinana compreendia 'diversos níveis de
consciências' que, através do escritor, "procuravam confusamente a sua
forma".
Recordo que um colega de magistério me confessara há anos que,
após a leitura de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, sua visão
também tanto da vida quanto da arte lhe causou forte e saudável mudanças de
concepções de literatura no gênero ficcional.
O entrevistador, que ainda dispunha de algumas perguntas a
fazer ao escritor, resolveu dar por encerrada a entrevista. Contudo, para o
leitor da entrevista ficou bailando no ar uma curiosidade teórica, a de que
cada escritor tenta mostrar seu processo criativo, mas se percebe que ali
deixou escapar o principal que, na minha opinião, amiúde é posto de lado: o
significado epistemológico do que sejam os mais diversos meios e recursos
de que a ficção dispõe na difícil tarefa da arquitetura da obra. Desses
meios e recursos intuímos alguns, mas não todos em cada escritor,
cujas razões últimas de procedimentos compositivos nunca são realmente
reveladas.
Esse pulo do gato é escamoteado por vezes e é ele que provoca o
silêncio das palavras. Aquelas razões últimas permeiam esse silêncio e
pausas, assim como sua impossibilidade de se expor, por completo, ante o
fenômeno literário, às verdades que gostaríamos de conhecer porque,
ademais, o silêncio deixa um vazio, provoca dúvidas e ambiguidades, traços
que não podemos negar no fenômeno literário, pois desvelariam (ou não) o
segredo ou o mistério necessários à permanência da essência da literatura.
Cada escritor guarda para si uma carta na manga.. Só que não a entrega a
ninguém e com ele morre.





NOTAS

(1) FREITAS, Guilherme. A realidade da ficção. In: O GLOBO, Prosa & Verso,
26/05/2012, p. 1-2 
(2) SCHILLER, f. La educacion estetica del hombre. Trad. de Manuel G.
Morente. Terceria edicion. Buenos Aires: ESPASA-CALPE ARGENTINA, S.A.,
1945.
(3) BOURNEUF, Roland e OUELLET, Real. O universo do romance. Trad. de José
Carlos SEABRA Pereira Coimbra: Livraria Almedina, 1976, p. 286-287.
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