A SENSIBILIDADE CLARICEANA DE NARRAR O COTIDIANO

July 6, 2017 | Autor: Silvania Cápua | Categoria: Clarice Lispector, Silviano Santiago
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL COLEGIADO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

ANAIS

Feira de Santana 2012

Ficha catalográfica: Biblioteca Central Julieta Carteado - UEFS

Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos (3. : C693a 2011 : Feira de Santana, BA). Anais do 3. Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos [arquivo legível por maquina]: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho (1911-2011): a crítica literária no Brasil, de 15 a 16 de dezembro de 2011/ organização (anais): Danilo Cerqueira Almeida, Adeítalo Manoel Pinho. – Feira de Santana: UEFS, 2011. 1 arquivo de texto. ISBN: 978-85-7395-210-0 Retirado do site: HTTP:// www2.uefs.br/dla/romantismoliteratura/coloquiogrupodeestudos2011 1. Literatura. 2. Coutinho, Afrânio, 1911-2011 – Interpretação e critica. I. Almeida, Danilo Cerqueira, org. II. Pinho, Adeítalo Manoel, org. III. Titulo. CDU 82

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

Reitor José Carlos Barreto de Santana Vice-reitor Genival Corrêa de Souza Pró-Reitor de Graduação Rubens Edson Alves Pereira Pró-Reitora de Extensão Maria Helena da Rocha Besnosik Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Marluce Maria Araújo Assis Pró-Reitor de Administração e Finanças Rossine Cerqueira da Cruz Diretora do Departamento de Letras e Artes Mávis Dill Kaipper Coordenador do Programa de Pós-graduação em Literatura e Diversidade Cultural Adeítalo Manoel Pinho

Universidade Estadual de Feira de Santana Avenida Transnordestina, S/N Bairro: Novo Horizonte Tel.: (75) 3161-8000 CEP: 44.036-900 Feira de Santana-BA Site: www.uefs.br

ORGANIZAÇÃO COORDENADOR GERAL Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho (GELC/UEFS)

ORGANIZAÇÃO (Anais) Danilo Cerqueira Almeida Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho

COMISSÃO ORGANIZADORA Profa. Dra. Maria da Conceição Pinheiro Araújo (GELC/IFBA-Salvador) Ma. Juliana de Souza Gomes Nogueira (GELC) Ma. Silvania Cápua Carvalho (GELC/PPgLDC/UEFS) Ma. Elizangela Maria dos Santos (GELC/PPgLDC/UEFS) Andreia Ferreira Alves Carneiro (GELC/PPgLDC/UEFS) Edinage Maria Carneiro da Silva (GELC/PPgLDC/UEFS) Maria David Santos (PPgLDC/UEFS) Danilo Cerqueira Almeida (GELC/UEFS)

MONITORIA Bárbara Daiana A. Nascimento Cíntia Portugal de Almeida Eliseu Ferreira da Silva Juliana Pacheco Oliveira Neves Maurício de Oliveira Santos Nathielly Gadelha da Silva Palloma Morais Rocha Patrike Wauker Pereira da Silva Priscylla Marinho Magalhães Tiago Rebouças de Almeida

COMITÊ CIENTÍFICO Prof. Dr. Cláudio Cledson Novaes (UEFS) Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira (GELC/UESC) Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel (UEFS) Prof. Dr. Benedito José de Araújo Veiga (UEFS) Profa. Dra. Edite Luzia de A. Vasconcelos (IFBA) Profa. Dra. Maria da Conceição P. Araújo (GELC/IFBA-Salvador)

WEB DESIGNER Danilo Cerqueira Almeida Leonardo Nunes da Silva ASSESSORIA WEB Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho Maurício de Oliveira Santos EDITORAÇÃO Danilo Cerqueira Almeida REVISÃO Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho Ma. Elizangela Maria dos Santos Maria David Santos NORMATIZAÇÃO (ABNT) Os autores

SECRETARIA Georgia Kaline Maciel da Silva (CPLDC/PPgLDC/UEFS) Thais Leite da Silva Macedo (CPgLet/UEFS)

GELC Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: da literatura de jornal ao sistema literário Site: www2.uefs.br/dla/romantismoliteratura/coloquiogrupodeestudos2011 E-mail: [email protected]

SUMÁRIO

A DIVERSIDADE DOS NOVOS ESTUDOS LITERÁRIOS Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho ....................................................................

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CONFERÊNCIA e PALESTRA A CONTRIBUIÇÃO DE AFRÂNIO COUTINHO PARA OS ESTUDOS LITERÁRIOS NO BRASIL Prof. Dr. Eduardo F. Coutinho .......................................................................

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AFRÂNIO COUTINHO E O PROCESSO EVOLUTIVO DA LITERATURA BRASILEIRA Prof. Dr. Luiz Roberto Cairo ..........................................................................

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SILVIANO SANTIAGO E A LEITURA CRÍTICA Prof. Dr. Roberto Carlos Ribeiro ..................................................................

31

MESAS AFRÂNIO COUTINHO, 100 ANOS POR UM AMADURECIMENTO CULTURAL DA BAHIA Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho ..................................................................

47

COUTINHO E CANDIDO: ELOGIO À CRÔNICA Profa. Dra. Alana de Oliveira Freitas El Fahl ...............................................

55

CRÍTICA CULTURAL E BIOGRAFIA: ESPARSOS E INÉDITOS DE MARIO QUINTANA Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira, Profa. Ma. Miquela Piaia .................

61

SANTIAGO E AS NOVAS ESCRITURAS NO CENÁRIO DA LITERATURA: UM DIÁLOGO COM JORGE AMADO E PAULO COELHO Profa. Ma. Arlânia Maria Reis de Pinho Menezes .........................................

78

LITERATURA E DEMOCRATIZAÇÃO CULTURAL: NEGOCIAÇÕES PARA UM NOVO OLHAR NA CONTEMPORANEIDADE Profa. Ma. Elizangela Maria dos Santos .........................................................

83

O SER COMO ELEMENTO CULTURAL: DIÁLOGOS ENTRE SILVIANO SANTIAGO E MARTIN HEIDEGGER Profa. Ma. Juciene Silva de Sousa Nascimento ..............................................

93

A SENSIBILIDADE CLARICEANA DE NARRAR O COTIDIANO Profa. Ma. Silvania Cápua Carvalho ............................................................

107

COMUNICAÇÕES A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE ALTAMIRANDO REQUIÃO: A BAHIA DO SÉCULO XVII NA FICÇÃO METAHISTORIOGRÁFICA Cristiane Tavares Santos Melo .....................................................................

118

MEMÓRIAS N’O IMPARCIAL: A LITERATURA BRASILEIRA POR JOÃO PARAGUAÇU Danilo Cerqueira Almeida ............................................................................

130

O CINEMA DE OLNEY SÃO PAULO: UMA ANÁLISE DE GRITO DA TERRA NO CONTEXTO DO CINEMA NOVO Dinameire Oliveira Carneiro Rios ...............................................................

144

DON JUAN ÀS AVESSAS: A PARÓDIA AMOROSA EM CONFISSÕES DE NARCISO, DE AUTRAN DOURADO Elis Angela Franco Ferreira Santos ............................................................

154

O CONTO, O NARRADOR E A NARRATIVA MODERNA E PÓSMODERNA EM SILVIANO SANTIAGO E WALTER BENJAMIN Eliseu Ferreira da Silva .................................................................................

166

A IRONIA ROMÂNTICA E O LUGAR DO NARRATÁRIO EM CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO Ena Lélis .........................................................................................................

176

A QUESTÃO CULTURAL E A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL EM A LITERATURA AFORTUNADA DE AFRÂNIO COUTINHO Juliana Cordeiro de Oliveira Silva ..................................................................

186

A CULTURA BAIANA DO VALE DO SÃO FRANCISCO: JACUBA, DE WILSON LINS Maurício de Oliveira Santos .........................................................................

195

A CONCEPÇÃO DE CULTURA DE AFRÂNIO COUTINHO N’O IMPARCIAL DA BAHIA Patrike Wauker Pereira da Silva ...................................................................

204

O CONQUISTADOR: UM ENTRELAÇAMENTO PARODÍSTICO ENTRE O TEXTO HISTORIOGRÁFICO E O FICCIONAL Profa. Ma. Sinéia Maia Teles Silveira ............................................................

215

A AULA DE ARTE-EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE REFLEXÃO CULTURAL Wilson Sousa Oliveira ....................................................................................

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3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

A DIVERSIDADE DOS NOVOS ESTUDOS LITERÁRIOS

O projeto de pesquisa A Literatura de Jornal em Periódicos Brasileiros (CONSEPE 059/2009) tem como uma de suas atividades, o Grupo de Estudos Literários Contemporâneos, o qual tem por fim o estudo de uma obra ou autor durante o período de um ano, culminando com a realização de colóquio para apresentação de resultados, debates com especialistas e avaliação das atividades. O grupo já realizou dois colóquios, um sobre o livro do historiador Jacques Le Goff, I Colóquio do Grupo de Estudos Contemporâneos: história, memória e literatura, e outro sobre o livro O Local da Cultura, do crítico hindu-britânico Homi K. Bhabha, II Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: o local da cultura. Além desses eventos, o grupo promoveu também a realização do IV ENAPEL – Encontro Nacional de Pesquisadores de Periódicos, em setembro de 2010 e o Simpósio 22, no III SIMELP – Simpósio Mundial de Estudos em Língua Portuguesa, Macau-China, 30 de agosto a 2 de setembro de 2011. Agora, após estudo do livro eleito para este ano: O Cosmopolitismo do Pobre (2004), de Silviano Santiago, organizamos o 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos. Realizado nos dias 15 e 16 de dezembro de 2011, no Anfiteatro do módulo II da Universidade Estadual de Feira de Santana, aproveitamos a oportunidade para homenagear também o grande crítico baiano Afrânio Coutinho (1911-2011), que completa 100 anos de nascimento este ano, promovendo no evento uma discussão sobre o autor e sua grande obra. Assim, surgem debates também sobre os rumos dos estudos literários nas suas três faces: teoria, crítica e história da literatura. Para tanto convidamos alguns nomes importantes para contemplar os temas abordados. São eles: Prof. Dr. Eduardo Coutinho (UFRJ), Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP/Assis), dois grandes especialistas em literatura comparada e crítica literária de expressão nacional e internacional e o Prof. Dr. Roberto Carlos Ribeiro, um pesquisador especialista na produção crítica e ficcional de Silviano Santiago. Juntam-se a estes nomes de ponta dos estudos literários, especialistas do grupo de pesquisa e da casa, igualmente renomados, como o Prof. Dr. Jorge de Souza Araujo (UEFS), Prof. Dr. Benedito José de Araujo Veiga (UEFS), Prof. Dr. André Luis

ISBN 978-85-7395-210-0

3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

Mitidieri Pereira (GELC/UESC), Profa. Dra. Maria da Conceição Pinheiro Araujo (GELC/IFBA). Além desses nomes, uma ruma de doutorandos, mestres, mestrandos, especialistas, especializandos, bolsistas de Iniciação Científica e graduandos pertencentes ao Grupo de Estudos Literários Contemporâneos e a outras instituições apresentaram propostas de trabalho. Durante o evento, lança-se o primeiro livro do grupo de estudos: Literatura, história e memória: leituras de Jacques Le Goff (UEFS Editora, 2011). Desde já desejando votos de excelente evento, esperamos poder oferecer à comunidade o retrato dos nossos esforços durante o ano de 2011, assim como oportunidade de pesquisadores de outras instituições partilharem conosco as suas produções para o avanço dos estudos literários e contemplarem as expectativas das comunidades envolvidas em nossos debates, escritas, compromissos, interesses e paixões.

Adeítalo Manoel Pinho Comissão Organizadora.

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 6-7.

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CONFERÊNCIA E PALESTRA

3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

A CONTRIBUIÇÃO DE AFRÂNIO COUTINHO PARA OS ESTUDOS LITERÁRIOS NO BRASIL1 Eduardo F. Coutinho 2

Considerado uma das maiores expressões dos estudos literários no Brasil, no século XX, Afrânio Coutinho teve um papel fundamental na reestruturação dos estudos de Literatura no país, através das contribuições que introduziu no âmbito da Crítica, da Teoria e da Historiografia literárias. Além disso, destacou-se pela sua atuação no ensino da Literatura, onde transformou significativamente os métodos de abordagem de autores e textos, e na divulgação de escritores brasileiros por intermédio das obras coletivas que realizou. Neste trabalho, faremos uma breve apresentação de algumas das principais linhas de reflexão desenvolvidas pelo autor e ofereceremos uma visão de sua contribuição nos diversos estratos dos estudos literários no Brasil. A

crítica

literária

brasileira

em

meados

do

século

XX

achava-se

predominantemente dividida, salvo raras e honrosas exceções, entre resquícios de um historicismo novecentista e de um puro impressionismo, e exercia-se na maioria dos casos por meio da resenha jornalística. No primeiro caso, tratava-se de uma crítica dominada pelo estudo dos fatores exteriores ou extrínsecos que condicionam a gênese do fato literário, e que repercutia as teorias de Taine e Sainte-Beuve, do naturalismo e determinismo biológico, social e geográfico, e do biografismo, princípios esses a que se devem a obra de Sílvio Romero e dos outros críticos e historiadores literários da fase naturalista e positivista do final do século XIX e começo do XX. De acordo com essa perspectiva, a obra literária era vista como uma instituição social, um documento – de uma raça, uma época, uma sociedade, uma personalidade – e as relações entre a literatura e a vida se resolviam em favor da vida, de que a literatura tinha que ser um espelho.

1

Este texto foi publicado também no livro Crítica e Literatura, org. por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, Silvio Augusto de Oliveira Holanda e Valéria Augusti (Rio de Janeiro: De Letras, 2011, p. 185-96. 2 Professor Titular da UFRJ.

ISBN 978-85-7395-210-0

3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

No segundo caso, tinha-se um tipo de crítica calcado na ausência de qualquer método de abordagem, de qualquer organização sistemática. Era uma espécie de percepção, anterior à interpretação e ao julgamento. A tendência marcante da crítica impressionista, de que foram expoentes figuras como Anatole France e Walter Pater, era sair do objeto para o sujeito, mudar ou transferir o interesse para o crítico, suas impressões e emoções, despertadas pela leitura ou escuta de uma obra de arte. No entanto, no contexto brasileiro, o impressionismo crítico havia degenerado em torneios opiniáticos ou meros registro de impressões, sem conteúdo doutrinário nem base crítica, e se havia confundido com a simples resenha ou recensão crítica. Insatisfeito com essa situação da crítica literária no Brasil e imbuído de uma série de idéias desenvolvidas em cursos e pesquisas que realizou na Universidade de Columbia, em Nova York – cidade onde vivera no período de 1942 a 1947 como Secretário de Redação da revista Seleções do Reader’s Digest – Afrânio Coutinho desencadeou, a partir de 1948, intensa campanha de renovação, primeiro na seção denominada “Correntes Cruzadas” do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, e em seguida em diversos livros que veio a publicar ao longo de sua carreira, dentre os quais Por uma crítica estética (1953), Correntes Cruzadas (1953), Da crítica e da nova crítica (1957), A crítica (1959), Crítica e poética (1968) e Crítica e críticos (1969). Nessa campanha, Afrânio advogava veementemente um tipo de crítica intrínseco ao próprio fato literário, que partisse do texto enquanto tal, reconhecendo e respeitando sua autonomia, e que o enfocasse à luz de pressupostos de ordem fundamentalmente estética. Era a derrocada do historicismo em seu sentido tradicional, que abordava a obra literária sempre por um movimento do contexto para o texto, e o abandono ao impressionismo crítico – ao “achismo”, como ele costumava dizer – em nome de um labor científico, técnico e meticuloso, que colocava a crítica brasileira ao lado das grandes correntes que se vinham desenvolvendo, havia já algumas décadas, na Europa e nos Estados Unidos. Com base em pressupostos dessas correntes, dentre as quais destacamos o Formalismo Russo, a Estilística Espanhola e Teuto-Suíça, o Aristotelismo de Chicago, a Analyse de Texte francesa e sobretudo o New Criticism anglo-americano, Afrânio Coutinho se bateu com ardor pela primazia do texto literário, enfatizando, na abordagem da obra, a necessidade de se focalizarem os seus elementos estruturais e ergocêntricos, e

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20.

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3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

a harmonia do conjunto, responsáveis pelo que os formalistas eslavos designaram de “literariedade”. Além disso, chamou atenção para a importância de o analista aproximar-se o máximo possível do texto, a fim de evitar o subjetivismo acentuado que tanto caracterizara a crítica de cunho impressionista. Todas essas correntes acham-se presentes em maior ou menor escala na Nova Crítica introduzida por Afrânio Coutinho no meio intelectual brasileiro, mas é preciso lembrar que a sua doutrina não se atinha exclusivamente a nenhuma delas. A Nova Crítica nunca foi, como se chegou erroneamente a afirmar, mero transplante dos princípios do New Criticism anglo-americano ao contexto brasileiro, e sim uma tendência com feição própria, que abarcou métodos e técnicas de várias origens, tendo tido inclusive como precursores figuras como Machado de Assis e Mário de Andrade, que desenvolveram estudos críticos calcados na primazia do texto e exploraram com rigor meticuloso os elementos intrínsecos das obras que analisaram. A ênfase posta por Afrânio Coutinho no primado do texto literário foi, aliás, uma questão que gerou certo mal-entendido no meio intelectual brasileiro, à época ainda muito aferrado aos métodos tradicionais, máxime aos que se voltavam para uma perspectiva

extrínseca.

Propor

uma

abordagem

crítico-teórica

que

parta

fundamentalmente do texto não significa, de modo algum, ignorar o contexto históricocultural em que a obra fora produzida. O que se nega na Nova Crítica é o enfoque extrínseco, que vê a obra como reflexo e não como realidade autônoma; a relação com o contexto, ao contrário, é uma etapa indispensável de qualquer processo crítico. A obra para a Nova Crítica é um conjunto harmonioso dos diversos elementos que a compõem, mas ela se acha sempre em relação dialética com o contexto em que surge. Combate-se na Nova Crítica o historicismo no sentido definido anteriormente, mas se respeita plenamente a história; rejeita-se do mesmo modo uma abordagem puramente extrínseca, mas se defende e se realiza, o estudo das relações da obra com o contexto sócio-político e econômico ao qual ela se encontra vinculada. A exigência de rigor metodológico na abordagem do fenômeno literário acha-se relacionada a uma tendência ocorrida no Brasil em meados do século XX, que foi a passagem da crítica literária do periodismo para o meio acadêmico, e das mãos dos críticos em geral para as dos professores e pesquisadores universitários. Até esse momento, a crítica literária era exercida no Brasil de duas maneiras: ora como crítica no

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sentido estrito, em livros ou estudos, ora sob a forma militante, semanal, enciclopédica, na imprensa, na maioria dos casos em folhetins ou rodapés. Ao primeiro tipo reservavase a denominação de “ensaio” e ao segundo a de “crítica”, o que gerou à época uma série de equívocos, levando esta última a ser vista como algo superficial, e de caráter apologético ou restritivo, à maneira da mera resenha. Imbuído do espírito acadêmico resultante de sua formação, Afrânio Coutinho se empenhou na defesa da especialização da crítica literária como uma disciplina científica e autônoma, mostrando como o seu exercício não se coadunava com o espírito mais leve da imprensa diária. A crítica, para ele, deveria estar voltada para a cátedra, a revista especializada, o livro, como era o caso do chamado “ensaio”, e estar calcada em princípios e métodos rigorosos; à recensão ou resenha, importante também, mas de cunho mais leve, informativo, e exercida de modo diletante, ficariam destinadas as páginas dos jornais. Sua defesa teve um papel expressivo na passagem da crítica para as mãos especializadas do scholar e na sua futura institucionalização no meio universitário. A tentativa de sistematização dos elementos que integram a estrutura da obra literária, somada à busca de rigor na abordagem do texto, levou Afrânio Coutinho a uma preocupação com a teoria da literatura, que ele procurou explicitar em vários de seus livros, em especial no volume Notas de teoria literária (1976). O livro é um resumo das principais teorias existentes sobre os pontos fundamentais do estudo da Literatura, em nível bastante elementar, mas procurando ser informativo e, ao mesmo tempo, tentando orientar o estudante no intricado dos problemas, sem acumulá-lo com excessos doutrinários. Embora voltado primordialmente para o docente e o estudante de Letras, o livro pressupõe uma filosofia da Literatura, bem como uma teoria de seu ensino. Seu autor parte da idéia de que o aprendizado da Literatura não deve ser subordinado ao do vernáculo, como fora prática corrente no Brasil, e, portanto, deve estar centrado nos textos. Além disso, o que se visa não é a fornecer apenas informação de ordem histórico-cultural, como se fez durante longa data, mas a desenvolver o gosto pela leitura e a apreciação estética. Essa defesa do primado do texto, presente tanto na Nova Crítica quanto no âmbito da Teoria Literária, encontrou também terreno fértil na esfera da historiografia literária, com a publicação, entre 1955 e 1959 de A Literatura no Brasil, obra coletiva lapidar de história literária (em quatro volumes na primeira edição), idealizada,

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20.

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planejada, dirigida e, em grande parte, escrita por Afrânio Coutinho, com base em um método inteiramente novo – o periodizador estilístico. Deixando de lado a perspectiva extrínseca, remanescente do historismo lansoniano, e adotando como método em sua estruturação a periodização estilística, baseada na primazia do texto literário e numa abordagem centrada no caráter estético da obra, A Literatura no Brasil pôs em prática o projeto desenvolvido por seu idealizador na campanha que desencadeara em prol da Nova Crítica e do estudo da literatura baseado primordialmente nos elementos integrantes da composição da própria obra, e revolucionou completamente o conceito de historiografia literária no Brasil. Além disso, com o seu caráter coletivo – os capítulos específicos sobre autores ou movimentos literários foram confiados a especialistas distintos sob a supervisão de Afrânio Coutinho –, a obra adquiriu uma abrangência extraordinária, oferecendo um panorama crítico-evolutivo da literatura brasileira desde suas primeiras manifestações até os dias em que foi publicada, com estudos de profundidade sobre figuras ou movimentos específicos, até então nunca vistos em obras de história literária no Brasil. Seus capítulos foram estruturados com base em critérios intrínsecos à área dos estudos literários e divididos em subcapítulos específicos, voltados para tópicos ou autores, nem sempre restritos ao chamado “cânone” da literatura brasileira. Na obra, que se foi ampliando nas edições subseqüentes, sob a organização do mesmo autor, há estudos específicos sobre folclore, literatura oral e popular, sobre gêneros como o ensaio, a crônica e o drama, e modalidades como a chamada “literatura infanto-juvenil”, e há estudos de teor comparativo como “literatura e filosofia” e “literatura e artes”. Estes estudos são em geral produzidos por autores diversos e conseqüentemente oferecem no conjunto da obra uma multiplicidade de visões que complementam o cunho abrangente que lhe quis dar o seu idealizador. Com o sucesso de sua primeira edição, A Literatura no Brasil teve até o presente mais seis, revistas e atualizadas, e encontra-se agora em sua sétima edição, em seis volumes, publicada em 2004 pela Global, de São Paulo, já após seu falecimento. Mas observe-se que os capítulos introdutórios de cada parte do livro, escritos todos eles por Afrânio Coutinho, foram reunidos por ele mesmo em um volume, a Introdução à Literatura no Brasil, publicado pela primeira vez em 1959, mas que já conta com mais de quinze reedições e se encontra traduzido para o inglês e o espanhol. Este livro, que

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20.

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assenta as bases da periodização estilística levada a cabo pelo autor, é obra indispensável para a compreensão de sua proposta inovadora e constitui um item fundamental na produção bibliográfica do autor. Outro ponto crucial dos estudos de Crítica e História Literária realizados por Afrânio Coutinho foi o movimento que desencadeou para demonstrar que a literatura brasileira já atingira a plenitude de sua personalidade, tanto na lírica quanto na ficção, em conseqüência do desenvolvimento de uma “tradição afortunada”, proveniente dos primórdios da vida nacional. Essa tradição, que constitui objeto de estudo de um dos livros mais expressivos de sua carreira, publicado em 1968 com este título – A tradição afortunada – consistiu na presença na literatura brasileira, desde suas primeiras manifestações (cite-se como exemplo a obra satírica de Gregório de Matos), do que Machado de Assis cunhou de “instinto de nacionalidade”, que veio tomando corpo ao longo dos anos até configurar-se em verdadeiro processo de descolonização literária, consolidado a partir do Romantismo. Desse momento em diante, segundo Afrânio Coutinho, a literatura brasileira já apresenta fisionomia própria, que nunca mais se dissipa. Ao contrário, vem ganhando em nitidez à medida que avança em seu percurso, sobretudo no século XX, após a eclosão do Modernismo. Com base nas primeiras manifestações da literatura produzida no Brasil, Afrânio Coutinho desenvolveu a tese de que as raízes de nossa literatura se encontram no barroco, estilo que aqui aportou pelas mãos dos jesuítas, mas que se modificou substancialmente no contacto com a nova terra, dando origem a algo novo, com uma feição bastante distinta da de seu contexto de origem. O autor combate a historiografia literária lusa que considerava a literatura produzida no Brasil no período colonial como ramo da portuguesa, e procura mostrar como desde Anchieta, passando por figuras como Vieira e principalmente Gregório de Matos, essa produção já apresentava não só traços que a distinguiam da literatura da metrópole, como sobretudo uma preocupação em marcar a sua singularidade, que se expressa, por exemplo, através das obras dos autores citados ou de figuras como a do Aleijadinho, no âmbito das artes plásticas. Tais questões acham-se presentes em seus livros Conceito de literatura brasileira (1960) e O processo de descolonização literária (1983), mas seus estudos sobre o barroco já se haviam iniciado desde a tese com que obteve a cátedra de Literatura Brasileira no

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 9-20.

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Colégio Pedro II em 1951 (Aspectos da literatura barroca), e depois se reuniram no volume Do barroco, publicado pela Tempo Brasileiro em 1994. Assim como na produção literária, também na esfera dos discursos sobre a literatura a preocupação com a busca de identidade nacional já se fazia sentir desde o período colonial, acentuando-se com o Romantismo e posteriormente com o movimento modernista. Mas, ao largo de todo esse tempo permaneceu também viva no Brasil uma tendência oposta de admiração quase cega dos modelos europeus, que eram para cá transplantados e freqüentemente apenas adaptados ao novo contexto. Contra esse colonialismo mental, esse sentimento de inferioridade, oriundo do processo de colonização, Afrânio Coutinho se bateu ardorosamente em muitos de seus textos, pregando a formação de uma consciência voltada para a realidade brasileira (vide A polêmica Alencar-Nabuco, 1965, e Caminhos do pensamento crítico, 1964). Para o autor, assim como era preciso procurar em nossa literatura não a semelhança com a européia, mas a diferença que a caracterizava e lhe conferia singularidade, era mister também que se lutasse, como afirmava assiduamente, “por uma crítica brasileira”, pela consolidação de um pensamento, ou de um corpus crítico-teórico, calcado sobre o húmus dessa terra. A preocupação de Afrânio Coutinho com a constituição de uma crítica literária brasileira e ao mesmo tempo científica e meticulosa, que tem como veículo o ensaio acadêmico e não apenas a resenha jornalística, somada aos seus muitos anos de experiência docente em nível tanto secundário quanto superior, se refletiu também no ensino da Literatura, onde, do mesmo modo, introduziu verdadeira revolução, marcada pela defesa do estudo centrado no texto literário em vez de na história da literatura, como era praxe ainda na maioria das instituições brasileiras. Era preciso, segundo ele, desenvolver no estudante o gosto pela literatura, e isso só era possível com o contacto direto com o texto literário, e não com uma listagem estéril de nomes e datas. Ao aluno competia, antes de mais nada, a leitura dos textos, e ao professor a orientação em sala de aula, que deveria partir de discussões conjuntas sobre os textos selecionados, visando a sistematizações teóricas e reflexões críticas. Ao aluno brasileiro faltava, segundo ele, saber ler, no sentido de extrair de um texto o fundamental, e pensar, refletir, sobre o material em questão. E era na orientação à reflexão crítica e teórica que residia o papel do professor.

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O papel de docente de Afrânio Coutinho fica bastante evidenciado, não só por sua atuação amplamente reconhecida em sala de aula e pelas palestras e conferências que pronunciou, muitas delas publicadas em separatas ou em periódicos no Brasil e no exterior, como também pela quantidade e qualidade de teses e dissertações que orientou, e de obras de ex-discípulos que prefaciou. Afrânio Coutinho era, além de crítico meticuloso, um entusiasta da produção literária e crítica que se fazia no Brasil, e sua contribuição como divulgador da obra de autores novos e de estudiosos da literatura foi significativa, conforme dão testemunho as obras de referência que coordenou e publicou, dentre as quais Brasil e brasileiros de hoje (1961), Crítica e críticos (1969) e a Enciclopédia de Literatura Brasileira, esta última já de 1989. Como organizador de edições de autores da literatura brasileira, Afrânio Coutinho apresenta também ampla produção, tendo elaborado entre outras as obras completas de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade, a obra poética de Vinícius de Morais, os romances completos de Afrânio Peixoto, a obra crítica de Araripe Júnior, os estudos literários de Alceu Amoroso Lima, e numerosas edições críticas de obras de autores como Ambrósio Fernandes Brandão, Manuel Antônio de Almeida, José do Patrocínio, Rocha Pombo, Viriato Correia, Lindolfo Rocha, Rodolfo Teófilo, Ribeiro Couto, Ascendino Leite e Adonias Filho, entre outros. Em todos esses casos, Afrânio Coutinho, além da organização da obra, escreveu substanciais estudos críticos introdutórios que constituem peças indispensáveis da fortuna crítica dos autores em questão, como é o caso do texto introdutório das Obras completas de Machado de Assis, autor por quem o crítico nutria especial admiração e sobre o qual escreveu os livros A filosofia de Machado de Assis (1940) e Machado de Assis na literatura brasileira (1960), ambos posteriormente reunidos em edição da Academia Brasileira de Letras (1990). O envolvimento de Afrânio Coutinho com o ensino foi tal que, além das cátedras que ocupou, primeiro no Colégio Pedro II e depois na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, participou de inúmeros colegiados, inclusive o Conselho Federal de Educação. E no âmbito da universidade, foi fundador, nesta última, de uma Faculdade de Letras, moderna e dinâmica, que se tornou modelo à época em todo o país. Os cursos superiores de Literatura eram até então no Brasil ministrados nas Faculdades de Filosofia, ou de Ciências Humanas em geral, não sendo

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dotados assim de espaço próprio para desenvolver-se. Afrânio Coutinho, imbuído da experiência que vivera no exterior, onde as Escolas ou Departamentos de Letras já haviam conquistado ampla e reconhecida tradição, lutou por torná-los independentes, e lançou a pedra fundamental de uma instituição hoje plenamente consolidada. Além disso, instituiu também nessa Faculdade seis Cursos de Pós-Graduação em diversas áreas das Letras, atualmente bastante conceituados, e construiu, entre outras coisas uma biblioteca – orgulho da instituição – que possui acervo respeitável e raridades incalculáveis. O interesse pelas bibliotecas sempre foi, aliás, uma das tônicas da carreira de Afrânio Coutinho. Além da biblioteca José de Alencar, da Faculdade de Letras da UFRJ, que ele criou, acrescentando a um núcleo básico proveniente da antiga Faculdade Nacional de Filosofia um grande número de bibliotecas particulares especializadas de professores sobretudo da casa que ele se empenhou em adquirir para a Faculdade quando fora seu diretor, Afrânio Coutinho construiu ao longo de toda sua vida uma extraordinária biblioteca particular. Esta biblioteca serve às áreas de Literatura Brasileira e Estrangeiras, Teoria e Crítica Literárias, Filosofia, História, Educação, Estudos Brasileiros, Lingüística, Filologia, Sociologia, Arte Brasileira e Universal e Estudos Culturais, entre outras, e inclui, além do seu acervo básico, um rico manancial de obras de referência, primeiras edições hoje raras, manuscritos de autores como Machado de Assis, Raul Pompéia, José de Alencar, Castro Alves e Afrânio Peixoto, coleções completas de revistas e periódicos nacionais e estrangeiros, arquivos de recortes de jornais de e sobre autores brasileiros e farto material iconográfico. Esse acervo, que no princípio, ainda reduzido, ocupava o terceiro pavimento da residência de Afrânio Coutinho, em Ipanema, foi-se avolumando de tal modo, que ao largo da década de 1970 estendeu-se a toda a casa, empurrando o seu morador para um pequeno cômodo na parte superior, que seus amigos jocosamente qualificaram de “cela de monge”. Ali, em meio a pilhas de livros e jornais, lendo e escrevendo sem cessar, Afrânio Coutinho concebeu a idéia de abri-la para o público, transformando a própria residência em um centro de pesquisas literárias, onde se realizariam, além da consulta à biblioteca, atividades de diversa sorte, englobando desde cursos variados até a organização de publicações.

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Surgida em 1979 e extinta em 1991 pela carência de recursos para mantê-la, a Oficina Literária Afrânio Coutinho (OLAC) floresceu na década de 1980, tendo-se tornado ponto de referência na vida cultural da cidade e uma instituição de prestígio, amplamente reconhecida no Brasil e no exterior. Nela se realizaram cursos em todos os setores do conhecimento ligados à literatura e às artes; por ela passaram especialistas de reputação internacional. De suas oficinas de literatura, a atividade que deu nome à casa, surgiram novos poetas e ficcionistas; das pesquisas ali executadas vieram a lume publicações. Seus arquivos de pastas de recortes que Afrânio Coutinho colecionou desde o início de sua carreira – uma das maiores preciosidades ali existentes – foram largamente consultados, sobretudo para a realização de teses e dissertações universitárias, e seus livros foram amplamente manuseados pelo público. Várias obras de autores brasileiros esquecidas ou pouco conhecidas do público foram revalorizadas na OLAC (lembremo-nos pelo menos da publicação das Obras de Raul Pompéia em dez volumes, e das obras de Otávio de Faria), e publicou-se em 1989 a Enciclopédia de Literatura Brasileira, elaborada durante anos por uma equipe de pesquisadores sob a sua orientação. Esta enciclopédia, que abrange a Literatura Brasileira desde o início da colonização até os dias atuais, teve uma segunda edição, ampliada e atualizada, em 2001. Três anos após a extinção da OLAC, a Biblioteca de Afrânio Coutinho, embora ainda amplamente freqüentada, foi vendida à UFRJ, com o propósito de ser abrigada, em ala à parte, anexa à Biblioteca José de Alencar, da Faculdade de Letras. Contudo, devido ao número elevado de itens que compunham o acervo, ela teve em sua maior parte de ser incorporada à Biblioteca da Faculdade, cada livro caracterizado com o exlibris da antiga OLAC, e na ala nova, então construída, foram instaladas as obras raras, edições especiais, as publicações do próprio autor e as obras assinadas ou com dedicatória dirigida a ele. Além disso, foi criado na ala designada a essas publicações um Centro de Estudos, batizado de Centro de Estudos Afrânio Coutinho (CEAC), com a finalidade de dar continuidade aos projetos interrompidos da OLAC e iniciarem-se outros nas áreas de Humanidades em geral, com ênfase especial sobre literatura e cultura. O CEAC vem sendo hoje bastante consultado pelo público e das pesquisas em seu acervo já saíram as primeiras publicações.

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Onze anos fez, em 2011, ano do centenário de seu nascimento, que Afrânio Coutinho faleceu, e sua contribuição aos estudos literários no Brasil segue viva e rendendo frutos preciosos. Afrânio Coutinho foi escritor, professor, pesquisador, jornalista,

educador,

humanista,

bibliófilo,

criador

da

primeira

Faculdade

exclusivamente de Letras do país, e membro da Academia Brasileira de Letras, mas foi antes de tudo um homem de seu tempo e lugar, dotado de grande talento filosófico, que revolucionou, com sua escrita fina, a Crítica, a Teoria e a Historiografia literárias, e mudou o rumo do ensino das Letras no Brasil.

BIBLIOGRAFIA COUTINHO, Afrânio. Correntes cruzadas. Rio de Janeiro: A Noite, 1953. ________. Conceito de literatura brasileira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. ________. A Crítica. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1959. ________. Crítica e críticos. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1969. ________. Crítica e teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições UFCE -- PROED, 1987. ________. Crítica e poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. ________. Da crítica e da nova crítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. ________. Do barroco. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Tempo Brasileiro, 1994. ________. Introdução à Literatura no Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. Distribuidora de Livros Escolares, 1970. ________. Machado de Assis na literatura brasileira. Rio de Janeiro: ABL, 1990. ________. Notas de Teoria Literária. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. ________. A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965. ________. Por uma crítica estética. Rio de Janeiro: MEC, 1953. ________. O processo de descolonização literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

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________. A tradição afortunada (O espírito de nacionalidade da crítica brasileira). Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. ________. Universidade, instituição crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. ________, org. Brasil e brasileiros de hoje; enciclopédia de biografias. 2 vols. Rio de Janeiro: Foto Service, 1961. ________, org. Caminhos do pensamento crítico. 2. ed., 2 vols. Rio de Janeiro: Pallas; Brasília: INL, 1980. ________, org. A Literatura no Brasil. 7. ed., 6 vols. São Paulo: Global 2004. ________ & J. Gallante de Souza, orgs. Enciclopédia de Literatura Brasileira. 2 vols. Rio de Janeiro: FAE, 1989. Lima, Alceu Amoroso et al. Miscelânea de estudos literários. Homenagem a Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Pallas, 1984.

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AFRÂNIO COUTINHO E O PROCESSO EVOLUTIVO DA LITERATURA BRASILEIRA Luiz Roberto Cairo 1

I A década de 50, na literatura brasileira, pode ser considerada como da crítica literária. É o momento em que se adquire a consciência exata do papel relevante da crítica em meio à criação literária e aos gêneros de literatura imaginativa, função da disciplina de espírito literário. Sem ser um gênero literário, mas uma atividade reflexiva de análise e julgamento da literatura, a crítica se aparenta com a filosofia e a ciência, embora não seja qualquer delas. É uma atividade autônoma, obediente a normas e critérios próprios de funcionamento, e detentora de uma posição específica no quadro da literatura. (Coutinho, 2003, p. 112)

2011 é um ano importante para a história da crítica literária brasileira, uma vez que há cem anos, no dia 15 de março, nascia em Salvador, Afrânio Coutinho (19112000), e, em 29 de outubro, falecia em Fortaleza, Tristão de Alencar Araripe Júnior (1848-1911). Ambos, homens de letras, críticos, cujas obras constituem marcos relevantes para a história da crítica literária brasileira. Como leitor da obra crítica desses dois grandes escritores, cujas trajetórias em momentos diversos eventualmente vieram a se cruzar, não poderia deixar de registrar a curiosa relação que entre eles se estabeleceu. Cada um em seu tempo contribuiu com competência para a renovação dos estudos literários no Brasil, deixando sua marca no exercício da atividade crítica e historiográfica, a ponto de se imortalizarem em tempos diferentes na Academia Brasileira de Letras. Araripe Júnior fundou a cadeira de número 16 e Afrânio Coutinho ocupou a cadeira que teve como patrono Raul Pompéia (1863-1895). Araripe mantinha laços de amizade com Pompéia. Afrânio tomou a si a tarefa de organizar em dez volumes a obra

Professor Doutor da F.C.L. ― UNESP ― Campus de Assis Pesquisador CNPq (1D)

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ISBN 978-85-7395-210-0

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de Pompéia e em cinco volumes a obra crítica de Araripe Júnior, tornando-se seu leitor mais sensível ao apresentar o trabalho “Araripe Júnior e o nacionalismo literário”, como tese à Faculdade Nacional de Filosofia, em 1957, para concorrer à docência livre de Literatura Brasileira.

II Sempre fui fiel, sempre fui solidário, ao lado da Bahia. Edições baianas fiz várias. Trabalhei sempre em favor dos baianos, sempre preocupado com figuras da Bahia. Mas no volume de coisas que fazia, a parte da Bahia ficava perdida no meio. (Coutinho, 2003, p.30)

O primeiro contacto que tive com a crítica literária brasileira se deu através de um texto de Afrânio Coutinho, em 1961, nas aulas de português de duas inesquecíveis mestras do Colégio Estadual Severino Vieira, Maria Helena e Candolina Rosa, quando fazia o Curso Colegial - na modalidade Científico - em Salvador. Ambas me levaram a ler o capítulo referente ao Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, d’A literatura no Brasil. Para quem estava então habituado a pesquisas feitas apenas em livros seriados didáticos, aquela leitura aliada às performances brilhantes das duas mestras que nos introduziram uma, no universo psicológico de Raul Pompéia, outra, na linguagem sedutora de Machado de Assis, despertou o encanto pela literatura e pelas humanidades, que me conduziram respectivamente, aos cursos de Direito, em 1963, e Letras, em 1969. Em 1973, como não houvesse Programa de Pós-graduação em Letras, em Salvador, fui ao Rio de Janeiro e em seguida a São Paulo, para informar-me sobre o funcionamento dos Programas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de São Paulo. Foi aí então que tive a oportunidade de conhecer Afrânio Coutinho, a quem fui gentilmente apresentado por sua filha Graça, Bibliotecária da Faculdade de Letras da UFRJ. Foi um contacto rápido, mas estimulante. Além de gentil e acolhedor como costumava ser com os baianos, que o procuravam, Mestre Afrânio me passou todas as informações de que precisava a respeito do Mestrado em Letras da UFRJ. Em seguida, fui para São Paulo, onde conheci na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o crítico pernambucano João Alexandre Barbosa (19373º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30.

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2006) que, curiosamente, aconselhou-me a fazer minha dissertação sobre a obra crítica de Araripe Júnior, o que me reconduziu à leitura da obra do Mestre Afrânio, desta vez, dos seus textos sobre o crítico cearense.

III A história literária do Brasil era vista como uma dependência da portuguesa. Os primeiros séculos eram vistos como um prolongamento da história literária portuguesa, simples continuação da mesma. Isto, apesar dos esforços de Sílvio Romero e outros. Nunca aceitei esta tese. Sempre me rebelei contra ela. Sempre enxerguei o início da literatura no Brasil como literatura brasileira. (Coutinho, 2003, p. 23)

No ano em que se comemora o centenário de nascimento do crítico e historiador Afrânio Coutinho (1911-2011), optei por reler um de seus textos mais significativos, o “Prefácio da primeira edição (1955)” d’A literatura no Brasil, sua magistral história da literatura brasileira. O “Prefácio” é um texto que sozinho alimentaria uma disciplina de introdução aos estudos literários no Brasil. Nele, Afrânio Coutinho aborda questões de história literária, periodização, gêneros literários, as soluções brasileiras, definição e caracteres da literatura brasileira, influências estrangeiras, metodologia, conceito e plano de sua história coletiva da literatura brasileira. Paralelamente, reli a “Introdução” à Formação da literatura brasileira: (momentos decisivos) (1959), de Antonio Candido (1918-), uma vez que juntamente com o “Prefácio”, estes textos constituem importantes divisores de águas dos estudos literários no Brasil, de meados do Século XX. Minha escolha não foi aleatória, pois como professor, sempre os considerei textos de leitura obrigatória, na disciplina Literatura Brasileira I, ministrada, durante 22 anos, na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, em Assis.

IV A crítica universitária hoje é filha desta renovação crítica que se fez no Brasil e em todo o mundo, com o espírito de seriedade e de profundidade, de pesquisa e de orientação metodológica. Hoje a crítica 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30.

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universitária não é apenas isto. É a crítica brasileira pautada em princípio de ordem lógica, de raciocínio lógico e, sobretudo, com grande coisa, eu disse isto, que é a crítica baseada nas pesquisas intrínsecas da obra literária. (Coutinho, 2003, p. 31)

Ao definir a literatura brasileira, na década de 50 do século passado, Afrânio Coutinho, com enorme lucidez, levanta cerca de dez características no processo evolutivo da literatura brasileira e de nossa atividade literária, “sem pretensões a trabalho definitivo, sem tampouco confiar de todo na perdurabilidade dos traços definidores” (Coutinho, 1986, I, p. 35): predomínio do lirismo, exaltação à natureza, ausência de tradição, alienação do escritor, divórcio com o povo, ausência de consciência técnica, culto da improvisação, literatura e política, imitação e originalidade, e metrópole e província. Estas características estão todas, na verdade, organicamente interligadas. Na tentativa de fazer circular alguns de seus pontos de vista exemplares entre os jovens leitores do século XXI, aproveito o espaço oportuno desta mesa-redonda onde se comemoram 100 Anos de Afrânio Coutinho (1911-2011): a crítica literária no Brasil no 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: Um Cosmopolitismo nos Trópicos, evento organizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UEFS, numa iniciativa de Adeítalo Manoel Pinho, em Feira de Santana, para refletir sobre três destas características, que, de certa forma, antecipam os rumos que tomaram a literatura e os estudos literários brasileiros na contemporaneidade. São elas: ausência de tradição, alienação do escritor e divórcio com o povo. A “ausência de tradição”, resultado da oposição entre uma tradição importada e uma eventualmente nova, conduziu a literatura brasileira a uma “antropofagia das gerações”, pois, de seu ponto de vista: (...) cada nova geração, marcada pelo ceticismo e pelo iconoclastismo, em vez de procurar formar-se, só tem uma diretriz, a destruição da que antecedeu conforme o mito da soberania da geração presente, a que corresponde uma estase da realização artística e da acuidade crítica, somente possíveis num clima de continuidade. (1986, I, p.36 e 37)

Isto, por sua vez, gerou o que Afrânio Coutinho chamou de “alienação do escritor”, ou seja: 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30.

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Divorciado de uma tradição, o homem de letras sente-se separado dos predecessores, que ignora, da sociedade, que o desconhece ou dos seus pares, a que não presta atenção. É um desterrado em sua própria terra. É marca indelével de nossa vida intelectual a completa desatenção do escritor ao trabalho dos outros escritores, passados ou contemporâneos. (1986, I, p. 37)

Esta situação de isolamento, conseqüentemente, trouxe consigo um equívoco, pois não o aproximou do povo enquanto público-leitor. Ao mesmo tempo em que esvaziou a possibilidade da existência de uma tradição, optou pelo “divórcio com o povo”, uma vez que a literatura brasileira é:

(...) literatura requintada, feita por uma classe para divertimento dessa mesma classe, levando-se em conta o enorme abismo que separa elite e povo no Brasil, elite cultivada, e dona da vida, povo distante, analfabeto e deserdado. (1986, I, p. 37).

Convém observar que Afrânio Coutinho registrou, naquele momento, sinais de transformação politicamente importantes como o “acesso da massa ao poder político, econômico, social, e a posse da cultura”. (1986, I, p. 37) No entanto, o contexto dos anos 50, marcado pela passagem de uma crítica temática para uma crítica mais voltada às questões da linguagem, centrada, portanto no valor estético, traço definidor de seu conceito de literatura, levou-o a complementar meio cético:

Mas o risco perdura, pois a ninguém será permitido asseverar que essa ascensão não se fará em detrimento dos valores estéticos, com um desnivelamento dos padrões de cultura para adaptar-se às exigências da mesma massa. Assim, o conflito entre as tendências highbrow e lowbrow se resolveria por baixo. O divórcio com o público resultou em uma literatura a que falta o público. (1986, I, p. 37)

É bom que se diga, porém, que, a partir da terceira edição d’A literatura no Brasil, datada dos anos 80, o crítico acrescenta que: “Esse divórcio acentua com o desenvolvimento dos órgãos de cultura de massa, apesar dos benefícios indiretos que propiciam.” (1986, I, p. 37)

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Não se deve censurar o crítico por isso, em nenhuma hipótese, pois esta é ainda hoje, início da segunda década do século XXI, uma questão bastante polêmica.

V Acredito na fecundidade do debate e da controvérsia infelizmente, entre nós, transformados em polêmica pessoal! Demais disso, [a seção “Correntes cruzadas”] cuida que é fundamental o trabalho doutrinário e teórico, o desbravamento dos problemas de princípio e método, sem o que não lograremos, no Brasil, jamais sair da fase do empirismo e da improvisação. (Coutinho, 2003, p. 110)

Naquela mesma época, Antonio Candido, crítico carioca radicado em São Paulo, escreveu o ensaio “O escritor e o público” (1955), que constitui um dos capítulos d’A Literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho, onde defendeu a existência de uma tradição auditiva que perpassou a história da literatura no Brasil desde o século XVI. Em sua opinião: (...) durante cerca de dois séculos, pouco mais ou menos, os públicos normais da literatura foram aqui os auditórios – de igreja, academia, comemoração. O escritor não existia enquanto “papel social” definido; vicejava como atividade marginal de outras, mais requeridas pela sociedade menos diferenciada: sacerdote, jurista, administrador. Querendo fugir daí e afirmar-se, só encontrava os círculos populares de cantigas e anedotas, a que se dirigiu o grande irregular sem ressonância nem influência, que foi Gregório de Matos na sua fase brasileira. (1986, I, 222)

Convém registrar que Antônio Candido percebeu também neste texto a ausência de comunicação entre o escritor e a massa ao observar que: Com efeito, o escritor se habituou a produzir para públicos simpáticos, mais restritos, e a contar com a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora esta circunstância, ligada à esmagadora maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhe permitiu diálogo efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficientemente vasto para substituir o apoio e o estímulo de pequenas elites. (1986, I, p. 227)

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Diferentemente de Afrânio Coutinho, Antonio Candido não considerou a literatura produzida pelos escritores brasileiros requintada, nem tampouco viu a elite literária, a que seus textos se dirigem como possuidora de um refinamento de gosto, mas apenas com “capacidade de interessar-se pelas letras”, conforme se pode constatar no fragmento seguinte: Correspondendo aos públicos disponíveis de leitores, - pequenos e singelos – a nossa literatura foi geralmente acessível como poucas, pois até o Modernismo não houve aqui escritor realmente difícil, a não ser a dificuldade fácil do rebuscamento verbal que, justamente porque se deixa vencer logo, tanto agrada aos falsos requintados. De onde se vê que o afastamento entre o escritor e a massa veio da falta de públicos quantitativamente apreciáveis, não da qualidade pouco acessível das obras. (1986, I, p. 227)

Antonio Candido observa a presença de sinais de transformação da sociedade pelo acesso da massa ao poder político, econômico, social e cultural, mas também admitiu que algumas mudanças no campo tecnológico e político trouxeram prejuízos, na medida em que elas vieram reforçar a tradição auditiva: Em nossos dias, quando as mudanças assinaladas indicavam um possível enriquecimento da leitura e da escrita feita para ser lida, como é a de Machado de Assis, - outras mudanças no campo tecnológico e político vieram trazer elementos contrários a isto. O rádio, por exemplo, reinstalou a literatura oral, e a melhoria eventual dos programas pode alargar perspectivas neste sentido. A ascensão das massas trabalhadoras propiciou, de outro lado, não apenas maior envergadura coletiva à oratória, mas um sentimento de missão social nos romancistas, poetas e ensaístas, que não raro escrevem como quem fala para convencer ou comover. (1986, I, p. 229)

Nos anos 50, os textos desses dois críticos - Afrânio Coutinho e Antonio Candido – alicerçaram efetivamente novos rumos para a literatura brasileira, por isso são divisores de águas, promoveram a ruptura dos estudos literários no Brasil com o passado de tradição historicista. Vale lembrar, porém, que a ruptura, traço característico daquele momento, significou como insistiu Antonio Candido, nos textos escritos em quase três décadas, - e eu me refiro principalmente aos anos 50, 60 e 70, em que alertava para o perigo das “pretensões excessivas do formalismo” (Candido, 1971, I, p. 33) - o encontro do crítico 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30.

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com o texto, com o estatuto da literatura e o início da profissionalização do homem de letras e o abandono do historicismo, conforme se pode constatar neste fragmento do ensaio “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, redigido, segundo observação do autor em nota de rodapé, em 1950: Em nossos dias, estamos assistindo ao fim da literatura onívora, infiltrada como critério de valor nas várias atividades do pensamento. Assistimos, assim, ao fim da literatice tradicional, ou seja, da intromissão indevida da literatura; da literatura sem propósito. Em conseqüência, presenciamos também a formação de padrões literários mais puros, mais exigentes e voltados para a consideração de problemas estéticos, não mais sociais e históricos. É a maneira pela qual as letras reagiram à crescente divisão do trabalho intelectual, manifestado sobretudo no desenvolvimento das ciências da cultura, que vão permitindo elaborar, do país, um conhecimento especializado e que não reveste mais a forma discursiva. (Candido, 1973, p. 136)

Se a década de 50 foi caracterizada pela ruptura, os anos que se seguiram trouxeram a necessidade da releitura, marcada pelas preocupações formais e estéticas, conforme João Alexandre Barbosa sugeriu lucidamente: (...) a crítica como releitura significa, em última instância, a possibilidade de uma decodificação que atende não somente para os elementos constituintes da literariedade como para o que, no texto, envolve a sua existência como radicação na história. Só que agora, esta radicação é percebida não como função, ou missão, do texto, mas como decorrência de seu próprio modo de constituir-se enquanto objeto de tensão entre forma e história. (Barbosa, 1990, p. 75)

A necessidade de rever o cânone sob esta perspectiva, hoje, aos olhos de alguns, iluminista, pode ter sido o motivo que levou, nos anos 60, Afrânio Coutinho a publicar a Antologia Brasileira de Literatura (1965, 1966, 1967) e Antonio Candido e José Aderaldo Castello (1921-2011) a Presença da Literatura Brasileira (1964), onde, de maneira mais pragmática, puderam ilustrar as idéias propostas, respectivamente, em A Literatura no Brasil e no longo ensaio Formação da Literatura Brasileira. As duas antologias têm preocupação didática, apresentando um extenso corpus, organizado diacronicamente. A primeira reúne clássicos brasileiros e portugueses e a segunda reúne apenas os brasileiros. Posturas diferentes, conforme se pode perceber, mas que efetivamente contribuíram para a revisão do cânone, que por sua vez desencadeou novas 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 21-30.

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atitudes no modo como o leitor brasileiro passou a olhar e repensar o texto literário, na passagem do século XX para o XXI. O caminho do crítico e historiador é sempre árduo porque feito de erros e acertos, no caso de Afrânio Coutinho mais acertos que erros, o que o levou a dizer sobre “seu fôlego tão pouco comum entre escritores brasileiros”, em entrevista, concedida ao poeta e jornalista baiano Ildásio Tavares, em 27 de agosto de 1991: “Meu trabalho na área de crítica literária tem sido a tônica da minha vida. Espero que tenha frutificado, e que os seus frutos sejam permanentes.” (Coutinho, 2003, p.43)

RESUMO

No ano em que se comemora o centenário de nascimento do crítico e historiador baiano Afrânio Coutinho (1911-2011), releio o Prefácio à 1ª. edição d’A literatura no Brasil (1955), sua magistral história da literatura brasileira, que constitui um importante divisor de águas dos estudos literários no Brasil, no Século XX. Numa tentativa de fazer circular algumas de suas idéias entre os jovens leitores do século XXI, aproveito o espaço oportuno do 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: Um Cosmopolitismo nos Trópicos e da conferência 100 Anos de Afrânio Coutinho (19112011): a crítica literária no Brasil”, da UEFS, para refletir, particularmente, sobre algumas características da evolução da literatura brasileira e de nossa atividade literária, levantadas na década de 50, do século passado, com enorme lucidez, por este crítico, “sem pretensões a trabalho definitivo, sem tampouco confiar de todo na perdurabilidade dos traços definidores”. PALAVRAS-CHAVE: Afrânio Coutinho. Crítica Literária. História da Literatura.

BIBLIOGRAFIA BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: (Momentos decisivos). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, 4.. ed., 2 vv. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo-SP: Companhia Editora Nacional, 1973, 3a. ed. rev., p. 136.

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CANDIDO, Antonio e CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira. São Paulo-SP: DIFEL, 1964, 3 v. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. (Dir. A.Coutinho) V. 1. Rio de JaneiroRJ: José Olympio; Niterói-RJ: EDUFF, 3a. ed., 1986. COUTINHO, Afrânio. Antologia Brasileira de Literatura. Rio de Janeiro-RJ: Distribuidora de Livros Escolares, 1965, 1966 e 1967, 3 vv. COUTINHO, Afrânio. Crítica e Teoria Literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará/PROED, 1987. COUTINHO, Afrânio, COUTINHO, Graça et al. Afrânio Coutinho. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2003.

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SILVIANO SANTIAGO E A LEITURA CRÍTICA Roberto Carlos Ribeiro 1

Ao palestrar em um simpósio para um público americano em 1999, Silviano Santiago afirmou que o intelectual brasileiro é quase sempre questionado quanto à contribuição da cultura do Brasil para com a teoria crítica mundial. Lendo na entrelinha da pergunta a intenção de um cidadão que se colocava como metropolitano, superior e universal, Silviano Santiago não aceitou que o brasileiro fosse identificado como periférico, subalterno e particular. Ele propôs que houvesse um diálogo entre as duas instâncias e indicou duas contribuições brasileiras apresentadas por Susan Sontag para a questão: a de Carmen Miranda para a teoria camp na indústria cultural e a ficção de Machado de Assis para a teoria do romance ocidental (SANTIAGO, 2004, p. 195). Ou seja, nós temos material para ser objeto teórico, se bem que às vezes nos falta pesquisador, visão e o movimento de olharmos para o nosso espaço para nos darmos conta de que podemos contribuir para a cultura mundial. Na mesma perspectiva, enquanto foi professor na Universidade de Buffalo/USA, Silviano Santiago pôde levar aos seus alunos americanos tanto Glauber Rocha quanto Hélio Oiticica e até mesmo o espetáculo teatral Arena conta Zumbi. De certa forma, o crítico tentava materializar a reflexão sobre o diálogo entre culturas ao apresentar o Brasil aos americanos. E por falar nisso, não é à toa que as duas edições dos livros de Silviano Santiago, O cosmopolitismo do pobre e Ora (direis) puxar conversa! trazem imagens dos parangolés de Hélio Oiticica estampadas nas capas. Naquele, Nildo da Mangueira veste parangolé em 1964. Neste, cidadão veste parangolé no metrô de Nova Iorque em 1972. Hélio Oiticica faz, em escala infinita, o que sonhara Oscar Wilde: “deveríamos ser uma obra de arte ou vestir uma obra de arte” (SONTAG, 1987, p. 320). Esses exemplos determinam a sua perspectiva como pensador da literatura e da cultura brasileiras contemporâneas, proposta pela leitura crítica que se faz concreta pelo viés do questionamento, do enfrentamento e da técnica do deslizar, em que camadas se sobrepõem encaixando umas sobre as outras em constante atrito. Tal proposta é como 1

Doutor em Teoria da Literatura, pela PUCRS.

ISBN 978-85-7395-210-0

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mergulhar no ofício de homem que lida com as palavras, que vive da e para a literatura junto com a perspectiva da leitura crítica que especifico como uma forma ácida de não ser contemplativo com o status quo social e acadêmico. Diante de seu tempo, o crítico deve atuar como um cartógrafo. Precisa levantar vários mapeamentos de sua realidade para fixá-los em rede como sugestão a uma resposta do tempo. Ao ler o mundo, Santiago relembra que Borges lhe dissera “que não precisava ter vergonha de ser leitor, que os livros não são propriedade privada. Somos todos, em arte e artes, grileiros” (SANTIAGO, 2001, p. 434). Nas décadas de 1970 e 1980, como professor da PUC do Rio de Janeiro, Silviano Santiago abriu caminho entre seus pares com a noção de desconstrução segundo Derrida. Ficou famoso, entre os alunos da instituição, certo texto do professor recém-chegado do exterior, provavelmente uma ementa de aula, ou relatório de pesquisa em andamento, significativamente chamado pelos alunos de “o texto da semente”. Nele, estariam os princípios sobre os quais Silviano construiria a sua crítica e a sua didática. Naquele momento, no meio acadêmico carioca, encontravam-se na disciplina de literatura a vertente historicista e os conceitos estruturalistas. No choque entre os instrumentos utilizados para a análise da literatura, Silviano Santiago se identifica com a possibilidade de explicitar as margens do sistema literário brasileiro e a sua historiografia ortodoxa. Mais do que alojar o seu interesse nessa perspectiva crítica, ele dava mostras de estar adentrando aos estudos para além das discussões que na época se faziam presentes. De certa forma, no campo teórico dos estudos literários estavam também as primeiras notas do que hoje chamamos de estudos pós-coloniais. Nos seus ensaios iniciais, Silviano Santiago relia o passado literário brasileiro detectando o etnocentrismo e as relações hierarquizantes da sociedade colonial, como ele faz na leitura crítica do romance de José de Alencar, Iracema, em que aponta, significativamente, em anotações às margens do texto impresso, a força de um discurso europeizante, branco e dominante. Nele, demonstra as diferenças nos rituais de batismo entre Martim, que se “torna” um coatiabo, pintando a pele. Portanto, um batismo epitelial. Já o índio Poti é batizado segundo as regras da religião católica que prescreve mais do que uma relação superficial. Ela exige do outro uma entrega total, principalmente a um só deus, um só coração; a tão procurada e impossível unidade. A chave interpretativa do crítico para os estudos literários se baseava na retomada de um

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passado que fora registrado somente do ponto de vista do colonizador, para realocá-lo na perspectiva do colonizado. Na segunda metade do século 20 em que se viveu, não só, mas mais intensamente, a experiência da transição da ideia de contínuo temporal, representado pela história e pelo processo em si, em favor da ideia de descontínuo, de estrutura, de tempo dividido em partículas, de fragmentação, de deslocamento e descentramento, muitos pesquisadores pensavam as relações de domínio, já no âmbito dos estudos culturais e/ou da crítica cultural e/ou do pós-colonialismo. Homi Bhabha, Stuart Hall, Marc Auge, Edward Said e Hugo Achugar, entre outros (cada um dentro de seu espaço, do seu posicionamento ideológico, de suas memórias, do seu tempo e da sua cultura), cunharam conceitos que servem como delimitadores das vivências culturais por uma sociedade que está em desenvolvimento e à procura de suas definições atuais, mas não fixadoras. De uma forma ou de outra, a mesma perspectiva está presente na escrita e no pensamento de Silviano Santiago, tanto que ele afirma que “trabalha por um movimento de descentramento” e que tal deslocamento, tanto físico quanto temporal e abstrato só podia levá-lo a compreender, cedo demais, “que tinha nascido em um país extremamente contraditório: pobre e cosmopolita. Como, sendo pobre, não ser cosmopolita de araque?” (HELENA, 1992, p. 94). O movimento de descentralizar, tornando-se mais independente, para Silviano Santiago, começa desde o momento em que ele decide deixar sua terra natal para compreender o vasto espaço geográfico, que acaba por ser traduzido em sua escrita, tanto crítica quanto ficcional. Sua constante procura por uma resposta pode estar reunida na pergunta a que se fez em ter nascido em país periférico, mas com pensamentos cosmopolitas. Paradoxo sobre o qual refletirá nos seus ensaios levantando as ideias de Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Sérgio Buarque de Hollanda, entre outros. A preocupação é de entender as questões formadoras da cultura brasileira através da literatura, não se esquecendo do viés ideológico e político, necessário em um país em que o cosmopolitismo leva a instâncias de pura alienação. Enquanto Affonso Romano de Sant´Anna, Luiz Costa Lima e Gilberto Mendonça Teles orientavam teses produzidas na PUC do Rio de Janeiro adotando uma perspectiva formalista, Silviano Santiago, como professor de Literatura Francesa nos Estados Unidos e no Canadá (vejam bem, um brasileiro dando aulas de literatura

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francesa em países da América do Norte), procurou orientar os seus trabalhos privilegiando uma abordagem interpretativa da obra literária, em oposição à análise textual, então vigente nos estudos estruturalistas. Fica claro que a perspectiva de um estrangeiro, falando de uma literatura estrangeira reclama uma análise fora do texto. Somente uma visada contextualizada, abrangente e com recursos interdisciplinares pode dar conta da análise e da interpretação de uma literatura. De outra feita, suplantando a onda estruturalista veio a teoria da intertextualidade que iniciou um processo de abertura metodológica, expresso no próprio ato de apropriação de um texto por outro. Na mesma direção, Foucault, Deleuze e Derrida ajudam a pensar a questão das relações culturais entre os países, colocando em xeque a ideia de verdade e de origem. Silviano Santiago dialoga com essas teorias para interpretar e refletir criticamente, lendo a sua contemporaneidade como uma multiplicidade dos discursos enunciados pelas diversas instâncias sociais. O espaço de pertencimento, construído pelo pensamento, e ancorado nas realizações da escrita fez de Silviano Santiago um pensador que, segundo Lúcia Helena, “pavimentou o curso de um debate sobre as relações entre nação e narração, cultura e imperialismo, que hoje se veicula no Brasil, principalmente a partir de leituras de Homi Bhabha e de Edward Said, mas que já se antecipava nas páginas de dois de seus livros de ensaio” (HELENA, 1997, p. 80): Uma literatura nos trópicos e Vale quanto pesa. Antes das páginas dos livros de ensaio, o seu laboratório das novas perspectivas de leitura brasileira se deu no âmbito das academias brasileiras, americanas, canadenses, e mexicanas. Silviano Santiago desloca o discurso fixado e lê a influência na cultura e na literatura brasileira desde a época da colonização do Brasil até as questões de multiculturalismo atuais, de um extremo ao outro, como, por exemplo, a sua leitura crítica do discurso do colonizador publicada no ensaio “A palavra de Deus”, na revista Barroco. São analisados ali três autores: Pero Vaz de Caminha, Padre Vieira e José de Alencar e a justificativa de um código linguístico para a implantação da fé, do império, a catequese e a colonização. Na falta de diálogo natural entre duas culturas diversas, num primeiro momento, houve a questão da imitação. Ou seja, o índio ao imitar os gestos do português fez refletir uma cópia de um original. Na sequência do mesmo processo, as peças teatrais de Anchieta apresentavam, visualmente, a imposição da

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religião e da política portuguesa, em que a imagem e a palavra se instrumentalizaram. O ápice dessa relação se deu com os sermões do padre Vieira em que a doutrina é o espelho que deve ser mirado pelos homens. Silviano Santiago chama a atenção de que a palavra pode ser interpretada, mas a “imagem dos olhos que ouvem a doutrina” transmite apenas “o conceito de cópia, de reprodução verossímil, de mímica” (SANTIAGO, 1971, p. 13). Ou seja, a imposição do colonizador desfez toda e qualquer originalidade que porventura pudesse brotar da outra cultura para transformá-la apenas em uma plateia que quando muito só podia imitar, nada mais. José de Alencar aparece no artigo na condição de autor romântico que recapturou esse momento histórico através de seu romance Iracema. Esse texto é de 1971, o mesmo ano da palestra “o entre-lugar”, em que os mesmos temas, colonização, cópia, originalidade e imitação têm papel preponderante. Sobre o ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, é preciso saber a sua genealogia. Eugenio Donato foi convidado para ser professor visitante de literatura francesa na Universidade de Montreal, no Canadá, e introduzir as novas ideias que chegavam da França. Silviano Santiago recebeu convite de Donato para palestrar em um simpósio. O artigo, então escrito em francês, fazia diversas alusões ao Canadá. O crítico trabalhou com um corpus teórico francês, particularmente Foucault e Derrida, e escritores hispano-americanos, conhecidos naquele país, como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Santiago afirma que se trabalhasse com literatura brasileira os universitários não o compreenderiam, pois não tinham acesso a ela. Desse posicionamento pragmático quanto à região geográfica e cultural da fala do palestrante nasceu esse texto de um brasileiro que cria uma teoria sobre uma literatura de um continente tão amplo quanto o latino-americano. Silviano Santiago, como professor estrangeiro, teve de se posicionar não como brasileiro, o que seria uma referência desconhecida, como ele mesmo percebeu, mas pertencente a uma região cultural de reconhecimento daquele público, que era o de Latino-americano, para poder ter a voz compreendida. Silviano Santiago sabe que não pode abarcar toda a literatura latino-americana, mas aponta em seu texto o que mais sobressai quando se fala sobre países colonizados: a questão da cultura subalterna. A publicação brasileira se deu em 1978, no livro Uma literatura nos trópicos, com um subtítulo revelador: ensaios sobre dependência cultural.

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Utilizando termos hoje já consagrados e que naqueles anos estavam se estruturando como uma base para a crítica cultural, como: terceiro mundo, neocolonialismo, renascimento colonialista, elemento híbrido e imperialismo cultural, na primeira parte do texto, Silviano Santiago retoma o raciocínio básico do artigo anterior “A palavra de Deus”. Neste está a constatação do peso da colonização. Na nova leitura, o crítico dá um passo a mais. Ele reconhece a dependência cultural, mas propõe uma reação agressiva, de falsa obediência a tal situação. O primeiro ato para essa façanha é decretar a falência do método crítico enraizado no sistema universitário de então: as pesquisas que conduziam aos estudos das fontes ou das influências. No lugar, devia-se colocar a valorização crítica à diferença. Esse novo método crítico tem a leitura como um convite à práxis, à transformação, à radicalização. E aqui, ele fala tanto do escritor quanto do produtor de ficção, dando como exemplo o conto de Borges “Pierre Menard, autor Del Quijote”. Como poderia ter dado o exemplo de Eça de Queiroz lendo Gustave Flaubert em O primo Basílio, que o próprio Silviano interpretou usando a metodologia da diferença. A valorização da diferença propõe uma relação de confronto entre as culturas geográficas e pressupõe que o escritor latino-americano deve ter a escritura como “um dever lúcido e consciente” (SANTIAGO, 2000, p. 24). A visualização é de um cenário de guerra, como propõe a abertura do texto. É desse confronto entre a obra original estrangeira e a agressão latino-americana que brota a leitura dos textos românticos do Novo Mundo, isto é, os textos “fundadores” das nacionalidades americanas, como ele fez com Iracema. Uma citação do próprio Santiago se faz necessária e já se tornou antológica sobre a explicação do “entre-lugar”: Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana (SANTIAGO, 2000, p. 26).

O tema da dependência cultural seria retomado por ele 11 anos depois em ensaio intitulado “Apesar de dependente, universal”. A ideia central é a mesma do texto anterior, o conceito de “entre-lugar”: a cultura dominada pode contribuir com a arte afrontando a cultura dominante. Do embate, a consequente produção cultural se insere 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45.

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na universalidade, porque esta pressupõe, segundo o crítico, um processo de expansão em que respostas dos países periféricos são dadas aos valores da metrópole. Trocando o termo “terceiro mundo” do texto anterior por “culturas periféricas”, mais amplo e abrangente, como se nota pelo plural das palavras, e que desfaz a ideia de unidade no subdesenvolvimento, como supõe o primeiro conceito, o autor continua afirmando que o questionamento do estatuto da escrita e do avanço cultural colonizador é base para os textos descolonizados. Como o ensaio não foi escrito para canadense ouvir, mas sim brasileiros, Santiago exemplifica com o seu texto sobre Eça de Queiroz e aponta três antídotos nacionais contra o enciclopedismo eurocêntrico, ou seja, contra o intelectual que produz quantidade de informação sem processar o devido questionamento na análise e interpretação: a “antropofagia cultural”, de Oswald de Andrade; a noção de “traição da memória”, de Mário de Andrade; e o “corte radical”, do grupo concreto. Todos esses conceitos, segundo ele, têm como base o reconhecimento da dependência e a busca da subversão desse estado no diferencial do produto artístico. Ao tema da dependência cultural, juntam-se o do analfabetismo e o papel do intelectual nas reflexões do crítico. O confronto deve ser feito não só entre nações, mas também dentro do mesmo país. Por isso, o conceito de “entre-lugar” está muito próximo do caráter “anfíbio” que Silviano Santiago detecta na produção artística brasileira. A instância literária fornece ao escritor de literatura a oportunidade para que ele possa estender, na esteira de um diálogo sobre criação literária, na televisão, por exemplo, o assunto em pauta, o lançamento de um romance, por exemplo, para digressões que amparem e prolonguem um pequeno sistema cultural (um curto circuito) em que diversos assuntos são postos na mídia: política, educação, justiça, a própria televisão, internet, blogs, redes sociais. O papel do escritor, dessa forma, se amplia, levando o conteúdo do livro até aqueles que, por qualquer motivo (analfabetismo, problemas econômicos), não têm acesso à leitura. E paralelo, vai uma pequena informação de outros conhecimentos necessários à constituição do cidadão. Esse papel não é só do intelectual, mas estende-se para todos os interessados em inclusão. Na visão de Silviano Santiago, as minorias estão tendo outras e mais fortes possibilidades de se fazerem ouvir. Lendo o seu ensaio de 2002 “O cosmopolitismo do pobre”, percebemos em suas palavras um novo olhar, uma nova expectativa com relação

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aos marginalizados históricos do multiculturalismo da classe dominante do passado. Na esteira da construção do discurso de país-nação, esse multiculturalismo serviu para criar a imagem de um povo unido, vivendo sob as mesmas regras de igualdade e de socialização, enquanto, na realidade, o que se tinha era a fragmentação e o aterramento daqueles, muitos, deixados à beira do caminho. O resgate dos grupos étnicos e sociais, marginalizados historicamente, os índios, as mulheres, os negros se dá, nesses novos tempos, através da implantação de um novo multiculturalismo em que não se deve buscar a homogeneização das partes, mas a convivência e o diálogo entre as diferenças. Em que os grupos de referência se colocam em visibilidade, seja através de ONGs, de inclusão nas redes midiáticas, de busca de raízes comuns entre povos e diferentes países. Em que existe a possibilidade da expansão cultural para além dos limites de fronteira, a internacionalização do movimento MST, por exemplo; ou a descoberta da África

pelo

governo

brasileiro

recentemente.

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necessário

a

desnacionalização do espaço urbano e a desnacionalização da política, pois o antigo estado-nação é a “perda da memória individual do marginalizado em favor da artificialidade da memória coletiva”(SANTIAGO, 2004, p. 58). Ora, a coletividade não dá mais conta, se é que alguma vez deu, de conter em si uma única identidade. O que percebemos é que Silviano Santiago vem, desde 1971, perfazendo um circuito constante em seu pensamento. A sua preocupação como crítico é resgatar uma espécie de orgulho por ser um ser pensante, de um espaço periférico, possuidor de uma riqueza cultural que deve ser posta como produto de primeira qualidade. Ao mesmo tempo, buscar, numa segunda camada de referência, aqueles e aquilo que ficaram soterrados dentro da própria cultura brasileira, em virtude de relações de domínio. Falo dos rejeitados: pessoas, gêneros, personagens, passagens históricas. O que Silviano Santiago chama de processo de inclusão: “Como é que você inclui classes sociais? Como é que você inclui outros gêneros? Não é apenas uma inclusão de classes populares ou segmentos marginalizados, é também de gêneros marginalizados, é também de outras coisas” (CUNHA, 2008, p. 205). Uma forma encontrada por Santiago para realizar tal proposta levantada está, também, na sua ficção. Usarei uma frase de Santiago para expor, de relance, parte de sua obra ficcional: “o que eu estou falando é que se precisa de um toque, de determinado empurrão ficcional para que a sociedade se transforme, progrida,

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melhore... Aliás, essa é a principal função revolucionária da literatura na pósmodernidade” (CUNHA, 2008, p. 202). Será que a ficção nos salvará? Indago. O acesso do leitor à ficção ainda é maior do que o acesso ao ensaio-crítico, praticamente restrito entre as grades da academia. Um modo eficiente de espalhar conceitos e ideias seria, então, a representação ficcional, principalmente nas formas romance e conto. A leitura crítica do ensaísta também se faz presente na ficção. Em sua obra em prosa, Silviano Santiago se apega àquela mesma linha reflexiva de seus textos críticos: excluídos, marginalizados, esquecidos, colocados de lado. Segundo o mesmo, na década de 1980, no Brasil, houve uma explosão das regras tradicionais do gênero romance, caracterizando-se essa época como um momento de transição literária. Tal transição se deu devido as características específicas do momento marcado pela indecisão, o desconforto e a perda de rumo claro e transparente. A falta de limites explícitos, ao contrário do que se possa pensar, ajudou na maleabilidade de estruturas das narrativas, colocou em cena o debate contra as regras impostas, ampliou e canalizou a questão da criatividade do romancista e proporcionou a ampliação das representações das personagens no mundo ficcional pela concretização das narrativas voltadas ao processo de inclusão das minorias. Em vez de excluir, incluir: personagens alijados da sociedade, gêneros esquecidos pela academia, discursos apagados pelo poder. Esses elementos que circulavam pela periferia do sistema literário são iluminados pelo foco crítico e narrativo de Silviano Santiago. Advindo essa necessidade de exposição justamente pelo recalque político-social vigente especialmente na sociedade daquela época, fim de ditadura e começo de democracia. Uma repressão explícita ou mesmo a repressão velada, consciente e arrasadora no convívio sóciocultural, contra mulheres, negros, gays, mendigos, pobres. O ficcionista expõe as mazelas e as fraquezas sociais através da fortificação das personagens excêntricas e periféricas de uma sociedade, também ela, periférica. Como exemplos, devo citar: em O olhar, a narrativa é um constante fluir de pensamentos e reflexões morais a respeito das instituições do casamento e da maternidade, declarados sob o ponto de vista da mulher, que esboça a relação que se esgarça dia após dia.

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Em Stella Manhattan, Eduardo da Costa e Silva, abandonado pelos pais que não o aceitavam devido a sua orientação sexual, reside fora do país. O ano é o de 1969, época da ditadura militar no Brasil. Viver em Nova Iorque dá a Eduardo/Stella a oportunidade de ser quem é, de exprimir a sua vontade mais íntima. Dependendo da ocasião e da necessidade, Eduardo incorpora a personagem Stella Manhattan, um misto de Carmem Miranda e Poliana, inocência e glamour. Em Uma história de família temos um narrador que procura resgatar o passado de seu tio Mário, um renegado pelos seus por ter sido esquizofrênico, popularmente chamado de louco. Tio Mário e o sobrinho são frente e verso de uma mesma realidade. O narrador também é rejeitado pela família por ser aidético. A vida contada de tio Mário é o disfarce para a vida não narrada do protagonista. A relação do homossexual com o núcleo família e com a sociedade está presente de forma explícita ou, sintomaticamente, pela falta de um deles, a família, nos contos de Keith Jarrett no blue note, que retratam, mais do que o estilo gay, uma forma de se viver e de se relacionar com o outro e com o mundo. Da obra ficcional de Silviano Santiago não se pode deixar de falar de duas outras personagens, Graciliano Ramos em Em liberdade e Antonin Artaud em Viagem ao México. Dois livros de dois personagens da história cultural mundial. Duas ficções que recriam “vazios” das vidas biografadas. Em liberdade é romance, diário, ensaio literário, autobiografia e biografia, o que faz dele uma escrita sem gênero definido, proporcionando a que seu autor dê-lhe o título de “uma ficção”. Em Viagem ao México, Silviano parte da relação entre Europa e América, assim como a noção de cultura inferior e cultura superior (colonizador e colonizado), ficcionalizando a viagem de Artaud e problematizando a questão do narrador pós-moderno, aquele que vive e/ou aquele que assiste e narra. Como podemos perceber, a ficção do escritor é muito parelha com a crítica do ensaísta. A ficção contém teorias da narrativa, amplia e dá suporte para as interpretações dos ensaios literários e culturais, assim como esses alargam o horizonte para a escrita da ficção. O diálogo entre ensaio e ficção também se faz, por diversas vezes, dentro de cada texto, extrapolando as fronteiras que delimitam os diferentes discursos. Os textos são intercambiáveis. Trocam informações e expressões entre si, confeccionando uma malha de referências que podem ser analisadas como representativas de certa cultura do

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final do século 20, chamada por ele de pós-moderna, em que as possibilidades de ampliação das referências da literatura estão abertas para o escritor e o pesquisador interessados em seguir as pistas de novas realizações e questionamentos. Tais possibilidades são conferidas na descentralização de culturas e temas canônicos e na inclusão da periferia no âmbito do debate de ideias. Na sua obra literária ele busca o resgate do discernimento na multiplicidade em todos os níveis (social, cultural, artístico), pois é “entre-lugar” e “anfíbia”. Procura o prazer, a comoção, o ensinamento. Do emaranhado textual de Silviano Santiago (ficção, ensaio, entrevista, resenha), surge a rede literária que faz sua escrita ser como uma malha, em que diferentes pontos se tocam formando um conjunto próprio de referências que solidificam o seu projeto intelectual. Como um traçado urbano, crítica e ficção vão construindo

uma

arquitetura

própria

que

tem

como

proposta

pensar

a

contemporaneidade, o lugar de onde se fala. Nesse sentido, Silviano Santiago, como qualquer pensador que desconstrói discursos e referências rígidas, elege outros novos espaços, proliferando-os através de seus textos e colocando-os em confronto com a norma estabelecida. O resgate dos valores eclipsados pelas normas sociais é o reflexo intenso da luta pela liberdade da opressão histórica e social sob ou regimes totalitários ou representados pela ditadura do universal. Mais do que a totalidade, esperamos que a literatura reflita as possibilidades fragmentadas que são partes de um todo constituído historicamente. A periferia existe em relação ao centro, não sob a sua guarda. Por isso, crítica e ficção dialogam: para que possam sustentar a visibilidade da multiplicidade das relações intrínsecas a todo o fazer humano. Onde existe ser humano, há pluralidade. A obra de Silviano, no seu conjunto, comprova à saciedade a sua condição de ser que optou pela discordância e a rebeldia. E essa discordância e essa rebeldia parecem não ter terminado. Podemos dizer que com a edição do livro O cosmopolitismo do pobre, Silviano Santiago terminou um ciclo do seu circuito de pensamento: o foco a respeito das questões culturais, de posicionamento do lugar de quem fala e de quem ouve; a atenção diretiva sobre a crítica com base nas influências e cópias; o direcionar do pensamento para a necessária mescla entre cultura local e cultura internacional; a desmontagem do cosmopolitismo alienante. De posse dessa perspectiva que se tornou metodologia de estudo, Silviano Santiago

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passa, pouco a pouco, da epistemologia para a hermenêutica. Da ciência para a interpretação filosófica. Do saber para a sabedoria. Em 2006, o mesmo lançou As raízes e o labirinto da América Latina, em que interpreta não mais a literatura, mas a leitura de outros autores a respeito do continente; a interpretação da interpretação, perfazendo um caminho pedagógico. Em contraste com a América vitoriosa, a do Norte, a Latina, com suas raízes europeias, perdeu espaço e significado, voltando-se para a diáspora já na década de 1950, segundo Octavio Paz. No livro, percebemos ecos dos textos de “o entre-lugar”, da “palavra de Deus”, como não poderia ser diferente. É uma nova leitura da América Latina, só que, agora, sobre a interpretação de outros pensadores. Ao relacionar Octavio Paz com Sergio Buarque de Holanda, Silviano Santiago tenta demonstrar em contraste as múltiplas Américas Latinas, em um trabalho que ele chama de arqueológico. Em vez de criar um texto elaborando novos olhares sobre o continente sul-americano, o ensaísta busca em outros intérpretes uma perspectiva consolidada e fundamentada na literatura ocidental. Do mesmo ano de 2006, é a reunião de ensaios literários Ora (direis) puxar conversa, que é o título de um dos textos do livro e que trata de uma questão que indica novos parâmetros para o pensamento de Silviano Santiago. Puxar conversa é uma espécie de metodologia do conhecimento, decorrente da confraternização e de um projeto didático de Mário de Andrade. É o modo de aproximar-se do outro para que haja uma constante troca entre sujeito-objeto-sujeito. É a forma encontrada pelo escritor paulistano para distender, compreender e ensinar literatura. Mário era viciado em conversa, por carta, nos salões, nas mesas de bares, nas entrevistas, nas ruas com passantes desconhecidos. Dessa rede de comunicação, surgiram suas criações ficcionais, ensaios e a pedagogia para escritores da literatura brasileira a partir dos anos de 1920, vide Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, entre outros. Em epígrafe, no ensaio, está escrito que a hermenêutica é a relação entre diversos discursos dentro de uma possível conversa (metafórica) sem chegar, necessariamente a um ponto de convergência. No texto de Richard Rorty, a frase inicial “a hermenêutica é o que nos sobra quando deixamos de ser epistemológicos” (SANTIAGO, 2006, p. 97), está refletida na resposta de Silviano Santiago “minha atitude teórica tem sido a de abandonar o paradigma de leitura epistemológica (científico) em favor dum paradigma hermenêutico (filosófico). Tento fazerem

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convergir o conhecimento e a sabedoria” (CUNHA, 2009, p. 199). O “puxar conversa” marioandradino seria o conforto da experiência e do conhecimento que se concretiza na literatura. Silviano Santiago mira esse campo no horizonte. A vida já é literatura. Vida e literatura. A vida como literatura e a literatura como vida. Silviano estará, no momento, mais propenso para a literatura do que à cultura? Ou melhor, procurando cada vez mais a cultura pelo viés do sistema letrado, da cidade letrada? Anda procurando nas interpretações a literatura excluída que os estudos culturais levantam? Os subtítulos de seus livros de crítica/ensaio nos dão uma pista desse trajeto epistemológico, que vai do afrontamento explícito das bases político-culturais para o mais completo ensaio literário: Uma literatura nos trópicos é “ensaios sobre dependência cultural”; Vale quanto pesa, “ensaios sobre questões político-culturais”; Nas malhas da letra, “ensaios”; O cosmopolitismo da pobre “crítica literária e crítica cultural”; Ora (direis) puxar conversa!, “ensaios literários”. Estamos na expectativa do que virá pela frente. E Silviano Santiago anda apontando para uma leitura democrática do livro. A sua volta à literatura como hermenêutica seria “a literatura como possibilidade de conversa entre Livros” (CUNHA, 2008, p. 208). Fazer dialogar os livros da literatura ocidental com os da literatura oriental, a bíblia com o alcorão, por exemplo. Seria uma literatura comparada em terceiro grau? Já que a primeira foi resultante das fontes; a segunda, das diferenças. Como diria Machado de Assis, cousas futuras. Silviano Santiago consolidou caminhos e apontou muitos outros, que cabem a nós, pesquisadores e estudiosos da literatura brasileira, levar adiante. Gostaria de finalizar citando Silviano Santiago. Apesar de ter aprendido, ensinado e aplicado as teorias européias e americanas, foi através da leitura de um argentino, ou seja, um intelectual mais próximo de nós geograficamente e, portanto, vislumbrando problemas parecidos com os nossos, que Silviano Santiago teve destrancada a sua leitura de mundo: De imediato Borges me tocou pela maneira luminosa como articula vivência e saber. (...) Luminosa foi a maneira como me ajudou a resolver, pela sua ficção, problemas de alcance teórico que as melhores teorias (os melhores teóricos que lia) deixavam sepultados para todo o sempre. Daquela época e leitura é que me veio uma desconfiança (frutífera) com relação à contribuição que o pensamento ocidental pode trazer para o melhor conhecimento do Novo Mundo. Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal (...). Não fui 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 31-45.

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vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber europeu. Lugar-comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entre-lugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores (SCHWARTZ, 2001, p. 434).

RESUMO

O texto enfoca a leitura de Silviano Santiago a respeito da questão da dependência cultural brasileira, da criação ficcional e de como se deve ler criticamente a realidade de países periféricos. PALAVRAS-CHAVE: Dependência cultural. Leitura crítica. Silviano Santiago.

ABSTRACT

The paper demonstrates on the Silviano Santiago`s reading as respect to Brazilian cultural dependence question. Comment the fictional creation and how to read critically the reality of the peripheral countries. KEYWORDS: Cultural dependence. Critic reading. Silviano Santiago.

BIBLIOGRAFIA ALENCAR, José de. Iracema. Notas e orientação didática por Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. CUNHA, Eneida Leal (Org.). Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008. HELENA, Lucia. Olhares em palimpsesto. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (Orgs.). Navegar é preciso, viver: escritos para Silviano Santiago. Belo Horizonte: UFMG; Salvador: UFBA; Niterói: UFF, 1997. ______. Silviano Santiago: a política através da palavra escrita. Brasil/Brazil – Revista de Literatura Brasileira, Porto Alegre, n. 7, p. 83-96, 1992. SCHWARTZ, Jorge. Borges no Brasil. São Paulo: Unesp, 2001.

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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. ______. A palavra de Deus. Barroco, Belo Horizonte, n. 3, p. 7-13, 1971. ______. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. ______. Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. ______. Keith Jarrett no Blue Note: (improvisos de jazz). Rio de Janeiro: Rocco, 1996. ______. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. ______. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2004. ______. O olhar. São Paulo: Global, 1983. ______. Ora (direis) puxar conversa!: ensaios literários. Belo Horizonte: UFMG, 2006. ______. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. ______. Uma história de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. ______. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ______. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: P&PM, 1987.

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AFRÂNIO COUTINHO, 100 ANOS POR UM AMADURECIMENTO CULTURAL DA BAHIA 1

Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho (GELC/UEFS)

Uma das primeiras experiências com Afrânio Coutinho vem da visão da coleção A literatura no Brasil vendida na livraria da PIDL, na Universidade Estadual de Feira de Santana. No início dos anos 1990, os seis volumes da publicação orgulhosamente mostrada e comentada pelo professor e diretor da livraria Raimundo Luiz, tornaram-se para os estudantes mais aplicados do curso de Letras da UEFS um objeto de desejo. Comprávamos aos poucos, volume a volume, como numa coleção. Os exemplares volumosos eram consumidos primeiro pelos olhos, depois pela leitura e, ao final, descobríamos os autores, os ensaios de peso. A narrativa no plural era fato, lembro que mais colegas chegavam à livraria interessados no conjunto de ensaios, principalmente, sobre Antonio Vieira, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge Amado. Alguns próximos podem também testemunhar, como Valéria Soares, Maria da Conceição Araújo, Jecilma Alves, Maria Valdilene, Glória Mendes, Francisco Fábio de Vasconcelos e José Francisco da Silva (esses últimos não lembro que compravam, mas queriam ter). Aliás, uma das poucas fontes de estudo sobre o romancista baiano que irá comemorar centenário no ano próximo. Como tínhamos manias que parecem desaparecidas ultimamente, discutíamos em sala de aula, biblioteca e mesas de bares sobre os ensaios e, pasmem, conseguíamos identificar ensaístas como o famigerado Luis Costa Lima, Barreto Filho, Brito Broca, Lúcia Miguel Pereira, Antonio Candido, e o polêmico Eugênio Gomes, que evidentemente não sabíamos que era baiano e, com justiça ou não, oscila entre os mais notáveis vilões ou perseguidos da história literária brasileira. Estão neste pódio Sousândrade, Lima Barreto, José do Patrocínio, Coelho Neto, Monteiro Lobato. Ignorávamos a tumultuada querela do papel da história da literatura no contexto, nos

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Texto apresentado no III Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 Anos de Afrânio Coutinho (1911-2011): a crítica literária no Brasil, Universidade Estadual de Feira de Santana/PPGLDC, 15 e 16 de dezembro de 2011.

ISBN 978-85-7395-210-0

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interessava discutir os grandes textos da literatura brasileira a partir do peso daqueles ensaios reunidos. Outro assunto indigesto, as ligações ideológicas entre tais senhores de farta bibliografia e estilo marcante não passavam por nossos temas de debate. Nem tão pouco que, alheio ao sonoro esforço de separação entre direita integralista e esquerda socialista, Afrânio Coutinho reunia numa mesma publicação, Adonias Filho, Eugênio Gomes, Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, e outros. Intelectualmente, isto era muito grave, pois as facções estavam divididas. Outros empreendimentos foram tentados e fracassaram porque alguns estudiosos não queriam estar associados ao regime de Getulio Vargas ou ao Integralismo de Plínio Salgado (nossa versão fascista de nacionalismo). Sobre estes assuntos, senhores sentados nestas cadeiras, presentes a este evento comemorativo e de estudos literários, 2 podem versar com mais intimidade e até conforto (ou aflição!) de testemunhas. Para indivíduos como eu, que escolheu enveredar por esta via de estudo da literatura, a historiografia, somente vi aumentar a importância da obra para os estudos literários brasileiros, pois além de reunir o nosso melhor momento de amadurecimento nestes estudos, víamos ali, o que, saberíamos depois, seria o nosso melhor momento criativo de literatura (BUENO, 2009). Ao que parece, os ensaístas também estavam impressionados com as possibilidades de reflexão, aprofundamento, variação e temas capazes de ser encontrados e construídos em seus textos. E isto somente foi possível porque um baiano polêmico, incansável e agregador resolveu fazer obra coletiva ainda num contexto dos estudos individuais, das grandes soluções personalistas e, ainda, da formação de um líder espiritual e intelectual que conduzisse para aprisco seguro os nossos sempre incipientes estudos da literatura. Obviamente estou falando de Antonio Candido e do que se tornou, ao seu redor, os estudos da literatura na Universidade de São Paulo e foi disseminado para todos os cursos de Letras do Brasil, sempre com muita justiça. Por outro lado, ao que parece, Afrânio Coutinho, na sua faina de pesquisador, via mais longe. Conseguiu legar alguns exemplares de trabalho coletivo capazes de, ao tempo em que promovia a divulgação da

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Estavam presentes ao evento o filho de Afrânio Coutinho, Eduardo de Faria Coutinho, Jorge de Souza Araújo, professor da UEFS, que realizou estudos de pós-graduação junto a Afrânio Coutinho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luiz Roberto Veloso Cairo, professor da Unesp de Assis/SP e egresso da UFBA, e passou a juventude na Bahia em tempos ideológicos e de regime militar. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 47-54.

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literatura no Brasil, dos modelos de pesquisa, também promover avaliação de tais obras e estudiosos. Os alunos de letras, nos quais eu me incluía, discutiam, através daquela obra, literatura, escolhiam os melhores momentos, muitas vezes não os mais populares: parnasianismo, pré-modernismo. A contragosto, meus colegas elegiam o modernismo sobre o qual eu indagava “quem ele havia lançado?” Não se preocupem, todos nos uníamos em torno de Guimarães Rosa, Jorge Amado e Clarice Lispector. Gostaria de justificar um pouco do meu entusiasmo com Afrânio Coutinho na conta da sua baianidade. Se a pertença a esta parte do país pouco importou para ele (a afirmação merece estudo mais apurado), para a minha pesquisa é fundamental. Naquele momento de estudante de Letras, ao que me lembro, não sabíamos disso e nem se tornava informação digna de constar em nossa pauta de apreciação da literatura. As lições de literatura como sistema de Candido não faziam efeito, mas o estudo do estilo e o comparatismo com as grandes obras ocidentais eram a tônica de desvendamento. Também, se nossa via de entrada para o debate a respeito do autor de Tieta do agreste e Gabriela, cravo e canela tinha outro mestre na figura da caixa iluminada da televisão e do cinema, são questões ainda por resolver. Era o tempo, os anos 1990, das adaptações populares da literatura para um público mais amplo. De fato, o Brasil tomava conhecimento de O tempo e o vento, de Erico Verissimo; de Grande sertão, veredas, de Guimarães Rosa; de O primo Basílio, de Eça de Queiroz; de Tieta do agreste, de Jorge Amado, através dos seguidos capítulos da teledramaturgia. Transformados em folhetim muito bem elaborados, adaptados e encarnados por atores e atrizes famosos do público, velhos conhecidos do sofrer e das paixões de outros personagens, tais livros gloriosos da nossa galeria literária chegavam ao conhecimento do público brasileiro em geral. Se os leitores atuais podem ser chamados de geração internet ou das redes sociais, a nossa facilmente se reconhece como geração TV. Em se tratando de literatura, indiferenciáveis de outros leitores mais cosmopolitas, tínhamos nossos hábitos de leitura clandestina, como diz Roger Chartier. Explico-me. Nossos professores mandavam ler Machado, Graciliano, Drummond, João Cabral, líamos também Jorge Amado, Marquez, Kundera, Sidney Sheldon, quiçá Paulo Coelho. Os anos 1990 também tinham a marca do livros populares, geralmente divulgados pelas listas dos mais vendidos das revistas Veja, Isto é e dos grandes jornais, como Estadão, Folha e JB. Os bestsellers até faziam divulgação em intervalos

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comerciais da televisão, anunciando que estavam à disposição do público Nas bancas. A insustentável leveza do ser e O amor nos tempos do cólera apareciam anunciados junto a Fernão Campelo gaivota e O alquimista. Em termos de estudos literários, a fala recente do pesquisador João César de Castro Rocha demonstra que aquela energia formada nas entradas e saídas da livraria do Prof. Raimundo Luiz e investida ao longo dos anos por alguns de nós não foi em vão. O professor carioca, um dos principais teóricos da nova história da literatura, afirmou na PUCRS, em outubro de 2011, que iria utilizar a metodologia de A Literatura no Brasil, para organizar a sua nova história da literatura. Para um dos mais interessantes estudiosos de literatura da nova geração, o modelo de Coutinho é viável porque agrega os pesquisadores da área, fornece painel da literatura no Brasil, assume a diversidade nacional quase impossível já de ser conhecida de outra forma que não seja a chamada de publicação, mesmo recortada, torna possível avaliação das diferenças. Isto tudo levando-se em conta também todos os pontos polêmicos, questionáveis e incontroláveis que se podem deparar para quem resolve empreender tal atividade. As agências de fomento e avaliação acadêmicas, como a CAPES, também pensam de forma semelhante, quando resolvem financiar eventos e produtos que comprovem o esforço de agregação nacional de especialistas em torno de temas comuns, em vez da dispersão e multiplicação de eventos sobre o mesmo tema. Faz algum tempo realizei estudo sobre a figura do poeta Castro Alves a partir de termo proposto por mim, esteio de sistema. Naquela oportunidade, tomei Castro Alves como estio de sistema da Bahia. Lá, afirmava que, além da figura poética, erguida ao campo semântico de monumento (LE GOFF, 2003), Alves se tornara essencial para a memória cultural do Estado. Reúne-se, mobiliza-se, sonha, reconhece-se em torno desse Castro Alves emblemático, erótico, mítico, gerações e mais gerações de intelectuais, literatos, artistas, incentivadores, acadêmicos. O poeta de A Cachoeira de Paulo Afonso toma o lugar, simboliza, corporifica e insufla o que vem a ser a própria Bahia. Pertencer a uma esfera de literatura nacional pouco importa, ou melhor, implementa tais expectativas. Autorizado pelos laços de identidade que ligam literatura e pertença, pode-se pensar numa alegoria estadual. Do mesmo modo que o Estado se acomoda entre os empurrões e solavancos dos outros Estados mais a oeste, pressionando-o em direção ao

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 47-54.

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mar, como é impedido de esgueirar-se sinuosamente para o sul e aparenta, vigoroso, suster os estados do nordeste, a presença de Alves pretende guardar lugar para obras do passado, geradas no presente e gestadas para o futuro. Obviamente, para não parecer bairrista, não é esta a minha a intenção, a Bahia também pressiona e fragiliza as outras unidades da federação. Basta lembrar os discursos do nosso recentemente desaparecido Antonio Carlos Magalhães. Em suas áreas de atuação, outros autores são capazes de tais proezas, como Jorge Amado e Afrânio Coutinho. Não por acaso, são exatamente estes 3 autores que inspiraram a ideia agora exposta de esteio de sistema (PINHO, 2008). Naquele momento, os pontos historiográficos explorados na produção de Castro Alves, Afrânio Coutinho e Jorge Amado foram a consagração e a polêmica. Agora, após a investida em outros referenciais, como é o caso de Jacques Le Goff, até o silêncio pode ser catalogado nesta descrição de fisionomia de sistema. Nesse caminho crítico, outro intelectual de relevo da Bahia causou admiração pela obra que foi capaz de erguer, nas condições que lhe foram oferecidas. Trata-se do Afrânio Coutinho (1911-2003) que neste ano completa o seu centenário de nascimento. O seu desempenho é tão insinuante que o biógrafo (BELÉM, 1987) justifica a capacidade de trabalho, polêmica e deslocamento com a projeção de obras e instituições, com a saída do tacanho Estado e uma viagem para os Estados Unidos da América. A explicação é muito fácil e poderia reduzir a sensação angustiante de não poder afirmar a força cultural do sistema que vê nascer Coutinho. Óbvia a pretensão de enfatizar tais discursos contra a força intelectual formativa de autores tão distantes no tempo, Padre Vieira e Afrânio Coutinho, nas escritas de seus intérpretes. Contudo, a minha experiência de trabalho com os jornais e as instituições culturais, os quais me fazem ver por um lado totalmente desconhecido da história e da crítica literária tradicional, mostra-me não um Afrânio Coutinho, mas um conjunto sólido anterior de longa data de intelectuais bastante interessados em fortalecer a sua visão particular de cultura (talvez matizada por messianismos, visão particular da terra, etc). Infelizmente, esta mesma solidez não permitiu movimentos positivos como passos decisivos para assunção de visões mais democráticas, menos coronelistas, etc. Por seu lado, a narrativa hegemônica tenta transformá-los em exceções para depois classificálos fora do estereótipo de atraso que melhor explica o sistema cultural baiano. A 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 47-54.

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dificuldade do discurso hegemônico está na quantidade de exceções, na temporalidade envolvida e nos projetos que os unem. Em vista do prestígio do Modernismo, a Bahia pagou alto tributo por esta mesma possibilidade de vinculação na longa duração da cultura do ocidente em nossas terras e em nosso imaginário. Convidada a esquecer e abandonar vínculos ditos como retrógrados, antinacionalistas, retóricos, algo sempre a fez insistir pela permanência e festejo. No mais forte mergulho no tempo, autores do calibre de Padre Antonio Vieira e o poeta boca de brasa Gregório de Matos ofereceram a maturação de leitura e recepção de Jorge Amado, Adonias Filho e Afrânio Coutinho. Não se pode negar também a existência da instituição do Colégio dos padres Jesuítas como formadora de uma prática de pensamento que moldou formatos de comportamento e agir intelectual bem-sucedido na longa duração: Vieira é uma celebridade internacional no seu tempo, formado ali na grosseira e diminuta, como disse José Veríssimo, capital das Américas. A passagem dos regimes coloniais para imperialista e desse para republicano e depois todos os reveses no século XX podem demonstrar insatisfações e diálogos nem sempre em sintonia. Afinal, trata-se da cultura que se vai vencendo enquanto entra e é testada na crise, como defende Martim Heidegger. Não se deve negar, no entanto, a cultura que veio arrolada e providenciou uma identificação própria, talvez não propícia, o que é outra história. Por hora, convém entrarmos com dignidade nesta linha de amadurecimento cultural, reconhecendo os valores intelectuais e seus esforços. Afrânio Coutinho, nos seus 100 anos completos, certamente fornece tintas a esta aquarela bafejada de mares e sertões.

RESUMO Pretendo aproximar a leitura da obra do crítico e historiador Afrânio Coutinho a alguns dos termos forjados por mim durante o estudo do sistema literário da Bahia e da pesquisa de periódicos. Esteio de Sistema e Amadurecimento de Cultura são dois desses termos. Caros para a argumentação, pretendem na sua prática, reverter em positivo o negativo do termo tradição (amadurecimento de cultura) e as íntimas ligações entre escritores cuja obra são capazes de manter acesos os formatos dos acervos literários da Bahia: esteio de sistema. Afrânio Coutinho, por seu lado, é um esteio. É capaz de 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 47-54.

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erguer, nas suas inúmeras pesquisas, principalmente nas obras A Literatura no Brasil e Enciclopédia da Literatura Brasileira, um rol imenso de autores e obras ligadas ao sistema literário do Estado. Sendo assim, me utilizo das ideias da Teoria da Recepção, dos estudos culturais e da nova história da literatura. PALAVRAS-CHAVE: Afrânio Coutinho; Amadurecimento Cultural; Sistema Literário; Bahia.

BIBLIOGRAFIA ADONIAS FILHO. O Ciclo Baiano. In: COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. v.5. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução por Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras. 2008. BELÉM, Odilon. Afrânio Coutinho: uma filosofia da literatura. Rio de Janeiro: Pallas, Didática e Científica, 1987. CALMON, Pedro. História da Literatura Bahiana. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. CAMPOS, Haroldo de. O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos. 2. Ed. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989. FRANCO, Afonso A. de M. O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa – as origens brasileiras da teoria da Bondade Natural. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. GOMES, João Carlos Teixeira. A tempestade engarrafada – ensaios. Salvador-Ba: EGBA, 1995. HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Organização de Liv Sovik. Tradução de Adelaine La Guardia Resende [et al.]. Belo Horizonte/Brasília: Editora da UFMG/Unesco, 2003. JOBIM, José Luís (Org.). Palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. (Col. Biblioteca Pierre Menard). LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Formação da leitura no Brasil. 3. ed. São Paulo: Ática, 2003. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. O preço da leitura no Brasil: leis e números por detrás das letras. São Paulo: Ática, 2001.

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COUTINHO E CANDIDO: ELOGIO À CRÔNICA Profa. Dra. Alana de O. Freitas El Fahl- UEFS 1

A intensa atividade literária nos jornais foi uma marca significativa do período compreendido entre o último quartel do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, ou seja, entre as reformas do fim do século e Primeira Guerra Mundial, como situa Werneck Sodré na sua História da Literatura Brasileira ― Seus Fundamentos Econômicos. Durante essa fase, os textos literários passam a ser um dos pilares da atividade jornalística. De maneira geral, todo periódico possuía espaços dedicados à produção literária. A indústria do livro no país era praticamente inexistente. A edição francesa dominava o mercado brasileiro, seguida pela produção portuguesa. A circulação de exemplares ocorria de forma limitada. Essa lacuna viria justamente a ser amenizada pelas publicações literárias veiculadas nos jornais. Sobre essa mesma fase da atividade literária brasileira, aponta Werneck Sodré (1964, p.433): As atividades do escritor e do jornalista se confundiam na mesma pessoa, via de regra; agora elas se separam, mas o escritor ainda é uma peça importante na imprensa, desempenha nela um papel, tem um lugar, do que lhe resulta proveito, como escritor. E há, nesse campo, uma liberdade de opinião relativamente ampla, porque a imprensa não está estreitamente ligada aos grupos econômicos... E a sua atividade através da imprensa traduz justamente a coincidência de ser esta, em maioria expressiva, a intérprete dos sentimentos da classe nova que pressiona no sentido de reivindicar o papel que lhe cabe na vida brasileira.... Mas começava a aparecer, e se aprofundava, a consciência do papel do escritor

A afirmativa de Werneck Sodré constrói um panorama claro do contexto literário em questão. Os jornais utilizavam amplamente a colaboração voluntária, bem como já existiam escritores contratados para esse mister, possibilitando uma maior circulação dos textos literários, e, sobretudo, dos valores veiculados pelos mesmos. As

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Professora adjunta de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Feira de Santana.

ISBN 978-85-7395-210-0

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colunas literárias passam a freqüentar cotidianamente as páginas dos jornais. As colunas se sucedem em profusão na trajetória da imprensa brasileira. É dentro desse panorama cultural que surge com força a figura do cronista, escritor fruto das páginas dos jornais que posteriormente ganhará os livros, mas sem nunca abandonar seu primeiro habitat. A crônica, oriunda dos folhetins, vai se metamorfoseando ao longo dos anos e ganhando contornos próprios. O jornal O País, no final do século XIX, no Rio de Janeiro, criou a tradição de publicar sua coluna literária, Microcosmo, no alto da primeira página, no canto esquerdo da margem superior. Esse procedimento foi logo seguido pelos outros jornais. Tal coluna era assinada por Carlos de Laet, mas também contava com a colaboração de Gilberto Amado, Olavo Bilac e Artur Azevedo. A maioria dos jornais possuía o seu cronista titular e outros nomes que se revezavam nessa função. Em tempo, é importante lembrar que os mais respeitados escritores brasileiros quando nos referimos ao século XIX, José de Alencar e Machado de Assis, assinaram colunas dedicadas ao gênero. Ambos atuaram como colaboradores efetivos de jornais de grande circulação no Rio de Janeiro, trazendo ao grande público suas opiniões repletas de refinamento intelectual, nas quais o cotidiano era ressignificado de forma literária. Como exemplo, podemos lembrar o trabalho de Machado de Assis na série de crônicas denominadas Bons Dias e ainda Miscelâneas e Aquarelas ou as imperdíveis Crônicas de Lélio. Sobre esse processo de mutação do folhetim, observa Antonio Candido (1992, p.15), no artigo A Vida ao Rés-do-Chão, no qual explora a trajetória e a natureza da crônica: Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de roda-pé sobre as questões do dia – políticas, sociais, artísticas e literárias. Assim eram os da secção “Ao Correr da Pena”, título significativo à cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.

A crônica, efetivamente, atende ao tripé autor/obra/leitor, condição fundamental para a sedimentação de um sistema literário proposto por Candido. Ela já nasceu tendo público cativo e, por ser simples, despretensiosa, não almejando fazer parte dos cânones 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 55-60.

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da literatura, vem resistindo e se fortalecendo como um gênero de destaque na atualidade. O desenvolvimento do gênero narrativo crônica passa a ser impulsionado simultaneamente à evolução da imprensa no Brasil como observa Afrânio Coutinho na Enciclopédia da Literatura Brasileira (2001, p.559): Mas a crônica vem a incorporar-se aos hábitos da nossa imprensa quando se deu o desenvolvimento da imprensa, com a sua modernização, quando se adotam as ilustrações a pena e os clichês fotográficos, quando se aumenta o número das edições. Dispondo de maior espaço, o jornal se enriquece de atrativos e com o noticiário, o grave artigo de fundo e a seções ordinárias, transforma a crônica em matéria cotidiana, como recreio do espírito, amável e brilhante cintilação da inteligênciaum

A citação registra um importante elemento de fomentação do gênero, já que a imprensa foi o elemento motor da evolução da crônica literária no Brasil, funcionando como um arquivo constante de produção e reelaboração dessa modalidade narrativa. Coutinho argutamente também observa um aspecto referente à natureza da crônica. O traço que parece caracterizar a natureza da crônica em qualquer época, a sua marca de descomprometimento, de tratar com banalidade assuntos sérios, enfim, conferir leveza à densidade da vida, uma vez que sua função primordial era entreter o leitor, como ele próprio a chama recreio do espírito. Sobre essa marca da crônica, Afrânio Coutinho ratifica o seu papel de entretenimento quando comenta o início da sua trajetória no Brasil durante o Romantismo (2001,p.559-560): Quem percorrer os jornais desse período observará que, no seu bojo, atenuando as exuberâncias da paixão política, insinuava-se algo que tinha principalmente um objetivo: entreter. Era a crônica, destinada a condimentar de maneira suave a informação de certos fatos da semana ou do mês, tornando-a assimilável a todos os paladares.

O comentário resume de maneira efetiva e afetiva o princípio que mais norteou a crônica durante sua trajetória, a propriedade de proporcionar diversão aos leitores, uma espécie de bálsamo de letras que retemperava os fatos, muitas vezes indigestos, tornando-os palatáveis, provando que a literatura, embora não possa curar os males do mundo, ajuda a suportá-los. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 55-60.

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Fruto das páginas dos jornais, a crônica vem cada vez mais ocupando as páginas dos livros em antologias das mais variadas, prova incontestável de que ela pode trair o caráter efêmero do tempo e eternizar-se. João do Rio, pseudônimo do jornalista fluminense Paulo Barreto (1881-1921), foi um dos grandes nomes ligados à crônica do início do século XX. Segundo Renato Cordeiro Gomes (1996), a produção desse autor é bastante significativa para ilustrar o período, já que seus textos foram publicados em diversos jornais (O Dia, Gazeta de Notícias, O País) e em diversas colunas literárias (Cinematógrafo, O Instante) da capital. Para Brito Broca, João do Rio foi o cronista por excelência dos “1900” no Brasil. Entre outros méritos o autor instituiu a transformação da crônica em reportagem (“por vezes líricas e com vislumbres poéticos”), assim o cronista deixava o gabinete para extrair o seu texto diretamente das ruas, sendo o nosso primeiro flâneur. Esse espírito flâneur, de buscar nas ruas a inspiração para seus textos, vai, de certa forma, influenciar a produção dos outros cronistas posteriores a João do Rio. O espetáculo das ruas vai funcionar como fonte inesgotável de temas para o desenvolvimento da atividade dos cronistas. Cabe a eles flagrar no turbilhão das ruas as cenas que podem ser registradas e transformadas em páginas literárias. João do Rio foi o primeiro cronista a perceber que novos tempos exigiam uma nova linguagem literária, preconizando um estilo que representava a modernidade crescente que se anunciava através do modelo urbano da então capital federal, já naquela época fazendo uso de recursos visuais próprios do cinema e da fotografia. Assim, saindo do seu gabinete, o cronista também se destacou por realizar espécies de pesquisa de opinião, ou enquetes, como se denominava na época. Em uma dessas enquetes, intitulada de O Momento Literário, realizado em 1905, João do Rio lançava aos escritores brasileiros a seguinte pergunta: O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária? Tal questionamento denota a importância da relação entre a literatura e o jornalismo naquele período, já que esse era o principal veículo para a circulação literária. Outro nome que se destaca nas colunas literárias é Olavo Bilac (1865-1918). O príncipe dos poetas brasileiros não concentrou sua lavra apenas nos impecáveis sonetos parnasianos. Ele também fez da crônica uma profissão de fé. Assinou no início do século XX, na Revista Kosmos (1904-1906), a crônica de abertura que vinha assinada

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pelas suas iniciais O. B.. Kosmos era, segundo Brito Broca(1955), uma revista de cultura na qual predominava a parte literária e artística. Muitos outros exemplos de colunas literárias destinadas à publicação de crônicas poderiam aqui ser elencados, pois, de fato, essa foi uma marca cultural desse período e assim continua até a contemporaneidade. A tradição da coluna literária de crônicas no Brasil invadiu o século XX, perpetuando-se ao longo dos anos e chega até nós com o mesmo frescor das rotativas do século XIX. O gênero parece ter se ambientado de tal maneira no país, que um estudo detalhado de sua evolução revelaria muito da identidade nacional, pois a crônica revela uma profunda intimidade com o cotidiano do brasileiro. Podemos afirmar que a crônica literária representa um tipo de narrativa que possui um itinerário de destaque para a História da Literatura Brasileira. Ainda que injustamente inferiorizada nos cânones do nosso sistema cultural, ela vem, ao longo dos anos, fazendo parte do universo intelectual do país, e, sobretudo, do repertório textual e afetivo dos nossos leitores. E se ela obteve destaque através das penas dos dois maiores historiadores da nossa literatura é um sinal de que merece mais atenção, aqui pois fica registrado nosso elogio à crônica, a Antonio Candido e, sobretudo, a Afrânio Coutinho nosso homenageado.

RESUMO

O presente trabalho pretende demonstrar a importância da crônica no sistema literário brasileiro. Desde sua gênese no século XIX, através das colunas em periódicos até a contemporaneidade, essa modalidade narrativa habita as preferências dos leitores e vem sofrendo mudanças ao longo dos anos. Tal aspecto passa incólume em grande parte dos estudos dos historiadores da literatura em nosso país, todavia Afrânio Coutinho e Antonio Candido destacam em suas obras a grandeza desse gênero menor. PALAVRAS-CHAVE: Crônica. História da Literatura. Periódicos.

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ABSTRACT

The present study intends to demonstrate the importance of the chronicle in the Brazilian literary system. Since its beginning in the 19th century, through the columns in periodicals to contemporaneity, this narrative modality dwells in the preferences of the readers and has been going through many changes along the years. This aspect is not noticed by many of the Literature historians in our country. However, Afranio Coutinho and Antonio Candido highlight the greatness of this genre in their works. KEYWORDS: Chronicle. Literature History. Periodicals.

BIBLIOGRAFIA BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil ― 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. CANDIDO, Antonio [et. al.]. A Crônica: O Gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Fundação Casa de Rui Barbosa. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1992. COUTINHO, Afrânio. Enciclopédia da Literatura brasileira. Dir. J. Galante de Souza. Vol.I. Co.Ed. Global, FBN e ABL: São Paulo, 2001. _________. Notas de Teoria Literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio: Vielas do Vício, Ruas da Graça. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira–Seus Fundamentos Econômicos. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 4. ed, 1964.

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CRÍTICA CULTURAL E BIOGRAFIA: ESPARSOS E INÉDITOS DE MARIO QUINTANA Prof. Dr. André Luis Mitidieri1 Profa. Ma. Miquela Piaia 2

1 CRÍTICA LITERÁRIA E CRÍTICA CULTURAL

O século XX exige um constante recomeçar por parte dos críticos literários, de modo que Eneida Maria de Souza (2002, 2007) considera a mudança ocorrida na transmissão da cultura através dos meios de comunicação de massa. As relações da crítica literária com os estudos culturais implicam superar disputas e discordâncias intelectuais, o que se dá em meio a radicalismos de várias ordens: “Enfrentar o desconhecido, seja através do âmbito teórico ou ideológico, desconfiar de certezas estabelecidas, são os perigos que possibilitam o avanço do pensamento crítico e a abertura para o novo, mesmo que este esteja já marcado pela sua exaustão” (SOUZA, 2002, p. 12). Não difere muito o processo crítico estabelecido por Marc Bloch e no qual Carlo Ginzburg se ampara. Para aquele, datas, linguagens, vestígios e tantas outras coisas entram no percurso nunca linear do historiador, cuja chegada jamais é previsível nem determinada:

Somos agora capazes ao mesmo tempo de desvendar e de explicar as imperfeições do testemunho. Adquirimos o direito de não acreditar sempre, porque sabemos, melhor do que pelo passado, quando e por que aquilo não deve ser digno de crédito. Mas o conhecimento puro não é aqui, mais que em outro lugar, dissociado da conduta [...] a história tem o direito de contar, entre as glórias mais seguras, ter assim ao elaborar sua técnica, aberto aos homens um novo caminho rumo à verdade, e, por conseguinte, àquilo que é justo (BLOCH, 2001, p. 124).

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Doutor em Letras pela PUCRS com Pós-Doutorado em Estudos Literários na UFRGS. Professor de Literaturas Hispânicas no Curso de Letras e de História e Literatura no Mestrado em Linguagens e Representações da UESC. Docente-colaborador no Mestrado em Literatura Comparada da URI-FW. 2 Mestre em Letras, área de concentração Literatura pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões ― URI. Professora Titular de Língua Inglesa no Instituto Federal Farroupilha, Campus Santo Augusto-RS.

ISBN 978-85-7395-210-0

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Não havendo uma teoria que responda a todas as interrogações, é tarefa dos críticos refletir sobre as diversas possibilidades que um texto pode fazer surgir. “A vida da crítica se alimenta de um movimento interminável de interrogação, por se negar a seguir à risca um método fixo ou idéias congeladas” (SOUZA, 2002, p. 12). A era das informações digitais traz nova reconfiguração para o meio literário e cultural. Os centros acadêmicos não mais definem os critérios de preferência e valores estéticos, novas regras são ditadas pelas propagandas, pela mídia e a internet. Os leitores passam a ser, em grande maioria, virtuais. O momento atual apresenta critérios híbridos e mais abrangentes: “os cânones e a tradição literária atuam sorrateiramente sobre a experiência singular do fazer artístico, atividade secular que se nutre de revivals e revisitações” (SOUZA, 2002, p. 90). Teorias e abordagens da crítica literária brasileira alargam seus campos, todavia, os intérpretes desses estudos devem ser cautelosos frente a mudanças que acabam “provocando os questionamentos dos lugares dos produtores de saber, assim como dos conceitos operatórios responsáveis pela produção de paradigmas e de metodologias críticas” (Id. Ibid. p. 105). A crítica literária, por enfocar tanto obra quanto autor, transcende dimensões puramente literárias: Os limites provocados pela leitura de natureza textual, cujo foco se reduz à matéria literária e à sua especificidade, são equacionados em favor do exercício de ficcionalização da crítica, no qual o próprio sujeito teórico se inscreve como ator do discurso e personagem de uma narrativa em construção. A proliferação de práticas discursivas consideradas ‘extrínsecas’ à literatura, como a cultura de massa, as biografias, os acontecimentos do cotidiano, além da imposição de leis regidas pelo mercado, representam uma das marcas da pósmodernidade, que traz para o interior da discussão atual, a democratização dos discursos (SOUZA, loc. cit.).

Em face da variedade de intérpretes duma história particular, o texto da memória “se constrói em cadeia, movimenta-se em espiral e se pluraliza em vozes e autorias diferentes. Funciona como peça no circuito intersubjetivo de transmissão de saberes: ao falar de si, é falado do outro, fazendo ressoar as vozes de uma geração que compartilhou das mesmas aventuras” (SOUZA, 2007, p. 20). O modo como o sujeito-autor se posiciona no discurso da crítica contemporânea pode variar: alguns adotam uma posição

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de distanciamento e outros se entrelaçam “ao corpus escolhido. Acompanha-se também o movimento de entrada e saída do gesto enunciativo – recuos, avanços e saltos” (SOUZA, 2007, p. 20). O desconforto “justifica a resistência do sujeito em relatar experiências que, no lugar de recompô-lo, o recortem, como na restauração de um vaso quebrado: a marca dos remendos dos cacos permanece, reforçando a fragmentação” (Id. Ibid. p. 24). Exigese “a articulação da memória e do esquecimento, da presença e ausência de dados que configurem o material cinzento e contraditório do passado. O esquecimento, ao acenar para o lugar da falta, do que escapa à inscrição e à simbolização, impulsiona, no presente, o exercício da reelaboração da experiência” (Id. Ibid. p. 26). A metáfora do vaso quebrado se associa ao símbolo grego, a consistir “no exercício do poder que permite à pessoa que detém um determinado segredo quebrar um objeto qualquer em duas metades, guardar uma das partes e confiar a outra a alguém que deverá guardá-la para atestar a sua autenticidade” (SOUZA, 2007, p. 100). Édipo recompõe também “o fio do destino, através da reunião das metades partidas de sua história pessoal” (SOUZA, loc. cit.), mostrando que o passado não pode ser recomposto em sua totalidade. Vigilante quanto ao papel do sujeito no interior dos discursos, Ricardo Piglia vincula o gênero policial à crítica literária, ao combinar política, literatura e história “em traços espalhados nas figuras do autor e do crítico, nas citações roubadas e nos textos clandestinos” (Id. Ibid. p. 23). Essa abordagem aos gêneros menores, à tradição literária desviada do foco das grandes narrativas, relaciona-se à escala reduzida dos microhistoriadores, processando-se através das margens e dos bastidores, entre os quais, se encontram os arquivos e acervos literários, a literatura e sua memória.

2 ARQUIVOS E ACERVOS LITERÁRIOS O trabalho dos pesquisadores brasileiros em acervos e arquivos literários, na busca da historicidade da literatura de forma científica, é impulsionado a partir da década de 1980, quando o imanentismo perde força para os estudos culturais e a crítica genética. A organização acervística recebe tratamento diferenciado no mesmo período, com o trabalho desenvolvido na PUCRS, saindo dos arquivos tradicionais para modelar um acervo que atenda “as necessidades da investigação literária [...] preservando a 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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diversidade dos itens documentais, sem exclusões ou hierarquizações” (BORDINI, 2004, p. 205). No mesmo propósito, “Literatura e Memória Cultural” é o tema adotado pelo II Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) que, realizado em 1990, representa a vontade de muitos pesquisadores em resgatar o patrimônio literário brasileiro. Entre os projetos de recuperação e conservação da memória apresentados, o Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais tem por objetivo “propiciar condições para a recepção, preservação e pesquisa de acervos e bibliotecas, colocando-os à disposição da comunidade” (SOUZA, 2007, p. 119). Vinculados a esse centro, outros projetos de publicação, de divulgação e de preservação da cultura literária mineira são também desenvolvidos a partir da UFMG: “As assinaturas que hoje se inscrevem no desejo de resgate deste texto coletivo da memória buscam o traçado das obras esquecidas e de autores que ainda não foram devidamente descobertos ou valorizados. Tarefa paciente de detetive e investigador que se propõe decifrar e tirar a poeira desse nosso incrível paralimpsesto cultural” (SOUZA, 2007, p. 119-120). É necessário esclarecer que a expressão arquivo literário designa o material de um escritor vivo enquanto acervo literário denomina a coleção de um escritor morto, eventualmente, sob a posse de instituições culturais. Tratando dessas questões, a obra Arquivos Literários (2003), organizada por Eneida Maria da Souza e Wander Mello Miranda, reúne artigos de pesquisadores do manuscrito literário que discutem a prática de conservação da memória em plena era da informatização. Os textos resultam do colóquio A Invenção do Arquivo Literário, realizado no ano de 2000 em Belo Horizonte, com proposta de reler as tradições pelo olhar contemporâneo para que, em meio a tantas mudanças, nem tudo se perca. Assim, Silviano Santiago (2003, p. 15-24) abrange o processo individual arquivístico e a memória cultural de um povo: “Anotações de leitura, rascunhos, borrões de palavras e frases, acréscimos, resumos, páginas abandonadas, versões negligenciadas etc. etc. Todos esses textos fragmentados nos colocam de imediato no terreno pedregoso em que se misturam lembrança, esquecimento, amnésia” (Id. Ibid. p. 15). A produção da obra de arte é relacionada, por muitos escritores e pensadores, à gestação e concepção

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pelas quais passa a mulher. O parto seria um instante decisivo e, do nascimento em diante, a obra deixa de pertencer ao autor para ser do leitor, que a interpretará de variadas formas. Nesse processo, as técnicas modificam-se com o uso dos aparatos tecnológicos surgidos nos últimos tempos: “Tudo indica que, com o computador, o texto final da grande obra literária perderá grande parte da sua memória; a não ser que se alertem os criadores para o perigo” (SANTIAGO, 2003, p. 24). Experiências internacionais, por exemplo, com a obra de Marcel Proust, na França, ou de Erico Veríssimo, Josué Guimarães, Mario de Andrade, Mario Quintana, Monteiro Lobato etc. no Brasil, mostram que o trabalho com o acervo de um autor contribui para elucidar questões relativas à produção, circulação e recepção de textos literários. Como outros, os acervos desses intelectuais despertaram, em suas comunidades, o sentido de preservação dos respectivos patrimônios culturais. O arquivo deixa de ser questionado acerca de suas finalidades; agora é preciso saber o que se deseja dele. A partir da edição, surge a necessidade de estabelecer práticas que orientem o processo produtivo. A quantidade e a variedade de materiais dependem muito dum desejo que o autor expressa. Eventualmente, há desconexão entre o desejo e a sequência factual da escrita que pode ser explicada pela imaginação do autor. Maria da Glória Bordini (2003, p. 129-140) se concentra no projeto Acervos de Escritores Sulinos, iniciado em 1982, com a organização do Acervo Literário de Erico Verissimo (ALEV). Dois anos mais tarde, o CNPq aprova a implementação da pesquisa, que resulta num sistema de armazenamento, arquivamento e catalogação eletrônicos, “podendo iluminar com maior abrangência os fenômenos literários” (p. 131). Outros acervos são constituídos, formalizam-se os Encontros Nacionais de Acervos Literários Brasileiros em Porto Alegre e “o conhecimento produzido gradualmente se desloca do estado da arte e dos sistemas de preservação física dos materiais, para aspectos éticos e para o impacto das novas tecnologias sobre o documento literário” (p. 133). Pesquisas desenvolvidas por Maria da Glória Bordini, Maria Luiza Remédios e Regina Zilberman, no âmbito dos projetos Acervos Literários em Rede Nacional e Fontes da Literatura Brasileira, resgatam fontes primárias e secundárias da literatura sulina, preservando e difundindo os achados, por meio da rede mundial de computadores. Compostos por elementos heterogêneos, os acervos promovem a

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interação de saberes, trocas literárias, estudos interdisciplinares e múltiplos diálogos, como o que aqui propomos, entre a micro-história italiana, os estudos literários e o material lacunar que deve contribuir para com o Acervo Literário de Mario Quintana, atualmente, sediado no Instituto Moreira Sales do Rio de Janeiro.

3 MICRO-HISTÓRIA LITERÁRIA PARA A BIOBIBLIOGRAFIA DE QUINTANA

Inspirados na micro-história italiana, visamos proceder a um estudo monográfico sobre temática particular: uma biobibliografia fragmentária de Mario Quintana (19061994). O desenvolvimento do trabalho assim proposto se insere “no cruzamento da história cultural com a história social, porque preocupada com temas ligados às ‘representações’, sem contudo diluir os contrastes e contradições sociais em um psicologismo anódino e fátuo” (VAINFAS, 2002, p. 75). Para a efetiva realização de tal projeto, baseamo-nos em Carlo Ginzburg, o qual resume a micro-história pela capacidade de transformar pistas fragmentárias e distorcidas em elementos narrativos. Embora pareçam nada revelar à primeira vista, pequenos detalhes se tornam significativos à investigação micro-histórica, o que não equivale a abrir mão daqueles elementos cuja importância já tenha sido detectada em outros tipos de abordagem. A escolha do material e a seleção dos fatos a narrar consideram o papel diversas vezes negligenciado das minúcias, dos caracteres anômalos, daí “supor como potencialmente mais rica a documentação mais improvável” (GINZBURG, 2007, p. 277). O método de Ginzburg se contrapunha ao pensamento comum que sugeria observar características de maior vulto, por isso, de mais fácil imitação. Edward Wind estabeleceu que qualquer museu de arte estudado por Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museu criminal. Essa comparação foi brilhantemente desenvolvida por Castelnuovo, que aproximou o método indiciário de Morelli ao que era atribuído, quase nos mesmos anos, a Sherlock Holmes pelo seu criador, Arthur Conan Doyle (GINZBURG, 1989, p. 145).

A analogia entre o expert em arte e o detetive que, no desvendamento de um crime, segue pistas imperceptíveis para o grande público ou aos “mais comuns dos mortais”, relaciona Freud e Conan Doyle, os sintomas da psicanálise e os indícios do 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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romance policial. Trata-se de “reconduzir ao conhecimento histórico não mais fenômenos aparentemente atemporais, mas fenômenos aparentemente negligenciáveis” (Id. Ibid. p. 10). Para tanto, análises de tipo microscópico e pormenores observados de perto se somam com “as referências implícitas a textos literários e as reações do público” (Id. Ibid. p. 12). Assim, Passagem-Werk: grande obra inacabada de Benjamin sobre a Paris do Oitocentos, inclui várias citações do Mikrokosmus de Lotze, um livro muito popular no fim do século XIX. Lotze desempenhou um papel importante, embora por muito tempo desdenhado, no pensamento de Benjamin. Um dos temas fundamentais das Teses sobre o conceito de história de Benjamin, o convite a ‘escovar a história a contrapelo’, retomava as concepções de Lotze sobre a redenção do passado, desenvolvendo-se no âmbito de uma perspectiva inspirada tanto no judaísmo como no materialismo histórico (GINZBURG, 2001, p. 217).

O pesquisador italiano retoma esse impulso para salvar o passado, ao mesmo tempo em que o associa à obra proustiana, não por acaso, uma outra referência de Benjamin: “Ler a realidade às avessas, partindo de sua opacidade, para não permanecer prisioneiro dos esquemas da inteligência: essa idéia, cara a Proust, parece-me exprimir um ideal de pesquisa que inspirou também estas páginas” (GINZBURG, 2004, p. 11). O mesmo chamamento ressurge na afirmação de que ler os “testemunhos históricos a contrapelo, como Walter Benjamin sugere, contra as intenções de quem os produziu ― embora, naturalmente, deva-se levar em conta essas intenções ― significa supor que todo texto inclui elementos incontrolados” (GINZBURG, 2007, p. 11). Reiterando que os espaços marginais devem ser considerados pelos estudos históricos, Ginzburg (2002) se opõe ao pensamento de que os modelos narrativos possam causar interferências somente na finalização dos trabalhos historiográficos, quando se organiza o material coletado: “busco mostrar que, pelo contrário, eles agem durante todas as etapas da pesquisa, criando interdições e possibilidades” (p. 44). O historiador ainda convoca uma observação de seu colega francês Lucien Febvre: “as fontes históricas não falam sozinhas, mas só se interrogadas de maneira apropriada” (Id. Ibid. p. 114). O conceito de rastro, segundo apresentado, no percurso em que Ginzburg retoma Marc Bloch e Paul Ricoeur, contribui ao presente trabalho de crítica cultural e microhistória literária, apresentado como alternativa a formas desgastadas para abordagem da 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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literatura brasileira: Do ponto de vista dos conteúdos, história literária na escola brasileira (tanto na superior quanto na média) é basicamente estudo de ‘estilos de época’ e/ou de história social, segundo as grandes sínteses históricas dos anos de 1950 a 1970. Aqui, para não haver injustiça, é necessário um duplo movimento. Por um lado, é preciso destacar o fato de que as grandes obras de história literária não podem ser responsabilizadas pela má aplicação que delas se faz, e muito menos pela miséria geral do ensino médio no que toca às humanidades; por outro lado, é certo que a sua banalização escolar permite evidenciar facilmente concepções de literatura e história literária que hoje podem parecer desinteressantes ou insustentáveis (FRANCHETTI, p. 253-254).

Mario Quintana, por exemplo, não aparece na História da literatura brasileira de Nélson Werneck Sodré (2002). A obra quintanesca revela-se bastante incompleta no trabalho de Afrânio Coutinho (2001, p. 192-193), o qual não menciona Espelho mágico (QUINTANA, 1951), mas elenca coletâneas posteriores ao livro em destaque: Poesias (QUINTANA, 1962) e Antologia poética (QUINTANA, 1966). A essa informação, segue-se um conciso exercício de crítica literária, que ocupa o espaço de uma página. Já o best-seller de Alfredo Bosi (1999, p. 463) assim declara a respeito do poeta sulriograndense, também deixando de mencionar Espelho mágico e livros posteriores em sua bibliografia: “encontrou fórmulas felizes de humor sem sair do clima neosimbolista, que condicionara a sua formação (A rua dos cata-ventos, 1940; Canções, 1946; Sapato florido, 1948; O aprendiz de feiticeiro, 1950; Apontamentos de história sobrenatural, 1976)”. Dados de ordem histórico-literária referentes ao escritor sul-rio-grandense parecem mais corretos em livros de cunho biográfico ou crítico (BECKER, 1996; BORDINI, 2006; CASTRO, 1985; VASSALO, 2005; ZILBERMAN, 1982) que, por isso, devem ser lidos a contrapelo de suas intenções, como sugere Ginzburg com Benjamin. Se o historiador italiano adverte quanto ao fato de um só testemunho ser insuficiente à investigação histórica, tais publicações ainda se dispõem junto a um libreto de teor biobibliográfico (IEL, 2006) na biobiblografia ora proposta, a fim de confirmar ou não alguns depoimentos, entrevistas, fatos, testemunhos etc. Quintana era praticamente desconhecido no cenário nacional até a década de 40 do século XX, adequando-se ao tipo de protagonista requerido pelos estudos microhistóricos. Trata-se de um sujeito que não se identifica com as grandes personalidades, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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seja pela condição sócio-econômica, seja por seu papel intelectual à época. Por isso, apresentamos dados e fatos significativos a sua história editorial e individual em uma espécie de biobibliografia fragmentária que visa abarcar tempos anteriores ao lançamento de seu livro A rua dos cataventos (1940). A partir das edições anteriormente referidas, com finalidade biográfica, crítica ou biobibliográfica, mapeamos a produção literária que o poeta não publicou em livro ou que reformulou em edições posteriores. Assim, podemos considerar suas contribuições para com a revista Hyloea, da Sociedade Cívica e Literária do Colégio Militar de Porto Alegre (Cf. IEL, 2006, p. 19) no qual estudou como interno, entre 1919 e 1924. Nesse ano, durante teria divulgado uma composição poética na terra em que nascera (REMÉDIOS, 2006, p. 40). Valendo-se também de um falso nome ― J. B. de Sá ―, homenageava sua paixão prematura, filha do agente funerário local. O periódico em que devia constar tal registro não pôde ser localizado. Entretanto, na década de 1980, o já celebrado escritor ainda sabe de cor o mencionado soneto, um de seus pioneiros: “Que linda estavas, Maria/ no dia da comunhão [...]” (CASTRO, 1985, p. 38). Mais tarde, ao mesmo tempo em que assiste a inúmeras comemorações pela passagem dos 80 anos de seu nascimento, Quintana grava essa parcela da sua memória de vida e do seu trabalho autoral no livro Baú de espantos (QUINTANA, 1986, p. 16-17). Logo abaixo do poema, parcialmente modificado, o autor registra a data em que o teria elaborado: MARIA Que linda estavas no dia Da Primeira Comunhão, Toda de branco, Maria, Com rosas brancas na mão. Nossa Senhora esquecia Ao ver-te, a sua aflição, E eu, contrito — que heresia! — Te rezava uma oração. Pois quando te vi, de joelhos, Pousar os lábios vermelhos Nos pés do Cristo, supus Que eras Santa Terezinha, A mais linda e mais novinha 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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Das esposas de Jesus! (1923).

Em 1926, Quintana sagrou-se em primeiro lugar no concurso literário promovido pelo Diário de Notícias de Porto Alegre. Com o pseudônimo de Antônio Morteiro, havia apresentado o conto “A sétima personagem”. No ano seguinte, sob a assinatura de M. M. Quintana, obteve publicação em Para Todos: Magazine Semanal Ilustrado,i do Rio de Janeiro, dirigido por Álvaro Moreyra. Referindo-se ao ator que interpretava o filme O garoto, de Charlie Chaplin, o trabalho aí divulgado, cuja edição original encontramos na Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional, assim se apresentava: MANHÃ Esta noite eu sonhei que era Jackie Coogan! Me acordei ― Bom dia, Sr. Sol. Quanta luz! todo iluminado por dentro de alegria. ― Velho quarto, móveis, Amigo chapéu ― Bons dias! Na janela, escancarados, os meus olhos enchiam-se de perguntas bobas. Achei de novo os meus anos menininhos. Achei a Graça. Descobri que era dono da minha vida. Me sentia de todas as cores do prisma... Minha alegria, meu encantado balãozinho de cor! agarrado contigo, eu subia, subia... subia... A manhã era feita de bandeirolinhas festivas. M. M. QUINTANA (QUINTANA, 1927).

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Com severas reformulações, o mesmo poema volta à luz na página dois do suplemento “Letras e Livros” do jornal Correio do Povo, de nove de janeiro de 1982, onde figura o provável ano de sua composição: 1927. Esse dado é corrigido no 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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relançamento do poema em Baú de espantos (QUINTANA, 1986, p. 38): MANHÃ Esta noite eu sonhei que era Jackie Coogan, Me acordei Bom dia, Senhor Sol, quanta luz! — Todo iluminado por dentro de alegria. Na janela, A fresca manhã sirria! (os coqueirais crespos cutucavam ela...) (1926).

Em 1929, o poeta editou textos de sua lavra no jornal Correio do Povo, no Almanaque do Globo e na Revista do Globo. Desempregado como jornalista, traduziu Palavras e sangue, de Giovanni Pappini, para a Globo de Porto Alegre (Cf. BORDINI, 1976, p. 12). Lançada em 1934, tal obra marcava o início de uma fecunda carreira como tradutor na casa editora gaúcha. Em 1935, no Rio de Janeiro, ele conheceu pessoalmente a escritora que já divulgara seus trabalhos: “Quem me introduziu na vida literária foi Cecília Meireles. Lembro-me que ela publicou a ‘Canção do meio do mundo’ [...] no Suplemento do Diário de Notícias, com uma bela ilustração de Correia Dias” (QUINTANA apud STEEN, 1981, p. 17). Quintana atuou de forma bastante ativa entre 1938 e 1939 em Ibirapuitan: Mensário de Sociedade, Literatura e Arte. Todo o material até o momento consultado nessa revista e, a partir dos rastros nela encontrados, em outras publicações ou fontes primárias, permite reordenar e narrar, embora de forma fragmentária, sua possível biobibliografia. Se os fundamentos da micro-história advertem quanto ao fato de um só testemunho ser insuficiente à investigação histórica, no caso, à história literária, muitos fatos acerca do “anjo-poeta” são levantados em seus próprios depoimentos ou entrevistas e também nos diversos trabalhos ora estudados, que parecem confirmá-los em cadeia. Mesmo ao discordarem entre si, como no momento em que o poeta troca a revista Ibirapuitan pelos Cadernos do Extremo Sul (STEEN, 1981, p. 21) ao falar da publicação de seus quartetos, esses livros dão ciência de textos sob sua autoria dos quais, entretanto, não há registros sólidos, ou seja, vestígios físicos, provas materiais de suas ocorrências nos veículos informados e tempos referidos, a saber: 1) contribuições ao periódico Hyloea, do Colégio Militar de Porto Alegre, possivelmente, entre 1919 e 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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1924; 2) o soneto “Maria”, editado num jornal alegretense, em 1923 ou 1924; 3) o conto “A sétima personagem” (Diário de Notícias de Porto Alegre, 1926); 4) composições enviadas por Cecília Meireles ao magazine carioca Terra de Sol durante a década de 1920; 5) trabalhos que teriam circulado no Almanaque do Globo, Correio do Povo e Revista do Globo (1929-1930); 6) “Canção do meio do mundo”, a figurar no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, provavelmente, nesse decênio. Conformando uma história editorial lacunar, os testemunhos acerca de tais escritos indiciam suas presenças na história e na memória; revestem-se de significados a esta pesquisa, mas nela não aparecem como materialidade. A reunião dos textos citados, talvez existentes em algum lugar e mesmo que bastante dispersos, poderá fornecer dados que confirmem os primeiros passos do “poeta caminhante” nas vias da escrita literária, entre o começo dos anos de 1920 e o final da década de 30. Quando se trata de matéria da história factual, e aqui podemos incluir as histórias literárias, o rigor do historiador deve prevalecer, e isto vale tanto para os ‘grandes’ fatos da política ou da economia, como para os ‘pequenos’ fatos da vida cotidiana de aldeias ou de ‘personagens anônimos’, isto é, os não pertencentes ao panteão dos personagens oficiais da história. E, para tanto, é necessário pesquisa de fontes, verticalização investigativa e ampliação dos corpi documentais. O que não raro resulta em enorme esforço para acrescentar um detalhe a mais na vida de um personagem, seu tipo físico, seu modo de vestir ou andar (VAINFAS, 2002, p. 103).

Se o cuidado com as fontes não implica renunciar à busca dos fatos, esta pesquisa exige redução de escala a 1938 e 1939, mas não se restringe unicamente a esses dois anos durante os quais a revista Ibirapuitan havia circulado, pois muitos de seus textos vêm a ser reunidos nas obras literárias A rua dos cataventos (QUINTANA, 1940) e Espelho mágico (QUINTANA, 1951). Em outra direção, tentamos verificar se houve publicações do poeta sul-rio-grandense anteriores às efetuadas no periódico em vista, a fim de afirmamos ou não seu pioneirismo, o que vimos fazendo ao longo dos últimos seis anos. O material reunido durante esse tempo mostra que, editando poemas em revistas literárias já nos anos de 1920, o sujeito produtor opera ele mesmo como repositório de fontes sobre sua vida e sua obra, seja em depoimentos, seja em poesia. Sua memória, ao transitar da autobiografia ao arquivo, possibilitou reencontrar fragmentos de seus trabalhos, prototextos, rastros, fontes dispersas que, ora reunidas, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 61-77.

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contribuirão aos dados e documentos que compõem seu acervo de escritor. _______________________ i

O estreante literato já encontrava divulgação no centro do país; mandara alguns poemas para Cecília Meireles, sem conhecê-la: “Ela gostou, e publicou-os em Terra do Sol, revista que saiu até 1927” (CASTRO, 1985, p. 52). Intitulado, na verdade, como Terra de Sol: Revista de Arte e Pensamento, esse magazine tem seus exemplares dos anos de 1924 e 1925 disponíveis na Fundação Casa de Rui Barbosa e também os de julho a dezembro de 1924, na Fundação Biblioteca Nacional. Nesse conjunto, não encontramos nenhum poema de Quintana. Quanto a Para Todos: Magazine Semanal Ilustrado, assim denominado nos volumes de 1926 e 1927, teria como subtítulo, entre os anos de 1956 e 1958, “Quinzenário de Cultura Brasileira”.

RESUMO

A crítica literária e crítica cultural têm cada vez mais se entrelaçado em uma relação que visa desvendar as muitas possibilidades que podem emergir de um texto. Dentre essas possibilidades, lançamos o olhar a gêneros e perspectivas considerados menores pela crítica e a história literária tradicionais, num espaço investigativo onde memória, literatura, arquivos e acervos literários possam se encontrar. Assim, o presente artigo tem como objetivo proceder a um estudo monográfico voltado às produções iniciais de Mario Quintana (1906-1994) que, após pesquisa destinada a localizá-las, permitem reelaborar a biobibliografia do poeta, preenchendo lacunas até então apresentadas por estudos de semelhante cunho. Para tanto, propomos um diálogo entre a micro-história (baseando-nos no historiador italiano Carlo Ginzburg), os estudos literários e as pistas fragmentárias deixadas pela obra do escritor sul-rio-grandense, no intuito de contribuir para o enriquecimento de seu acervo literário. PALAVRAS-CHAVE: Crítica Cultural. Estudos Literários. Micro-História. Mario Quintana.

ABSTRACT

The literary criticism and cultural criticism have been increasingly blended in a relationship that aims to solve the several possibilities that can emerge from a text. Among these possibilities, we looked at genres and perspectives labeled as minor by the traditional criticism and literary history, in an investigative space where memory, literature, archives and literary collections can be connected. Therefore, the purpose of

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this paper is to proceed a monographic study about the first productions by Mario Quintana (1906-1994) that, after a research run to find them, allows rewriting the poet’s bio-bibliography, filling the gaps previously left by similar nature studies. For this, we propose a dialogue between micro-history (based on the Italian historian Carlo Ginzburg), the literary studies and the fragmentary clues left by the works of this Rio Grande do Sul-born writer, in order to contribute to the enrichment of his literary collection. KEYWORDS: Cultural Critic. Literary Studies. Micro-History. Mario Quintana

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ZILBERMAN, Regina. Mario Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Literatura Comentada).

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SANTIAGO E AS NOVAS ESCRITURAS NO CENÁRIO DA LITERATURA: UM DIÁLOGO COM JORGE AMADO E PAULO COELHO Profa. Ma. Arlânia Maria Reis de Pinho Menezes 1

O surgimento de novas formas de escritura que alcançaram um público leitor maior ocorreu, segundo Silviano Santiago, após a Guerra Fria quando “começa a pipocar um diferente tipo de ficção” (2004, p.170) que foge dos padrões convencionais. A partir de então, os termos: “nacional” e “universal”, começam a ser questionados em seus alicerces epistemológicos. O termo nacional vem sendo questionado pelos vários e novos movimentos sociais aglutinados em torno da busca de uma política de identidade para grupos minoritários que, segundo o autor, julgam corretamente que a idéia e a prática do nacional no Ocidente foram arquitetadas pelo poder dominante através de divisões sociais e políticas internas que rejeitavam determinados segmentos sociais da nacionalidade (mulheres, negros, homossexuais, índios, etc.) que ficaram à margem da cidadania política atuante. Pode-se concordar com o autor quando este diz não existir partidos políticos que abriguem esses grupos minoritários nas suas reivindicações identitárias, entretanto, apesar destes não encontrarem ainda alicerces firmes no sistema político nacional, e ainda conservador, já se tem um espaço bastante relevante nesse cenário para que os mesmos possam ter voz e vez. Independente dessas exclusões, a classe social menos valorizada, a operária, “tem tradição universal de luta política na modernidade” (SANTIAGO, 2004, p.171) através de vozes anarquistas, socialistas, marxistas pela luta de classes. E, nesse contexto, segundo o autor, “a literatura pode ser também filha legítima (...) de um partido político” (Id Ibidem), e para confirmar sua assertiva diz que a ficção que deu respaldo à luta de classes abandonou certas regras oitocentistas na fabulação da intriga e caracterização de personagens para levar o leitor a aceitar como real aquilo que fosse colocado em pauta. Aí ele cita Jorge Amado e reflete que os laços que um tipo de obra como a dele criam, podem ser críticos em relação à sociedade, mas não estimulam a 1

Professora Mestra em Literatura e Diversidade Cultura e membro Grupo de Estudos Literários e Contemporâneos ― UEFS.

ISBN 978-85-7395-210-0

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imaginação e a inteligência do leitor, já que se espera dele uma cumplicidade ideológica. Isso confirma o que já se convencionou como correto: que só tem valor o texto que força o leitor a encontrar sentido onde poucos conseguem enxergar. Nesse contexto, discutir sobre novas escrituras no cenário da Literatura não é algo muito comum, principalmente se estas pertencem a um gênero que se popularizou, foi legitimado por uma coletividade de leitores. No Brasil, temos como exemplo de Best-Seller, o escritor Jorge Amado que nacionalizou o baiano como ninguém e universalizou o brasileiro como poucos ao ser traduzido para outras línguas e lido por um grande público. Ninguém pode negar a sutileza do escritor que se situa entre a política e a literatura. É visível em sua narrativa a valorização de sua terra e seus territórios (mas especificamente da Bahia, de sua gente, de seu modo particular de viver, de falar, de ser); desde seu primeiro romance O país do carnaval, pode-se notar o amor e dedicação do autor em tornar relevante a identidade baiana, repleta de paradigmas, de misticismo, de controvérsias e afirmações aparentemente falaciosas. Para Assis Duarte, em seu livro “Jorge Amado: romance em tempo de utopia” (1995), o escritor foi um visionário que previu, o processo de carnavalização que daria a marca da estética brasileira. O mais interessante na escrita de Amado é que esta se faz pela via do humor e da paródia, mesmo ensejando discursos coerentes e verídicos, como no romance citado que liga a imagem do país a sua maior festa popular: o carnaval. Do primeiro ao último romance, mesmo que pertencendo a fases diferentes de seu amadurecimento como pessoa e como escritor, é possível notar esse engajamento do autor com “as coisas” de sua terra, de sua gente, de seu país, algo bastante claro na própria fala do autor no discurso de posse da ABL (1961), quando dizia que não era sua pretensão ser universal, mas apenas brasileiro, baiano e cada vez mais escritor baiano (DUARTE, 1995). Amado não é unanimidade entre os críticos, muitos desconfiam de sua popularidade, considera-no panfletário. Porém, independente da crítica nosso ilustre escritor não é apenas um cânone, mas um dos mais traduzidos e lidos no mundo. É um bom exemplo de escritor pesquisado e acessado em mídia eletrônica. A editora Companhia

das

Letras

mantém

uma

página

sobre

o

autor

na

internet

(www.jorgeamado.com.br), onde é possível ler sua biografia, ter acesso a sua obra e a textos didáticos sobre as adaptações da obra do escritor no cinema e na TV. Amado é

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um caso raro de escritor brasileiro que tem a memória muito bem preservada, principalmente em sua terra natal. Silviano credita à mídia eletrônica parte do sucesso de muitas narrativas que circulam por aí. Acredita que se os livros de boa qualidade, sob sua ótica, passassem pelo processo de propaganda na mídia, seriam lidos mais facilmente. Entretanto, são outros tipos de narrativa que se espalham pelo mundo:

(...) o livro de boa qualidade no Brasil pode ser o móvel da entrevista midiática, mas nunca é o seu fim. Em palavras mais contundentes, a programação de venda de livros de boa qualidade no Brasil não passa, ou passa pouco, pela mídia eletrônica. Em compensação, idéias de teor revolucionário circulam com mais frequência entre os telespectadores brasileiros do que entre os telespectadores do Primeiro Mundo. (SANTIAGO, p.65).

Então, se as obras dos cânones brasileiros circulassem, mais pela mídia teriam um público leitor maior? Acredito que sim, mas falar em livro de boa qualidade levando-se em conta apenas uma estrutura já legitimada pela elite intelectual, é ser preconceituoso se não levar em conta o que o leitor prefere enquanto leitura. Paulo Coelho é um exemplo de escritor que Santiago classificaria como não sendo de boa qualidade, entretanto, a exemplo de Jorge Amado, também circula pela mídia, só que patrocinado por ele mesmo. O autor faz seu próprio marketing e alcança o topo do mundo. Nesse contexto voltamos para a reflexão de Silviano Santiago no momento que este observa que, hoje, existe um “culto de personalidade” rondando o que ele chama de aprendiz de escritor, segundo ele, “muitos jovens se sentem tão contentes com a imagem pública de intelectual, que logo se descuidam do artesanato literário, ou o abandonam de vez” (2004, p.65). Será que foi isso que ocorreu com Paulo Coelho? Para este, ser um escritor foi uma obsessão de vida. Viveu para isso. Conseguiu sê-lo. Porém, apenas querer não o levaria a tão acolhida fama se os seus textos não fossem atrativos para um grande público leitor. Conseguiu a proeza de ser traduzido para 69 línguas e viver da profissão, já que vende milhões de livros todos os anos. Tirou o título de maior Best-Seller brasileiro de Jorge Amado, deixando este em segundo lugar no ranking de vendas e tradução (MENEZES, 2011). É claro que Jorge Amado e Paulo Coelho não têm nada 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 78-82.

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em comum além de serem Best-Sellers. Amado é um escritor que prima pela memória e manutenção da identidade nacional. Paulo Coelho se situa entre o misticismo e a trivialidade abusiva do cotidiano. Mas ambos têm fama nacional e universal. Os Best-Sellers são legitimados por um grande público, porém, poucos pesquisadores e críticos literários se interessam por este novo gênero, geralmente rotulado com juízos de valores negativos. Sendo assim, afastar-se do estudo dos cânones estabelecidos pela Literatura propriamente dita, é envolver-se em caminhos quase ignorados, pois, infelizmente, a maioria dos críticos literários ainda vê nos conceitos ligados aos formalistas russos do século passado os valores supremos para que um texto possa ser considerado como de boa qualidade. Pensar assim não seria navegar em águas preconceituosas e elitistas, já que se acaba deixando as qualidades emocionais de uma obra literária à margem, como secundárias? Alguns discursos tendem a acusar os Best-Sellers como sendo apenas entretenimento, como um texto que se utiliza do discurso literário de forma vulgar, banal. Desvaloriza-os por serem escrituras de fácil leitura e entendimento, que emocionam e laçam o leitor; portanto, sem qualidade literária. Realmente a função primária do Best-Seller é o entretenimento, mas este acaba sendo um argumento de exclusão do gênero quando esta função é vista apenas como um passatempo; entretenimento deve ser visto também como envolvimento, pois se a narrativa não seduzir o leitor, com certeza será colocada de lado. É a capacidade de prender o leitor, de envolvê-lo, de fazê-lo virar a página, que torna a leitura de um Best-Seller mais que um entretenimento: um texto legítimo para o seu receptor (MENEZES, 2011). Os Best-Sellers acabam por democratizar a leitura já que se inserem em variados lugares, em grandes extensões locais e para variados leitores. Faz isso se utilizando de aspectos estruturais e estéticos específicos, como a focalização em enredos que correspondem ou representam a experiência de vida do leitor, minimiza aspectos estilístico, usa linguagem clara e cotidiana, e arranjos gramaticais mais simples, além de períodos curtos, a linearidade do tempo (começo, meio e fim) e o esperado final feliz. Portanto, é preciso respeitar o leitor na essência de suas preferências narrativas, preocupar-se com sua afetividade e prazer; isso não quer dizer produzir textos mal elaborados, mas narrativas que participem da vida cultural e social do leitor-cidadão. Estudar o fenômeno Best-Sellers em suas mais variadas contextualizações e temáticas é

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estudar o público leitor que a legitima. Esse é, hoje, um caminho necessário para que se possa viabilizar melhor o próprio estudo dos cânones brasileiros.

RESUMO Segundo a reflexão realizada por Silviano Santiago em “O cosmopolitismo do pobre”, os termos nacional e universal estão sendo desconstruídos, trazendo para o cenário literário novas perspectivas de escrituras, isso porque, ainda segundo o autor, a ficção que deu respaldo à luta de classes abandonou certas regras oitocentistas na fabulação da intriga e caracterização de personagens para levar o leitor a aceitar como real aquilo que fosse colocado em pauta. Nesse contexto, é possível pensar que esse tipo de ficção acaba por se tornar Best-Seller? Esse gênero estamparia inequivocamente o gosto e a preferência do leitor-cidadão? Santiago cita Jorge Amado e diz que os laços que sua obra cria, podem ser críticos em relação à sociedade, mas não estimulam a imaginação e a inteligência do leitor. Esta é geralmente também a opinião de grande parte dos críticos em relação os escritores de Best-Seller. Este trabalho irá enveredar pelos caminhos desse gênero utilizando Jorge Amado, autor brasileiro reconhecido tanto pela crítica nacional quanto internacional, e um dos mais traduzidos, perdendo apenas para Paulo Coelho, com quem também traçaremos diálogo, cuja ficção faz um caminho inverso ao visto positivamente pela crítica literária. PALAVRAS-CHAVE: Desconstrução. Novas escrituras. Gosto literário. Best-Sellers.

BIBLIOGRAFIA DUARTE, Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Editora UFRN, Natal, 1995. MENEZES, Arlania. Best-Seller: A relevância de um gênero como desafio do gosto literário. Tese (Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural), UEFS, 2011. SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2004.

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LITERATURA E DEMOCRATIZAÇÃO CULTURAL: NEGOCIAÇÕES PARA UM NOVO OLHAR NA CONTEMPORANEIDADE Profa. Ma. Elizangela Maria dos Santos 1

Nas duas últimas décadas, o campo literário brasileiro vem apresentando uma profusão de obras cujos suportes, temáticas e meios de divulgação priorizam a relação do artista com o leitor, além de enfatizarem a discussão a respeito de espaços e sujeitos submetidos à carências de todo tipo. No que tange ao discurso adotado pela produção e prática cultural do século XXI, observam-se possíveis comprometimentos sociais que se distinguem do engajamento dominante nos anos 1960. Sem adentrar por ora nas discussões referentes ao realismo naturalista do século passado e às tendências neorealistas do presente, é possível verificar na literatura contemporânea influências da estética realista da prosa urbana sobre os artistas posteriores. Contudo, além do engajamento social que exige uma escrita em consonância com a realidade, impera uma tendência em transformar o objeto da crítica em sujeito do discurso. Os artistas que produzem a partir da década de 1990 circulam pela heterogeneidade do universo literário, conscientes da emergência de uma nova relação com a realidade e dos recursos disponíveis para promover seu contato com o leitor. Além disso, sua atuação coloca em evidência a necessidade de romper com a hegemonia dos cânones; não se trata de negar o passado, haja vista a existência do diálogo com escritores das gerações anteriores, mas de se levar em conta as tendências atuais das produções. Ao considerar a relação entre “os traços estruturais e estilísticos da literatura moderna, acompanhada de uma compreensão das consequências das tecnologias produtivas e da distribuição mercadológica e preparação de uma nova classe de leitores” (RANCIÈRE, 2005, p. 15), os novos escritores apostam na democratização da arte, possibilitada pelos recursos tecnológicos e pela abertura do mercado literário. Tais possibilidades propiciam uma multiplicidade de caminhos adotados pelos autores

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Mestre em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana: UEFS Membro do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos.

ISBN 978-85-7395-210-0

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contemporâneos; essa variação de tendências é definida por Schollhammer, quando discute acerca da geração 00, como sendo:

uma forte vontade ficcional, a vontade de narrar uma história. Seja voltando-se para os pequenos eventos do cotidiano ou para a grande História, ou ainda em criações livres de referências históricas ou sociológicas, que pela fabulação criam sua própria realidade. (...) A ficção também surge na exploração criativa da própria escrita. Confio e, de certo modo, espero que seja essa vontade de criação ficcional que venha a determinar os autores mais desafiadores do século 21. (SCHOLLHAMMER, 2010, online).

Essa vontade ficcional, aliada à criatividade dos escritores do início do século XXI, concebe a literatura como sendo, sobretudo, forma artística por meio da palavra, considerando-a como arte que pode dispor livremente de sua matéria-prima; intensificam sua finalidade literária e exploram sua “utilidade social” (EAGLETON, 2006, p. 314). Dessa forma, constitui-se relevante pensar o escritor como aquele que se serve das palavras para agir, pois “sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode desvendar senão tencionando mudar” (SARTRE, 1993, p. 20). Quando discute acerca da distinção entre espetáculo e simulacro, numa leitura da pós-modernidade, Santiago (2004, p. 126), não inviabiliza as diferenças no universo cultural e simbólico atual. No entanto, o crítico literário enfatiza a necessidade de ver a questão da comunicação de massa, meio do simulacro por excelência, por um outro prisma; representa um caminho para que a maioria que não tem acesso ao espetáculo o faça por meio do simulacro. Nas palavras do crítico literário:

deve-se buscar, na sociedade de massa, a maneira de aprimorar a produção de sentido do espetáculo/simulacro por parte de todo e qualquer cidadão. (...). O sentido da produção simbólica e/ou cultural é plural e inalcançável na sua pluralidade. O sentido é produto de uma tensão que não é mais necessária e unicamente articulada pelas instituições do saber. (SANTIAGO, 2004, p. 131).

Essa afirmação destaca a necessidade de se repensar a avaliação do produto cultural; mais uma abertura para uma democratização da cultura, sinalizando a possibilidade de um novo olhar acerca da disseminação da arte e do conhecimento, semelhante ao que o autor analisa acerca do final da década de 1970 e início de 1980, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 83-92.

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com as críticas favoráveis à música popular do período. A partir da década de 1990, a visibilidade para a maioria parte não apenas ou sobretudo dos críticos de arte, mas dos produtores e escritores que fazem parte de um fazer artístico engajado. O artista desse novo milênio parece elevar ao grau máximo a tradição da literatura brasileira no que tange ao seu compromisso como escritor. Diante do aumento da violência, falta de segurança pública e manifestações populares que se intensificam no final da década de 1980 e início da década de 1990, começam a surgir obras literárias que aproximam a realidade do leitor, cujas histórias são contadas/vividas pelos sujeitos que antes eram apenas objetos do discurso. Essa atenção dos escritores aos problemas sociais, revelando sentimentos e ações desses sujeitos, que se tornam protagonistas de suas histórias, corrobora com a análise do escritor, proposta por Sartre, acerca de sua responsabilidade com a escrita: Quando fala, ele atira. Pode calar-se, mas uma vez que decidiu atirar é preciso que o faça como um homem, visando o alvo, e não como um criança, ao acaso, fechando os olhos, só pelo prazer de ouvir os tiros.(...) Mas desde já podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade. (SARTRE, 1993, p. 21).

O escritor contemporâneo parece perceber a ideologia, cumprindo sua função dentro do sistema; desvenda, pois, um mundo até então conhecido por meio de um porta-voz externo que se aproximava de uma realidade desconhecida para exibi-la. Ao decidir não calar, o artista do novo milênio parece atirar no silêncio, exibindo aos outros homens as vozes, desejos, sentimentos e razões das vítimas da exclusão. Destarte, o intelectual de hoje precisa rever sua atuação se deseja continuar participando das produções culturais. Segundo Heloísa Buarque de Holanda (2008, online), “Hoje, parece que alguma coisa de bastante diferente está no ar e que vamos ter que repensar, com radicalidade, nosso papel como intelectuais tanto no campo social, como no acadêmico e artístico”. Uma vez em consonância com a realidade e os recursos disponíveis, o escritor acaba por modificar o seu fazer literário; há, não apenas a utilização dos aparatos tecnológicos, mas, sobretudo, uma forma de exibição da realidade que é vivenciada, em seus diferentes aspectos, pelos excluídos do processo social. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 83-92.

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Essa representação acarreta/proporciona produções literárias plurais, com visibilidade para o autor, leitor e para o sujeito do discurso, tendências “que estão marcando com força total a produção cultural desse nosso início de século” (HOLANDA, 2008, online). De acordo com Schollhammer: configura-se na prosa de certos autores contemporâneos um compromisso com a realidade que se articula através da experimentação e em que a dimensão política não se reduz nem à postura do escritor, seu engajamento, nem à crítica da realidade retratada pela obra, nem à verdade analítica da representação, mas consiste na articulação de uma determinada realidade em consequência direta da escrita e do impacto produzido por sua gestão. (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 173).

Trata-se de um compromisso da literatura, a partir dos anos 1990, que visa à visibilidade dos sujeitos excluídos, cujo enfoque se distingue do engajamento dos anos 1930 e 1960, o qual era baseado na denúncia das mazelas provenientes do regime capitalista, sustentado pelo sistema político. Como analisa Pereira (2007, p. 14), a produção artística e cultural que vai sendo delineada na década de 1990, destaca “a particularidade das experiências de sujeitos excluídos”; a realidade ignorada é apresentada, portanto, sob um novo olhar. Schollhammer (2009) aproxima essa nova forma de fazer literatura da discussão suscitada por Rancière (2005), acerca da relação entre a política e a estética; ao priorizar a visibilidade dos sujeitos excluídos, a literatura contemporânea força o reconhecimento e a participação desses na sociedade. Tal intento impulsiona uma política estética que “não deve ser entendida no sentido de uma captura perversa da política por uma vontade de arte” (RANCIÈRE, 2005, p. 16), e sim uma estética política que permite o surgimento de sujeitos que até então não possuíam visibilidade. Sem rotular a literatura do novo milênio, alguns acadêmicos acompanham a produção contemporânea, analisando/descrevendo os rumos da literatura a partir da última década do século XX. Há um consenso no que diz respeito à heterogeneidade das produções, mas tal diversidade não impede a existência de continuidades entre os autores; dessa forma, influências temáticas das gerações passadas aparecem aliadas às

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diferentes formas de emprego da linguagem, recursos de expressão, performance e divulgação cultural. A literatura contemporânea prioriza a elaboração do discurso crítico a partir da experiência do próprio sujeito marginal. Não é o intelectual que representa o outro, por meio de seu discurso autorizado, e sim o sujeito passivo das representações que fala em seu próprio nome; há, portanto, mais que denúncia social, pois o outro é exibido em seus anseios, pensamentos, sentimentos e opiniões. Há uma espécie de proposta de se retratar a realidade atual, sobretudo por meio do ponto de vista marginal, o que não significa uma volta ao realismo tradicional. A tensão entre a forma e o engajamento ainda se faz presente na literatura, principalmente por conta do rigoroso apelo midiático pelo real. No entanto, há entre os novos escritores, uma busca por um efeito literário representado pelo “como dizer” essa realidade. Schollhammer defende um novo realismo, o qual se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força transformadora. (...) um tipo de realismo que conjuga as ambições de ser “referencial”, sem necessariamente ser representativo, e ser, simultaneamente, “engajado”, sem necessariamente subscrever nenhum programa político ou pretender transmitir de forma coercitiva conteúdos ideológicos prévios. (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 54).

Schollhammer (2009) descreve um realismo contemporâneo que valoriza o aspecto performático e transformador da linguagem e da expressão artística, o qual relega ao segundo plano a questão representativa; da mesma forma, Resende (2008) defende uma escrita literária que não se deixou atingir pela pressa, instantaneidade e facilidades do mundo moderno. Trata-se, como ratifica o primeiro, “de um deslocamento claro em relação à tradição realista, em que a procura por novas formas de experiência estética se une à preocupação com o compromisso de testemunhar e denunciar os aspectos inumanos da realidade brasileira” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 57). Essa procura produz um efeito estético da leitura que leva o leitor para dentro da realidade narrada, como acontece com a prosa de Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Marçal Aquino, Luiz Ruffato, Ronaldo Bressane, entre outros contemporâneos. Atenta 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 83-92.

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aos rumos da literatura no presente, Resende (2008) defende que as transformações sociopolíticas, tecnológicas e questões existenciais dos últimos anos se não imperam, pelo menos suscitam “diferentes configurações identitárias, emergência de novas subjetividades, de novas vozes e, conseqüentemente, de novas configurações narrativas” (RESENDE, 2008, p. 65). A produção literária, a partir da década de 1990, começa a ser reconhecida por sua multiplicidade; no entanto, constitui-se uma pluralidade que não significa fragmentação ou acúmulo aleatório de estilos, mas uma reação à homogeneização opressiva imposta pela indústria cultural. Nessa pluralidade literária, Resende (2008, p. 16-8) identifica alguns fatores dominantes, os quais colocam em xeque críticas preconceituosas que enxergam, na variedade, uma falta de sentido. O primeiro fator colocado pela autora é a fertilidade das produções e a divulgação cultural, constatada por meio do surgimento de novas editoras e escritores inseridos no mercado; é inegável a força dos escritores no que se refere à publicação de suas obras, sua promoção, muitas vezes sem intermediários, e as diferentes formas de organização que os autores criam para estabelecer contato entre eles mesmos e com o público leitor. A qualidade dos textos apresentados na contemporaneidade constitui o segundo fator. Sem entrar em contradição com o primeiro, essa característica evidencia que as facilidades tecnológicas e a pressa do mundo moderno não comprometem o cuidado com a escrita e o conhecimento sintático demonstrados pelos autores em suas produções. O terceiro fator diz respeito exatamente à multiplicidade decorrente das possibilidades editoriais; para a autora, há na produção contemporânea, uma heterogeneidade refletida tanto no formato das obras, na linguagem, relação escritorleitor e na escolha do suporte literário, quanto na forma de conceber e entender a literatura. Integram esse fazer literário nomes como Marcelino Freire, Luiz Ruffato, André Sant’Anna, Santiago Nazarian, Clara Averbuck, Miltom Hatoum, Bernardo Carvalho, Cristóvão Tessa, Paloma Vidal, João Paulo Cuenca, Rubens Figueiredo, Michel Laub, Rodrigo Naves, Marçal Aquino, Fernando Bonassi e Rubem Fonseca, para citar alguns dos escritores da literatura contemporânea. São, pois, representantes da multiplicidade de que trata Resende; se já consagrados, demonstram em suas obras uma certa harmonia

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com a atualidade, percebendo a urgência de novas subjetividades; se escritores reconhecidos a partir da década de 1990, presencia-se a diversidade de estrutura, linguagem, suporte e o diálogo da literatura com outras artes. A produção literária contemporânea não renega a tradição, uma vez que são identificadas influências das gerações anteriores quanto à temática e estrutura, ao lado de inovações propiciadas pelas exigências culturais e tecnológicas e pela forma de o autor conceber seu papel na sociedade. A internet como suporte para divulgação de obras e autores, por exemplo, modificou as relações do autor com o leitor, desfazendo a concepção romântica que via aquele como um “ser especial, capaz de realizar construções imagéticas do mundo, detalhes imperceptíveis a olhos comuns” (LIMA, 2008, p. 60). Para Schollhammer, essa literatura convive com tranquilidade entre características de gerações anteriores e inovadoras, uma vez que os escritores promovem a intensificação do hibridismo literário, que gera formas narrativas análogas às dos meios audiovisuais e digitais, (...), ou ainda a linguagem incorporada ao universo da publicidade, (...), ou no diálogo direto com a fogueira brasileira das vaidades midiáticas. (...) Também o recurso ao pastiche e aos clichês dos gêneros considerados menores – melodrama, pornografia e romance policial – se reafirma com força, numa reelaboração vigorosa na nova geração de escritores. (SCHOLLHAMMER, 2009, 38-9).

Mesmo prolongando alguns elementos específicos do passado, a literatura do século XXI possui especificidades estéticas, estruturais e temáticas que não podem ser analisadas sob a ótica dos modelos tradicionais. Novos critérios devem ser levados em conta pela crítica literária, ao se observar essa produção; constituída de estilos que rompem com a hegemonia cultural, os escritores contemporâneos adotam formas distintas de falar na atualidade, o que requer uma relação diferente com a realidade. Resende (2008) resume essa nova relação do escritor com o fazer literário em três questões predominantes e comuns aos escritores da nova geração, apesar da, ou principalmente, por conta da heterogeneidade da literatura: a presentificação, o retorno do trágico e o tema da violência, aspectos que parecem se encontrar interligados na ficção atual.

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A autora, em consonância com Schollhammer (2009, p. 10-1), destaca o caráter de urgência que predomina na prosa atual, uma preocupação com o presente manifestada por meio da atitude dos novos escritores. Dos escritores que se inserem no mercado até os que rejeitam intermediários, o que prevalece é “o interesse pelo tempo e espaço presentes, apresentados com a urgência que acompanha a convivência com o intolerável” (RESENDE, 2008, p. 28). Essa presentificação também pode ser detectada na estrutura narrativa, em que se observa a proliferação de contos cada vez mais curtos, a exemplo da coletânea organizada por Marcelino Freire, Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004), concisão seguida por novos escritores, como Fernando Bonassi e Rodrigo Neves. Uma vez em consonância com a atualidade, usufruindo dos recursos disponibilizados para produção, circulação e divulgação de obras e escritores, a literatura contemporânea não poderia se abster de questões atuais e inerentes à sociedade moderna. Assim, o entrelaçamento entre a postura engajada e a intimista, bem como a abundância e diversidade de temas e recursos estilísticos representam uma ficção heterogênea em que a fertilidade funciona como possibilidades múltiplas de discutir questões comuns. Trata-se, pois, de diferentes formas literárias, as quais buscam democratizar o acesso à cultura; por constituírem modelos diferentes de produção, estruturação e divulgação, requerem também novos parâmetros de leitura e análise. RESUMO

Ao propor uma leitura das produções literárias contemporâneas, ou seja, da literatura produzida a partir da década de 1990 até os dias atuais, esse texto visa à reflexão de importantes aspectos concernentes à cultura e arte do novo milênio. Parte-se, sobretudo, das considerações empreendidas a partir da leitura das “galinhas-d’angola atiradas pelo meeiro criador” (SANTIAGO, 2004, p. 248), Silviano Santiago; ao discutir acerca do cosmopolitismo do pobre, o crítico questiona/comenta a respeito de uma democratização da cultura, a partir de quando alguns críticos começaram a demonstrar interesse pela cultura da maioria, acirrando o embate entre o erudito e o popular. Esse interesse é revigorado por meio das produções contemporâneas, as quais não apenas modificam a forma de produção, divulgação e circulação da arte, como exigem diferentes valores e formas de avaliação da arte e da cultura. Estudiosos da 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 83-92.

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contemporaneidade, como Karl Erik Schollhammer, Beatriz Resende, Ângela Maria Dias, Regina Dalcastagnè e Tânia Pellegrini sustentam a leitura do fazer literário na contemporaneidade, proposta nesse texto. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Contemporânea. Democratização. Cultura.

ABSTRACT

By proposing a reading of contemporary literary productions, in other words, the literature produced from the 1990s until today, this paper is intended to reflect the important aspects related to culture and art of the new millennium. Start of the considerations taken from the reading of the "angola chicken thrown by sharecropper creator" (SANTIAGO, 2004, p. 248), Silviano Santiago. When discussing about the cosmopolitanism of the poor, the critical questions/comments about a democratization of culture, from when some critics began to show interest about the majority culture, exacerbating the clash between the scholarly and popular. This interest is invigorated by contemporary productions, which not only modify the form of production, distribution and circulation of art, as require different values and ways of assessing art and culture. Contemporary scholars such as Karl Erik Schollhammer, Beatriz Resende, Ângela Maria Dias, Regina Dalcastagnè and Tânia Pellegrini support the reading of contemporary literature, proposed in this text. KEYWORDS: Contemporary Literature. Democracy. Culture.

BIBLIOGRAFIA CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Salvador, 2007. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. HOLANA, Heloísa Buarque de. Intelectuais x Marginais. Publicado no site Portal Literal em 01/08/2008. Disponível em: . Acesso em 11/10/2010. LIMA, Elaine Aparecida. Autor e leitor em tempos de literatura virtual. In Ciberautores e ciberleitores. CORRÊA, Almir Aquino (org.); Simone de Souza de Assumpção ...(et al). Londrina: Universidade de Londrina, 2008. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 83-92.

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O SER COMO ELEMENTO CULTURAL: DIÁLOGOS ENTRE SILVIANO SANTIAGO E MARTIN HEIDEGGER Profa. Ma. Juciene Silva de Sousa Nascimento 1

INTRODUÇÃO

A fim de compreendermos o indivíduo pós-moderno e cosmopolita apresentado por Silviano Santiago, faz-se necessário, primeiramente, buscarmos discussões que configurem a noção de ser. Diante disso, lançaremos mão, nesse estudo, sobre as teorias de Martin Heidegger, auxiliadas pelo diálogo com Jacques Maritan, estabelecendo uma relação consensual sobre o ser cosmopolita da atualidade. A ideia metafísica de que, enquanto seu objeto, o ser pode ser considerado enquanto ser, implica em reconhecer os seus característicos, antes mesmo de falar sobre sua existência cultural, a fim de que se estabeleça um diálogo entre a sua essência e existência. Em termos teóricos e conceituais, tal temática foi motivo de constantes reflexões filosóficas, sobretudo através de Aristóteles, com sua metafísica, e Santo Tomás, com a metafísica escolástica, dos quais este último contribuirá para este estudo por meio da assertiva de que “o ser em geral, é o ser envolto, incorporado na multiplicidade das naturezas ou das essências” (TOMÁS apud MARITAN, 1996, p. 28). Nessa perspectiva, pode-se inferir que o ser não existe nas peculiaridades existenciais e sim na intensidade do seu envolvimento com a pluralidade das forças abstratas ou concretas que o cercam, não se encerra em si, mas comunga com as existências que lhes são exteriores. Percebe-se, a partir da compreensão das relações do ser, que este se manifesta por meio de dois aspectos preponderantes: o da essência e o da existência. O aspecto da essência faz correspondência com as aptidões positivas para existir, isto é, manifesta-se pela intervenção primeira do espírito, enquanto que o aspecto da existência corresponde

Mestre em Literatura de Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana ― UEFS, Pesquisadora do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos ― GELC, atuando na linha de pesquisa Literatura, memória e representações identitárias, Professora da Universidade do Estado da Bahia ― UNEB, campus X. 1

ISBN 978-85-7395-210-0

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aos atos e forças realizadoras, “é a atualidade suprema de tudo que é”. (MARITAN, 1996, p. 29). A partir de tais proposições é possível compreender que a ação do existir dirigida à inteligência permite ao ser a percepção e julgamento, haja vista que o ser é enquanto se reconhece em sua concretude, na sua realização. Segundo Jacques Maritan (1996, p.30), “é a própria existência que se dirige a inteligência quando formula dentro de si um julgamento que corresponde ao que a coisa é ou não é fora do espírito”, estabelecendo, assim, uma relação continua da sua característica de existir com elementos que lhes são externos. Nesse sentido, vale ratificar que a definição própria de ser não estar em considerar apenas o seu caráter espiritual, mas sim de perceber que é latente discernir que, como objeto do metafísico e enquanto ser, ele é real. Por se realizar em todas as coisas e as coisas o comunicar ao entendimento, caracteriza-se não só como um objeto passivo de análises, mas é através de sua “transobjetividade” pelo caráter de transcender a si mesmo e a tudo que existe, além de ter valor analógico em relação ao que existe. A importância da analogia do ser permite considerar a reflexão sobre a razão de que, por sua autonomia, ele se encontra em todo espaço e de maneira fundamentalmente transformada devido ao seu caráter variado. Tal variação se dá pela necessidade de inserção analógica pela existência das coisas, isto é, pode-se entender que o ser existe em relação a alguma coisa. Sobre esse caráter analógico Jacques Maritan, em seu ensaio, diz que:

[...] está inscrito na própria natureza do conceito de ser; ele é assim desde o início, não é um conceito unívoco que seria em seguida empregado de maneira análoga; ele é essencialmente análogo, polivalente, ele só é em si mesmo uma simples unidade de proporcionalidade, pura e simplesmente múltiplo e uno sob certa relação. (1996, p. 71).

Esse caráter relativo insere na análise conceitual a ideia de que a distinção entre essência e existência do ser só ocorre no campo espiritual, não obstante tal ideia compreendida por meio das coisas 2 corresponde a uma diversidade real, tanto da essência quanto da existência, de toda criatura. A partir dessa perspectiva, há de se considerar que se o ser possui o caráter análogo e variado, pode-se inferir que tal caráter 2

Coisa no campo da Filosofia pode ser compreendida a partir da inferência de tudo aquilo que existe.

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confere ao ser certa inclinação, que aqui pode ser considerada também como tendência, o que faz com que a sua imagem transgrida a si mesma, dando margem para o princípio da identidade. A fim de se estabelecer um diálogo sobre como o ser sustenta a compreensão da identidade, Martin Heidegger (1960), em seus estudos filosóficos sobre identidade e diferença, analisa dois importantes conceitos heraclitianos: o “ente” e o “ser”. Em que o ente pode significar o que é um, o único, o que tudo une, ou seja, o que existe por sua singularidade, no entanto unido é todo ente no ser, isto é, a composição das unidades forma o ser, que recolhe (ou acolhe) o ente. Essa prerrogativa invalida a noção de que o ser é isolado em si mesmo, de que a sua existência independe da relação com as coisas do universo, pelo contrário, o ser só o é por encontrar dentro de si um conjunto de entes que o substancia. Assim, a fim de esclarecer o que logo mais será tratado como princípio de identidade, pode-se dizer que o “ente” pode ser compreendido como cada indivíduo dotado de caracteres singulares, suas idiossincrasias, enquanto que o “ser” os reúne e os identificam, estabelecendo, por assim dizer, a ideia de que todo ente somente o é no ser. Segundo Heidegger (1960, p. 26): Todo o ente é no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvido, quando não de modo ofensivo. Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser ninguém precisa preocupar-se. Todo mundo sabe: ente é aquilo que é. Qual a outra solução para o ente a não ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que o ente permaneça recolhido no ser, que no fenômeno do ser se manifesta o ente[...].

Dessa forma, a partir de uma análise dialética, pode-se dizer que o ente representa a unidade da essência e o ser, o caráter da existência em toda criatura. Dá-se aí o princípio da identidade, o qual pode ser compreendido a partir da seguinte perspectiva:

O homem é manifestamente um ente. Como tal faz parte da totalidade do ser [...]. Pertencer significa aqui ainda: inserido no ser. Mas o elemento distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser, está posto em face dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corresponde. O homem é propriamente esta relação de correspondência, e é somente isto. “Somente” não significa limitação, mas uma plenitude. No homem impera um pertencer ao ser; este pertencer escuta ao ser, porque a ele está entregue como propriedade. E o ser? Pensemos o ser em seu 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 93-106.

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sentido primordial como presentar. O ser se presenta ao homem, nem acidentalmente nem por exceção. Ser somente é e permanece enquanto aborda o homem pelo apelo. Pois, somente o homem, aberto para o ser, propicia-lhe o advento enquanto presentar. (HEIDEGGER, 1960, p. 57)

Aqui é possível compreender a estreita relação entre o indivíduo e a sociedade a que pertence, haja vista que tal indivíduo só poderá se reconhecer e ser reconhecido a partir da reciprocidade da relação, por assim dizer, entre o ser e o ente. Todavia, esse comum-pertencer3 não retira a propriedade de o homem ser pensante, isto é, a atitude do pensamento peculiariza os homens e a unificação destas fundamenta a noção de que “todo ser do ente se funda” (Idem, p. 58). O princípio da identidade pode não ser uma repetição da materialidade, mas sim a expressão do sentido lógico do ser e a riqueza que este possui, evidenciado a noção de que todo ser é de um caráter determinado. Nesse sentido, aquilo que é peculiar à razão, ou julgamento, está em reconhecer a identidade no seu sentido plural, de acordo com a noção conceitual da mesma, ou seja, numa relação dialética cada ser é o que é. Ao considerar a ideia de ser através da perspectiva de sua diversidade, pelo comum-pertencer e inclinação, alude à compreensão do ser como algo que está em constante movimento, já que, segundo Jacques Maritan (1996, p. 80): [...] dizer inclinação é dizer movimento na direção da perfeição desejada, se esta perfeição está ausente; consequentemente, em todo lugar que houver inclinação para um bem que ainda não está unido realmente ao sujeito (a título de perfeição possuída por ele, ou de amigo unido a ele pela presença e pelo convivium), em todo o universo das coisas que não são Deus e precisam se completar de alguma maneira – e antes de tudo no mundo material, local metafísico da indigência – haverá movimento, mudança.

Tal perspectiva valida a concepção pós-moderna de que a identidade não se encerra em si mesma, a partir das suas relações se adapta, adquire novos signos representativos do real de acordo com os acontecimentos. Cabe, aqui, observar que esse deslocamento identitário poderá ocorrer sempre que tais acontecimentos provocarem o movimento em

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Heidegger discute o comum-pertencer como aquilo que reciprocamente se pertence no seio tanto do pensar quanto do ser, isto é, o comum-pertencer se refere a homem e ser. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 93-106.

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busca daquilo que o julgamento pensar ser a direção da perfeição, revisionando constantemente a história. Dialogicamente, Heidegger (1960, p. 66) esclarece que: A doutrina da metafísica apresenta a identidade como um traço fundamental do ser. Mas agora se mostra: ser com o pensar faz parte de uma identidade, cuja essência brota daquele comum-pertencer que designamos acontecimento-apropriação. A essência da identidade é uma propriedade do acontecimento-apropriação.

A mudança dos característicos identitários se dá na medida em que ser vai se apropriando dos acontecimentos que ocorrem no seio do convívio com os seus iguais. Por meio da razão, o indivíduo pondera o que lhe é próprio em relação às coisas a fim de buscar na existência o fundamento para a essência, ou, por assim dizer, buscar no ser a razão para o ente. Ao considerar tais pontos de vista, torna-se perceptível a presença ideológica do ser em O cosmopolitismo do pobre, uma vez que Silviano Santiago lança aos seus leitores o vislumbre do indivíduo metamorfoseado pela força das conversões e necessidades sociais, econômicas, ideológicas e religiosas através dos tempos. O ser pós-moderno, comumente identificado como um indivíduo multicultural e universal, é rediscutido sobre o prisma mais realista, no qual o modismo que envolveu os termos por vários anos é posto à margem de uma discussão mais próxima dos acontecimentos no curso da história. A ideia do possível ajustamento do ser marginalizado, outrora esquecido na sociedade pós-moderna, se converte em uma espécie de alerta para a não perda de sua identidade nesse processo, já que, comenta Santiago (2004, p. 53/54), Não se pode pedir aos Manoéis pobres e cosmopolitas que abdiquem das suas conquistas na aldeia global, longe da aldeia pátria, mas cada estado nacional do Primeiro Mundo pobre, isto sim, proporcionarlhes, a despeito da falta de responsabilidade no plano social e econômico, a possibilidade de não perderem a comunicação com os valores sociais que os sustentam no isolamento cultural em que sobrevivem nas metróples pós-modernas.

A discussão sobre as formas de compreender o ser multicultural se acentua no instante em que a descrição do antigo multiculturalismo provoca desconfiança em

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relação à prática da aceitação daquilo que poderia ser considerado diferente. Sobre isso, Santiago (2004, p. 54) diz que Há um antigo multiculturalismo – de que o Brasil e demais nações do Novo Mundo são exemplo – cuja referência luminar em cada nação pós-colonial é a civilização ocidental tal como definida pelos conquistadores e construída pelos colonizadores originais e pelas levas dos que lhes sucederam. [...] A ação multicultural é obra de homens brancos para que todos, indistintamente, sejam disciplinarmente europeizados como eles.

A noção disciplinar dos colonizadores fragmentou o ser, ora pertencente ao universo cosmopolita, guarda no íntimo de sua existência os frutos de suas raízes, mesclando vivências, costumes, histórias que compõem a essência de sua singularidade. Em virtude disso, Uma nova e segunda forma de multiculturalismo pretende (1) dar conta do influxo de migrantes pobres, na maioria ex-camponeses, nas megalópoles pós-modernas, constituindo seus legítimos e clandestinos moradores, e (2) resgatar, de permeio, grupos étinicos e sociais, economicamente desfavorecidos no processo assinalado de multiculturalismo a serviço do estado-nação. (SANTIAGO, 2004, p. 59)

Diante das impressões vividas e sobrevividas, a busca por paradigmas que norteiem a existência do indivíduo pós-moderno o força a convencionar às suas memórias, ou tudo que o acompanha durante o ciclo vital, imagens do mundo em que agora está inserido, a fim de se reconhecer como pertencente a ele, ainda que seja por intermédio do simulacro, ratificando o fato de que “a realidade se dá a ver mais e mais em representações de representações [...]” (SANTIAGO, 2004, p.125). Seguindo a mesma linha discursiva, Santiago promove reflexões sobre a desconstrução dos termos nacional e universal, uma vez que os alicerces do nacional estão sendo questionados pelos movimentos sociais cuja busca é por uma política identitária para grupos minoritários, já que as influências do poder dominante construíram as práticas da política nacional do Ocidente mediante divisões sociais perpetuados no curso da história, recusando segmentos por eles considerados como marginais. Assim, mulheres, índios, negros, homossexuais, grupos religiosos, entre outros, “se apresentam na cena política como tais, para dizer como foram e estão sendo 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 93-106.

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destituídos de voz, descriminados e perseguidos e, finalmente, estigmatizados” (SANTIAGO, 2004, p. 169). Da mesma forma, o conceito de universal também deve ser questionado, se levada em consideração a ideia do surgimento do mesmo pelos iluministas do século 18, já que nela “estava embutida uma decidida homogeneização do resto do mundo pelos padrões colonizadores da civilização européia, dada então como indiscutivelmente hegemônica” (SANTIAGO, 2004, p. 171). A partir dessas concepções, é possível perceber que a partir do estudo das ideias de Silviano Santiago, a relação entre o ser e o ente, apresentada por Heidegger, pode ser compreendida pela noção de como “o governo de si por si mesmo articula as relações do sujeito com o outro e com a comunidade” (SANTIAGO, 2004, p. 204). A forma como a constituição do ser pós-moderno se configura pode se dá pelas “técnicas da vida”, as quais são entendidas pelos “procedimentos pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la, graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si” (FOUCAULT apud SANTIAGO, 2004, p. 207). É através dessa captação que a abordagem identitária em Silviano Santiago torna-se de grande relevância, haja vista que tal autor (re)orienta o ente, aqui entendido como o indivíduo pós-moderno, a partir do movimento que este faz em relação ao ser, aqui compreendido como o convívio dos indivíduos que formam a identidade, ao buscar o que a inteligência do “ser cosmopolita” julga como perfeição. Os acontecimentos históricos nacionais provocam no homem o repensar os valores, o considerar que o que de fato importa não é somente a adequação urbana, mas sim põe-se em relevo o ‘pertencer ao mundo urbano’, o convívio desprendido, desinteressado entre aqueles que se orgulham de somar a sua essência na existência da nação. Em suma, o processo de subjetivação provoca o movimento de ressemantizaçao do sujeito, criticando-o, discutindo-o e reconfigurando-o, na medida em que apresenta em si traços das mudanças sociais, históricas, econômicas e culturais presentes, a todo o momento, na linguagem, nas reflexões e atos que se perfazem em sua existência a fim de relacioná-la com sua própria essência. Tais aspectos podem ser observados ao longo da obra Água Preta (1958) que traz ao longo dos seus 16 contos características de indivíduos grapiúnas que se

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movimentam em direção à perspectiva de se mostrar seres mais humanos, sensíveis à relação com o outro, e através do outro, ao por em relevo temáticas relacionadas ao amor, à amizade, à honra, à relação familiar como princípio de riqueza, à honestidade, à mulher como ser digno de admiração, à discussão do local em relação ao que é global, às questões raciais, ao altruísmo, como princípio de sobrevivência, dentre outras coisas. Assim, o autor Jorge Medauar nos apresenta um ser híbrido grapiúna no seu imaginário literário, em que a cidade de Água Preta, antiga Água Preta do Mocambo, hoje Uruçuca, por muito tempo pertenceu ao município de Ilhéus, a qual durante anos foi considerada o coração da produção cacaueira e palco de inúmeros acontecimentos econômicos e sociais por assegurar em suas terras as maiores posses proveniente de tal monocultura. Dessa forma, a cidade de Água Preta, por pertencer às redondezas, era composta por indivíduos que tinham suas roças por ali, que viviam do comércio local (extremamente precário, mas garantia o sustento de alguns), dos que trabalhavam nas roças dos arredores e daqueles que de alguma maneira dependia do movimento da economia para exercer suas profissões, como as prostitutas, os donos dos bares, os feirantes etc.. Assim era Água Preta, uma cidade pacata, de gente provinciana que fazia de qualquer acontecimento motivo de longas discussões, festas ou preocupações desnecessárias. Terra em que matutos e nobres convivem num constante diálogo, na tentativa de se compreender, compreender ao seu diferente a fim de dar sentido ao habitat comum a que pertenciam. No primeiro conto, no qual nos deteremos para essa análise, O facão na bainha, o autor inaugura a sucessão narrativa metaforizando a honra através de ricos signos representativos que merecem atenção. O primeiro é o objeto que, para o povo da região, era símbolo do trabalho, do esforço, da honra de ser honesto por ganhar o sustento da vida através do esforço: o facão. Aqui o personagem pescador é uma figura desconhecida que nem mesmo o seu nome é revelado, uma vez que ao invés de protagonista, faz constantemente papel de coadjuvante das tramas dos outros tipos que o rodeiam. Seu orgulho rudemente cobrado através do instrumento que lhe confere braveza, força e honra, o facão. A narrativa tem início no meio de uma reflexão revoltada, dotada de decisões precipitadas que cobravam a lealdade de um “amigo” que traíra os seus sentimentos de homem honrado, em que a maior urgência para tamanha deslealdade seria uma surra de

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facão até que se visse o sangue jorrar. A dimensão da angústia era tão grande que seus pensamentos espantavam o sono na imaginação de como o seu falso amigo Joel agora se encontrava saciado nos braços da mulher que amava. Tudo convergia para a ideia de que a questão só se resolveria por intermédio do objeto que lhe representava honra, como um cavaleiro medieval que defende sua amada no fio da sua espada. De modo controverso, a amada não era tão amante como imaginava, já que, em seus irados devaneios, arrazoava que a mulher destinara a Joel todo seu charme ao ponto de permitir-lhe que se envolvesse. A semantização das palavras é tão bem explorada ao ponto de o ódio sentido pelo personagem ser traduzido em uma imagem precisa de um bicho feroz e traiçoeiro que espera o momento certo para dar o bote, aludindo à ideia de que para lidar com bichos como esses, só mesmo sendo tão arisco como ele: Impossível pregar os olhos para o sono. O facão bem ali, pendurado na trave. Não custava dar um salto do jirau, agarrar o “Jacaré”, esgueirar-se por entre os matos, arrombar a porta do safado, lascá-lo. Deveria estar de papo para o ar, gozando o sono saciado. Enquanto uns dormiam, outros penavam, os olhos arregalados, espiando como gato no escuro. (MEDAUAR, 1958, p.19).

O emaranhado de raiva e decepção fazia-o pensar em abater um animal que devorara a sua amada. Nota-se, aqui, através da dimensão imagética da narrativa, a (re)visão do comportamento do homem pelo próprio homem, em que, numa dimensão lógica do relacionamento humano, considera-se que os amigos não traem. No entanto, na criação de uma tensão narrativa logo no início, a personagem em suas angústias propõe a assertiva de que se foi traído, logo o amigo não poderia ser visto, nem considerado como homem, mas sim como um animal traiçoeiro e intrépido em dar o bote. Percebe-se, então, a relação dialética entre homem e animal, entre ser social e ser animal, o qual é capaz de trair para saciar os seus instintos. Na tentativa de justificar o ato animalesco do amigo, busca em seus pensamentos as razões que sustentariam seus motivos. Nesse ínterim, faz uma análise que aos olhos mais desatentos não seria possível perceber que as explicações que tenta dar para si mesmo dota Joel de culpa por ser recém-chegado ao local, pondo em evidência a

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relação familiar que os pescadores cultivavam entre si, o que contrasta com o comportamento que o amigo teve para consigo: Êsse Joel, pensou, era mesmo um safado, sim senhor. Chegara no rio como um mendigo, rindo para todo mundo, sem jeito de encostar o anzol no barranco. Nem um jereré de seu não tinha. Pescou. Ficou dono de um pedaço do barranco. Conheceu pessoas. Fêz dinheiro. Comprou jangada.[...] Simpatizara com Joel. Também era só, não tinha mulher. Juntos, depois da feira, muitas vezes beberam, procuraram mulher-dama. Um dia. Chegou Do Carmo. Viera com o pai, velho pescador, criador de guaiamum. Do Carmo tinha um filho que engatinhava. Contou a Joel que dobrara Do Carmo. Confessara ao amigo seus mêdos de um filho. A nêga aparecera com tonturas, enjôos. Não podia navegar na canoa: a cabeça girava. Joel fora irmão. Preparara um remédio com anil. Tudo isso com muito segredo. Afinal os pescadores eram como uma família. (MEDAUAR,1958, p.22).

O comportamento que o personagem adota torna-se um tanto paradoxal, uma vez que tece críticas severas sobre as atitudes do amigo, no entanto, quando tomado pelo ódio, passa a julgá-lo e concomitantemente é levado de um sobressalto a se comportar também como um animal que deseja recobrar sua honra por meio de ações completamente ensandecidas. Da mesma forma, a representação que o personagem, por meio da razão, julga o amigo, a mulher com quem se envolvera também se torna passiva de julgamentos. A forma como ele a apresenta, em sua fala dotada de uma retórica jurídica, promove a compreensão da fácil sentença que lhe é conferida, uma vez que Do Carmo é colocada como uma mulher fácil, provocadora dos brios masculinos, insaciável. A maneira como as ideias se entrelaçam, configurando o signo da mulher faceira provoca a reflexão de que a sensualidade da mulher é deveras a ‘perdição’ do homem, ou seja, se Joel tinha culpa na traição, do Carmo também não se isentava, merecendo, assim, ser castigada também. No entanto, o desejo que mantinha pela mulher e o ódio que a julgava por suas ações, suscitam a realização de uma ação muito mais desumana que a do amigo: “a vontade de tê-la castigando” (Idem, Ibdem). A busca de ações que corrigissem os amantes, pelo personagem, trazendo-os em direção àquilo que julgava ser o comportamento perfeito para um convívio social provocou o afastamento do mesmo da perfeição que tanto buscava.

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A intervenção do pai de Do Carmo, na hora da investida que o personagem faz à procura do ‘falso’ amigo a fim de castigá-lo, torna-se, além da culminância, o momento mais dialético da narrativa. O velho, na trama, é considerado um homem simples, dotado de mistérios, que, à priori, é representado como um homem que pode ser facilmente ludibriado. Contudo, a força e sagacidade que lhe são conferidas no momento de sua intervenção no pulo do gato desfazem todas as impressões provocadas pelos julgamentos do personagem transtornado. O pai de Do Carmo, que também não possui um nome, evoca a compreensão de que está ali na trama apenas como uma representação de um tipo social, na figura de um pai que, embora um manso pescador está ali de prontidão para a defesa de sua filha. Da mesma forma que o personagem sedento de vingança insurge no negror da noite, ele também o faz, mas com uma distinção: com o facão em punho sem bainha. Nesse detalhe torna-se possível a percepção de que ali se travara uma batalha que vai além do físico: a de que ambos, em pensamento, arrazoaram as ações um do outro e descobriram-se guerreiros em defesa de uma mesma honra, porém em lados opostos. A luta não é travada fisicamente, mas dali sai um vencedor pela simples forma de se portar com o facão: Reparou que o velho vinha de facão, mas sem bainha. Pensou que seria melhor desmanchar o assunto, pegar outro, terminar com aquela situação. Cada vez que encontrava o velho, o coração batucava, sentia um desajuste por dentro, as palavras não saíam encarreiradas. O jeito de olhar do velho era um jeito de quem pescava camarão miúdo. Não podia olhar na cara, de frente, com desembaraço. (MEDAUAR, 1958, p. 24).

Esse é o momento de grande percepção visual do personagem. O fato de o velho trazer o facão desbainhado o faz perceber que o pai da moça não era aquilo que pensava. Pelo contrário, era um senhor sagaz, que prestava atenção no que acontecia ao seu redor e percebia a urgência de providências para evitar uma desgraça causada pelas ações de homens ensandecidos. A expressão que pontua tal compreensão do personagem também é metaforizada pela representação da prática local: “um jeito de quem pesca camarão miúdo”, ponderação que leva o personagem ao momento epifânico de que não adiantava nada seu ódio e condenação de Joel, já que este tinha o pleno consentimento do pai da moça: 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 93-106.

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Veio de volta, pensando coisas que nunca pensara. Sem dúvida o velho mentira: não viera ver ninguém. A zona era de paz. Ladrão por ali, de século em século. O velho sabia. Calculara que alguma coisa iria estourar, entre ele e Joel, por causa da sua filha. Isto sim. Velho sabido. Bem que estava sabendo que a filha bandeara para Joel. Era pai[...]. Informara que sua filha se decidira por Joel. Era o fim da história. Tudo compreendido. Mas um dia riscaria o safado. (MEDAUAR, 1958, p. 26)

A derrota se deu pelo simples fato de o seu opositor saber tanto quanto ele como usar a sua arma. Descobrira-se vencido por alguém que, através da razão, sequer precisou usar a força, uma vez que esta se mostrou através do símbolo permeado em torno da simples representação da diferença que existe entre um facão desbainhado e um que ainda está na bainha. Em suma, através dessa apreciação, é possível notar que o autor reveste sua narrativa de uma constante revelação das ações humanas, discorrendo no enunciado o princípio identitário que designa a identidade como um traço que compõe o ‘ser’, isto é um traço que fundamenta o ‘ente’ nas suas especificidades. A preocupação com a visualização das ações demonstra a necessidade de se compreender o ser por meio do plano da existência que se dá no pleno convívio de seus partícipes.

RESUMO

O estudo se refere à discussão dos elementos identitários, ao levar em consideração a importância dada ao ser que vem se solidificando no imaginário literário em virtude das movimentações históricas, econômicas e sociais que os indivíduos sofrem ao longo do tempo, já que tais deslocamentos provocaram a fragmentação do indivíduo, bem como a mudança de paradigmas da cultura. Nesta análise, nota-se que o autor Martin Heidegger desenvolve a ideia da compreensão do indivíduo como ser social, baseada na ordem do comum-pertencer, enquanto Silviano Santiago discute as relações do sujeito com o outro e com a comunidade mediante o movimento de ressemantização. Constatar-se-á, aqui, que o ser auxilia a noção do princípio de identidade, no sentido de evidenciar os lados do indivíduo mediante a concepção filosófica do ser e do ente em Heidegger e o processo de subjetivacão em Santiago, criticando-o, discutindo-o e reconfigurando-o, na

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medida em que apresenta em si traços das mudanças sociais, históricas, econômicas e culturais presentes, a todo o momento, na linguagem, nas reflexões e atos que se perfazem em sua existência. PALAVRAS-CHAVE: Indivíduo. Sociedade. Deslocamento identitário.

ABSTRACT

The study refers to the discussion ofidentity elements, by taking into account the importance that is given to be solidifying theliterary imagination because of the historicalmovements, economic and social suffering that individuals over time, since such displacementsled to the fragmentation of the individual as well asthe paradigm shift culture. In this analysis, we notethat the author Martin Heidegger develops the ideaof understanding the individual as a social orderbased on the commonly-owned, while SilvianoSantiago discusses the relationship of the subject with each other and with the community through the movement of resemantization . It will be noted herethat helps is the notion of the principle of identity, inorder to reveal sides of the individual through thephilosophical conception of being and being in Heidegger and the process of subjectivation inSantiago, criticizing it, arguing it and reconfiguringit, as it presents itself traces the social, historical, economic and cultural gifts at any time, in language, the thoughts and actions that make up in your lifetime. KEYWORDS: Individual. Company. Displacementidentity.

BIBLIOGRAFIA BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. ÁVILA, Myriam et. al.Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1996. HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? Identidade e diferença. Trad. STEIN, Ernildo. 2. Ed. São Paulo: Livraria duas cidades, 1978. MARITAN, Jacques. Sete lições sobre o ser. São Paulo: Edições Loyola, 1996. MEDAUAR, Jorge. Água Preta. São Paulo: Brasiliense, 1958. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 93-106.

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SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

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A SENSIBILIDADE CLARICEANA DE NARRAR O COTIDIANO Profa. Ma. Silvania Cápua Carvalho 1 “Cada sintaxe nova abre então pequenas novas liberdades” Clarice Lispector, 1963

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é o resultado da apreciação crítica do capítulo: A aula inaugural de Clarice Lispector – cotidiano, labor e esperança, em Santiago (2004). Segundo o autor, a narrativa de Clarice Lispector está marcada por aspectos de seu olhar do cotidiano devido uma sensibilidade de uma narradora de origem estrangeira, radicada no Brasil. Em tal modo de narrar emergem nuances de suas experiências de vida, por ter residido em diversos países, bem como por ser uma leitora das culturas dos lugares por onde passou e da literatura e da filosofia: suas companheiras. Tais aspectos ligados à sua capacidade de envolver o leitor com os fatos históricos dão a escrita de Clarice Lispector uma trama novelística sem precedentes até sua chegada ao cenário literário de nosso país, estabelece-se assim um marco na literatura brasileira.

2 A SENSIBILIDADE CLARICEANA DE NARRAR O COTIDIANO

A maestria no uso das palavras faz com que a escrita clariceana seja considerada como inovadora, pois estabelece uma nova concepção de tempo para o romance. A autora trabalhava como se o trabalho fosse uma válvula de escape; uma fuga de si mesma. Clarice propõe um processo de deshierarquização e, em seguida, de rehierarquização de conceituações. Progresso, trabalho e labor são redefinidos por Lispector com cuidado. Santiago (2004) evidencia que “O labor não se manifesta pela

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Professora de Língua e Literatura Inglesa e Inglês Instrumental do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. Mestra em Literatura e Diversidade Cultural pelo programa PPGLDC, UEFS (2011). Pesquisadora em Literatura, memória e representações identitárias (UEFS/PPGLDC). Membro do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: Literatura de jornal ao sistema literário. Revisora da Revista Acadêmica da Graduação em Letras, nº02 jan/jun.2011. Correio eletrônico: .

ISBN 978-85-7395-210-0

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força humana alienada única e exclusivamente em experiência do trabalho, em produtividade”. A expressão da narrativa desta autora utiliza valores do passado, sem se tornar adepta dos moldes oitocentistas. Lispector consegue atingir o entrelugar, combinando os vários recursos narrativos, tanto os da tradição como os contemporâneos. Combinação que é responsável pela especificidade das suas obras Santiago (2004) evidencia que, [...] A literatura de Clarice, na sua radicalidade, se alimenta da palavra, é “um mergulho na matéria da palavra”, ou seja, ele está na capacidade que tem a palavra de se sucedera uma outra palavra, sem a necessidade de buscar um suporte alheio ao corpo das próprias palavras que se sucedem em espaçamento (SANTIAGO, 2004, p. 232).

Para Clarice, o momento é o “instante já”, são as experiências de suas personagens que revela o instante da vida do cotidiano. Ao ler alguns romances da escritora, é possível captar o cotidiano do Brasil de um período em que as experiências dos personagens revelam um país dominado pelo regime militar e, ao mesmo tempo, a situação negativa da experiência de vida da própria romancista. Tal escrita revela o valor positivo da vida, sem delongas a escritora proporciona um olhar da narrativa de uma mulher que escreve com a alma feminina. Todo texto literário, por mais alheio que seja aos valores do passado, movimenta direta e indiretamente as expressões da tradição, na escrita clariceana não é diferente, o processo de despertar o leitor para as sensibilidades de olhar o cotidiano é uma das nuances de sua narrativa. Dotada de uma leitura de fácil compreensão, a escrita de Clarice Lispector é uma lente ideal para ver a realidade e a quotidianidade enxovalhante da vida. Ela explora os fatos comuns com sua capacidade de “contar os casos”. Revelase uma verdadeira “estourinhadora”, pois sua escrita é caracterizada pela arte de escrever crônicas e romances investidas de uma leveza, de linguagem simples, mas que tece as teias da vida cotidiana. A literatura, com seu caráter intrigante, pode requerer a lucidez do criador e também do leitor, ambos impregnados pela condição precária de cidadãos duma nação dominada pela injustiça e por problemas sociais diversos, assim é sistematizada no

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processo de construção literária pelo teórico Silviano Santiago (2004), nas suas considerações sobre o narrador pós-moderno. Na escrita das crônicas de Clarice, esta arte de narrar é resgatada devido a sua leitura de fácil compreensão. Tais crônicas se tornam um veículo ideal para “contar os causos”, revestidas de uma leveza da linguagem, através de uso de sintaxe e das palavras, busca definir as sensações e emoções provocadas por outro ou pelo mundo mesmo. O mistério releva-se por crônicas que vão aos poucos desnudando o mundo pessoal e subjetivo dessa escritora enigmática, que se dirige ao leitor informalmente. Seus textos operam sob o signo de diferentes códigos culturais e discursivos dos quais as significações desvelam a cumplicidade tal qual a escrita do escritor inglês James Joyce2. O texto literário se torna um lugar de possibilidades e de transformações no qual o(a) leitor(a) se insere, se posiciona e se constrói como sujeito do conhecimento. A própria Clarice comenta sobre sua escrita: “[...] Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever” (LISPECTOR, 1991, p. 99-100). A produção literária de Clarice Lispector se faz atemporal, após décadas de lançamento, os leitores da atualidade encontram nas suas crônicas uma literatura como um campo em que a estética – embora de teor universal – é inseparável da política, seu componente nacional. Sendo assim, desvendamos muito da alma brasileira ao se deparar com os mistérios da escrita de natureza híbrida. As crônicas de uma das maiores escritoras brasileiras, Clarice Lispector, transitam no mundo da fantasia, do imaginário, escapando de se comprometer pessoalmente nas linhas de sua escrita da interiorização e da multiplicidade dos mistérios do mundo e do ser humano. Na escrita clariceana, o processo de formação de sensibilidades questiona a ordem de um mundo instável e transita entre o fascínio e recuo, face à premência em assumir o centro explosivo de si mesma. A leitura das crônicas e sua interpretação denotam uma organização ativa de significante, na busca da identidade de paradigmas vigentes na vida da escritora: certa história, vidas sociais, visão do mundo.

2

James Augustine Aloysius Joyce (Dublin, 2 de fevereiro de 1882 - Zurique, 13 de janeiro de 1941) foi um romancista, contista e poeta irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2012. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 107-116.

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A sensibilidade de Clarice é a capacidade de se estabelecer enquanto escritora, mulher, cidadã, mãe, esposa e voz de uma geração em busca da história pessoal de cada ser humano. Tal sensibilidade é delineada nas vozes, ações, posturas de suas personagens, instituindo um novo sujeito sociológico: seu leitor. [...] Mas tenho uma descendência e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão asas para o vôo necessário e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a gente não cria filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres (LISPECTOR, 1991, p. 99100).

A bibliografia de Lispector é sinalizada pela presença da mulher como personagem principal, como pode ser notado em várias crônicas. Vozes femininas atuando com destaque no desenrolar do enredo, por meio das opiniões da narradora. Certamente, o aparecimento dessas vozes é consequência, entre outras coisas, de um processo de conscientização deflagrado pelo movimento feminista nas décadas de 60 e 70. É a partir desta escritora que a crítica moderna se debruça para o estudo da narrativa de autoria feminina, pois nesse momento surge uma demanda de nova identidade delineada segundo o prisma e os anseios da mulher moderna, o que no passado se configurava sob o ponto de vista masculino, como diz Patrício (2006) “... pois a mulher era vista em posição subordinada aos interesses ditados pela sociedade governada por patriarcas”. O valor da literatura clariceana está na não-submissão da escritora aos cânones masculinos estabelecidos e na aceitação da sua própria diferença. Vejamos um trecho de Perto do Coração Selvagem: [...] Viver em sociedade é um desafio porque às vezes ficamos presos a determinadas normas que nos obrigam a seguir regras limitadoras do nosso ser ou do nosso não-ser... Quero dizer com isso que nós temos, no mínimo, duas personalidades: a objetiva, que todos ao nosso redor conhecem; e a subjetiva... Em alguns momentos, esta se mostra tão misteriosa que se perguntarmos - Quem somos? Não saberemos dizer ao certo!!! Agora de uma coisa eu tenho certeza: sempre devemos ser autênticos, as pessoas precisam nos aceitar pelo que somos e não pelo que parecemos ser... Aqui reside o eterno conflito da aparência x essência. E você... O que pensa disso. Que desafio, hein? [...] Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la... (LISPECTOR, 1998, p. 55).

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Assim sendo, a literatura é a exata articulação entre verdades e mentiras, realidade e ficção, sonhos e frustrações a partir do ponto de vista de um criador: o escritor, que tem como aliado um receptor: o leitor. Santiago (2004) comenta a respeito de Clarice: “Nas histórias da literatura brasileira, a trama novelesca que não era passível de ser absorvida pela auréola interpretativa do acontecimento era jogada na lata do lixo da história como sentimental ou condenável, de mulheres para mulheres” (SANTIAGO, 2004, p. 233). A escrita de Lispector é influenciada pelo meio social em que atua e usa uma linguagem própria, que registra a sua leitura de mundo, questiona, contesta, reorganiza, recria e reinventa a realidade. Acerca disto, Genette (1997) amplia esta noção:

[...] O enunciado de ficção não é verdadeiro nem falso (mas apenas, teria dito Aristóteles, “possível”) ou é ao mesmo tempo verdadeiro e falso: ele encontra-se além ou aquém do verdadeiro e do falso, o paradoxal contrato de irresponsabilidade recíproca que ele estabelece com o seu receptor é um perfeito emblema da famosa independência estética (GENETTE, 1997 apud REIS, 2001, p. 172).

Cândido (1972) atribui à literatura três funções: a psicológica, a formadora e a social, pois a arte possui a capacidade de confirmar a humanidade do homem:

[...] a necessidade de ficção se manifesta a cada instante; aliás, ninguém pode passar um dia sem consumi-la, ainda que sob a forma de palpite na loteria, devaneio, construção ideal ou anedota. E assim se justifica o interesse pela função dessas formas de sistematizar a fantasia, de que a literatura é uma das modalidades mais ricas (CÂNDIDO, 1972, p. 804).

Clarice utilizou de maneira muito elegante a função formadora da literatura, concebendo-a como pretexto para trabalhar ideologicamente certos conceitos morais e dicotomias em suas obras, “do Verdadeiro, do Bom e do Belo”, [...] a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. [...] Ela não corrompe nem edifica, portanto, mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver (CÂNDIDO, 1972, p. 805-806).

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A autora trilhou uma vida discreta e reclusa. Seu tom era um tanto “confessional”, seus textos expressam um modo de viver e agir. Lançando mão de uma literatura como um constante processo na busca pelo autoconhecimento: “Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa” (LISPECTOR, 1998, p. 221). Segundo Queiroz (1991): o universo ficcional da autora Clarice Lispector tem como ponto fulcral o modo como nele o mundo das sensações subjetivas, das atividades corriqueiras, atualizadas sobretudo por personagens mulheres, e das pequenas cenas flagradas em sua banalidade abrem-se para um incessante questionamento sobre o(s) sentido( s) da existência humana_ a paixão, a glória e a dor da viver inerentes a todos, homens e mulheres.(QUEIROZ, 1991, p. 6).

O universo ficcional de Clarice Lispector tem como núcleo narrativo o modo de como nele o mundo das sensações subjetivas, das atividades corriqueiras – sobretudo por personagens femininas –, das cenas simples e banais remete para um constante questionamento sobre os sentidos da existência humana – a paixão, a glória e a dor de viver pertinentes a todos, homens e mulheres. Cenas do cotidiano ganham maior brilho e significado na escrita de Clarice: “Em certas horas da tarde, por exemplo, em que a casa cheia de luz mais parece esvaziada pela luz, enquanto a cidade inteira estremece trabalhando” (LISPECTOR, 1991, p. 15-16). Na simplicidade de seu vocabulário ao narrar cenas do cotidiano da vida, esta escritora estrangeira de nascimento e brasileira no coração, Clarice Lispector, tem um modo próprio de contar os fatos e imagens utilizando animais e plantas, incluindo também, objetos comuns da vida doméstica e situações da vida de homens e mulheres de classe média, na maioria de suas narrativas. As relações da escritora com a filosofia pode ser notada na escolha dos vocábulos em sua obra influenciada pelas ideias de Martim Heidegger 3, para Santiago (2004):

Martin Heidegger (Meßkirch, 26 de Setembro de 1889 ― Friburgo, 26 de Maio de 1976) foi um filósofo alemão. É seguramente um dos pensadores fundamentais do século XX ― ao lado de Bertrand Russell, Wittgenstein, Adorno e Michel Foucault ― quer pela recolocação do problema do ser e pela refundação 3

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[...] A essa dupla inserção do corpo ‘biográfico’ do personagem no tempo romanesco, momento de plenitude do corpo, Clarice dá o nome de ‘beatitude’. Como sempre, é preciso tomar cuidado na compreensão do vocábulo revestido tradicionalmente de fortes camadas religiosas (SANTIAGO, 2004, p. 235).

A literatura como fonte de pesquisa histórica possui uma trama literária com características fundamentais que estariam na raiz do modo de pensar, agir, sentir, vibrar, como também, de repensar o mundo. Pesavento (2002) confirma: [...] A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo quais as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário. [...] Para além das disposições legais ou de códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que fornece os indícios para pensar como e porque as pessoas agiam desta e daquela forma (PESAVENTO, 2004, p. 82-83).

A obra de Clarice Lispector é a expressão de uma literatura que cativa o leitor despertando-lhe a sensibilidade para coisas comuns da vida, a sensibilidade de narrar o cotidiano. Nas sociedades modernas, o trabalho se transformou em temática da existência. Ao passo que, na literatura clariceana, o labor cria a matéria prima de sua ficção, as minúcias de detalhes de suas crônicas expõem a vida, os acontecimentos, nada escapa a sensibilidade de seu olhar. Escreve Clarice: “E quero capturar o presente que pela própria natureza me é interdito” (SANTIAGO, 2004, p. 237). Para este ensaísta, ela foi de uma grande maestria ao dramatizar, na ficção, a situação negativa da experiência, para nesta introduzir o valor positivo da vida. A literatura de Clarice, portanto, inaugurou uma nova tendência da literatura brasileira sendo, sem dúvida alguma, uma escritora cosmopolita.

da Ontologia, quer pela importância que atribui ao conhecimento da tradição filosófica e cultural. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2012. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 107-116.

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RESUMO

Este artigo tem como objetivo evidenciar a maestria da ficção de Clarice Lispector, sob o olhar concretizado pela quotidianidade enxovalhante da vida em A aula inaugural de Clarice Lispector: cotidiano, labor e esperança. Santiago (2004) relata o processo de deshierarquização da escrita da autora, a qual expressa uma literatura que cativa o leitor despertando-lhe a sensibilidade para coisas comuns da vida. Trata-se de uma obra dotada de uma narrativa cuja leveza expõe a linguagem não rebuscada, mas que se torna um veículo ideal para explorar os fatos do cotidiano e para “estourinhar” o país durante um período político marcante: a ditadura militar. O texto literário utiliza valores do passado – por meio de uma linguagem de tom novelesco, considerada como um marco na literatura brasileira –, sem se estabelecer como adepto dos moldes oitocentistas de narrar a realidade de mulher, mãe e cidadã. PALAVRAS-CHAVE: Deshierarquização. Sensibilidade. Cotidiano.

ABSTRACT

This article has as objective to evidence the master of the fiction of Clarice Lispector, under the materialized look for the amusing everyday life in the inaugural lesson of Clarice Lispector: daily, work and hope. Santiago (2004) tells the process of nonhierarchization of the writing of the author, which express a captive literature that the reader awake to the sensitivity for common things of the life. It is about an endowed production with a narrative whose slightness displays the language not searched carefully, but that it becomes an ideal vehicle to explore the facts of the daily life and to create stories about the country during an unforgettable politician period: the military dictatorship. The literary text uses values of the past - by means of a language of novel tone, considered as a landmark in Brazilian literature -, without establishing itself as adept of the old molds to tell the reality of woman, mother and citizen KEYWORDS: Non-hierarchization. Sensitivity. Daily live.

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REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários. Coimbra: Livraria Almedina, 1997. SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1979. SANTIAGO, Silviano. A aula inaugural de Clarice Lispector. In: MIRANDA, Wander Melo. (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 13-30. SANTIAGO, Silviano. A aula inaugural de Clarice Lispector: cotidiano, labor e esperança. In: ________. O cosmopolitismo do Pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. XAVIER, Elódia (Org.). Tudo no feminino: a presença da mulher na narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.

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COMUNICAÇÕES

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A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE ALTAMIRANDO REQUIÃO: A BAHIA DO SÉCULO XVII NA FICÇÃO METAHISTORIOGRÁFICA Cristiane Tavares Santos Melo 1

1 INTRODUÇÃO

A produção literária e a prática intelectual da Bahia, no início do século XX, vivem momentos de efervescência e tem o espaço do jornal como grande veículo de projeção da vida cultural baiana desse período. Enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro, os artistas consolidavam os paradigmas estéticos do modernismo, na Bahia, muitos intelectuais também se articulam, contribuindo para a implantação de um sistema literário baiano. Embora alguns intelectuais baianos tenham ficado de fora do cânone modernista, são inúmeras as figuras importantes que compõem os grupos de intelectuais baianos e que atuaram ativamente na produção literária desse momento. Vários podem ser os motivos que resultaram na pouca visibilidade da literatura baiana, do início do século XX, no cenário nacional, além da ausência de editoras, a maior parte desses artistas remava contra as estratégias de celebração dos modernistas paulistas ou mesmo porque não participavam dos círculos de poder e da entrelaçada rede de interesses, protecionismos e influencias que os rodeavam. A supervalorização do eixo Rio - São Paulo como centro de produção artística e a pouca visibilidade da literatura baiana, em esfera nacional, resultou no pagamento de diversas identidades que compõe a história cultural e intelectual baiana. Entre esses nomes encontra-se Altamirando Requião, escritor a quem se dedica essa pesquisa. Jornalista e escritor de importante participação política e intelectual, no cenário baiano e nacional, acompanhou a virada do século XIX para o século XX e participou ativamente de momentos importantes da vida cultural baiana, como a criação das primeiras Academias de Letras na Bahia. 1

Graduada em Letras Vernáculas pela UNEB, especialista em Estudos Literários pela UEFS, mestranda em Literatura e Diversidade Cultural pela UEFS e membro do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos (GELC).

ISBN 978-85-7395-210-0

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Contemporâneo de Jorge Amado, Carlos Chiacchio, Rui Barbosa, Afrânio Peixoto, entre outros, Requião dedicou-se à poesia e ao romance, mas suas atuações no jornalismo e na política acabam tomando maior parte de espaço de suas atividades. Foi proprietário do jornal Diário de Noticias e atuou também como colaborador em outros jornais e revistas da Bahia e do Rio de Janeiro, onde publicou vários outros artigos e ensaios. O presente projeto intitulado A produção literária de Altamirando Requião: A Bahia do século XVII na ficção metahistoriográfica propõe o estudo da memória cultural da Bahia do século XVII a partir romance histórico O Baluarte (1976), bem como de alguns textos do autor, publicados em periódicos, que serão utilizados como subsídio para analisar o romance. O romance O baluarte (1976) é o primeiro da série de ficção histórica, denominada Crônica do Século XVII, publicado pelo autor e que compreendem quatro romances, os outros três são: Dom Marcos (1976), O Bravo Capitão (1984) e o Grande Fracasso (1984). Os três primeiros abordam o momento histórico da primeira invasão holandesa na Bahia; e o último, a segunda invasão. Para tanto, pretendemos, primeiramente, regatar o autor situando o momento cultural de produção e sua contribuição para a produção literária baiana. Aproveitaremos a oportunidade para discutir também algumas questões concernentes à constituição do cânone literário. Ao analisarmos o fato da supressão das identidades artísticas, como Requião, que apesar de ser um dos membros fundadores da Academia de Letras e estar no centro da produção intelectual baiana, não conseguiu deixar seu nome na historiografia oficializada pela crítica literária. Em seguida, analisaremos a obra O baluarte (1976), a partir das relações entre literatura e história e da ficção metahistoriográfica. Nesta comunicação, esboçaremos apenas as primeiras as primeiras impressões do estudo em andamento. Pretendemos apresentar o autor, sua produção literária e aspectos que serão explorados no projeto mencionado acima. As informações aqui divulgadas fazem parte da etapa inicial da pesquisa que se constitui em situar o jornalista e escritor em seu contexto de produção. Em outro momento, pretendemos fazer uma busca aprofundada das publicações e escritos do e sobre o autor, tanto em seu arquivo pessoal, como nos veículos em que foram publicados os textos que, de alguma forma, relacionam-se a ele, a fim de elaborar a sua biocrítica.

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2 BIOGRAFIA, PRODUÇÃO LITERÁRIA E ARTÍSTICA

Altamirando Requião interagiu com diversos segmentos da cultura baiana. Foi, juntamente com outros profissionais de seu tempo, uma importante referência do jornalismo baiano do século XX. Atuou como poeta, romancista, teatrólogo, contista, crítico, polemista, ensaísta, jornalista, professor universitário, advogado e foi membro da Academia de Letras da BA e correspondente das academias de MG e AL. Como foi dito antes, mesmo se tratando de uma figura que participou ativamente da produção cultural de seu tempo, o autor encontra-se apagado da historiografia oficial. Até o presente momento, encontramos apenas alguns textos críticos, publicados em seu tempo, sobre a obra do autor, no Jornal O imparcial e no Diário de Notícias e uma biografia intitulada Atravessando um século: A vida de Altamirando Requião, produzida por Claudio Veiga de onde recolhemos os dados que serão apresentados nessa comunicação.

2.1 POLÊMICAS

Nascido nos primeiros anos da República, no final do século XIX, na cidade de Salvador- BA, sua existência de quase um século de vida fez de Altamirando Requião uma personalidade que acompanhou e participou de perto da história política e literária da Bahia no século XX. Era dono do Jornal Diário de notícias, veículo de considerável circulação, no qual foram publicados textos literários de autores como Ronald de Carvalho, Olegário Mariano, Hermes Fontes, Monteiro Lobato e outros. Como diretor do jornal, acompanhou toda movimentação cultural e literária de sua época e recepcionou e cedeu espaço, em seu jornal, aos escritores visitantes da Bahia. Em 1941, foi eleito presidente da Academia de Letras da Bahia, substituindo seu antagonista SEABRA. E, em virtude de novas atribuições, acabou caminhando em direções contrárias às letras. A trajetória de Altamirando Requião é marcada por eventos que lhe trouxeram notória visibilidade. A atuação no jornalismo, na política e nas letras lhe rendeu o envolvimento em algumas polêmicas, pois seus textos atingiram muitas personalidades importantes do período. Entre os vários eventos polêmicos que

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compõem sua biografia citaremos apenas o processo judicial movido contra 30 bispos da Igreja Católica e o apoio dado por Requião a Virgílio Maurício, pintor carioca acusado de falsário e plagiador. O primeiro episódio polêmico que marca sua biografia é um desdobramento dos embates travados com arcebispo D. Augusto Álvaro da Silva, seguido de um ataque feito, em 1933, por Altamirando Requião a um sacerdote defendido pelo arcebispo e de uma defesa feita a uma religiosa, em 1936, que é contestada pela mesma autoridade religiosa. D. Augusto Álvaro da Silva apóia o padre Ricardo que se sentia caluniado depois da publicação de um artigo no jornal assinado por Requião a processar o jornalista. Junto com o padre, trinta e oito membros do clero solidarizados com a situação o fizeram publicar um manifesto contra o Requião, por isso este moveu uma questão na justiça contra todos os eclesiásticos e ganhou a causa no final. Contudo, os embates entre Requião e D. Augusto Álvaro não cessam com o término do processo judicial. A outra polêmica diz respeito ao fato de Requião, juntamente com Ronald de carvalho e Renato Almeida, os dois últimos radicados no Rio de Janeiro, terem apoiado o pintor Virgílio Maurício diante das acusações de plágio quando este esteve na Bahia, em 1919. Em oposição a estes defensores do pintor estavam Presciliano Silva, assessorado por Carlos Chiacchio que por um bom tempo travou fervorosos debates com Requião. Essa contenda resultou na troca de publicações de alguns textos por parte dos oponentes citados, o que contribuiu para a popularidade maior dessa controvérsia. O pintor acabou sendo desmascarado no Rio de Janeiro, levando Requião e Ronald de Carvalho a publicarem textos esclarecendo o equívoco e a romperem com o artista plástico. Mesmo após a resolução dessa confusão, o assunto ainda rendeu várias trocas de injúrias. Esses e outros fatos implicaram em uma maior exposição de Requião na época. Conforme Veiga, esse era um dos objetivos dessas ocorrências, já que “as polêmicas eram também um recurso infalível para aumentar a procura dos jornais” (1993, p. 57).

2.2 A POLÍTICA

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Além de ter interagido ativamente, através da profissão de jornalista, com diversos acontecimentos do país, Altamirando Requião teve participação ativa na política partidária em meados do século XX. Era antisseabrista e apoiou Rui Barbosa nas eleições para o cargo de deputado federal e depois para estadual. Se elegeu para o cargo de deputado federal nos anos de 1934, 1945 e 1950. Como deputado, acompanhou Getulio Vargas em viagem até Argentina e ocupou muitos outros cargos, como segunda vice-presidência da Mesa da Câmara Federal e a presidência da Comissão de Educação, juntamente com Gilberto Freire e Jorge Amado. Em sua trajetória no parlamento participou ainda de situações e decisões importantes como a elaboração da Constituição de 18 de setembro de 1946. Reconhecido pela atuação no parlamento, foi chamado pela imprensa de “campeão da palavra”. Defendeu e debateu propostas veiculadas à área da educação e pronunciou-se sobre a necessidade de que a nossa língua passasse a ser chamada de Língua brasileira, o que foi motivo de inúmeras discussões. No período de suas legislaturas, lecionou Português e História, no Colégio Guanabara, no Distrito Federal e, em 1950, passou a escrever três artigos semanais para A manhã e um para A Noite. Como não conseguiu se reeleger, em 1954, trabalhou no Tribunal de Contas do Estado e voltou a ensinar no Colégio da Bahia até se aposentar, em 1963, com 70 anos.

2.3 DRAMATURGIA Atuou como dramaturgo e escreveu algumas peças: como a “Queda do Gênio” (1911), drama dividido em três atos; “Héroi” e “Por um raio de Luz” (1915). Contudo, essas peças não foram encenadas, apenas lidas pelo autor em alguns eventos literários. Produziu também, em 1911, trabalhos sobre crítica teatral sobre algumas peças representadas por uma companhia dramática francesa que se apresentou no teatro Politeama.

2.4 POESIA

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Como poeta, tornou-se conhecido pela sua peculiaridade romântica e colaborou em revistas e jornais da cidade. Em 1912, com o pseudônimo de F. Nietzsche participa de concurso de sonetos promovido pelo Jornal de noticias. Escreveu na revista Via Láctea e Revista Brasil. Nesta última, concentrou maior publicação. Lançou Luz em 1918, coletânea de poemas publicados também em outros suportes. A obra foi bem recebida pela crítica e recebeu comentários favoráveis de personalidades do escritor português João Grave e de Monteiro Lobato. Conforme Veiga: A poesia de Altamirando Requião é tipicamente pré-modernista, com heranças românticas e alguns laivos de simbolismo. Embora marcado pelo passado, teve olhos para ver a nova poética que surgia no país. Antes que aparecesse, em 1928, o movimento Arco & Flexa, já acompanhava de perto as manifestações de modernidade na poesia brasileira. (VEIGA, 1993, P. 53)

Alguns de seus poemas possuem também uma forte influência do estilo poético de Álvares de Azevedo, Byron e Shakespeare. Por isso, foi chamado pelos escritores contemporâneos de seu tempo de “Apóstolo de ferro do byronismo” e “cultor fervoroso de Byron e Shakespeare”. (VEIGA, 1993, P. 53) Em 1928, escreveu poesias modernistas, muitas delas são paródias, como o poema “Um prego”, inspirado no poema “No meio do caminho tinha uma pedra de Drummond:

UM PREGO

Eu ia pela estrada longa... Pela estrada longa eu ia... A estrada era longa, longa, longa... E eu ia, ia, ia, ia,ia... Um prego estava no meu caminho, Virado de ponta para cima... Bem no meio do caminho, De ponta para cima estava virado, um prego! E eu ia, ia, ia... Ai! A ponta do prego... Ai, meu pé! Ai, meu pé! 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 118-129.

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2.5 CONTOS

Estreou na ficção com Misérias- contos Fantásticos, mas assim como Afrânio Peixoto excluiu seu 1º livro de sua bibliografia. Foram apontadas por Carlos Chiacchio algumas intertextualidades imoderadas por parte do autor. Em 1928, lança “Visões Fidalgas e Plebéias”, coletânea de contos históricos.

2.6 FICÇÃO E HISTÓRIA

O primeiro romance, intitulado Brutos e Titãs, foi lançado em 1923 e surgiu primeiramente sob a forma de folhetim e somente depois é que foram lançados 2.200 exemplares pela editora de Monteiro Lobato. Segundo Veiga (1993) este romance tem caráter regionalista e é marcado pela experiência adquirida por Requião quando viveu no sertão baiano dez anos antes de sua publicação. A produção do romance é acompanhada por Monteiro Lobato que, inclusive, dá sugestões ao autor para que a obra venha a ser reconhecida pelo público-leitor. Após o ano de 1940, depois de muito ter se dedicado ao jornalismo e à política, Altamirando Requião dá continuidade a sua produção literária, voltando-se para o romance histórico. Contudo, anteriormente, em 1914, já se tem registro do propósito do autor com a discussão sobre literatura e história quando a imprensa anuncia outro livro do autor Crítica e História, obra que acabou não vindo a público. Na série de ficção histórica denominada Crônica do Século XVII, Requião aborda o momento histórico das invasões holandesas na Bahia. Trata-se dos romances O Baluarte (1976), Dom Marcos (1976), O Bravo Capitão (1984) e o Grande Fracasso (1984). Os três primeiros abordam o momento histórico da primeira invasão holandesa na Bahia; e o último, a segunda invasão. Esta série traz uma contribuição significativa para se pensar a relação entre literatura e história, uma vez que o jogo entre o histórico e ficcional está presente também na produção romanesca de Altamirando Requião. Em O Baluarte (1976), o autor deixa claro que pretende recompor a memória do período. Seus romances são resultado de estudos de textos pertinentes à historiografia tradicional sobre o século XVII que consultou compor as crônicas. Ressalta que apesar

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das narrativas serem baseadas na História, não nega que possa haver nelas fantasias, o que problematiza as fronteiras entre o relato ficcional e o histórico:

[...] é que iremos assistir aos fatos supervenientes desta humaníssima narrativa, no desenrolar de cujas páginas honestas a fantasia, quanto lhe caiba, não sacrificará jamais a substância da Verdade e da História, porque é delas que vai retirar, precisamente, os elementos indispensáveis ao seu curso... (REQUIÃO, 1967, P. 20)

Requião publicou alguns ensaios no Jornal O Imparcial, em 1940, onde expõe seu projeto sobre a o romance histórico e problematiza a constituição deste gênero. Em uma das publicações intitulada “História e romance histórico”, defende que o romance histórico deve se basear na verdade histórica, mas não pode perder as tintas da ficção e afirma que pretende mostrar as contradições presentes nos discursos históricos construídos sobra a Bahia do século XVII. Em outro ensaio denominado “Entregando o baluarte à Bahia”, também publicado no mesmo jornal, em que apresenta O Baluarte como primeiro romance da série que pretende produzir, fala dos impasses encontrados durante a escrita de seu romance diante da contradição e dubiedade encontradas nos documentos históricos. É possível perceber que o autor afirma que pretende construir suas obras á luz das “verdades históricas”, mas, durante o percurso de suas exposições desconstrói, talvez até mesmo de forma involuntária, a concepção de existência de uma verdade absoluta nos discursos produzidos pela História, quando ele mesmo afirma que esta, por vezes, acaba falseando os fatos. Diante disso, pretendemos também investigar até que ponto Altamirano Requião e sua produção de romances históricos não antecipam alguns elementos pertinentes à proposta da metaficção historiográfica, concebida por Linda Hutcheon, uma vez que de acordo com a autora, “[...] a metaficcção historiográfica se aproveita das verdades e das mentiras do registro histórico” a fim de revistar o passado e questionar os discursos que foram construídos sobre ele. Apesar do autor não possuir a postura pós-moderna suscitada por Hutcheon e de haver, na obra de Requião, uma espécie de celebração do passado, o autor apresenta uma autoconsciência sobre a construção dos fatos decorridos no século XVII e dos equívocos que construídos sobre a memória cultural da Bahia nesse período. Por isso, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 118-129.

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aponta a necessidade de reescrever o passado. E assim o faz de maneira que suas crônicas desautorizam alguns relatos históricos desse período. Requião nos traz à tona, através dessa revisitação ao passado, o questionamento do status da narrativa histórica de que fala Hayden White. Este afirma que, por muito tempo, os estudiosos da história e da literatura consideraram a narrativa histórica como um “artefato verbal que pretende ser um modelo de estruturas e processos há muito decorridos e, portanto não sujeitos a controles experimentais ou observáveis.” (WHITE, 1994, p. 98). O que, fica implícito, no entanto, na escrita de Requião, é que os registros históricos a respeito dos conflitos colônias na Bahia são incompletos ou controvertidos, conforme vemos abaixo:

O seu livro está aí, revivendo um período colonial profundamente controvertido e balburdiado do primeiro quartel do século XVII. Basta esclarecer para positivar os empeços, (SIC) encontrados pelo romancista, que na maioria dos fatos e das figuras da época, raramente, os maiores e mais autorizados historiadores se acham de acordo, quer em suas narrativas quer em seus julgamentos. O que é freqüentemente comum é contradizerem-se e desmentirem-se reciprocamente, creando (SIC) situações de dubiedades e incertezas. (REQUIÂO, 1940, p. 4)

Além da discussão sobre a metaficção de Altamirando Requião, estudaremos mais adiante, alguns aspectos culturais da Bahia, no século XVII, que estão presentes em “O Baluarte, como a presença dos esconderijos/porões subterrâneos; os meios de transportes da época, como a cadeira de Arruá; o namoro na Bahia seiscentista e as transformações da cidade e das ruas de Salvador no período mencionado, etc. Aproveitaremos a oportunidade para discutir também algumas questões concernentes à constituição do cânone literário. Analisarmos o fato da supressão das identidades artísticas, como Requião, a fim de investigar quais teriam sido os fatores responsáveis pela anulação dessa personalidade na memória cultural da Bahia, mesmo apesar de ser um dos membros fundadores da Academia de Letras e estar no centro da produção intelectual baiana.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A trajetória de Requião nos mostra que ele esteve no cenário literário por várias décadas, publicando vários gêneros literários e em vários meios e suportes de comunicação. Ele soube transitar pelo mercado, conseguindo o que julgava necessário para cumprir sua missão literária. Muitos outros autores os autores baianos do período referido também foram segregadas do cânone brasileiro, por não pertencerem ao eixo do centro-sul ou mesmo por não se enquadrarem nos moldes estabelecidos, foram da mesma forma excluídos. No caso específico de Altamirando Requião, alguns fatores podem ter contribuído para a sua supressão da historiografia literária baiana. Entre eles, estão a associação do autor com ideologia integralista e partidos políticos de direita, posto que os grupos literários mais fortes e consolidados faziam parte dos grupos políticos de esquerda, como as gerações dos “Jovens Rebeldes de 1928 e “Arco e Flexa”; por ter cultuado a tradição e os modelos clássicos, a exemplo dos romances históricos tradicionais, em meio a efervescência estética suscitada pelo projeto modernista; ou mesmo pela dificuldade de ter produzido num momento em que se tinha Jorge Amado como autor de obras de maior prestígio social e circulação. Os estudos feitos até o presente momento da pesquisa ainda não nos possibilita afirmar ou negar a importância que poderá ter os fatores mencionados acima para a falta de visibilidade do artista estudado. Este trabalho está longe de trazer repostas e ainda tem um caminho longo a percorrer. No entanto, a variedade presente na produção do autor nos remete à hipótese de que ele tentou se enquadrar em algumas estéticas predominantes no momento, como por exemplo, através das produções de poemas com caráter modernista e paródico. Pode ser que o fato de não ter se enquadrado a nenhum grupo de prestígio tenha contribuído para o seu esquecimento, mas pode ser também que o caráter estético de sua produção tenha influenciado na sua aceitação pela crítica. São essas e outras questões que pretendemos discutir no decorrer da pesquisa. Como vimos, a atuação de Altamirando Requião na produção cultural baiana não foi passiva, nem débil, mesmo diante de um cenário literário dominante. Muito pelo contrário, ele soube transitar dentro das limitações impostas pelo cânon dominante e soube também se aproveitar da atividade como jornalista e de sua posição social para conseguir construir sua trajetória literária.

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Todas as implicações que resultaram na exclusão de obras e autores importantes para a compreensão da memória cultural da Bahia mostram que o cânone literário baiano não pode ser concebido como a única literatura que temos, mas apenas uma parcela desta. Ao estudar um escritor totalmente desconhecido pretende-se contribuir para a valorização da memória cultural e intelectual da cidade de Salvador, bem como para a ampliação do cânone literário baiano.

RESUMO

Contemporâneo de Jorge Amado, Carlos Chiacchio, Rui Barbosa, Afrânio Peixoto, entre outros, Altamirando Requião dedicou-se à poesia e ao romance, mas suas atuações no jornalismo e na política acabam tomando maior parte de espaço de suas atividades. Foi proprietário do jornal Diário de Noticias e atuou também como colaborador em outros jornais e revistas da Bahia e do Rio de Janeiro, onde publicou vários outros artigos e ensaios. O presente projeto intitulado A produção literária de Altamirando Requião: A Bahia do século XVII na ficção meta-historiográfica propõe o estudo da memória cultural da Bahia do século XVII, a partir romance histórico O Baluarte (1976), bem como de alguns textos do autor, publicados em periódicos, que serão utilizados como subsídio para analisar o romance. Para tanto, pretendemos, primeiramente, trazer o autor, situando o seu momento cultural de produção e sua contribuição para a produção literária baiana. Aproveitaremos a oportunidade para discutir também algumas questões concernentes à constituição do cânone literário, ao analisarmos o fato da supressão das identidades artísticas, como Requião, que apesar de ser um dos membros fundadores da Academia de Letras e estar no centro da produção intelectual baiana, não conseguiu fixar seu nome na historiografia oficializada pela crítica literária. Em seguida, analisaremos a obra O baluarte (1976), a partir das relações entre literatura e história e da ficção meta-historiográfica. PALAVRAS-CHAVE: Altamirando Requião; Literatura baiana; ficção.

BIBLIOGRAFIA HUTCHEON, Linda. Poética do Pós – Modernismo: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1991.

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REQUIÃO, Altamirando. O Baluarte: crônica do século XVII. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 1976. ______. História e romance histórico. O Imparcial, Salvador, p. 4, 1º dez. 1940. ______. O Baluarte: crônica do século XVII. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 1976. VEIGA, Claudio. Atravessando um século: A vida de Altamirando Requião. Rio de Janeiro: Record; Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1993. WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.

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MEMÓRIAS N’O IMPARCIAL: A LITERATURA BRASILEIRA POR JOÃO PARAGUAÇU Danilo Cerqueira Almeida1 Adeítalo Manoel Pinho2

1 JOÃO PARAGUAÇU, O PSEUDÔNIMO DE UM BRASILEIRO BAIANO

João Paraguaçu, também grafado Paraguassú, é o nome atribuído por Manoel Paulo Teles de Matos Filho para a autoria de alguns de seus textos. Baiano de Cachoeira, cidade margeada pelo rio que sobrenomeia o pseudônimo, M. Paulo Filho, como é mais conhecido, nasceu em 1890 e faleceu em 1969, no Rio de Janeiro, cidade onde consolidou carreira jornalística e literária desde 1911. O intelectual formou-se no curso de Direito em 1909 pela então Faculdade Livre de Direito da Bahia (atual Faculdade de Direito da UFBA), foi professor catedrático e procurador do Tribunal de Contas do estado da Guanabara (atual Rio de Janeiro). Foi membro e presidente da Academia Carioca de Letras e sócio-fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, além de presidir a Associação Brasileira de Imprensa no biênio 19281929 ― eleito num dos pleitos mais disputados da instituição; também recebeu as comendas da Ordem de Cristo (Portugal), da Rainha Isabel (Espanha) e cavaleiro da Ordem do Mérito (Chile). O ofício do cronista e ensaísta pode ser apreciado a partir de suas publicações no jornal fluminense Correio da Manhã, um dos periódicos mais tradicionais da época (1901-1974), do qual foi redator e diretor por mais de 20 anos, e das publicações no jornal baiano O Imparcial, muitas enviadas do Rio de Janeiro. As obras publicadas pelo autor são Literatura e História (1958), Ensaios e estudos (1961), Memórias de João Paraguassú (1964), Tempos Idos (1968) e As máscaras (s.d.).

1

Licenciado em Letras Vernáculas (UEFS), mestrando em Literatura e Diversidade Cultural (UEFS) e membro do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos (GELC). 2 Orientador. Doutor em Letras e Linguística (PUC-RS), Professor Adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural (PPpLDC) e Coordenador Executivo do Centro de Pesquisa em Literatura e Diversidade Cultural (CPLDC), ambos da UEFS.

ISBN 978-85-7395-210-0

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2 O IMPARCIAL: UM PERIÓDICO DA BAHIA CULTURAL E POLÍTICA

O periódico baiano O Imparcial produziu entre os vinte e nove anos de circulação (4 de maio de 1918 até 20 de maio de 1947) cerca de 5200 exemplares. Artigos, crônicas e outros textos circularam com regularidade seis dias por semana, dias especiais e datas cívicas. Fundado ainda na República Velha, o periódico teve como primeiro redator-chefe o poeta, romancista, jornalista, sociólogo e historiador Lemos de Brito. Há uma relação forte entre O Imparcial e seu homônimo carioca através de Ruy Barbosa, jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador baiano, candidato duas vezes à presidência da república e um dos mais importantes intelectuais da história brasileira. Nesse contexto, a história do jornal também está marcada por fatos ligados às tensões entre imprensa e política nas décadas da República Velha em relação ao posicionamento do periódico: contra o governo e a favor dos coronéis. O Imparcial vivenciou, por exemplo, a coagida demissão do primeiro redator-chefe sequenciada por um intervalo de 30 dias sem publicar no ano de 1919. Também sofreu alguns empastelamentos, ou seja, a invasão criminosa da gráfica ou redação do jornal para interromper o funcionamento e avariar os equipamentos, a exemplo do período entre os anos de 1930 e 1931, resultando no período de sete meses sem veicular uma página, devido à intervenção do governo federal. A reabertura anuncia o periódico como “Matutino noticioso e independente” em lugar do “Órgão das Classes Conservadoras da Bahia”, denominação que representava o combate ao governo do interventor J. J. Seabra, no final dos anos 20. Os espaços para Literatura sempre integraram O imparcial, sendo um de seus melhores investimentos em cultura. Embora inicialmente dispersas no periódico, poemas e crônicas não demoraram a confluir para uma coluna própria. Desde a primeira coluna, “Leitura Variada”, até “Página Literária” as seções prestigiavam escritores estrangeiros nacionais e locais. A partir de “Verso e Prosa” (1925) os autores baianos começaram a adquirir notabilidade nesse espaço do jornal, propiciando o surgimento da afirmação no cenário político-cultural e consolidando definitivamente os textos no espaço histórico-artístico-social, integrado ao que se chama Literatura de Jornal (PINHO, 2008). Autores como Rafael Barbosa, Damasceno Filho, Godofredo Filho,

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Aristóteles Gomes, Carlos de Viveiros, Carlos Chiacchio, Carlos Ribeiro e Artur de Sales encontraram apoio n’O Imparcial para divulgar trabalhos de crítica e poética, prática que acabou contribuindo decisivamente para a articulação do grupo Arco e Flexa. As mais de 20 colunas sobre Literatura em quase quarenta anos de publicação (algumas duraram apenas 5 exemplares), abrigaram espaço para uma seção infantil ― “Seção das Crianças” ― e seções de enfoque moralizante, político, filosófico e religioso, exemplos de “Pela Ordem”, “Hora da Guerra” e “Semana Universitária”. Na última fase d’O Imparcial (1940-1947) as produções literárias mais comuns eram a crítica e resenha na coluna “Vida Literária”. O periódico também publicou, em folhetins, livros clássicos, como Irmãos Karamazov (1944-1945), de Dostoiévisk e romances inéditos, a exemplo de Jacuba, Juazeiro da Lordeza (1941), romance do poeta e crítico Wilson Lins, que também foi um dos diretores do jornal. Dentre as colunas mais duradouras d’O Imparcial podem ser destacadas “Seção das Crianças”, ”Crônica Social”, “Vida Social” e “Página de Ala”, por conviverem simultaneamente com outras colunas de literatura. Esta última, veiculada entre 1938 e 1942, destacou-se por articular um projeto para a cultura e a literatura da Bahia, organizado em torno de contatos que formariam mais tarde o movimento “Ala” (Movimento das Letras e das Artes). Houve sucessão entre duas dessas colunas. À seção “Crônica Social” sucede-se “Vida Social”, caracterizada pela mudança de foco ao abrir espaço não apenas para textos sobre acontecimentos da sociedade e formaturas, mas para as contribuições que demonstravam uma estética que promovia o diálogo sensível entre a descrição de acontecimentos da história cultural e política com a literatura, através da crônica e da crítica sobre assuntos locais e nacionais. A autoria da maior parte desses textos é do pseudônimo de M. Paulo Filho, João Paraguaçu, responsável pelos melhores momentos dessa coluna n’O Imparcial. 3 O JOÃO PARAGUAÇU DO BRASIL LITERÁRIO E POLÍTICO N’O IMPARCIAL: RECORTES João Paraguaçu publicou suas tiras n’O Imparcial, na coluna “Vida Social”, entre 1936 e 1944. São, em sentido imediato, relatos supostamente vivenciais do autor sobre fatos históricos, notícias, opiniões ou assuntos de interesse nacional.

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Os textos extrapolam naturalmente o caráter descritivo e objetivo durante a narração e caracterização das personagens/figuras, em tom confessional e objetivo, através de um diálogo com o leitor. Os escritos avançam, portanto, de certa superficialidade literária ― que poderia ser atribuída ao caráter notadamente documental ― para registros de valor cultural considerável, identificado pelo diálogo estético entre literatura e documento, inscrito e transcrito nas produções do autor veiculadas na coluna “Vida Social”. O jornalístico, o político e o literário não apenas perpassam a escrita do cronista e articulista João Paraguaçu, mas se integram ao tratar de figuras capitais para a memória do governo e da cultura brasileiros. É assim, por exemplo, no conjunto de textos sobre Ruy Barbosa, nos quais a personalidade política permanece na mente dos leitores através das histórias contadas n’O Imparcial durante os anos de 1937 e 1939. Algumas crônicas da série, “Rui e o principe dos poetas” i, “Ruy no Collegio Abilio” ii, “Rui no Senado”

iii

, “Rui e as crianças” iv, e mesmo a

distinção entre “Rui na Academia” v e “Rui e a Academia” vi ― estas últimas publicadas no intervalo de 46 dias ―, apresentam elementos biográficos aliados à expressão de uma memória sabidamente veiculada num periódico, objeto cujo acesso é, por objetivo e sobrevivência, coletivo. Dada a importância política de Ruy Barbosa na primeira metade do século XX, a publicação das crônicas evidenciam também a manutenção de uma consciência política ainda presente em alguns grupos da época. Por isso, “[...]. A lembrança de Rui, nas crônicas históricas, objetiva manter uma memória pessoal e uma visão de mundo política ainda vivas” vii. O tom de ironia e humor normalmente está na ordem do dia em crônicas como “As aulas de Benjamim”

viii

, na qual se aborda a figura de Benjamin Constant no papel

de professor, relatada a partir do livro de memórias de um de seus alunos, Medeiros e Albuquerque. O enterro de um dos mais importantes poetas brasileiros, Olavo Bilac, também foi registrado por João Paraguaçu. Ao observar a saída do cortejo, as conversas quase mudas e as dissensões políticas entre os que acompanhavam o morto, o relato do cronista institui a relação figura-texto-estilo com todo o ambiente de funeral em meio à “tarde de chuva fraca e melancólica, essa de 29 de dezembro de 1918” ix. O texto pode figurar num livro escolar, por exemplo, não apenas pelo acontecimento importante para a literatura nacional, mas pela forma como é apresentado em todos os nuances complexos de veracidade que envolvem a percepção de mundo captada pelo cronista e à

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tessitura infundida ao conteúdo pela necessidade de expressar de maneira única – ao modo da literatura – o fato contado. O tom crítico pode ser verificado em textos como “Casimiro e outros” x, no qual se questiona a falta de interesse das livrarias brasileiras em publicar livros biográficos sobre “homens ilustres, notavelmente artistas” xi. De modo geral, os textos seguem uma formulação discursiva logo percebida, justificada pelo cunho descritivo inerente à coluna: parte-se de algum fato, questão, personalidade histórica ou cultural, no qual o diálogo com a realidade, a primeiro momento verídico, é tecido no discorrer sobre aspectos dos pormenores do acontecido, a um nível de ironia normalmente sutil e espirituoso. A inserção desses textos na coluna “Vida Social” pressupõe a existência de uma ligação entre arte e vida às mãos do escritor, para discorrer breve, mas agudamente, sobre os interstícios da sociedade pela via do inteligível e literário. Assim, as notícias e informações vivenciadas, escutadas ou sabidas por M. Paulo Filho eram registradas ficcionalmente por João Paraguaçú, não apenas n’O Imparcial baiano, mas em outros periódicos nacionais. O mesmo Paraguaçu publicou textos no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, dirigido por M. Paulo Filho, e lançou Memórias de João Paraguassú, um livro de crônicas no qual transcreveu a infância na cidade baiana de Cachoeira e alguns testemunhos ao longo da vida pública. 4 HISTÓRIA, FICÇÃO E CULTURA: “AS AULAS DE BENJAMIN” N’O IMPARCIAL A crônica “As aulas de Benjamin” foi publicada na página 2, coluna “Vida Social”, edição 3901, do jornal baiano O Imparcial em 18 de fevereiro de 1943. A narrativa apresenta um diálogo com o jornalista, professor, pensador, ensaísta e conferencista Ivan Lins (Ivan Monteiro de Barros Lins ― 1904-1975). A conversa entre os dois, no momento destacado pelo texto, abordava o trabalho de Ivan: uma pesquisa para a comemoração do centenário nascimento de Benjamin Constant (1836-1891), um dos nomes mais importantes no processo republicano, chamado de “fundador da República” brasileira. Ivan Lins cita algumas histórias sobre o mau professor que Constant foi ― provavelmente a primeira delas, de Medeiros e Albuquerque, um dos

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alunos de Constant, caracteriza sua orientação positivista e a influência dessa corrente científica na formação acadêmica da época: ― Não são poucas as inépcias que se têm articulado a respeito de Benjamin, explicou-me Ivan Lins, das quais a que teve maior voga foi a de Medeiros e Albuquerque, nas suas “Memórias”. Disse êle que Benjamin “como professor era detestável; além disto, admitia, perfeitamente, que de objetos pôdres nascessem ratos”. Foi Medeiros, tanto quanto pude até agora averiguar, o primeiro a dar curso a estas invencionices, de resto invalidadas pelo tom leviano de quem andava a catar episódios mais ou menos divertidos para o seu livro. xii

Como podemos perceber pelo trecho, a memória do valorizado militar, engenheiro, professor e estadista brasileiro não é reavaliada no relato do pesquisador Ivan Lins ― também adepto ao positivismo. Ele desqualifica como verdade o que foi descrito nas “Memórias” de um dos discentes da turma ensinada por Constant. Através de outros depoimentos, o conhecido de Paraguaçu reafirma a figura prestigiada do professor, orador e articulador minucioso e clarividente, à qual se conjuga a empatia causada no efeito “mágico” das aulas. Lins utiliza o relato de um dos ex-alunos do professor, Tasso Fragoso: [...] Em vez de uma sequência monótona de axiomas, teoremas e corolários ouvia-se-lhe primeiro, com imenso deleite, uma exposição sintética de assunto sôbre que esvoaçava, arrebatando-nos com a magia de seu raciocínio convincente e de sua linguagem apurada, enchendo-nos de verdadeira fascinação. Quando, depois, passava às fórmulas e mandava escrever na pedra letras, número ou figuras, já tínhamos perfeita idéia da paisagem de que entrávamos a examinar, com vivo interêsse, as minúcias. Qualquer que fôsse a matéria ― geometria, cálculo, mecânica ― o método era sempre o mesmo. xiii

As afirmações no discurso de Medeiros e Albuquerque são contra-argumentadas por Ivan Lins por meio da falta de atenção do estudante às aulas, motivada pelo real motivo da frequência: “paquerar as colegas da Escola Normal” ― relatado, inclusive, pelo próprio estudante. Após se despedir, Paraguaçu pensa sobre o comportamento do estudante e finaliza a crônica com uma inferência sobre o porquê do relato depreciativo nas “Memórias”:

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[...] Pus-me a refletir um instante, nas suas palavras. Medeiros era ágil, engenhoso e tinha graça no que escrevia. Em verdade, porém, o aluno despreparado, que vai a uma aula para namorar às colegas, não deixa de achar seu professor um sujeito incômodo e até enfadonho... xiv

A análise do texto permite identificar que, num encontro entre duas pessoas, Paraguaçu e Ivan Lins, há ao resgate da memória de um personagem histórico brasileiro. Logo, a publicação tem um caráter meta-histórico. As crônicas são constituídas por situações cotidianas, vivenciadas nos bastidores da vida social, política e literária; são, assim, registradas pelo cronista, mas libertadas da superficialidade documental comumente atribuída aos textos jornalísticos. Pelo estilo e referencialidade na memória e história, as produções do pseudônimo de M. Paulo Filho apresentam-se singulares não apenas pela coluna em que são publicados, mas pelo estilo com o qual nos insere (leitores) no acontecimento, além do caráter irônico das condições e contradições inerentes ao fato, absorvidos pelo gênero. 5 “RESSURREIÇÃO”: JOÃO PARAGUAÇU NOS ENTERROS DE BILAC O cronista publica n’O Imparcial, (coluna “Vida Social”) em 31 de dezembro de 1939, a crônica “O enterro do poeta”

xv

, dois dias após o aniversário de 20 anos de

falecimento de Olavo Bilac. No texto, é descrita a passagem do cortejo que leva o corpo do vate para o cemitério. O cronista se localiza, segundo o texto, numa das esquinas por onde passou a multidão de admiradores que acompanhavam o caixão: “Vi quando saiu o enterro de Olavo Bilac. Eu me achava com Antonio Torres no saguão do Silogeu, à esquina da rua Teixeira de Freitas com a praia da Lapa, transformado o local em câmara ardente.”

xvi

. Assim começa a crônica, seguida pela descrição das relações do próprio

autor com alguns dos presentes, sua ciência sobre certas dissensões políticas da época e algumas percepções do ambiente, espaço instituído pela narrativa. O enterro de um grande poeta brasileiro, nominado “príncipe dos poetas”, registra, entre as condolências distribuídas entre os que estão ao caixão, membros da academia, literatos e demais autoridades da época, a tensão entre políticos Ruy Barbosa e Delfim Moreira (então presidente da República). Ao longo do texto, o cronista apresenta outra perspectiva

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quanto ao conteúdo meramente documental: [...] Ambos estavam brigados recentemente por causa de uma intrigalhada nas competições eleitorais da Bahia. Rui queria uma intervenção, que o outro recusara. Ocorrera, então, poucos dias antes, um debate áspero entre o estadista mineiro e o egrégio jurisconsulto e cidadão americano. Ali, porém, num momento tão melancólico, permaneciam unidos e solidários pela mesma desolação. [...] Minhas atenções, entretanto, concentravam-se em Delfim e Rui. A morte de um poeta operava o milagre de juntá-los naquele momento, a eles que os desesperos de uma política sem entranhas acabavam de separar de maneira tão espetaculosa e cruel. xvii

A desolação une os dois políticos em torno do funeral do poeta conhecido pela notável estética parnasiana. Nesse sentido, o acontecimento expande a relação entre a realidade e a significação do fato registrado e “o poeta” insere sensações que descobrem a relação com o ambiente, estimulando a sensibilidade do leitor a compreender todo o entorno do espaço – ao modo próprio do cronista. A publicação da tira na seção “Vida Social” da véspera do ano de 1940 permite inferir que a morte de Olavo Bilac foi registrada para atentar não apenas para ao fato. Através da leitura dos trechos seguintes, e memória sobre o poeta funde-se aos acontecimentos e percepções de mundo do cronista, transformando o texto numa importante homenagem através da escrita. Entretanto, o mesmo texto enceta as atenções do cronista para a questão política. Ao lado do relato de que a multidão acompanhava o enterro tem-se um clima de animosidade entre dois políticos da época. A morte do Olavo Bilac é fundo também para documentar as brigas políticas da época, simbolizadas pelo baiano Ruy Barbosa (Rui alguns textos) e Delfim Moreira. O título da crônica, “No enterro do poeta” pode apontar as predominâncias do ponto de vista aplicado ao texto. O narrador está focalizando um fato ― importante para a memória literária nacional ― e ao mesmo tempo mantendo-o como partícipe e atenuador de disputas políticas na época, além, provavelmente, de contextualizar literariamente no periódico as questões políticas vivenciadas nas relações do jornalismo com a sociedade e a cultura. O texto estabelece um diálogo com a realidade que emerge a cada linha que se lê. No entanto, seria apenas mais uma versão dos fatos registrada numa coluna de jornal? O escrito registra uma sequência única de significantes sob determinado encadeamento de ideias, oriundas das leituras, conversas, dúvidas motivadoras etc., ou 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 130-143.

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seja, vivências marcadas historicamente pela visão de mundo do escritor. O mesmo fato poderia ser registrado de outra maneira. João Paraguaçu publicou em livro outra crônica sobre o enterro de Olavo Bilac. Memórias de João Paraguassú (1964) apresenta a crônica “No entêrro de Bilac”

xviii

.

Nesta, há algumas discrepâncias em relação à publicação no jornal baiano. Uma das mais importantes é que, na crônica publicada n’O Imparcial, o então presidente Delfim Moreira segurou no caixão do “Príncipe dos Poetas Brasileiros” junto com o recémdesafeto, Ruy Barbosa: “Eu reparava nas figuras que se adiantavam para pegar nas alças do caixão. Delfim Moreira, que era o presidente da República, foi o primeiro a segurála, à direita, na cabeceira. Seguiu-se Rui Barbosa, tomando-as, à esquerda.” xix. No texto do livro, quem se encontra com o influente político baiano é o representante de Delfim Moreira, “que era o Vice-Presidente da República”

xx

. O cronista comenta que Ruy,

então presidente da Academia Brasileira de Letras, e o secretário geral da instituição, Domício, “[...] já estavam de relações estremecidas, [e] seguraram as alças de frente do caixão” xxi. Essas informações não correspondem totalmente às registradas vinte e cinco anos antes n’O Imparcial. Destarte, as duas publicações se apresentam como versões de uma realidade, fato ou assunto, à qual o autor não se furtou acrescer laivos de ficção, como diz na “Explicação” (introdução) às Memórias de João Paraguassú: [...] Recolhi impressões. Fixei individualidades. Guardei apontamentos. E são alguns dêstes, recompostos fielmente na medida do possível, que se vão ler adiante. Outros virão em edição posterior. Sejam como forem, nem intriga, nem perfídia, nem injúria, nem calúnia. Quod Deus averat! Apenas uma tal ou qual malícia de sorriso amável que me pareceu necessária para dar a estas reminiscências um certo sabor literário. Creio que o tempêro é inofensivo. xxii

A afirmação de Manoel Paulo Filho, ortônimo de João Paraguaçu, não apenas embasa a feitura de cada um dos textos sobre o funeral de Olavo Bilac como também orienta a análise de seus demais textos como obra de literatura, história, memória e ficção. Sendo elementos da cultura, documentados em textos cronísticos, ensaísticos e críticos através da reminiscência, essas quatro formas de conhecimento são consolidadas nos textos. Assim, as duas publicações, de Paraguaçu e Paulo Filho, atestam que “malícia de sorriso amável” realmente dá ao texto o caráter “inofensivo” de uma leitura interessante e interessada, engajada em transformar fatos da cultura e da 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 130-143.

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sociedade em literatura, na cotidianidade de uma coluna jornalística e num livro de memórias.

6 JOÃO PARAGUAÇU, CASIMIRO DE ABREU E OUTROS Em textos como “Casimiro e outros”

xxiii

, no qual se questiona a falta de

interesse das livrarias brasileiras em publicar livros biográficos sobre “homens ilustres, notavelmente artistas”, a relação entre literatura e sociedade apresenta fatos que referenciam os cânones de uma nova maneira. O cotidiano dos escritores é apresentado em fatos relacionados às relações entre literatura e política ― sem deixar de se valorizar, na expressão escrita, o “certo sabor literário” dito por M. Paulo Filho.

No centenário do nascimento de Casimiro de Abreu, perguntava-se, ante-hontem, porque as livrarias brasileiras não exploram a indústria literária com a vida amorosa de alguns dos nossos homens ilustres, notadamente artistas [...]. ....................................................................................................... [...] O único que escapou ― e disso soube aproveitar-se o sr. Pedro Calmon ― foi Castro Alves [...]. ....................................................................................................... E os outros? Nem mesmo os da geração parnasiana, que sucedeu ao Romantismo. xxiv

Assim como as crônicas sobre o funeral de Olavo Bilac e “As aulas de Benjamin”, esse texto marca não apenas pelo acontecimento/assunto importante para a literatura nacional, mas como é apresentado, a maneira pela qual se forma e pelos aspectos abordados. A data que marca o centésimo ano de nascimento de Casimiro de Abreu promove o questionamento a respeito da valorização da literatura nacional. De maneira leve e despretensiosa, o texto incentiva o mercado editorial brasileiro a partir do fomento à pesquisa e publicação de biografias sobre as personalidades mais importantes da literatura. Sugere-se, de maneira irônica, uma nova área para vendas de livros brasileiros. Essa sugestão permite o levantamento e a reflexão sobre a literatura brasileira em relação à literatura estrangeira. Estabelece-se uma comparação entre as publicações sobre a biografia de Musset, Stendhal, Victor Hugo e Augusto Comte, além de propor publicações sobre algumas personalidades brasileiras prestigiadas no universo da arte literária. Duas perguntas sobre a questão permeiam esta narrativa ensaística 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 130-143.

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crítica, através de um único trecho: Mas, como fazer a mesma coisa no Brasil? Como encontrar archivos e documentos que habilitem o critico-biographo indigena recordar, de minucia em minucia, os amôres de Alvares de Azevedo, de Gonçalves dias, de Antônio José de Fagundes Varel’a e dos outros? xxv

Casimiro de Abreu é colocado ao lado de Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias e Fagundes Varela como grandes nomes da literatura brasileira, cuja história pessoal poderia propiciar grandes vendas. No(s) texto(s) de João Paraguaçu, o cronista capta todos os nuances complexos de veracidade se envolvem na percepção de mundo. Desse modo, fatos e pensamentos que se perdem são acrescidos à tessitura do conteúdo pela necessidade de expressar de maneira única ― ao modo da literatura ― o fato contado, além do universo literário e político em pleno estado construção ficcional e de cultura, pela escrita no jornal. O tom crítico em “Casimiro e outros” pode ser percebido como um dos mais contundentes traços desse texto de João Paraguaçu, pois depreende-se que o autor descreve pensamentos sobre determinado tema, posições e queixas sobre a constatação de que, na literatura então publicada (1937), não seja valorizada a vida dos artistas brasileiros, suas biografias ― a exemplo do que já havia sendo uma prática em outros países, principalmente na França. A única exceção a que o autor se reporta é Castro Alves, que pode gozar de fama e ser amado pelo público, em geral, ainda vivo, não por ter sido biografado em vida, mas porque foi consagrado exclusivamente pela sua produção literária: “O único que escapou ― e disso soube aproveitar-se o sr. Pedro Calmon ― foi Castro Alves. Este sim, teve existencia romanesca, amou e foi amado. Apontam-se-lhe as namoradas. Sabe-se como elle soffreu.”xxvi. O texto apresenta uma perspectiva sobre essa questão em dois momentos subsequentes na literatura nacional. Castro Alves é posto como exemplo precário de uma biografia que se conhece não pela ação editorial de publicar um livro de cunho biográfico, mas pelas produções e experiências do próprio poeta em vida. Na precariedade do fato em relação à crítica de Paraguaçu, nem romantismo nem realismo, vertentes literárias presentes na maior parte do século XIX, puderam estimular o mercado editorial brasileiro ― que, inclusive, obteve crescimento fundamental nos oitocentos ― a publicar biografias de nossos literatos.

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7 CONCLUSÃO

Os textos de João Paraguaçu apresentados neste trabalho deslindam sua importância pelos fatos cotidianos nos quais se vivencia a influência da literatura enquanto registro cultural literário da vida política, social e econômica do Brasil. Os textos sobre o funeral do “Príncipe dos Poetas” e os demais contam histórias que, se não são totalmente ficções, não se pode contestar a o caráter de verossimilhança. São textos que trazem à tona uma realidade que “aparentemente” pouco tem de importância em relação uma análise de texto literário. Esse “aparentemente” se converte em incoerência quando percebemos que há uma literatura que se reporta ao cotidiano da vida literária, do cotidiano dos escritores, com as consequências sociais de sua ação e prestígio literário. Tais textos podem ajudar a compreender mais apuradamente os meandros da vida literária, servindo como um dos aportes ― a exemplo, claro, da própria obra, escritor e estética literária ― para uma pesquisa ligada aos estudos de literatura. Os textos de João Paraguaçu encontram uma espécie de “metáfora de realidade”, literária, para a vida social, e, consequentemente, para sua a possível convivência com outras formas de analisar e valorizar textos literários. Como todo texto ao qual se atribui a denominação de literatura e exemplo de trabalho ficcional, iniciamos os estudos e pesquisas sobre os textos do cronista e ensaísta baiano enquanto produção de literatura e ― em igual intensidade, pelas propostas de estudo e trabalho ― de cultura, a fim de que passe pelos contingentes crivos de leituras da sociedade e do julgamento do tempo. ________________________ i

Paraguaçu, 1937, p. 2 apud PINHO, 2008, v. 2, p. 263. Paraguassú, 1937, p. 6. iii Paraguaçu, 1938, p. 2 apud PINHO, 2008, v. 2, p. 293. iv Paraguaçu, 1939, p. 7 apud PINHO, 2008, v. 2, p. 340. v Paraguaçu, 1938, p. 7 apud PINHO, 2008, v. 2, p. 295. vi Paraguaçu, 1938, p. 7 apud PINHO, 2008, v. 2, p. 299. vii Pinho, 2008, vol. 1, p. 82. viii Paraguassú, 1943, p. 5. ix Paraguassú, 1939, p. 7. x Paraguassú, 1937, p. 2. xi Paraguassú, 1937, p. 2. xii Paraguassú, 1943, p. 5. xiii Paraguassú, 1943, p. 5. xiv Paraguassú, 1943, p. 5. xv Paraguassú, 1939, p. 7. xvi Paraguassú, 1939, p. 7. xvii Paraguassú, 1939, p. 7. xviii Paulo Filho, 1964, p. 54-55. ii

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Paraguassú, 1939, p. 7. Paulo Filho, 1964, p. 54. xxi Paulo Filho, 1964, p. 54. xxii Paulo Filho, 1964, p. 7, grifo do autor. xxiii Paraguassú, 1937, p. 2. xxiv Paraguassú, 1937, p. 2. xxv Paraguassú, 1937, p. 2. xxvi Paraguassú, 1937, p. 2. xx

RESUMO As crônicas “As aulas de Benjamim”, “Casimiro e outros”, “No entêrro do poeta” e “No enterro de Bilac”, de João Paraguassú (M. Paulo Filho), tematizam literatura, cultura e sociedade brasileiras. Os textos, publicados no jornal baiano O Imparcial, entre 1937 e 1944 (3), e no livro Memórias de João Paraguassú, de 1964 (1), serão vistos como produções de literatura que dialogam diretamente com a realidade da época em que foram escritos, na qual resgatam e articulam história, literatura e política em torno de um escrito curto, direto e informativo. Argumentaremos sobre como as relações entre a Literatura e o Jornal estão configuradas na sociedade, além de suas manifestações na cultura em textos que enfatizam o elo entre a área da literatura e o estilo jornalístico. PALAVRAS-CHAVE: João Paraguassú. Literatura Brasileira. Memória.

ABSTRACT The chronicles of João Paraguassú (M. Paulo Filho) “As aulas de Benjamim”, “Casimiro e outros”, “No entêrro do poeta” and “No enterro de Bilac” thematize literature, culture and society of Brazil. The texts were published in the newspaper O Imparcial between 1937 and 1944 (3) and the book Memórias de João Paraguassú (1964) (1). It shall be regarded as productions of literature that dialogue directly with the reality of the time they were written, rescue and articulate history, literature and politics around a short, direct and informative writing. Argue about the relationship between Literature and the Journal are configured in the society and its manifestations in culture by texts that emphasize the link between the area of literature and journalistic style. KEYWORDS: João Paraguaçu. Brazilian Literature. Memory.

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BIBLIOGRAFIA IVAN LINS. Academia Brasileira de Letras. Disponível em http://www.academia.org.br/abl/ cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=89. Acesso em: 11 out. 2011. PARAGUASSÚ, João. As aulas de Benjamin. O Imparcial, Salvador, 18 fev. 1943. Coluna “Vida Social”, p. 5. ______. Casimiro e outros. O Imparcial, Salvador, 13 jan. 1937. Coluna “Vida Social”. p. 2. ______. No entêrro do poeta. O Imparcial, Salvador, 31 dez. 1939. Coluna “Vida Social”, p. 7. PAULO FILHO, Manoel. Explicação. In: Memórias de João Paraguassú: 1910-1964. Rio de Janeiro: Livraria São José Editora, 1964, p. 7. ______. No enterro de Bilac. In: Memórias de João Paraguassú: 1910-1964. Rio de Janeiro: Livraria São José Editora, 1964, p. 54-55. PINHO, Adeítalo Manoel. Uma história da literatura de jornal: O Imparcial da Bahia. Porto Alegre, 2008. 404 f. (vol.1). Tese (Doutorado em Letras e Linguística). PUCRS, 2008. Disponível em: . Acesso em: 03 fev. 2011. PINHO, Adeítalo Manoel. Uma história da literatura de jornal: O Imparcial da Bahia. Porto Alegre, 2008. 689 f. (vol.2). Tese (Doutorado em Letras e Linguística). PUCRS, 2008. Disponível em: < http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1417>. Acesso em: 03 fev. 2011.

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 130-143.

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O CINEMA DE OLNEY SÃO PAULO: UMA ANÁLISE DE GRITO DA TERRA NO CONTEXTO DO CINEMA NOVO Dinameire Oliveira Carneiro Rios 1 Prof. Dr. Claudio Cledson Novaes2

1 INTRODUÇÃO

O final da década de 1950 e o início da década seguinte, pré-golpe militar, é um período marcado por transformações e por uma forte efervescência em campos diversos da sociedade brasileira. Se politicamente o país sentia a euforia desenvolvimentista dos 50 anos em 5 propostos pelo governo de Juscelino Kubitschek, no plano cultural e artístico assistia à fundação do primeiro Centro Popular de Cultura, ligado à UNE, que por sua vez se encontrava em um momento de intensa participação política e discutindo, à pleno vapor, assuntos ligados ao quadro político e cultural do país. No que diz respeito às questões culturais, esse momento na história do Brasil se caracteriza como um período em que as discussões acerca da nacionalidade e o desenvolvimento do país estavam cada vez mais intensas, estruturadas a partir de uma produção ideológica que subsidiaria as décadas mais fecundas de uma representação artística em específico, o cinema. Sobre esse período artístico afirmam Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves: No terreno da atividade artística, o ambiente de otimismo e de projeção de um salto bem-sucedido para o desenvolvimento estimulava a prática de uma polêmica vanguarda literária ‒ o movimento da poesia concreta ‒ que se dedicava à experimentação de novas linguagens capazes de expressar as feições modernas que se afiguravam na sociedade brasileira. [...] Passava-se, em suma, por um momento estimulante e propício à articulação de uma produção cultural brasileira, capaz de responder em suas diversas áreas ao projeto nacional de desenvolvimento.i

1

Aluna do Programa de Pós-graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana, bolsista FAPESB. 2 Professor Doutor da Universidade Estadual de Feira de Santana, Orientador.

ISBN 978-85-7395-210-0

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É dentro deste fértil terreno que germinam as primeiras sementes daquele que é considerado o principal e mais relevante movimento já ocorrido no cinema brasileiro: o Cinema Novo. Os jovens intelectuais que se reuniam em bares, cafés, livrarias e cineclubes das principais capitais brasileiras, especialmente, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, partiriam para a prática dando início ao Cinema Novo, movimento estéticopolítico com propostas originais que visava construir uma arte revolucionária, engajada em discutir a realidade subdesenvolvida do país, bem como seus problemas mais latentes.

2 AS PROPOSTAS ESTÉTICAS E POLÍTICAS DO CINEMA NOVO

O principal líder do movimento, o cineasta baiano Glauber Rocha, declarava quais eram seus objetivos: “Queremos fazer filmes antiindustriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser um artista comprometido com os grandes problemas do seu tempo; queremos filmes de combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio cultural.”

ii

Empolgados e influenciados pelo Neorrealismo italiano, pela Nouvelle Vague francesa e pela ideias anticolonialistas de autores como Frantz Fanon e Jean Paul Sartre, os cineastas cinemanovistas participaram e opinaram sobre as principais propostas de seu tempo, através de produções que traziam à tona traços e aspectos brasileiros até então desconhecidos do público do nosso cinema. Apesar da produção de alguns filmes que já defendiam ou se relacionavam com ideias que fomentavam a base desse movimento cinematográfico, como foi o caso de Rio 40 Graus, de Nelson Pereira e Aruanda, de Linduarte Noronha, ele é nomeado e lançado por três artigos publicados em 1960: um de Glauber Rocha e dois outros de Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernadet. Os cineastas e participantes ativos do movimento almejavam a superação da alienação, do atraso e da dependência cultural do país através do exercício de reflexão e do questionamento presente na linguagem e nos temas abordados dentro de suas criações fílmicas, pois só assim seria possível desvencilhar-se da condição de um país subdesenvolvido e colonizado culturalmente. É isso que Glauber Rocha propõe, também, em seu primeiro manifesto construído dentro dos parâmetros do Cinema Novo, a Estética da Fome, texto em que o cineasta sugere, entre outras coisas, a desconstrução

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 144-153.

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da concepção europeia de que a América Latina e consequentemente o Brasil seria o locus do primitivismo e da não-civilização, enquanto a Europa representava para o mundo o padrão de civilidade que deveria ser seguido, perpetuando, desta forma, uma mentalidade estritamente colonial. Dentre as diversas discussões englobadas pela produção do Cinema Novo, a região Nordeste e seu aspecto rural ganharam uma notável visibilidade especialmente em seu momento inicial. De acordo com Tolentino (2001) isso se deu principalmente por dois motivos: primeiro por ser esse aspecto do Brasil visto por muitos à época como uma possível reserva de nacionalidade e por ter acontecido nesse período a entrada em cena dos movimentos sociais rurais, fortalecidos pela redemocratização do país a partir do ano de 1946, bem como pelo surgimento das Ligas Camponesas na região Nordeste. Desta forma, temas que eram rejeitados pelo público por mostrar a nós mesmos e ao estrangeiro o nosso lado atrasado e feio, passaram a ser “o sinônimo de brasilidade”. Esse cambiar de posicionamento acontece dentro de uma ampla e complexa conjuntura social, política e cultural e está inserido na dialética de um penoso discurso sobre a formação de nossa identidade. No nosso cinema até meados do século passado “as imagens do Brasil rural produziam desconforto no cinéfilo nacional, que exigia para elas um tratamento, no mínimo, atenuante do que havia de rude, como fazia o nosso principal modelo, o cinema americano, com seus westerns”iii. Mas como aponta, ainda, Célia Tolentino iv para se chegar a essa fase de produção do Cinema Novo, “o cinema brasileiro precisou ganhar em tecnologia, industrializar-se e imitar bem o seu correlato estrangeiro (americano) para poder impor a temática rural para o grande público. E, tal como aquele, afirmá-la como passado, sem vigência, sem tradição”. Apesar das diversas influências externas que recebeu, esse entrelaçamento do cinema nacional a partir da década de 1960 e a nossa ruralidade, tão bem transfigurada na região Nordeste, se materializou através do encontro entre duas artes: o próprio cinema e a literatura, neste caso, a brasileira. É dentro da literatura brasileira, mais especificamente dentro do Modernismo e seu “romance de trinta” que o Cinema Novo encontra “as imagens e enunciados que falavam da “realidade social do país”. Da sua miserabilidade, que vinham ao encontro de sua proposta estética e política.” v

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É através desse diálogo com a literatura de autores como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Américo, José Lins do Rego e Jorge Amado que o cinema vai transpor na tela o lirismo da prosa da geração de 30, mas transcendendo algo muito aquém disso, o Cinema Novo propõe e constrói outras e, em alguns casos, mais densas releituras da realidade brasileira e nordestina que compôs as páginas do romance do início do século XX. Assim, dialoga com o Modernismo também no seu sentido crítico, conscientizador das raízes primitivas do povo brasileiro, além de participar de uma discussão fortemente travada no Brasil da década de 60: a problemática da reforma agrária. É através, também, das inúmeras adaptações de livros conhecidos pelo grande público que o Cinema Novo consolida uma relação mais tênue e congregada com as expectativas desse público diante da tela. Com estratégias sociais e políticas visivelmente marcadas, o Cinema Novo se propõe a ser, então, um discurso que trazia à tona a mais pura realidade nacional, desconstruindo retóricas alienantes e nos fazendo refletir sobre o papel e a conjuntura real e espacial daquele “outro” (o rural, o subalterno, o nordestino, o analfabeto etc.) outrora negado pelo nosso inconsciente. Esse “outro”, representado na literatura, por exemplo, pelo estereótipo do Jeca Tatu de Monteiro Lobato e imortalizado no cinema pelos filmes de Mazzaropi, poderia representar a síntese da “nossa mais profunda brasilidade”vi ou simplesmente o símbolo mais cruel do nosso atraso. E, num momento em que as políticas de Juscelino Kubitschek ansiavam cada vez mais por um desenvolvimento pautado na industrialização, o cinema, assim como outros veículos mais de produção cultural, sentia a necessidade de participar da construção de outra imagem do Brasil, mostrar um rosto que a urbanização buscava, a qualquer custo, obscurecer: A visão até culpada destes homens de classe média (os cineastas cinemanovistas) enche a tela de homens pobres sem defeito, de camponeses injustiçados e esfomeados, de perseguidos pelo hediondo latifundiário e pelos devassos imperialistas. Adora-se este povo mítico, reverencia-se a sua miséria e subdesenvolvimento. Uma classe média em permanente processo de desterritorialização, uma burguesia e um operariado com identidades fragmentárias e sem projetos para o país fazem com que esta esquerda volte suas esperanças para os marginalizados da sociedade, para os párias da nação. [...] vão ao Nordeste e ao campo em busca das forças primitivas da nação, da rebeldia, quase instintiva do povo, como também da sua passividade quase animalesca [...].vii 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 144-153.

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No debate aflorado que havia no Brasil em meados do século XX direcionado à problemática da reforma agrária, Nelson Pereira dos Santos participou dele de forma significativa quando transpôs para as telas o romance Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, indo “além da superfície do texto, além do que nele se pode ver e ler” viii, para representar e criticar a desigualdade social responsável pela miséria e pela fome no país, em especial, no Nordeste. Esse debate ainda seria fomentado e enriquecido por diversas outras produções no decorrer das primeiras décadas da metade do século.

3 GRITO DA TERRA: A RURALIDADE NO CINEMA DE OLNEY SÃO PAULO

Embora o primeiro filme considerado cinemanovista tenha um caráter basicamente urbano, é o aspecto rural que vai predominar durante os primeiro anos desse movimento cinematográfico. Ainda que as propostas do Cinema Novo não tivessem formuladas ou definidas, Linduarte Noronha constrói na Paraíba, no final da década de 50, um filme-documentário que já alinhava-se estético e politicamente com os ideais do movimento, Aruanda, considerado então uma obra de transição. Aruanda, de certa maneira, pela temática que aborda, já prenunciava os rumores presentes em diversos outros filmes que viriam poucos anos depois, como foi o caso de Vidas Secas e Deus e o Diabo na terra do sol. Na produção cinematográfica baiana um filme é considerado pela crítica como o enlace final deste surto rural dentro do Cinema Novo: neste caso considera-se o primeiro longa-metragem do cineasta Olney São Paulo, o filme Grito da terra. Olney São Paulo, cineasta baiano nascido na cidade de Riachão do Jacuípe, realizou ao longo de sua curta carreira, 14 filmes, sob a notável e assumida influência do Neorrealismo italiano e dos westerns norte-americanos. Olney desde muito cedo já manifestava uma veia artística, descoberta posteriormente mais ligada à literatura e ao cinema que qualquer outra arte. Abertamente engajado em discutir a realidade brasileira através de sua obra, esse cineasta buscou representar a conjuntura social e política da época em que foi contemporâneo, de maneira crítica e contextualizada com as mais diversas transformações pelas quais o país passava, de forma que, uma de suas principais realizações, o filme Manhã Cinzenta (1969) lhe rendeu um doloroso processo

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da censura durante a ditadura militar. Este filme é baseado num conto homônimo do próprio Olney escrito em 1966 e a posterior adaptação cinematográfica é considerada um dos pontos máximos da obra do cineasta. Dentro da discussão travada pelo Cinema Novo em relação às questões ligadas à realidade do país, principalmente no diz respeito aos problemas concernentes ao campo nas décadas de 60 e 70, a obra de Olney São Paulo produziu significados não somente dentro do cinema, como também dentro da ficção literária. Seu livro de contos A Antevéspera e O Canto do Sol (1969) traz na sua segunda parte contos relacionados à temática sertaneja, atrelando aspectos já consagrados pela literatura modernista da década de 30, como também retratos e nuanças de um sertão que ainda precisava ser revisto e reinterpretado pelo leitor e pela crítica. Na cinematografia de Olney São Paulo o telúrico vem à tona fortemente a partir de Grito da terra, longa-metragem produzido em 1964, fruto da adaptação da obra homônima do escritor Ciro de Carvalho Leite. Descrevendo o filme como “um filmepoema em que o Homem e a Terra [são] os únicos personagens. Um quase documentário, uma crônica rural. Um depoimento sobre a vida do sertanejo desamparado e explorado”ix Olney, através de Grito da terra, insere sua obra, ainda com mais veemência, dentro de uma das mais latentes discussões da época: a releitura de imagens da realidade brasileira, especialmente a agrária, através das lentes do cinema em consonância com país urbano e industrializado que estava surgindo. É dentro do contexto desse diálogo que o filme de Olney se circunscreve num momento político em que as vozes eram cerceadas, mas a arte tentava imprimir uma retórica que, ainda que alegoricamente, denunciasse uma realidade que não coadunava com a mentalidade, senão da população em geral, mas com a dos intelectuais da época. No plano das questões rurais dentro da cultura brasileira, Grito da terra revela a ligação de seu idealizador com o debate sobre a reforma agrária no Brasil, em voga na época, essa discussão é encenada/representada dentro da película através das famílias de Silvério e Apolinário, sertanejos que, em meio à seca e às pressões dos latifundiários, tentam resistir, bravamente, sobrevivendo na terra, e Sebastião, um fazendeiro que aos poucos almejava adquirir as terras dos pequenos proprietários do local. Esse quadro de posturas divergentes é simbolizado dentro do filme através de duas figuras femininas centrais: Loli, amante de Sebastião e filha de Silvério, que almeja, a qualquer custo,

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deixar o sertão e residir no âmbito “desenvolvido” e urbano e Mariá, filha de Apolinário, que crê na força das raízes do campo e deseja resistir às adversidades que afetam os agricultores. As engrenagens desenvolvidas no interior da trama fazem com que ela dialogue, ainda que de forma tênue, com obras de viés mais político e alcance os liames do messianismo, através de personagens como Mariá e o professor negro, este uma figura emblemática dentro do filme que vê na educação uma das formas de emancipação e de reconhecimento social dos direitos dos trabalhadores rurais e aquela por acreditar na vinda do “cavaleiro [...] em seu cavalo negro ( ou branco, como sugeria o roteiro original do filme) e com as mãos cheias de luz”, entendido pela censura da época como uma referência ao Comunismo, mais especificamente, uma referência à figura de Luis Carlos Prestes. Lançando mão desses recursos dentro da construção da obra cinematográfica, Olney São Paulo inclui seu cinema no que Durval Muniz de Albuquerque Junior diz ser o cinema que: se propõe a representar a realidade em sua essência, me mostrar a realidade do seu tempo e do espaço e não os inventar, limitando o trabalho com a linguagem à busca de formas de maior impacto, de choque junto ao público. Eis a busca da violência primitiva, quase instintivas, em que as formas de “rebeldias primitivas” e de “messianismos religiosos” podiam rapidamente ser direcionadas para um projeto revolucionário. Era preciso revolver a camada de esquecimento produzida pelo discurso dominante [...] x

Embora o elenco do filme contasse com atores já conhecidos pelo grande público, como Helena Ignez, Lucy de Carvalho, João de Sordi e Lídio Silva, o seu idealizador enfrentou problemas de diversas ordens durante a fase de distribuição e exibição. Além de ter uma de suas cenas cortada pela Censura Federal (a cena em que Mariá faz referência ao “cavaleiro do cavalo branco”), sofreu também com o problema da falta de uma rede para exibição nacional. Se a temática central abordada em Grito da terra se alinhava com as propostas de muitos outros filmes do Cinema Novo, a técnica utilizada ainda estava ligada à formação teórica e cinéfila clássica do seu idealizador. A linearidade com que a narrativa é conduzida, a linguagem utilizada, com planos abertos e longos, contrasta, por exemplo, com Manhã Cinzenta (1969), filme produzido por Olney São Paulo já em

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moldes modernos, vanguardistas, se alinhando melhor tecnicamente com as propostas do Cinema Novo, quando comparado ao filme Grito da terra. O sertão baiano se transforma dentro do filme de Olney São Paulo em um dos personagens centrais, servindo de grande palco para a trama que se desenrola no decorrer da narrativa fílmica, dando ênfase ao segundo maior personagem dentro do filme, o homem sertanejo, como sugeriu o próprio cineasta ao afirmar ser seu filme “um filme-poema em que o Homem e a Terra [são] os únicos personagens”.

_________________________ i

Hollanda; Gonçalves, 1984, p. 32-33. Rocha, apud Hollanda; Gonçalves, 1984, p. 37. iii Tolentino, 2001, p.12. iv Idem. v Albuquerque Junior, 2001, p. 272. vi Tolentino, 2001, p.11. vii Albuquerque Junior, 2001, p.275. viii Avellar, 2007, p.35. ix São Paulo apud José, 1999, p.71. x Albuquerque Junior, 2001, p.276. ii

RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise do filme Grito da terra (1964), do escritor e cineasta baiano Olney Alberto São Paulo, em contraposição ao contexto em que foi produzido, período de surgimento do Cinema Novo. Olney São Paulo produziu seu primeiro longa-metragem, Grito da terra (1964), em um período crítico e importante no cenário da cultura nacional, especialmente para o cinema, devido ao surgimento do movimento denominado Cinema Novo, e traz no bojo desta obra importantes discussões que estavam latentes no campo cultural e político daquele momento, como a necessidade de realização de uma reforma agrária no Brasil, a construção de um discurso, principalmente nas produções fílmicas, sobre a região Nordeste, o processo de urbanização da sociedade brasileira, etc. Neste sentido, analisa se como esse primeiro longa-metragem produzido por Olney São Paulo dialoga técnico e tematicamente com outras obras fílmicas produzidas e lançadas dentro desse contexto de preparação e surgimento do Cinema Novo, e neste caso tem-se produções como Aruanda (1959), Vidas Secas (1963), Os fuzis (1963), Deus e o Diabo na terra do sol (1964), e de qual forma o cineasta baiano neste filme Grito da terra esteve preocupado em reiterar e/ou 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 144-153.

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discutir as questões presentes naquela conjuntura da sociedade brasileira e que já estavam sendo debatidas no interior de diversos outros filmes, em especial os engajados com as propostas cinemanovistas. PALAVRAS-CHAVE: Cinema nacional; Grito da terra; Análise em contexto.

ABSTRACT

This paper presents an analysis of the film Grito da terra (1964), writer and filmmaker by Alberto Olney Bahia Sao Paulo, in contrast to the context in which it was produced, the emergence period of Cinema Novo. Olney São Paulo produced his first feature film, Grito da terra (1964), in a critical and important setting of national culture, especially for the film, due to the emergence of the movement known as Cinema Novo, and brings in the midst of this work major discussions that were latent in the cultural and political moment that, as the need to carry out an agrarian reform in Brazil, the construction of a discourse, especially in filmic productions on the Northeast region, the urbanization of Brazilian society, etc.. In this sense it looks like this is the first feature film produced by Olney Sao Paulo and technical dialogue with other thematically filmic works produced and released within this context of preparation and appearance of the Cinema Novo, in which case it has productions as Aruanda (1959), Vidas Secas (1963), Os fuzis (1963), Deus e o Diabo na terra do sol (1964), and which forms of the Bahian filmmaker in this movie scream of the land was concerned to reiterate and / or discuss the issues in that brazilian context society and that were already being discussed within several other films, particularly those engaged with the proposals cinemanovistas. KEYWORDS: National Cinema; Grito da terra; Analysis in context. BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: Editora Massangana, 2001. AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. HOLLANDA, Heloísa Burque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Cultura e Participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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JOSÉ, Angela. Olney São Paulo e a Peleja do Cinema Sertanejo. Rio de Janeiro: Quartet, 1999. LEITE, Ciro de Carvalho. Grito da terra. São Paulo: Lux, 1964. SÃO PAULO, Olney. A Antevéspera e O Canto do Sol - Contos e Novelas. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1969. TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora Unesp, 2001.

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DON JUAN ÀS AVESSAS: A PARÓDIA AMOROSA EM CONFISSÕES DE NARCISO, DE AUTRAN DOURADO

Elis Angela Franco Ferreira Santos1 Alessandra Leilla Borges Gomes 2

Publicado em 1997, ano em que o primeiro livro do escritor, Teia, completava cinquenta anos de editado, Confissões de Narciso apresenta dois narradores: o primeiro em terceira pessoa, representado através de uma escrita em itálico; o segundo, presente na maior parte do romance, aparece em primeira pessoa. Trata-se da história de Tomás de Sousa Albuquerque, poeta e advogado nascido em São Paulo, mas que, aos quarenta anos, mudou-se para Duas Pontes, em Minas Gerais, por sugestão de um amigo, após ter gastado a herança deixada pela avó. Aos sessenta anos, ele decide escrever suas memórias relatando as diversas experiências amorosas por que passou, todas marcadas pela traição, morte ou ciúme. Justamente por causa dos insucessos amorosos, Tomás decide escrever suas memórias em cadernos escolares e, após sua morte, a viúva Sofia procura um editor, tendo em vista a publicação dos escritos do marido. Dividido em dez capítulos — os capítulos levam o nome do número cardinal que representam — em cada um narra-se o relacionamento com uma das mulheres por quem Tomás se apaixonou. O romance apresenta temáticas recorrentes na ficção autraniana: a memória, personagem escritor, a reflexão sobre o fazer literário, personagens perturbadas psicologicamente, suicídio, personagens leitores e o cenário da mítica cidade de Duas Pontes. Em Confissões de Narciso, inúmeros são os intertextos e, tanto as epígrafes, as alusões como os empréstimos são significativos e devem ser observados no sentido de melhor compreender a unidade do romance. O conceito de intertextualidade nasce no interior da Teoria Literária, a partir da definição utilizada pela crítica francesa, Julia Kristeva, ao analisar o dialogismo bakhtiniano. Segundo Kristevai, é com Bakhtin que, 1

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana. 2 Doutora em Estudos Literários (UFMG) e professora de Literatura Portuguesa e Tópicos da Crítica e da Cultura, na Universidade Estadual de Feira de Santana.

ISBN 978-85-7395-210-0

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primeiramente, introduz-se na teoria literária a noção de que um texto se faz a partir do cruzamento entre outros textos. Assim, “[...] todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”ii. Desse modo,

[...] o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade, ou melhor, como intertextualidade; face a esse dialogismo, a noção de “pessoa-sujeito da escritura” começa a se esfumar, para ceder lugar a uma outra, a da “ambivalência da escritura”. iii

A ambivalência seria a relação entre texto e história, sendo que tanto a história pode se inserir no texto, como este naquela. Kristeva propõe a escrita do texto enquanto um mecanismo de reescrita de outros textos, em um jogo de apropriação inovadora em relação aos textos anteriores. Com o conceito de intertextualidade, põe-se em discussão a noção de imanência do significado do texto e a ideia humanista do autor enquanto “[...] fonte original e originadora do sentido fixo e fetichizado do texto” iv. Desse modo, tal conceito auxilia os estudos literários comparativos, já que o sentido da influência é deslocado e não mais entendido como uma relação de dependência, mas como uma prática natural e adequada. O que passa a ser importante a partir da intertextualidade não é atribuição de valor ao intertexto. A proposta é refletir sobre as causas que levaram à retomada do texto, seja na forma de paráfrase, paródia ou citação e quais os atuais sentidos atribuídos ao texto que foi inserido em uma nova temporalidade. Ao se apropriar de textos anteriores, o autor deixa claro suas escolhas, realizando tanto a afirmação do discurso e do estilo, como se afastando deles de maneira crítica. Percebe-se através da teoria da intertextualidade que a prática intertextual é inerente ao texto literário, podendo ocorrer de forma intencional ou através de reminiscências de leituras realizadas anteriormente. Logo no título, Dourado nos apresenta a relação entre o personagem Tomás e o mítico Narciso, relação reforçada na epígrafe retirada d’As metamorfoses, de Ovídio, e que é de grande importância na composição das características do personagem. A epígrafe do primeiro capítulo traz os versos do poeta romântico Casimiro de Abreu: “Oh que saudades eu tenho./ Da aurora da minha vida”. Esses versos são no mínimo irônicos, haja vista que, como veremos posteriormente, Tomás não guarda boas lembranças do passado. O nome do personagem principal nos remete ao poeta árcade, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 154-165.

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Tomás Antônio Gonzaga, que dedicou versos a sua amada Marília, revelando-se um homem apaixonado. O Tomás personagem também é poeta e, assim como o poeta árcade, passou parte de sua vida nas terras mineiras. Vale salientar que ao aludir às personagens de outras obras, Dourado, às vezes, testa o leitor, trocando nomes, confundindo características, como no exemplo a seguir: “De uma certa maneira chego a pensar que me assemelho a Vielhtcháninov, aquele personagem de O eterno marido, de Dostoiévski, que dava ensejo a que suas mulheres o traíssem, forçando-as mesmo”v. Ocorre, porém, que o esposo traído é Pavel Pavlovich e Vielhtcháninov é o amante. No entanto, a suposta confusão ganha sentido se pensarmos que Tomás assume não apenas o papel de traído, mas, ao se relacionar com mulheres comprometidas, torna-se o traidor. Do Dom casmurro de Machado de Assis ele conserva a dúvida da traição, pois não se sabe ao certo se a primeira namorada de Tomás, Amélia, a quem ele julgava parecer moralmente com a Capitu machadiana, o traiu ou se a suspeita não passou de um ato de ciúme. O intertexto ocorre também com o poeta Dante Alighieri, o qual Dourado pôs o nome em uma livraria que tem por dona a senhora Beatrice, uma provável referência a Beatriz da Divina Comédia. Beatrice, senhora casada, é umas das mulheres com quem Tomás tem um relacionamento. A análise dessas relações intertextuais nos ajudará a compreender melhor como Autran Dourado se utiliza dos aspectos da cultura (literária, filosófica, psicanalítica), ao criar uma personagem que vive um processo de busca e que tem esse processo mediado pelas leituras que realiza. Dourado, em um de seus ensaios, afirma: “Ler e parodiar bons autores como exercício, incorporá-los na sua mente, e esquecê-los, para que as imagens, símiles e metáforas deles passem a fazer parte do seu arsenal inconsciente, é um conselho que me permito dar-lhe”

vi

. Em estudo acerca da paródia, Affonso Romano de Sant’Anna

(1991) afirma que, apesar do recurso paródico se configurar como marca nas obras contemporâneas, não se deve concluir que seja um efeito de linguagem recente, mas que está presente entre os gregos, romanos e em produções da Idade Média vii. Apresentando uma breve história do termo paródia, Sant’Anna revela que a institucionalização do termo se deu a partir do séc. XVII, mas, já na Poética de Aristóteles, há referências ao texto paródico, quando o filósofo comenta que Hegemon de Thaso “[...] usou o estilo épico para representar homens não como superiores ao que

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são na vida diária, mas como inferiores”

viii

. Dessa maneira, Hegemon realiza uma

inversão, visto serem a epopeia e a tragédia gêneros destinados aos feitos nobres dos heróis, ao contrário da comédia, que era reservada à representação do popular. Assim, em Aristóteles, a paródia implica descontinuidade. Rastreando a definição do termo, Sant’Anna diz que a “[...] paródia significa uma ode que perverte o sentido de outra ode” ix. Essa definição grega marca a origem musical do termo, pois evidencia um contracanto, uma canção cantada simultaneamente à outra. Em relação à literatura, o autor propõe, a partir das ideias de Shipley, três tipos básicos de paródia: a paródia formal (alteração do estilo e efeito técnicos), a verbal (alteração de palavras) e a temática (caricatura da forma e do espírito do autor)x. Ao situar a paródia enquanto um dos recursos intertextuais, o autor a diferencia da estilização. Para ele, a estilização apresentaria um desvio tolerável, ou seja, “[...] seria o máximo de inovação que um texto poderia admitir sem que se lhe subverta, perverta ou inverta o sentido. Seria a quantidade de transformações que o texto pode tolerar mantendo-se fiel ao paradigma inicial” xi. Segundo Bakhtin, “[...] o importante para o estilizador é o conjunto de procedimentos de discursos de uma outra pessoa precisamente como expressão de um ponto de vista específico”xii. Dando prosseguimentos as suas reflexões, Sant’Anna elenca ainda outros conceitos relacionados ao estudo intertextual: o de paráfrase e o de apropriação. Elencando as particularidades de cada conceito, o autor nos diz que a paráfrase “[...] repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma”

xiii

. Ou

ainda, “Enquanto a paráfrase é o discurso em repouso, e a estilização é a movimentação do discurso, a paródia é o discurso em progresso” xiv. Ainda para Bakhtin, tanto na estilização como na paródia [...] o autor fala a linguagem do outro, porém, diferentemente da estilização, reveste essa linguagem de orientação semântica diametralmente oposta à orientação do outro. A segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entra duas vozes. xv

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Problematizando o conceito de estilização de Bakhtin, Sant”Anna propõe um novo modelo, não mais dual, mas triádico: a paráfrase como um pró-estilo e a paródia como contra-estilo. Nesse modelo, tanto a paráfrase como a paródia aparecem como um processo de estilização, [...] isto equivale a dizer que a estilização é uma técnica geral, e a paródia e a paráfrase seriam efeitos particulares. É necessário, por isto, diferenciar efeito e técnica. E, para esclarecer, em outros termos, pode-se dizer que a estilização é o meio, o artifício (= técnica), e a paródia e a paráfrase são o fim, o resultado (= efeito). xvi

Acerca da apropriação, o autor evidencia que foi uma prática advinda das artes plásticas, sobretudo das experiências realizadas pelos dadaístas, no início do século XX, e retomadas pela pop art, na década de 1960xvii. Em termos literários, tem-se a apropriação quando um escritor transcreve o texto alheio, sem nenhuma indicação de autoria, o que se configura, segundo Sant’Anna, como um plágio. O que na verdade a apropriação desloca é o sentido de autoria, de propriedade do texto. Além disso, um texto que contenha apropriações intencionais, que motivem um sentido específico na totalidade textual, exige um leitor apto para identificar o texto apropriado, ou, do contrário, parte do sentido da apropriação se perde. A noção de autor parte do princípio de que exista um sujeito criador e sua assinatura demarca uma propriedade, legitimada por uma prática considerada autêntica. Mapeando a origem do termo autor, Hansen xviii afirma que ele deriva da forma latina auctore(m), significando em latim arcaico uma produção a partir de si mesmo e, em latim clássico, crescer. Desse modo “A significação genérica de auctor é, assim, / o que faz crescer/, mas também / o que faz surgir; o que produz”

xix

. Segundo Hansen, a partir

do século XVIII, passou-se a relacionar a produção do autor a uma prática envolvendo a subjetividade, e esse passa a ser visto enquanto artista, ou seja, indivíduo capaz de produzir originalmente. A novidade posta em circulação é o artista como originalidade de autor: levada pela concorrência a ultrapassar-se a si mesma em cada momento, a originalidade fundamenta a noção de autor como um augusto, áugere que promove a unificação do mundo dividido e a divisão do mundo unificado, gênio no limiar da loucura, da profecia, herói marginal das altas profundezas. xx 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 154-165.

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Com essa nova concepção, tem-se uma diferenciação em relação à Antiguidade, em que o autor era visto como o artífice, aquele que realizava com habilidade alguma técnica (ars). A partir da noção da presença e originalidade do autor, o artífice é visto como inferior e sua produção como resultante de um trabalho mecânico e sem originalidadexxi, assim, a produção do autor/artista se distingue da do artífice, pois evidencia a questão da autoria e da propriedade. Mas a ideia de autor enquanto detentor de uma originalidade foi posta em xeque pela crítica literária desenvolvida na França nos anos 60 e 70 do século passado, que “Opõe-se radicalmente a ‘criação’ e anula o autor como subjetividade na obra”

xxii

.

Roland Barthes chegou até mesmo a decretar a morte do autor, em um ensaio em que “[...] propõe que a escritura, como destruição de toda origem, também destrói toda identidade, a começar pela do corpo que escreve”

xxiii

. Ao anular a presença do autor,

tem-se a escritura enquanto [...] prática transgressiva, basicamente; assim, desloca-se para o leitor a função autoral, que deve realizar um sentido à custa da morte do autor como presença. Tal leitor é “um qualquer”, uma casa vazia indicada por um pronome pessoal e sujeita a múltiplas apropriações que, tendo uma função escritural, de scriptor, têm uma função produtiva.xxiv

Resumindo os conceitos propostos por Sant’Anna, temos: [...] a paródia deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou sentido. Já a paráfrase reafirma os ingredientes do texto primeiro conformando seu sentido. Enquanto a estilização reforma esmaecendo, apagando a forma, mas sem modificação essencial da estrutura. xxv

Desse modo, compreende-se que enquanto na paráfrase, o deslocamento é mínimo e a intenção é a da continuidade das ideias do texto anterior, na paródia temos, de certa maneira, uma descontinuidade. É justamente essa descontinuidade que percebemos em Confissões de Narciso, visto que Dourado, ao retomar os mitos de Narciso e Don Juan, cria um personagem que, ao contrário do Narciso da fábula, se entrega diversas vezes ao amor e, diferentemente do sedutor Don Juan, é traído ou

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abandonado pelas mulheres. Apesar de se dizer parecido com o Werther de Goethe, Tomás, não se mostra um autêntico romântico como aquele, já que, enquanto Werther cometeu o suicídio por não ser correspondido em seu primeiro amor, Tomás sofre com as desilusões, no entanto, seu suicídio só ocorre aos sessenta anos. Em Poética do pós-modernismo (1991) Linda Hutcheon, ao analisar a prática paródica na pós-modernidade, tanto na arquitetura, literatura, como em outras práticas artísticas, não se refere à paródia enquanto “[...] imitação ridicularizadora das teorias e das definições padronizadas que se originam das definições de humor do século XVIII” xxvi

. Ela redefine a paródia “[...] como uma repetição com distância crítica que permite a

indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança”

xxvii

. Desse modo, a

paródia não funcionaria como “[...] destruição do passado; na verdade, parodiar é sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo” xxviii. A sacralização se dá pelo fato de que, para realizar a crítica, faz-se necessário retomar a obra que se quer questionar. Assim, a paródia promove a permanência da produção anterior, ainda que dela se distancie criticamente. Em certo sentido, a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia. Ela também obriga a uma reconsideração da idéia de origem ou originalidade, idéia compatível com outros questionamentos pós-modernos sobre os pressupostos do humanismo liberal [...]. xxix

Como evidencia Hutcheon, Fredric Jameson optou pelo termo pastiche, entendendo este como a retomada de outros textos visando à continuidade e não ao desvio, já “[...] que ele (por estar preso a uma definição de paródia como imitação ridicularizadora) considera [o pastiche] como uma paródia neutra ou inexpressiva”

xxx

.

Em “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, Jameson afirma ser o pastiche “Uma das práticas ou traços mais importantes da pós-modernidade [...]” e, assim como a paródia, envolve “[...] imitação ou, melhor ainda, mimetismo de outros estilos [...]” xxxi O conceito de pós-modernidade utilizado pelo autor está relacionado à periodização e à necessidade de analisar os pontos de contato entre o surgimento de novas marcas formais nas produções culturais, ao mesmo tempo em que se tem um novo tipo de vida social atrelada a uma nova ordem econômica, a qual é “[...] chamada,

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freqüente e eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial ou sociedade de consumo, sociedade dos mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional” xxxii. Jameson (1996), ao analisar as modificações sócio-político-econômicas na modernidade, vai mostrar os efeitos dessas modificações nas produções artísticas, sobretudo no campo das letras. Sua opinião é de que na pós-modernidade há um comprometimento na questão da autoria, pois, com o desaparecimento do sujeito individual, perde-se também o desejo por criação original, marca dos escritores românticos, reforçada pelos modernistas xxxiii. Desse modo, se o sujeito criador já não preza por representar suas idiossincrasias visto ter perdido seu espaço na criação artística, torna-se favorável à realização do pastiche dos estilos consagrados. Jameson acredita ser o pastiche fruto da incapacidade dos sujeitos compreenderem a temporalidade e organizarem passado e futuro de forma a gerar uma experiência coerentexxxiv. Assim, segundo o autor, fica bastante difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não “um amontoado de fragmentos” e uma prática da heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatórioxxxv. Dessa maneira, ao visualizar o pastiche como decorrência do capitalismo tardio, Jameson atribui a essa técnica intertextual um caráter negativo. Selecionamos um trecho do romance Confissões de Narciso para exemplificar uma das práticas intertextuais utilizadas por Autran Dourado. Para a análise dos trechos a seguir, optamos por usar o termo empréstimo, em vez de pastiche ou apropriação, visto que Jamenson atribui um caráter negativo à prática do pastiche, e Santana compara a apropriação a um plágio, o que, em relação à obra em estudo, não concordamos ser o caso. I Farei todo o esforço possível para ser objetivo, eu que sou dado aos vôos das divagações desnecessárias. É preciso silenciar o coração, que acredita ter muito a dizer, e procurar a objetividade que devem ter as coisas escritas, mesmo quando se descrevem coisas delirantes [...]. xxxvi II Faço todos os esforços possíveis para ser frio. Desejo impor silêncio a meu coração, que imagina ter muito a falar. Sempre tremo ante a idéia de só vir a escrever um suspiro, quando imagino ter anotado uma verdade. xxxvii 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 154-165.

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Percebe-se através dos trechos acima que o autor transcreveu, quase que fielmente, um trecho do livro Do amor, de Stendhal, autor valorizado por Dourado (2009). Essa obra, citada diversas vezes no romance, serve para embasar a concepção que o narrador personagem tem sobre a paixão, além de se apropriar dos conceitos de “cristalização” e “descristalização”, cunhados por Stendhal. Aqui o empréstimo não funciona como um plágio (SANT’ANNA, 1991), pois, provavelmente, pelas alusões realizadas no romance, Dourado não tem interesse em esconder os intertextos que realiza. Ele surge como uma maneira de trazer para o texto o estilo já citado, o que, necessariamente, exige um leitor apto a identificar a textualidade do passado no texto atual, pois, “A não depreensão do texto-fonte, nesses casos, empobrece a leitura ou praticamente impossibilita a construção de sentidos próximos àqueles previstos na proposta de sentido do locutor” xxxviii. A prática dialógica realizada por Dourado no romance em estudo é analisada sobre a perspectiva da criação/recriação, e enquanto técnicas utilizadas de forma consciente, por um autor com anos de experiência literária e vasta fortuna crítica. A construção do romance nos leva a refletir como a questão autoral é aqui concebida pelo escritor, já que ele não se contenta apenas com a intertextualidade implícita, mas assume explicitamente as fontes nas quais se alimentou para a escrita de Confissões de Narciso, chegando mesmo a se apropriar de um trecho completo de outra obra.

_______________________ i

Kristeva, 1974, p. 64. Kristeva, 1974, p. 64. iii Kristeva, 1974, p. 67. iv Hutcheon, 1991, p. 165. v Dourado, 2000, p.15, itálico do autor. vi Dourado, 2009.p. 35. vii Sant’Anna, 1991. p. 7. viii Sant’Anna, 1991, p.11. ix Brewer apud Sant’Anna, 1991, p. 12 x Sant’Anna, 1991, p 12. xi Sant’Anna, 1991, p. 39 xii Bakhtin, 1997, p. 190. xiii Sant’Anna, 1991, p. 27-28. xiv Sant’Anna, 1991, p. 28. xv Bakhtin, 1997, p. 194. xvi Sant’Anna, 1991, p. 36, itálico do autor. xvii Sant”Anna, 1991, p. 43-44. xviii Hansen,1992, p.16. ii

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xix

Hansen, 1992, p. 16. Hansen, 1992, 18-19. xxi Hansen, 1992, p. 19. xxii Hansen, 1992, p. 29, itálico do autor. xxiii Hansen, 1992, p. 31. xxiv Hansen, 1992, p. 32. xxv Sant’Anna, 1991, p. 41. xxvi Hutecheon, 1991, p. 47 xxvii Hutecheon, 1991, p. 47. xxviii Hutecheon, 1991, p. 165. xxix Hutecheon, 1991, p. 28. xxx Hutecheon, 1991, p. 47. xxxi Jamesen, 1985, p. 18. xxxii Jameson, 1985, p. 17. xxxiii Jameson, 1996, p. 43-44. xxxiv Jameson, 1996, p. 52. xxxv Jameson, 1996, p. 52. xxxvi Dourado, 2001, p. 13. xxxvii Stendhal, 2007, p. 26, grifo do autor. xxxviii Kock; Bentes; Cavalcante, 2007, p. 35. xx

RESUMO

O texto desta comunicação é um recorte da pesquisa, ainda em andamento, intitulada “Don Juan às avessas: as representações do amor em Confissões de Narciso, de Autran Dourado”, realizada no Programa de Pós-gradução em Literatura e Diversidade Cultural, da Universidade Estadual de Feira de Santana. O recorte aqui realizado tem como objetivo divulgar aspectos iniciais da pesquisa, analisando o fazer literário de Autran Dourado no romance em estudo. Em Confissões de Narciso, Dourado, através do diálogo intertextual, buscou na poesia, no teatro, no ensaio e no próprio romance, elementos que favorecessem o desenvolvimento de sua narrativa, em que ironiza alguns modelos amorosos, expondo, assim, sua própria representação do amor. As relações dialógicas ocorrem desde a epígrafe de Casimiro de Abreu à Mitologia grega (poesia de Ovídio), passando pelo teatro (Tirso de Molina, Molière), ensaio (Stendhal) e o romance (Goethe). Para compor o personagem principal e estruturar sua narrativa, Dourado retoma os mitos de Narciso e Don Juan, além de dialogar com O sofrimento do jovemWerther, de Goethe, com Do amor, de Stendhal, entre outros. Buscaremos aqui analisar o pastiche e a paródia no processo de criação dessa narrativa autraniana. PALAVRAS-CHAVE: Autran Dourado. Diálogo intertextual. Processo de criação.

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SUMMARY

The text of this communication is part of a research, still in progress, entitled "Don Juan in reverse: the representation of love in Confessions of Narcissus, of Autran Dourado", conducted in the Post-graduate degree in Literature and Cultural Diversity by State University of Feira de Santana. Cropping done here aims to disseminate initial aspects of the research, analyzing the composite creative literary of Autran Dourado, in the Romance study. In Confessions of Narcissus, Dourado, through intertextual dialogue, sought in poetry, theater, rehearsal and the novel itself, factors favoring the development of his narrative, in which ironically loving models, thereby exposing his own representation of the love. The dialogic relations occur from the title of Casimiro de Abreu to Greek mythology (the poetry of Ovid), through the theater (Tirso of Molina, Moliere), essay (Stendhal) and romance (Goethe). To make the main character and his narrative structure, Dourado takes the myths of Narcissus and Don Juan, and dialogue with the suffering of young Werther of Goethe, with The love of Stendhal, among others. We will try here to analyze the pastiche and parody in the process of creating this narrative autraniana. KEYWORDS: Autran Dourado. Intertextual dialogue. Creation process.

BIBLIOGRAFIA DOURADO, Autran. Breve manual de estilo e romance. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. DOURADO, Autran. Confissões de Narciso. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. DOURADO, Autran. Uma poética de romance: matéria de carpintaria. Ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOSÉ, Luís Jobim (Org.). Palavras da crítica: tendências e conceitos no estudo de literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 11-37 HUTECHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

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JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, v. 12, p. 16-26, jun. 1985. Disponível em Acesso em 21 set. 2011. JAMESON, Fredeic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. KOCK, Ingedore G. Villaça; BENTES, Anna Christina; CAVALCANTE, Mônica Magalhães. São Paulo: Cortez, 2007. KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. In: ______ Introdução à Semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 61-90. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & Cia.4 ed. São Paulo: Ática, 1991. STENDHAL. Do amor. Tradução de Herculano Villas-Boas. Porto Alegre: L&PM, 2007.

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O CONTO, O NARRADOR E A NARRATIVA MODERNA E PÓS-MODERNA EM SILVIANO SANTIAGO E WALTER BENJAMIN

Eliseu Ferreira da Silva

1 INTRODUÇÃO Walter Benjamin no texto inicial do ensaio, O Narrador, deixa claro que “Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais [...]” (BENJAMIN, 1987, p. 197), dito isto, percebemos então que para ele, descrever um “narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele” (BENJAMIN, 1987, p. 197). Para Benjamin, torna-se cada vez mais rara a possibilidade de se encontrar alguém verdadeiramente capaz de historiar algum evento. O medo e o embaraço é frequente quando se faz ouvir num círculo o desejo de que seja narrada uma história qualquer, como se tivessem tirado de todos nós um poder aparentemente inato: a capacidade de se trocarem, através das palavras, as experiências vividas. A arte de narrar esta fadada a extinção segundo o próprio Benjamin.

É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1987, p. 197)

Para Benjamin, uma das causas dessa situação advém do fato de as experiências terem perdido seu valor, visto esta ser transmitida por via oral, a forma primeira do que hoje conhecemos como conto, e fonte originária de todas as narrativas.

ISBN 978-85-7395-210-0

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2 A IMPORTÂNCIA DO NARRADOR E DA NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN E SILVIANO SANTIAGO

Iniciando pelo texto supracitado de Walter Benjamin, onde se destacam esses dois modelos clássicos de narrador, que se penetram mutuamente de múltiplas maneiras, aqui exemplificados pelos seus representantes clássicos, mestres na narrativa, segundo Herrera (apud COUTO, Edvaldo Souza; MILANI DAMIÃO, Carla. 2008 p. 276): pelo camponês sedentário e pelo marinheiro comerciante. O primeiro traz a sabedoria verticalizada no tempo pelo conhecimento de sua terra, suas histórias e tradições. O outro que se desloca no espaço e traz noticias de longe, da vivência dos lugares por onde passou.

Toda e qualquer ligação ao conto Noite de Almirante, no livro Histórias da meia noite, de Machado de Assis não será mera coincidência, neste temos uma história onde o autor ironiza seu personagem ao narrar suas aventuras na tentativa de encantar e reconquistar o seu amor perdido, sendo este esforço inútil. Estabelece-se então um paralelo com o escritor. Benjamin (1987, p. 198), diz-nos ainda que "Quem viaja tem muito que contar", segundo o povo, por isso imagina o narrador como alguém que vem de longe, mas também aquele que ganhou a vida honestamente sem sair do seu local, do seu país e conhece as suas histórias e tradições. “Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas características próprias.” (BENJAMIN, 1987, p. 199). Dessa forma, pode-se considerar a existência de dois principais tipos de narradores: os que viajaram por muitos lugares e os que permaneceram por muito tempo em um único lugar, desencadeando assim nas formas narrativas que se conhecem. Com isso, destaca-se o valor da experiência vivida por alguém e também presenciada como estrutura primordial da narrativa, principalmente a curta, Walter Benjamim afirma que: O grande narrador terá sempre as suas raízes no povo, em primeiro lugar nas camadas artesanais. Mas assim como essas abrangem os artífices camponeses, marítimos e urbanos, nos mais diversos estágios do seu desenvolvimento econômico e técnico, também se graduam muitas vezes os conceitos, nos quais é transmitido o resultado de sua experiência. (BENJAMIN, 1987, p. 214)

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Tomando por base o texto de Silviano Santiago, O Narrador Pós-Moderno, percebemos que ele através da análise dos contos de Edilberto Coutinho, discute e debate qual o papel do narrador pós-moderno em contraposição ao narrador benjaminiano. Ao questionar e “discutir exaustivamente” uma das questões do narrador pós-moderno, que é se “quem narra a história é quem a experimenta ou quem a vê” (SANTIAGO, 1989, p. 38), ou melhor, se é aquele que narra as ações a partir de um conhecimento adquirido, ou a partir de observações acerca desse conhecimento, Santiago diz que num primeiro caso, o narrador transmite a vivência, e no outro ele passa a informação a outra pessoa podendo-se então narrar uma ação dentro e fora dela. Santiago também questiona a autenticidade do narrador a partir do seguinte texto “narro a experiência de jogador de futebol porque sou jogador de futebol; narro as experiências de um jogador de futebol por que acostumei-me a observá-lo.” (SANTIAGO, 1989, p. 38) então temos dois casos de narrativa, a primeira onde a narrativa expressa a experiência de uma ação, e no outro onde temos a experiência proporcionada por um olhar lançado. E num caso a ação é a experiência que temos dela, sendo isso que vai dar autenticidade ao que é relatado, enquanto que no outro, é incerto falarmos de autenticidade porque o que temos é o relato conseguido a partir da observação de outro, um terceiro: O leitor. Ele encerra com um questionamento acerca da noção de autenticidade. “Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que narro e conheço por ter observado?” (SANTIAGO, 1989, p. 38)

Para demonstrar de forma mais clara suas discussões, sobretudo ao falar sobre a ficção de Edilberto Coutinho, Santiago diz que esta, dá um passo a mais no que Benjamin chama de processo de rechaça e distanciamento do narrador clássico, onde segundo o modelo que o mesmo fez da obra de Nikolai Leskov, é este processo que torna o narrador pós-moderno. Benjamin (1987, p. 198) fala ainda que “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” E essa ‘faculdade de intercambiar experiências’ está em baixa principalmente porque “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo” (BENJAMIN, 1987, p.198), e isso tem a ver com a modernização da sociedade, a medida que ela evolui fica mais difícil a troca de experiências vividas e opiniões vivenciadas, já não se narra o que foi experimentado, o que foi vivido e para Benjamin 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 166-175.

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isso está visível ao se abrir um jornal, e percebermos o seu nível cada vez mais baixo da noite pro dia, e as imagens do mundo exterior e do mundo ético que sofreram transformações nunca antes imagináveis. Um exemplo dessa incomunicabilidade e da troca de experiências e vivências pode ser observado ao fim da segunda guerra, quando “os combatentes voltaram mudos do campo de batalha e não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”. (BENJAMIN, 1989, p. 198). Segundo Benjamin, podem-se apresentar três estágios evolutivos da história do narrador. O primeiro estágio é o do narrador clássico, oral, cujo ofício é dar ao seu ouvinte a oportunidade de troca de experiência, segundo Santiago (1989, p. 39), “o único valorizado no ensaio”. O segundo é o do narrador do romance, cujo papel passou a ser a de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor. Neste, o escritor não tem mais o contato/intimidade, e nem uma troca de experiência com seu leitor. E o terceiro é o do narrador como jornalista, ou seja, aquele que ao narrar só transmite a informação, porque escreve não para narrar a ação da própria experiência, mas o que aconteceu com A ou B, em tal momento, tal lugar e tal hora. Este Benjamin desvaloriza (mas o pós-moderno valoriza), o último narrador. Para Benjamin (1989, p. 205) A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

No meio disso tudo fica o narrador do romance, que quer ser impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas confessa-se, como o fez Flaubert de forma padrão: “Madame Bovary, c’est moi” (SANTIAGO, 1989, p. 39). Dando sequência ao raciocínio de Benjamin, para ele o narrador tem “senso pratico”, pretende ensinar algo, percebemos que o ponto principal em torno do qual gira o “embelezamento” da narrativa clássica hoje é a perda gradual e constante da ‘dimensão utilitária’, a forma latente, que está na verdadeira narrativa. Segundo Benjamin (1987, p. 200-201)

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Essa utilidade [da narrativa] pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. [...] O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria — o lado épico da verdade — está em extinção.

Processo esse que segundo o próprio Benjamin, vem de longe, é um ‘sintoma da decadência’ ou uma característica ‘moderna’, que expulsa gradualmente a narrativa do círculo do discurso vivo, e dá uma nova beleza ao que está sumindo, e tem-se desenvolvido ao mesmo tempo em que “toda uma evolução secular das forças produtivas”, (BENJAMIN, 1987, p. 201). Santiago (1989, p. 41) diz não se tratar de

olhar para trás e repetir o ontem hoje [...] trata-se antes de julgar o belo, o que foi e ainda o é — no caso, o narrador clássico —, e de dar conta do que apareceu como problemático ontem —, o narrador do romance —, e que aparece ainda mais problemático hoje — o narrador pós-moderno.

A teoria de Benjamin curva-se sobre a narrativa e os embates que decorrem das experiências entre o moderno e tradicional e abre as discussões sobre o lugar do narrador nas escritas pós-modernas. A morte da narrativa com o surgimento do romance no início do período moderno e, nessa perspectiva, Benjamin vê na narrativa um significado maior do que o que lhe é costumeiramente atribuído: a narrativa carrega consigo um caráter histórico e sociológico que se perde com o advento do Romantismo. Vejamos: O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno [...] A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa — contos de fadas, lendas e mesmo novelas — é que ele nem precede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes. [...] A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los. (BENJAMIN, 1987, p. 201)

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O valor da experiência está presente em boa parte dos escritos de Benjamin, onde ele procura aliar experiência e memória para, a partir delas, ocupar-se da importância da narração oral. Nós somos feitos de narrativas. Nossa existência narra nossos atos cotidianos no desenrolar dos enredos possíveis, na nossa imaginação, nos devaneios, nos sonhos que ganham formato de objeto construído a semelhança de um filme. Somos compostos de uma rede de fios entrecruzados onde temos as histórias familiares, sócioculturais, afetivas, e ainda do que não podemos ouvir, falar ou do que lemos, fantasiamos, do nosso passado rememorado e revivido a todo instante em nossas narrativas cotidianas. No aforismo A caminho do planetário, encontramos a indignação benjaminiana a respeito da alienação do homem diante da natureza:

Isso quer dizer, porém, que somente na comunidade o homem pode comunicar em embriaguez com o cosmos. É o ameaçador descaminho dos modernos considerar essa experiência como irrelevante, como descartável, e deixá-la por conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites estreladas. Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo de vencimento, e então povos e gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou de maneira mais terrível na última guerra, que foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as potências cósmicas. Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços sacrificiais na Mãe Terra. Esse grande corte feito ao cosmos cumpriuse pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em mar de sangue. (BENJAMIN, 1995, p. 68-69)

Observa-se então que os fundamentos da modernidade, em tudo o que o homem acreditou e que poderia a partir do conhecimento controlar a natureza, é uma grande ilusão. A variação com que as coisas acontecem no mundo moderno muitas vezes leva à falta do diálogo entre os homens, sendo este, para Benjamin um dos caminhos para a barbárie e a guerra. Ele continua: Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças pelos adultos como o sentido de educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável ordenação 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 166-175.

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da relação entre as gerações e, portanto, se se quer falar de dominação, a dominação das relações entre gerações, e não das crianças? E assim também a técnica não é a dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie está, decerto, há milênios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. (BENJAMIN, 1995, p. 68-69)

Segundo Cruz (2007, p. 22), é a partir deste pensamento que Benjamin constroi o ensaio O Narrador. A alienação do homem diante da natureza, as consequências da perda da capacidade de narrar levam ao enfraquecimento da tradição oral, e consequentemente ao abalo da experiência. A alienação do homem a partir da linguagem. Essa moderna alienação do mundo foi tão violenta, que atingiu a mais mundana atividade humana que é o trabalho.

Por isso, Benjamin, narra que a experiência do trabalho é o que leva o homem a ter contato com a terra, a comunidade, e desta relação, as trocas de experiências e o “fortalecimento da tradição a que eles pertenciam” (CRUZ, 2007, p. 24). Dito isto, talvez não por acaso Benjamin comece O Narrador falando do trabalho, ao citar dois exemplos: o primeiro é do camponês sedentário, e o outro, do marinheiro comerciante. Um passou toda a sua vida em contato com a terra, dela tirando seu sustento, assim como construiu através do trabalho uma experiência, que a dividiu com seu aprendiz e que pela transmissão oral do conhecimento recebe um saber, uma tradição. Já o marinheiro comerciante, através de suas longas viagens traz novas lições, experiências, e tradições. Para Cruz (2007, p. 24), esta é “uma oportunidade única de comparação entre o antigo e o novo. É essa relação que possibilita ao narrador compreender seu papel na história. Ambos são exemplos de caráter prático, tanto do conhecimento quanto dos valores orais.”

3 CONCLUSÃO

Para Benjamin, a voz sempre exerceu no meio humano uma função importante, mas com o surgimento da imprensa ela vai aos poucos perdendo sua importância, e a narração para ele representa uma experiência existencial do homem dentro de uma

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tradição de parte da memória, em que a narração oral é fundamental para a troca de experiências. E da relação entre narrador e ouvinte há o interesse em preservar o que foi narrado, a narração não esta condicionada apenas à voz humana, mas faz parte dela a mão com seus gestos aprendidos na experiência do trabalho, que de várias formas sustenta o fluxo do que é dito. A matéria do narrador é a vida humana. Por isso que quando Benjamin, diz que a arte de narrar está chegando ao fim, ele está apenas se baseando nas experiências cotidianas, na vida humana, para ele, há uma crise estabelecida, onde as causas são o desenvolvimento contínuo da técnica e a privatização da vida, sendo que estas se desenvolveram uma em detrimento da outra. A técnica se desenvolveu de tal forma, que a própria vida privada se torna alvo de sua violenta intervenção. O privado passou a ser público, e o público passou a ser privado, e a subjetividade, que é determinante para o desenvolvimento do homem, é menosprezada em favor da objetividade. Desenvolvimento tecnológico, produção industrial, alienação do homem pela linguagem, tudo isso faz parte da crítica levantada por Benjamin em O Narrador — Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Finalizando, digo que segundo o próprio Benjamin, contar estórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas, ou porque ninguém mais tece, ou ninguém mais fia, e para Santiago (1989, p. 51) O espetáculo torna a ação representação. Representação nas suas variantes lúdicas, como futebol, teatro, dança, música popular, etc.; e também nas suas variantes técnicas, como cinema, televisão, palavra impressa, etc.; Os personagens observados, até então chamados de atuantes, passam a ser atores do grande drama da representação humana, exprimindo-se através de ações ensaiadas, produto de uma arte, a arte de representar. Para falar das várias facetas dessa arte é que o narrador pós-moderno — ele mesmo detendo a arte da palavra escrita — existe. Ele narra ações ensaiadas que existem no lugar (o palco) e no tempo (o da juventude) em que lhes é permitido existir.

Os narradores são todos e qualquer um, — essa é a condição do leitor, pois qualquer texto também é de todos e de qualquer um.

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RESUMO

Tomando por base o texto de Silviano Santiago, O Narrador Pós-Moderno, percebemos que ele através da análise dos contos de Edilberto Coutinho, discute e debate qual o papel do narrador pós-moderno em contraposição ao narrador benjaminiano. Por isso debateremos e analisaremos alguns aspectos do pensamento do filósofo Walter Benjamin sobre o narrador, tema esse presente no ensaio — O NarradorConsiderações sobre a obra de Nikolai Leskov — reproduzido aqui no livro Magia e técnica, arte e política (1987), que reconhece a importância da narração oral, e nesta, a possibilidade de transmissibilidade da verdade. Outro texto relevante a tratar do narrador e da narrativa, está na obra de Silviano Santiago Nas malhas da letra. Neste, ele trata especificamente da estrutura narrativa do conto pós-moderno e, em menor escala, de suas personagens. Também perpassaremos por outros textos de teóricos que nos mostram o papel do narrador no conto moderno e pós-moderno em Walter Benjamin como Edvaldo Souza Couto/Carla Milani Damião, e Ricardo Souza Cruz, mais também, segundo esses teóricos, os tipos e formas de narrativa. PALAVRAS-CHAVE: Edilberto Coutinho. Narrador pós-moderno. Silviano Santiago

ABSTRACT

Based on the text of Silviano Santiago, O Narrador Pós-Moderno, we perceive that him behind

the tales Edilberto Coutinho,

discuss

and debate the

role of

the

narrator postmodern as opposed to the narrator of Benjamin. Therefore we will discuss and analyze some aspects of the thought of the philosopher Walter Benjamin about the narrator, a theme present in this essay – O Narrador- Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov - reproduced here in the book Magia e técnica, arte e política (1987) which recognizes

the

importance of storytelling,

and this,

the

possibility

of

transmission of truth. Another relevant text dealing with the narrator and the narrative is the work of Santiago Silviano Nas malhas da letra. In this he deals specifically with the narrative structure of the post-modern tale, and to a lesser extent, of his characters. Also we will pass by other theoretical texts that show us the role of the narrator in the story post-modern

and modern

on Walter Benjamin like Edvaldo Souza Couto/

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Carla Milani Damião, and theorists, the types and

Ricardo Souza Cruz, but

also, according to these

forms of narrative.

KEYWORDS: Edilberto Coutinho. Post modern narrator. Silviano Santiago.

BIBLIOGRAFIA BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. 2. ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: Rua de mão única. 5. ed. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995. CRUZ, Ricardo Souza. Walter Benjamin: o valor da narração e o papel do justo. 2007. 132 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. HERRERA, Antonia Torreão. Considerações sobre narrativa e narrador em colóquio com Walter Benjamin. In: Walter Benjamin: Formas de percepção estética na modernidade. COUTO, Edvaldo Souza; MILANI Damião, Carla (org.). Salvador: Quarteto Editora. P. 273-288. 2008. SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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A IRONIA ROMÂNTICA E O LUGAR DO NARRATÁRIO EM CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO Ena Lélis 1

Nascido em Lisboa, no ano de 1825, Camilo Castelo Branco foi um dos grandes nomes da prosa literária do século XIX em Portugal. Órfão de mãe aos dois anos de idade e de pai aos dez, foi entregue, juntamente com a irmã, a parentes de Vila Real. Nessa altura, Camilo já questionava Deus sobre o seu próprio nascimento, tentando entender por que razão o Criador tinha-o condenado à vida. Este momento da sua história foi contado quando já adulto, em página autobiográfica, intitulada No Bom Jesus, no livro Boémia do Espírito.

Há cem anos que este Senhor crucificado vê umas poucas de gerações prostradas diante do seu altar – uns a agradecer, outros a suplicar. Pois, talvez no transcurso de um século, nenhuma outra criança de 10 anos repetisse, diante desta sagrada imagem, as palavras de Job: Quare de vulva eduxisti me? – Porque me deste o nascimento? (CASTELO BRANCO apud CHORÃO, 1998, p. 19)

É sabido que Camilo teve uma vida conturbada. Casou-se ainda muito jovem e teve uma filha. Como “não era ave para nenhuma gaiola” (CHORÃO, 1998), abandonou esposa e filha, que morreram logo em seguida. Teve amantes, foi preso e, uma vez residindo no Porto, dedicou-se à literatura e ao jornalismo. Como jornalista, ganhou muitos inimigos por conta do seu estilo, notadamente ferino e provocador. Meio a tudo isso, tentou estudar Medicina e Direito, sem sucesso. Camilo não gostava de seguir programas, era um estudante voluntário e autodidata, afeito a uma vaidade intelectual que era muito maior que o seu desejo de conquistar um diploma. Por conta disso, não fez outra coisa na vida além de escrever, tendo sido o primeiro escritor português a viver das e para as letras. Escrevia por amor, dor, dinheiro e necessidade. Conforme Bigotte Chorão (1998), Camilo foi “escritor a tempo inteiro, conhecendo, como criador, o paraíso, e, como escravo das letras, o inferno.”. Notadamente conhecido

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Pós-graduanda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana ― UEFS.

ISBN 978-85-7395-210-0

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pela sua versatilidade, dele leem-se não apenas contos, novelas e romances, mas sabe-se também de seus tantos outros textos, como cartas e mesmo sermões que escrevia, mediante honesto pagamento, para abades pouco íntimos da escrita. O próprio Camilo confessava-se versátil e vendedor das próprias insônias. Eu posso escrever romances jesuítas, romances franciscanos, romances carmelitas, romances jansenistas, romances despóticos, monárquico-representativos, cabralistas e até romances regeneradores: o que eu quiser, e para onde me der a veneta. [...] dou formas dramáticas ao diálogo dos meus fantasmas, e convenço-me de que pertenço bem aos vivos, ao meu século, ao balcão social, à indústria, mandando vender a Ernesto Chardron [o editor] as minhas insónias. (CASTELO BRANCO apud CHORÃO, 1998, p. 9-22)

Aos 25 anos, conheceu Ana Plácido. E porque ela era casada quando iniciou nova relação com ele, foram presos por conta desse adultério e absorvidos após um ano, quando se mudaram para São Miguel de Ceide, onde tiveram filhos. Dona e governanta da sua casa, secretária, enfermeira, amante, mãe, esposa e irmã pelas afinidades literárias; era Ana Plácido para Camilo. Ainda que numa relação que migrou da paixão para a rotina – mais para ele que para ela –, viveram juntos até o fim, quando, aos 65 anos, em 1890, cego, sifilítico e desestruturado financeiramente, Camilo suicida-se. A vida de Camilo foi fortemente marcada por paixões, tragédias e desavenças. Marcas essas que se mostram proeminentes em sua produção literária, a qual acompanha o momento em que o Romantismo se desenvolvia em Portugal. A sua vasta obra, aliás, fez parte da construção desse período naquele país. Entre poesia, teatro, crítica política e literária, além de mais de uma centena de romances e novelas, o autor dedicou 45 dos seus 65 anos à escrita. Como bem pode ser observado, Camilo fez parte da literatura portuguesa do séc. XIX, época marcada pela vitória da burguesia e, consequentemente, pelo lucro, pela hipocrisia e pelo culto à aparência. Nesse contexto, muitos escritores de então utilizavam-se dos mesmos artifícios de representação social e fingimento, como maneira de criticar e denunciar realidades incômodas. Algumas das possibilidades de crítica e denúncia surgiam pelo sarcasmo, pela sátira e pela ironia, características bem conhecidas na obra camiliana. A produção que interessa, neste momento, é uma novela

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satírica, Coração, Cabeça e Estômago, na qual Camilo utiliza como recurso a figura de um narratário como intermédio das suas censuras.

1 O CONCEITO DE IRONIA

Antes de adentrar na discussão da inserção e do papel da ironia romântica na novela satírica camiliana, é relevante esclarecer a respeito do conceito de ironia. A ironia é comumente compreendida como a figura de retórica em que se diz o contrário do que era pretendido, levando-se em consideração que o receptor da mensagem entenderá a mentira implícita no discurso (DUARTE, 2006, p. 18). Resumida e claramente, Massaud Moisés definiu em seu Dicionário de termos literários que “a ironia consiste em dizer o contrário do que se pensa, mas dando-o a entender” (1992, p. 295). Entre os estudiosos da linguagem irônica, no entanto, é repetitiva a afirmação de que a ironia apresenta uma série de dificuldades em sua conceituação. Na visão de Muecke (1978, p.8-12, apud DUARTE, 2006, p. 18), “os pontos de contato existentes entre suas várias formas tornam possível defini-la de muitos diferentes ângulos.”. Além disso, e ainda segundo este autor, conceituá-la é tão difícil quanto definir arte ou poesia. Opta-se aqui, então, por apontar a ironia, em linhas gerais, como uma maneira de argumentação sagaz e intelectual, que se alicerça na intenção e consciência do ironista e na pretensão que este possui de fazer o seu receptor refletir sobre a mensagem que lhe é transmitida, de sentido dual: o que é enviado e o que é pretendido. A esta definição generalista, acrescenta-se alguns pressupostos para que aconteça a presença da ironia no discurso. Segundo Maria de Lourdes A. Ferraz, em sua obra A ironia romântica: a) ironia pressupõe um ato de comunicação que envolva um emissor, uma mensagem e um receptor; b) a ironia revela uma visão particular do mundo, a do emissor, e daí o seu caráter preferencialmente crítico; c) por pressupor um ato comunicativo e por seu caráter crítico, a ironia se relaciona com a linguagem de uma forma muito particular, pois exigirá do emissor irônico uma plena consciência dos recursos da linguagem que utiliza, isto é, uma consciência linguística crítica. Do receptor será exigida a mesma consciência, assim como um conhecimento amplo dos recursos linguísticos de que se utiliza o emissor para a construção da ironia; d) da questão anterior, decorre que haverá a necessidade, no discurso irônico, de que emissor

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e receptor dominem a convenção da formulação irônica. Atente-se para o fato de que o receptor poderá ou não ser o objeto da ironia. Independente disso, para o discurso irônico acontecer e ser reconhecido como tal é necessário que haja um receptor que o compreenda. Mesmo que o receptor seja o próprio emissor (FERRAZ, 1987, p. 20, apud MUNIZ, 1999, p. 136).

2 A IRONIA NO CONTEXTO HISTÓRICO CAMILIANO

Para se fazer uma breve análise do momento histórico em que a ironia se inseriu na literatura portuguesa, é preciso inquirir sobre o final do século XVIII, bem como o século XIX, em Portugal, quando se deu a Revolução Industrial e o desenvolvimento e instauração do sistema capitalista na Europa. A resposta disso é uma sociedade que apresenta como fortes características a valorização do capital, a mecanização do cotidiano, a objetividade e o pragmatismo das relações. Concomitante a essas mudanças, quando se identificava a vitória da burguesia, nota-se, na civilização ocidental, uma acentuação do homem enquanto indivíduo, enquanto ser uno e a necessidade do homem-artista em incorporar essas modificações no campo das artes. Quanto a isso, Lélia Parreira Duarte apresenta as duas vertentes do conflito do artista de então: aceitar essa incorporação e contribuir para a legitimação das mudanças ou resistir, criticando-a, o que significaria um suicídio do seu reconhecimento estético? (2006, p. 141). Camilo Castelo Branco, por ter vivido no séc. XIX, vivenciou o momento de transição estética, da romântica para a realista, tempo de efervescência literária em Portugal. E isso marcou algumas de suas obras, como a que agora se apresenta. Se a literatura clássica pautava-se na representação do real, na mimesis, a nova arte prezava a denúncia da artificialidade. Como bem afirma Duarte, “Se a nova sociedade era dominada pela hipocrisia, pela representação, o novo artista, irreverentemente, passa a denunciar esse culto da aparência.” (2006, p. 141). É comprovado que a ironia enquanto recurso linguístico é utilizada desde os gregos. Mas a ironia enquanto status literário nasce nessa ambiência do fim do séc. XVIII, enquanto forma de criticar, indiretamente, a realidade circundante, através do fingimento, da máscara, da necessidade de distanciar as vozes intra e extradiegéticas. Pode-se, ainda,

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lembrar do primeiro teórico da ironia romântica, Friedrich Schlegel, o qual afirmava que o autor precisa se destruir e se autocriar. Dessa forma, ele – o autor - atinge novas perspectivas, alcançando a liberdade, que tem a ironia como signo, o qual possibilita ao autor uma autoconsciência, podendo rir de si e, assim, ser levado a sério (SCHLEGEL, apud DUARTE, 2006, p. 142). A autoconsciência defendida por Schlegel é, pois, o questionamento que o autor faz do seu papel social e do

próprio

fazer literário, valendo-se,

metalinguisticamente, da própria obra para expressar as suas reflexões. “Este comportamento crítico provocará uma reavaliação, inclusive, de seus ideais, de suas visões de mundo e de seus gostos estéticos. O recorrer à ironia tornar-se-á bastante comum.” (MUNIZ, 1999, p. 137). No intuito de credibilizar as suas obras e embutir-lhes veracidade, muitos escritores do século XIX, particularmente na literatura romântica, buscavam maneiras diversas de contar as suas histórias. Recorrer a escritos que lhes foram entregues ou a documentos que foram descobertos, ou mesmo a uma história que ouviram contar eram artifícios para tornar verossímeis as suas narrativas. Não diferente, Camilo utilizou-se desse recurso. Na narrativa que ora protagoniza esse artigo, tem-se a história de Silvestre da Silva, um autor-defunto, que, antes de morrer, deixa os seus escritos com um amigo para que este os publique, a fim de pagar as dívidas que contraiu em vida. Este amigo, que não apresenta nome, torna-se herdeiro e editor dos escritos de Silvestre da Silva. Vê-se no direito de editar aqueles três capítulos que tem em mãos – Coração, Cabeça e Estômago -, tornando-se, assim, o segundo narrador daquela história: o narratário. E na posição de editor desses papéis, revisita-os e modifica-os, imprimindo em sua justificativa o seu tom crítico-irônico. E o fará em todo o romance, por meio de notas. Eu fui o herdeiro dos seus ‘papéis’. Alguns credores quiseram disputar-mos, cuidando que eram papéis de crédito. Fiz-lhes entender que eram pedaços num romance; e eles, renunciando à posse, disseram que tais pataratices deviam chamar-se papelada, e não papéis. [...] Os manuscritos de Silvestre careciam de ser adulterados para merecerem a qualificação de romance. [...] No volume denominado Coração encontro algumas poesias, que não traslado, por desmerecerem publicidade, sobre serem imprestáveis ao contexto da obra. (CASTELO BRANCO, 1988, p. 16-19)

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3 A DESCONSTRUÇÃO CAMILIANA PELO NARRATÁRIO E PELO PRÓPRIO AUTOR Jacinto do Prado Coelho nos informa que “a ironia camiliana pode ser avaliada tanto ao nível das micro-estruturas (frase-sintagma) como nas macro-estruturas (novela inteira)” (1983, p. 216). Grande parte dessa ironia está presente no discurso crítico do narratário, uma vez que o faz em sua macroestrutura. O seu olhar se volta não somente para trechos da narrativa de Silvestre da Silva (frases-sintagmas), mas, sobretudo, da novela inteira. Critica a estética literária recentemente decaída, apresentando-a como démodé, aponta uma sociedade injusta e interesseira e se aproveita, ainda, do autor já morto para diminuir e fazer pouco do seu olhar demasiado romântico. Nesses trechos, percebe-se que, já no Preâmbulo, Camilo, em utilização desse narratário, tece uma explícita crítica à narrativa de Silvestre da Silva. Ao depreciá-lo, quem Camilo critica, de fato? Vejamos. O ano de publicação de Coração, Cabeça e Estômago, uma de suas maiores novelas satíricas, foi o mesmo ano de publicação de uma de suas mais lidas novelas românticas, Amor de Perdição. A publicação desta foi anterior à daquela. O ano era 1862. A época era a de transição literária. A estética realista, como já exposto, ganhava força. A notável e mordaz ironia de Camilo, pois, deixa clara a desconstrução do editor sobre o autor, como uma leitura da desconstrução do próprio Camilo realista sobre o Camilo romântico. Tem-se, então, um embate discreto e sarcástico entre narrador e narratário, que é, se bem observado, uma releitura da consciência crítica do próprio Camilo Castelo Branco. O próprio romance propõe a primeira parte – Coração – como a fase emocional do protagonista; a segunda – Cabeça – como a sua fase racional; e a terceira – Estômago – a realista. Maior parte da ironia trazida pelo editor norteia o leitor a encontrar a desnecessidade do amor romântico, pondo-o como tolo: “O Coração reina desde 1844 até 1854. São aqueles dez anos em que nós vimos Silvestre fazer tolice brava.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 17). Como revela no Preâmbulo, o editor, sentindo-se no direito de adulterar os escritos de Silvestre da Silva, chega a acrescentar informações através das notas. Já no início da primeira parte, quando o protagonista faz saber sobre o primeiro amor que teve em Lisboa, o editor acrescenta fatos não narrados por Silvestre e inicia dizendo “Eu sei mais alguma coisa, que merece crónica.” (CASTELO BRANCO,

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1988, p. 23). Nesta mesma nota, em crítica ao algibebe que se casou com o referido primeiro amor de Silvestre, Leontina, conta que ele ganhou um prêmio na loteria e que, por isso, mudou de cara e de maneiras, espezinhando em seguida que “O dinheiro faz estas mudanças e outras mais espantosas ainda. [...] Estão gordos, ricos e muito considerados na sua rua.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 24). Com este último trecho, o narratário expõe a interesseira dialogia entre dinheiro e imagem, tudo isso que veste a burguesia. Esta mesma observação é feita não só pelo narratário, como também pelo narrador e pelo próprio Camilo, ao escolher como títulos de dois de seus capítulos “A mulher que o mundo respeita”, para tratar de D. Paula, mulher vil, traiçoeira e vulgar, porém rica, e “A mulher que o mundo despreza”, para apresentar Marcolina, mulher de “virgindade moral”, cheia de valores, mas desprezada pela sociedade por ser pobre. Ao revolver a biografia de Camilo, percebe-se que essa reversibilidade de méritos é muito encontrada em seus escritos, sobretudo quando buscava explicação para a sua existência e sofrimento, defendendo que para os bons há castigos, sendo reservados prêmios para os maus. Voltando à crítica do narratário sobre o autor, encontra-se espalhada pela obra algumas alertas ao leitor, ou de que este se prepare para o que irá ler ou de que, enquanto editor, ele retirou algumas partes do autor, por serem de demasiado mau gosto: “Defendo a paciência do leitor dos duros golpes que lhe estão iminentes.” (CASTELO BRANCO, 1988, p.44) ou “As seguintes coisas são menos inocentes [...] Basta isso para terror das almas.” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 45). Além da crítica aos poemas e ao exagero sentimental de Silvestre da Silva, o editor espezinha ainda o Silvestre jornalista, que se metia em tudo e era odiado por muitos. Perdoe-me a memória de Silvestre. A calúnia, conquanto escrita em palavras cultas e penteadas, é sempre calúnia. Elegâncias da linguagem, por mais que valham na retórica, valem nada para o desconceito de quem injustamente difamam. O jornalismo do Porto teve e tem admiráveis e valentes mentenedores da honra contra classes poderosas pela infâmia nobilitada. À conta de muitos poderia escrever-se o que o finado Silvestre disse de um [...].” (p. 116).

E após transcrever as palavras de Silvestre, nas quais este reconhece o quão é odiado pelos seus escritos jornalísticos e, aos poucos, perde seu lugar nos jornais locais,

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o editor arremata: “Fez bem! Partiu o braço querendo parar o movimento da roda.” (p. 116). Ao perceber sua inaptidão para os assuntos do coração, Silvestre adentra a sua fase racional. Decepcionado com esta, após muito infortunar seus inimigos e sentir-se só e desprestigiado, o protagonista finda a sua vida intelectual e afirma que “Nem já coração, nem cabeça. Principia agora o meu auspicioso reinado do estômago” (CASTELO BRANCO, 1988, p. 131), o qual não lhe deixará preocupações intelectuais, tampouco sentimentais. Reina o estômago e assim justifica: Não cuidem, porém, que eu hei-de consumir o restante da minha individualidade em comer. Há faculdades que não se obliteram imolando-as a uma única manifestação da vida orgânica: o mais que pode fazer o espírito é impulsioná-las, concentrá-las e convergi-las todas para um ponto. (p. 140)

Observa-se que a desconstrução da qual tratamos anteriormente é também identificada através das palavras do próprio protagonista, que, com o passar dos anos, percebe a sua transformação; não a da sua consciência – o papel de consciente cabe ao editor -, mas a da sua racionalidade, endurecendo o que antes era somente exagero sentimental. Outro exemplo encontra-se ainda no início da segunda parte, quando Silvestre da Silva retorna ao Porto e já não julga as mulheres encantadoras como as de outrora. Neste momento, o leitor atento deve se perguntar se, de fato, o encanto dessas mulheres não mais existe ou não há mais encanto no olhar de Silvestre, tomado agora pela racionalidade. Ó mulheres do Porto, ó virgens saudosas da minha mocidade, ó santas da natureza como Deus as fizera, que é feito de vós, que fizeram de vós os romances, e o vinagre, e a Lua, e o pó de telha, e as barbas do colete, e os jejuns, e a ausência completa do boi cozido, que vossas mães antepuseram às mais legítimas e respeitáveis inclinações do coração?! [...] Estavam as minhas faculdades regidas pela cabeça. (CASTELO BRANCO, 1988, p. 103-4)

O protagonista julga a publicação dos seus escritos como proveitosa para a iniciação da mocidade da época, a fim de que esta não repetisse os erros que ele

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cometera, numa alusão ao reconhecimento de que é inválido ou desnecessário estar afeito às agruras do coração, do romantismo.

Nesta carta prometia o meu amigo legar-me os seus papéis, com plena autorização de divulgá-los, se eu visse que podiam ser de proveito para a iniciação da mocidade. (CASTELO BRANCO, 1988, p. 177)

Finalmente, ainda resta tempo para apontar que o romance não está apenas dividido em três partes. Há ainda dois acréscimos feitos pelo editor: um no início, o Preâmbulo, e outro no fim, intitulado “O editor ao respeitável público”. Daquele já foram feitas, anteriormente, as devidas demonstrações. Sobre este, no qual o editor se despede, justifica as partes aproveitáveis do romance, que são as que mostram que “a deusa da fortuna é a predilecta amiga dos que submetem a vida ao regime suave da matéria”, imprimindo, assim, crítica e atualização daquele momento histórico e literário. Em suas últimas palavras, o narratário espreme ainda a sua última gota de tinta na ferina pena. Apresenta o último soneto de Silvestre. E destina-lhe merecimento. Grande merecimento, aliás. Não por ser bom. Mas por ser o último.

RESUMO

Este artigo traz a análise da novela satírica Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco, na intenção de demarcar a maneira como o Camilo realista desconstruía o Camilo romântico através de um discurso irônico, por intermédio de um narratário. Para tanto, é necessário discutir, antes, o conceito de ironia, bem como apontar o momento histórico português, nos idos do séc. XIX, justificando a relação entre a ironia romântica e a inserção de um narratário como recurso literário da época. PALAVRAS-CHAVE: Camilo Castelo Branco. Literatura portuguesa. Ironia. Narratário.

ABSTRACT

This article contains the analysis of the satirical novel Heart, Head and Stomach, by Camilo Castelo Branco, with the intention of shows the way realist Camilo 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 176-185.

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deconstructed the romantic through an ironic speech, through narratário. Therefore, it is necessary to discuss before, the concept of irony as well as pointing out the historical Portuguese, back in the twenty first century, explaining the relationship between romantic irony and the insertion of a narratário as a literary resorting of the time. KEYWORDS: Camilo Castelo Branco. Portuguese literature. Irony. Narratário.

BIBLIOGRAFIA CASTELO BRANCO, Camilo. Coração, Cabeça e Estômago. Portugal: EuropaAmérica, 1988. CHORÃO, João Bigotte. O Essencial sobre Camilo. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998. COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao estudo da novela camiliana. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; São Paulo: Alameda, 2006. FERRAZ, Maria de Lourdes. A ironia romântica – estudo de um processo comunicativo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. FRANCHETTI, Paulo. Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1992. MUECKE, Douglas Colin. Analyses de l’ironie. Poétique, Paris, n. 36, p. 478-494, nov. 1978. MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Amor e ironia romântica em Camilo Castelo Branco. Revista UNIB, São Paulo, p. 133-172, 1999. OLIVEIRA, Paulo Motta. Da ficção camiliana como interpretação de Portugal. In: FERNANDES, Annie Gisele; OLIVEIRA, Paulo Motta (orgs.). Literatura Portuguesa – Aquém Mar. Campinas: Editora Komedi, 2005.

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A QUESTÃO CULTURAL E A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL EM A LITERATURA AFORTUNADA DE AFRÂNIO COUTINHO

Juliana Cordeiro de Oliveira Silva (PROBIC/ UEFS) Orientador: Prof. Dr. Claudio Cledson Novaes (UEFS)

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“Em cada época deve-se fazer a tentativa de arrancar a tradição do campo do conformismo que está sempre prestes a subjugá-la”. W. Benjamin

1 INTRODUÇÃO

A análise deste trabalho refere-se aos problemas apontados pelo autor no capítulo A literatura afortunada, No livro A tradição afortunada (o espírito da nacionalidade na crítica brasileira) de Afrânio Coutinho (1911- 2000) - importante crítico literário e ensaísta brasileiro, que ocupou a cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras em abril de 1962 - publicado em 1968, pela Livraria José Olympio Editora, na Coleção Documentos Brasileiros. Em prefácio Afonso Arinos de Melo (1905-1990) jurista, político, historiador, professor, ensaísta, e crítico brasileiro; autor da Lei Afonso Arinos contra a discriminação racial em 1951, define nestes termos a obra: “Obra mestra da crítica brasileira contemporânea, uma obra que comprova a maturidade intelectual a que atingiu o seu autor, ao mesmo tempo em que historia o processo de maturação da propícia literatura nacional.” (COUTINHO, 1968) A obra traz em seu bojo aspectos pertinentes ao estudo da identidade nacional, levantando o problema de nacionalidade muito mais como uma questão de expansão que de ascensão, onde explicar a obra nacional não implica ter de julgá-la, mas sim, explicá-la na sua significação própria e nos seus valores objetivamente considerados. Ao analisar a tradição literária brasileira Afrânio Coutinho divide o capítulo em tópicos e os desenvolve de acordo com as construções que julga serem compreendidas a destacar:

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Graduanda, cursando o 6º semestre de Letras Vernáculas. Professor Titular; Departamento de Letras e Artes.

ISBN 978-85-7395-210-0

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a) O pensamento crítico do século XIX; b) A busca da nacionalidade; c) Desenvolvimento contínuo da nacionalização; d) Formas da nacionalização; e) O Homem Brasileiro.

Para ele o pensamento crítico do século XIX em busca da nacionalidade literária forma o embasamento de teoria da moderna literatura brasileira. Graças a ele, unindo o sentimento da natureza americana, a cor local, os assuntos históricos e populares, os costumes tradicionais, os hábitos da sociedade, as tradições folclóricas, adquiriu a literatura brasileira a sua fisionomia definitiva, conseguindo alcançar no século XX sua fase de completa maturidade. No que tange a consideração do assunto, Coutinho ressalta a noção de desenvolvimento contínuo da consciência literária no sentido da nacionalização, em harmonia com o próprio envolver da consciência nacional, pois para ele não parece ter havido linhas paralelas de desenvolvimento nacionalizante, uma política e outra literária, mas sim o crescimento progressivo, ininterrupto, da consciência nacional em todo o povo, o que se traduziria no plano político igualmente que no literário. Diante do exposto somos convidados a refletir sobre questões como: Como caracterizar a brasilidade? O que distingue e identifica a constituição da identidade brasileira, em termos de produção literária e poética? Encontramos uma resposta possível nas palavras de Ronald Carvalho (1968): [...] um povo sem literatura seria, naturalmente, um povo mudo, sem tradições e sem passado, fadado a desaparecer como reles planta rasteira, nascida para ser pisada. De todas as artes, é a palavra, sem contestação, aquela que exerce uma influência mais penetrante, um papel mais saliente na formação das nacionalidades. (CARVALHO, 1968: 43).

Percebemos aqui que as reflexões promovidas por Coutinho são resgatas nas palavras de Carvalho, uma vez que para este a busca por uma identidade nacional manifesta-se na literatura brasileira desde o período colonial até a atualidade. Na tentativa de expressar um sentido próprio de brasilidade, vários momentos da literatura

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brasileira expressaram uma tomada de consciência, como o Romantismo, o Realismo, o Modernismo e a literatura contemporânea. Cabe aqui um parêntese para esboçarmos uma reflexão também importante acerca do que expomos até aqui. No artigo intitulado Literatura brasileira: instinto de nacionalidade, publicado pela primeira vez em 1873, Machado de Assis faz algumas proposições sobre o problema da arte nacional, da influência do povo no estilo, do equilíbrio entre a nacionalidade e a universalidade, ao lado de reflexões sobre os vários aspectos técnicos da arte literária nos diversos gêneros. Já nas primeiras linhas, Machado de Assis aponta para a busca da brasilidade na literatura nacional: “Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país (...)” (ASSIS, 1938:133). Neste ensaio, o autor chama a atenção dos intelectuais da nação brasileira, para o que se deve “(...) esperar do escritor é certo sentimento íntimo que o faça tornarse um homem de seu tempo e de seu País” (ASSIS, 1938: 140), aqui nessa citação percebemos a importância que o autor da à nacionalidade ao grafar país com P maiúsculo. A afirmação “um homem de seu tempo” significa, para Machado, a idéia de estar aberto para retratar as impressões sociais do presente, sem uma exaltação exacerbada de um passado glorioso e sem a preocupação com um futuro de prodígios, significa procurar representar o homem de agora e não o de antes, nem tão pouco projetá-lo no que pode vir a ser, pois o que vale é o que ele é agora e quais fatores contextuais o moldam e/ou modificam. Retomando a discussão feita por Afrânio Coutinho, sobre a evolução do caráter nacional o autor afirma que esta pode ser acompanhada em toda a história da evolução literária brasileira não se tendo realizado por saltos, nem por movimentos ou épocas antagônicas ou descontínuas. Ela se concretizou de forma progressiva encontrando nos vários estilos artísticos o instrumento adequado e estimulante para levá-la adiante e tomar consciência de si mesma. Quanto ao processo de diferenciação, Afrânio entende que foi sendo efetivado graças a grandes estilos estéticos, cuja sucessão constitui as etapas ascensionais em

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busca da auto- expressão literária. Esses estilos foram o barroco, o arcádico, o neoclássico, o romântico, o realista, os quais realizaram a integração progressiva da ideia de nacional. O aumento progressivo dessa composição nacional na literatura foi sendo evidenciando por intermédio de várias formas, algumas das quais definitivamente incorporadas às letras brasileiras; por elas é que o instinto de nacionalidade procurou afirmar-se, tornando-se cada vez mais consciente. Para o crítico é um erro de perspectiva crítica e histórica exigir que uma obra literária do passado se exprima segundo os cânones de outra mais moderna. Não é possível exigir do passado que pense e sinta de acordo com os estilos posteriores, assim como não é leal julgar uma época passada à luz dos padrões estéticos do presente, transferindo para ela o nosso critério de gosto e de realização artística. Percebemos aqui como o autor avalia a relação de aproximação e distanciamento do leitor crítico sobre o sujeito histórico. A literatura é fruto de uma sociedade em um dado contexto que cada escritor representa com as suas individualidades de percepções da realidade social em contraponto ao modelo hegemônico da época. Ao examinar o problema da nacionalidade literária, Afrânio infere que ela não decorre de nenhum fator isolado, mas é uma resultante de um complexo de elementos: uma língua, um meio natural (clima, paisagens, fauna, flora), uma história vivida em comum, usos, costumes, leis, aspirações, sofrimentos, sentimentos, comunidade de interesses, mas tudo isso unido e traduzido num “sentimento íntimo” que torna a literatura diferente de todas, pelo comportamento, sentimento e palavras dos personagens, pelo estilo, pelas situações, pelo substrato popular, pelo sistema imagístico, pelos enredos, episódios, etc. Em virtude do debate e aprofundamento crítico provocado ao longo da segunda metade do século XIX aprofundado no século XX, processou-se a conscientização da ideia nacional, graças à existência de condições que a determinaram, a destacar: características próprias à existência do povo, vontade de afirmação desses traços particulares, ideia de missão por parte dos escritores tocados da mística nacional na elaboração de uma literatura que lhe correspondesse e obedecesse ao impulso de americanização ao sentimento da natureza brasileira, à índole de povo, à evolução histórica. Eis a essência do pensamento nacionalista, no que concerne à literatura.

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Um dos principais conceitos da moderna teoria literária é o da intertextualidade, segundo o qual todo relato é sempre uma réplica, um diálogo que se estabelece com outros relatos. Nesse sentido as colocações feitas por Coutinho no capítulo que aqui analisamos parecem perpassar várias fases da literatura brasileira e caminham num sentido de entrecruzamento uma vez que uma escola literária ora bebe ora renuncia de estilos presentes em momentos antecessores ou sucessores. Daí a riqueza e ambigüidade do título da obra que também nomeia o capítulo em análise. A literatura afortunada representa uma leitura de vários períodos literários marcados pelo genuíno, por textos pelos quais determinados escritores, hoje tidos como cânones inscreveram-se e caracterizaram a identidade nacional, o que vem a dar ao Brasil uma literatura brasileira por meio de leituras que se fizeram dele.

2 NACIONALIDADE VERSUS MEMÓRIA NACIONAL.

Em uma linha de pensamento crítico que polemiza em alguns pontos e suplementa a discussão sobre cultura brasileira, Renato Ortiz (1994), entende que o nacional se definiria como a conservação “daquilo que é nosso”, isto é a memória nacional seria o prolongamento da memória coletiva popular, e defende que há uma estreita relação entre o nacional e o popular. Dentro dessa problematização podemos nos questionar: A memória nacional se colocando na perspectiva da conservação dos valores, não se identificaria por fim à própria memória popular? Se entendermos por memória o agente possível na criação de subjetividades precisamos observar as funções do corpo e suas potencialidades em relação às imagens que lhe são exteriores, pois nosso corpo mantém posição privilegiada em relação às imagens e aos objetos em geral, justamente porque com o corpo estabelecemos diferentes formas de ação. Segundo Bergson (1990, p.12): “Os objetos que cercam nosso corpo refletem a ação possível do nosso corpo sobre eles”. Aqui estamos diante de mais do que um relação de causa e efeito, estamos diante de um princípio que nos possibilita entendermos as formas de criação das imagens e também nos permite identificarmos os aspectos constituintes das produções, pois o corpo ocupa uma espécie de posição privilegiada, uma vez que é também uma espécie de componente ativo na

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relação que se estabelece entre imagem e subjetividade . Sobre essa relação Bergson explica o seguinte:

Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo. (Bergson, 1990: 10).

Através do corpo nós somos capazes de construir e estabelecer nossa relação com o mundo. Nesse sentido a imagem passa a pertencer também à memória porque é das imagens que extraímos os fatos e acontecimentos que constituem e permeiam a nossa relação com a sociedade ou com outros objetos. Se considerarmos nosso corpo e suas relações com a matéria, e aqui destacarmos matéria como o conjunto de imagens que nos cercam, a memória será como uma espécie de regente de todo o processo. Desse processo permanecem ativos o passado e o presente, circunscrevendo os limites de nossa interpretação. A esse tipo de imagem a que Bergson chamou de imagens-lembrança identificam-se apenas a parte inteligível da relação com os objetos, onde, ao invés de experimentarmos as imagens, as identificamos, na tentativa de recuperar sua claridade e, principalmente, sua utilidade em nossas vidas. Portanto, das imagens-lembrança nasce nosso reconhecimento dos objetos: nossa comunicabilidade.

3 MEMÓRIA COLETIVA E MEMÓRIA NACIONAL NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO CINEMA BRASILEIRO.

Se tomarmos por memória coletiva a noção de que esta refere-se à ordem da vivência, e que a memória nacional se refere a uma história que transcende os sujeitos e não se concretiza imediatamente no seu cotidiano, podemos encontrar nas reflexões de Ortiz semelhanças com os estudos realizados por Coutinho, tendo em vista que para o primeiro o processo de construção da identidade nacional se fundamenta sempre numa interpretação, e de acordo com o que lemos das reflexões de Afrânio percebemos que os períodos literários e suas obras são fruto da interação do artista em seu ambiente emprestando-lhes nas suas interpretações solidez e autenticidade.

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No entanto é Maurice Halbwachs quem traz uma discussão mais profunda sobre a temática da memória. Para Halbwachs a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A razão ou explicação para as várias ideias, reflexões, sentimentos, ou paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas por um grupo ao qual pertencemos. A disposição de Halbwachs acerca da memória individual refere-se à existência de uma “intuição sensível”. Observemos: ”Haveria então, na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que - para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social - admitiremos que se chame intuição sensível.” (HALBWACHS, 2004, p.41). É essa intuição sensível que proporciona aos escritores a inspiração para escrever a cerca de temas que por mais coletivos que pareçam sempre carregam em si a marca particular e peculiar de quem fala, pois um tema por mais debatido e analisado que seja sempre trará consigo marcas inerentes a quem as observou. Se observarmos, por exemplo, a temática do homem nordestino nas diversas literaturas sejam elas orais ou não, perceberemos que em diversas obras vamos encontrar o homem sertanejo esboçado, analisado e interpretado sob uma ótica diferente. Observemos, entretanto que a memória individual não está afastada, isolada. Frequentemente, ela toma como referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apóia a memória individual está intimamente relacionado com as percepções produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica. A vivência em vários grupos desde a infância está na base da formação de uma memória autobiográfica e pessoal. É também importante neste processo observarmos as percepções acrescentadas pela memória histórica: “os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, que eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo” (HALBWACHS, 2004, p.71). Percebemos aqui que a noção de memória está embasada num passado que foi vivido e não simplesmente imaginado, é essa característica de ato vivido que permite a constituição de narrativas sobre o passado coletivo ou individual de forma viva e natural, muito mais até do que um passado escrito tendo por base um passado apreendido por uma história escrita.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No final do capítulo A tradição afortunada, Coutinho finaliza suas reflexões acerca do espírito de nacionalidade parafraseando Machado de Assis, que em O instinto da nacionalidade, que explica o fenômeno da nacionalidade com sua teoria do molho, onde diz que o escritor “pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de sempre temperá-lo com o molho de sua fábrica”, ou seja, a matéria- prima pode vir de onde for, mas o artista verdadeiramente nacional irá transformá-la imprimindo-lhe como tempero as características pertinentes ao seu meio, sua cidade, sua região e, sobretudo seu país. Enfim, o texto de Afrânio Coutinho constitui-se como uma importante leitura que nos inspira a uma revisão crítica sobre as referências teóricas concernentes à perspectiva historiográfica da literatura. Ele nos auxilia contemporaneamente na compreensão de temas importantes para o debate sobre a formação da literatura nacional.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é retomar as diferentes maneiras como os conceitos de identidade nacional e a cultura brasileira foram consideradas no projeto de crítica literária de Afrânio Coutinho. Nossa preocupação inicial é compreender como estas questões culturais são apropriadas para a reflexão sobre literatura pelo autor no livro A tradição afortunada. É interessante ressaltar que a problemática da cultura brasileira tem sido e permanece, até hoje, uma questão política. Nesse sentido, as reflexões de Coutinho (1965) debatem dentro dessa perspectiva, enfrentando um problema que se tornou clássico na discussão da cultura brasileira: o de sua autenticidade. Veremos como os conceitos de nacionalidade, autenticidade e memória se estruturam atualmente no interior da sociedade brasileira, pois na medida em que o capitalismo atinge novas formas de desenvolvimento, têm-se novos tipos de organização intelectual. Problematizaremos as formulações de Coutinho à luz de teorias da crítica cultural contemporânea como as de Ortiz (2006), fazendo um contraponto entre as concepções desses autores.

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PALAVRAS – CHAVE: Identidade nacional. Cultura brasileira. Literatura.

ABSTRACT

The objective of this paper is to resume the different ways the national identity concepts and the brazilian culture were considered in Afrânio Coutinho's literary criticism project. Our first worry is to understand how these cultural questions are appropriate to the reflection about literature by the author in the book "A tradição afortunada". It's interesting to point that the brazilian culture set of problems have been and remain being, untill nowdays, a politic question. In this sense, Coutinho's reflections (1965) debate in this perspective, facing a problem that became classic in the brazilian cultural discussion: its authenticity. We are going to see how the nationality, authenticity and memory concepts are currently structured in the brazilian society, since as the capitalism reaches new ways of development, we have new kinds of inlectual organization. We are going to put in doubt Coutinho's formulations based on the contemporary cultural critic theories, like Ortz's (2006), counterpointing these two authors conceptions. KEYWORDS: National Identity. Brazilian culture. Literature.

BIBLIOGRAFIA BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Editora Martins e Fontes, 1990. COUTINHO, Afrânio. A literatura afortunada. A tradição afortunada (o espírito da nacionalidade na crítica brasileira). São Paulo: Ed. da Univ. de São Paulo, 1968. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, vol.2, nº 3, 1989.

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A CULTURA BAIANA DO VALE DO SÃO FRANCISCO: JACUBA, DE WILSON LINS Maurício de Oliveira Santos1 Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho 2

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto de extenso trabalho de pesquisa ao longo de dois anos de realização dos projetos de Iniciação Científica: Literatura de Jornal: O Resgate e a Leitura do Folhetim Jacuba, de Wilson Lins (Ano I) / Jacuba, de Wilson Lins, Literatura e Memória nas Páginas de o Imparcial da Bahia (Ano II) e de apresentação de comunicação oral sobre os estudos realizados no 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: Um Cosmopolitismo nos Trópicos. Trata-se de uma abordagem a cerca de um componente da “cultura baiana” posta à margem do eixo de maior prestígio representativo, político, social e cultural: O Vale do médio São Francisco, com base na obra do autor baiano Wilson Lins de Albuquerque, o folhetim Jacuba publicado no periódico baiano O Imparcial no ano de 1941. Compreendemos que, pela enorme força econômica, política e, não menos importante, de representação cultural, litoral, recôncavo, sertão e zona cacaueira não apenas gozem de maior visibilidade no cenário cultural baiano, como delimitam as fronteiras de uma “cultura baiana”. Por conta da significativa produção artística que representa estas regiões, e queremos aqui destacar a extensa obra de Jorge Amado que marcou no imaginário popular (e crítico) tipos, costumes, crenças, sabores, conflitos e sotaques da Bahia, porém, de uma Bahia restrita ao litoral (Salvador), recôncavo, sertão e zona cacaueira baianos. Desta sorte, queremos identificar na obra de Wilson Lins elementos que destoem dos já conhecidos aspectos desta cultura baiana hegemônica (para o cenário local), apontando novos nortes de pesquisa que possam contribuir para a ampliação da visão de formação cultural baiana. Neste caso, através de uma obra literária que representa a 1

Estudante de Licenciatura em Letras com Inglês pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq. 2 Professor Adjunto da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), orientador PIBIC/CNPq.

ISBN 978-85-7395-210-0

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região do Vale do Médio São Francisco, região ribeirinha do Rio São Francisco no trecho baiano, intitulada Jacuba, publicada em 1941 no periódico, já extinto, O Imparcial. Além da contribuição para com os Estudos Culturais, nosso trabalho assiste também contribuir para com os Estudos Literários. Apoiados pelo conceito de Literatura de Jornal, defendido pelo professor Adeítalo Manoel Pinho, orientador deste trabalho, em sua tese de doutoramento Uma História da Literatura de Jornal:O Imparcial da Bahia (2008) resgatar uma narrativa publicada em periódico, há mais de 70 anos a fim de promover sua publicação, permitindo para esta obra o acesso de pesquisadores interessados e de toda a comunidade leitora. Por conta da ainda não realizada a publicação, os fragmentos do folhetim expostos neste artigo não possuem referências textuais. Wilson Lins de Albuquerque, nascido em Pilão Arcado – Bahia, em 25 de abril de 1919 e falecido no dia 04 de agosto de 2004, filho do coronel Franklin Lins de Albuquerque e de Sophia Mascarenhas de Albuquerque, é o porta-voz do Médio São Francisco, sempre com o olhar atento e a escrita sensível voltadas para o Vale e suas gentes. Cronista, ensaísta, literato, e político, tendo sido eleito por cinco mandatos consecutivos como deputado estadual, assumindo o cargo de secretário de educação e cultura do Estado da Bahia, Lins foi polêmico agitador político e cultural integrando em sua obra as tensões e contradições de sua terra e de sua gente. Sempre empenhado em evidenciar a região do Vale do Médio São Francisco, na Bahia, como o cenário da sua “ficção sociológica”. Sociológica por representar em suas narrativas a vida das gentes do Vale, seus costumes, culturas, ritos, crenças, lutas e conflitos. Lins ingressou na Academia de Letras da Bahia no ano de 1967, ano da conclusão da sua “trilogia do coronelismo”, ocupando a cadeira de n°38. Sem dúvidas, o prestígio do qual o autor se serviu esteve sempre relacionado à sua contribuição literária através dos periódicos, em O imparcial no qual iniciou sua produção, chegando a assumir, posteriormente, a direção do matutino baiano; trabalhou, também, para os periódicos de grande circulação: Diário de Notícias, Diário da Bahia, A Tarde, e colaborou intensamente com o Jornal da Bahia, e integrou a redação do vespertino carioca O Mundo, entre 1948 e 1950.

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2 JACUBA, A BARCA, O REMEIRO

O folhetim Jacuba, porém, não está centrado na figura do coronel, publicado entre os meses de junho e julho de 1941, mas buscando representar o ano de 1934, como afirma, em nota, o próprio autor, a narrativa de Jacuba está voltada para aqueles que vivem às margens do São Francisco e às lutas de classe das cidades em recente transformação sociocultural, política e econômica por conta do processo de industrialização. O termo “jacuba” que intitula a narrativa é a denominação de um prato típico da dieta dos remeiros das barcas do Rio São Francisco e é o remeiro o personagem central desta narrativa de Lins. Uma simples mistura de café, farinha e rapadura, todavia, calórica e rica em energia é importante fonte de vigor dos que sobem e descem o rio. É a jacuba nosso primeiro aspecto cultural a ser percebido como item “marginal” do acervo cultural baiano. Marcada pela presença e fusão de receitas e temperos da gastronomia dos povos nativos da terra, dos portugueses que aqui chegaram, e dos povos africanos para cá trazidos como escravos a “culinária baiana” é reconhecida internacionalmente por seu sabor picante, suas receitas à base de peixes e crustáceos, e pela utilização do azeite de dendê, ingrediente principal desta identidade da cultura gastronômica da Bahia. Contudo, na região do vale outra cultura alimentar prevalecia, como afirma o pesquisador Donald Peterson: “Em 1937, Orlando Carvalho Observou que a dieta dos barranqueiros, barqueiros e outros ribeirinhos do São Francisco consistia principalmente de ‘farinha de mandioca e carne seca, às vezes feijão e rapadura’. (PIERSON, 1972. p.71) Percebamos que esta descrição está datada em 1937, apenas 4 anos antes da veiculação do folhetim, e somente 3 anos para além do ano representado pela narrativa de Wilson Lins. Ainda em nota, Pierson registra esta divergência, “Pratos brasileiros como o vatapá e o grande uso de azeite de dendê na preparação desse e de outras iguarias tão características da área de Salvador, parecem ser desconhecidos ao longo de grande parte do São Francisco. (PIERSON, 1972. p.79) Percebemos, pois, a existência de outras culinárias baianas, não marcadas pelos mesmos elementos da região de litoral da Baía de Todos os Santos. Os elementos

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predominantes da dieta baiana do Vale do São Francisco, assim como de grande parte do nordeste brasileiro, em geral, são a farinha de mandioca, a carne-seca ou carne de charque, o café e a rapadura. Café, farinha e rapadura são os ingredientes que compõem a jacuba dos remeiros do São Francisco, ao menos, no trecho baiano, já que constatamos, em ocasião de apresentação deste projeto durante o Curso Castro Alves – VI Colóquio de Literatura Baiana, realizado na Academia de Letras da Bahia (2011), a ocorrência da jacuba com fubá de milho entre os ingredientes, o que identifica a culinária de determinado lugar como parte fundamental da sua cultura, seja numa perspectiva agrícola, seja comercial. Uma vez que, além da jacuba ser composta por produtos gerados na região, eram também estes os principais itens transportados pelas barcas. No capítulo quarto da segunda parte do folhetim “Na hora de Jacubar”, o autor nos apresenta a jacuba, o alimento dos remeiros, homens que com a força dos braços e a dor que calejava o peito levavam as barcas pelas águas dos rios, como afirma o autor através da personagem Rufino, velho remeiro da barca “Serrana”: Numa lata de gás, a jacuba esfriava, no sol. Sim, porque jacuba só fica bem fria, quando fica muito tempo no sol. Quando Caborge trouxe a cuia, o velho Rufino tirou a lata do sol. Com uma colher de pau, mexeu a jacuba. Enquanto mexia, dizia pra moça: - É coisa boa. Gostosa e forte. É o que sustenta nóis, sinhá. - Deve ser um bom refrigerante. – observa Nanita, recebendo das mãos do velho remeiro a cuia de jacuba. - Isso num sei, doninha. – retruca Rufino – Mas que é muito forte, dá talento ao muque pra puxar barca, eu agaranto que é.

A figura central do folhetim é o remeiro, o título do folhetim remete ao prato típico deste, sua fonte de alimento, de força e grandeza. É a jacuba que lhe garante a energia necessária para vencer a força das águas sobre as barcas do Rio São Francisco. As barcas do São Francisco não serviam apenas como um meio de deslocamento para pessoas e mercadorias entre as cidades do vale, as barcas muitas vezes eram também o lar das famílias dos barqueiros, ali residiam com suas mulheres e filhos, tais barcas eram passadas de geração em geração, além de servirem como casa comercial flutuante e itinerante. Assim era a barca Serrana, de “Seu Miguel”:

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Desde que “seu” Miguel e D. Nininha se casaram, que a “Serrana” lhes servia de lar. “Seu” Miguel cumpria um destino de raça. Uma predestinação hereditária. Seu avô fora barqueiro. E a barca “Serrana” veio como herança, do velho Jacinto, seu pai bem querido. Ali, na “Serrana”, “Seu” Miguel nasceu. E três filhos seus já haviam nascido ali debaixo daquelas toldas de palha. A “Serrana” era a sua pátria, sua casa e único bem. Fora daquilo, ele não possuía mais nada de seu, nesse mundo de deus e de tantos mais.

As barcas eram opções às outras embarcações que encontravam dificuldades para transpor alguns trechos do São Francisco e seus afluentes, os barcos a vapor eram poucos à época em que a narrativa de Jacuba acontece, em sua pesquisa Donald Pierson nos relata: A palavra “barca” é comumente aplicada a uma embarcação de pouco calado, consideravelmente maior que a canoa e o ajoujo, impulsionada por varejões ou vela. (PIERSON, 1972. p.552). As barcas traziam pessoas, utensílios, alimentos, encomendas e também novidades dos outros trechos do rio. Desta maneira, a chegada de uma barca era sempre motivo de ajuntamento do povo da cidade, como relata Lins: A chegada de uma barca numa fazenda ou vilarejo constituía uma festa. Os negociantes do lugar eram os primeiros a entrar, disputando as mercadorias que o barqueiro trazia. Depois, vinham os políticos e os letrados, em busca das notícias do mundo.Até, hoje1 com os navios a vapor sulcando o rio diariamente, ainda é muito importante o papel desempenhado pela barca na vida econômica e social das povoações barranqueiras. (LINS, 1983, p. 93)

Além destes sujeitos apontados pelo autor, a chegada das barcas levava aos portos improvisados ou às praias do rio, outros remeiros, amigos, namoradas, em busca da festa que os remeiros faziam, regadas sempre a causos, cantigas e aguardente. Esta é a vida de Arlindo, personagem principal de Jacuba, o herói degradado de Lins para realizar a sua narrativa romântica, social e politicamente engajada. Como afirma Lucien Goldmann a literatura engagée é marcada pela ruptura insuperável entre o herói e o mundo:

O romance é a história de uma investigação degradada (...) pesquisa de valores autênticos, num mundo também degradado, mas em nível diversamente adiantado e de modo diferente (...). O herói do romance é um louco ou criminoso (...), um herói problemático que empreende 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 195-203.

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uma busca degradada e, por isso, inautêntica, por valores autênticos num mundo de conformismos e convenção. (GOLDMANN, 1976, p. 09)

Arlindo é este herói degradado, vindo da pequena “Barra do Tarrachil”, vila às margens do São Francisco, chega à cidade de Juazeiro para hospedar-se na casa seu tio Genolino enquanto espera a “Serrana”, barca da qual seria remeiro. É recebido com encontrões e cotoveladas em Juazeiro, cidade que lhe parecera grande demais, rápida demais: No dia em que saltou em Juazeiro, pela primeira vez, vindo da sua calma Barra do Tarrachil, Arlindo não trazia mais que um corpo forte e são para o trabalho. Era um homem sem interior. Era todo braços, pernas e músculos. Distava do recém-nascido, apenas alguns passos: os anos de vida. No mais era uma criança. Absolutamente criança. Cérebro primário. Refletindo quase nada. Nas conversas com os camaradas, ficava pensando na distante, sem entender nada do que falavam. Espírito embrionário, sem forma, quase sem existência.

Uma enxurrada de informações para a mente simples de Arlindo, buscava compreender tudo aquilo, mas não podia, não dominava sequer a linguagem daquele lugar, daquele mundo. Com ajuda conseguiu chegar à casa do tio, em “Detrás da Banca” o bairro do proletariado de Juazeiro, cuja descrição abre a narrativa de Lins: “Detrás da Banca” é o bairro dos pobres, é separado de Juazeiro pela banca da estrada de ferro. Aquela fronteira de barro e de aço é mais intransponível do que parece. Separa as duas bandas da cidade, muito mais do que se pensa. (...) “Detrás da banca”, bairro paupérrimo, que se não fosse a agitação das vidas que o habitam, poderia ser chamado detrás da vida. Ruas poeirentas. Becos esburacados. Onde os dias voam como gaivotas loucas. Como meteoros. Onde as noites se arrastam, vagarosas, lentas como lesmas lerdas.

De início, Arlindo já percebe a divisão violenta que separa a oligarquia local da maioria pobre. Percebe mas não compreende, nem critica. Apenas se sente oprimido, engolido por este novo mundo com o qual não se identifica. É na roda dos remeiros, onde bebem, tocam e cantam chulas, contam causos e proseiam que Arlindo vai formando o seu caráter contraditório. Tornando-se um vilão desajeitado, respondendo com violência à violência que sofre. De certo, já não é 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 195-203.

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somente músculo, somente braços, adquire uma sensibilidade, inteligência e de maneira caótica busca encontrar o seu espaço nesta sociedade marcada pela desigualdade. Para Wilson Lins o remeiro não é apenas mão-de-obra fundamental para a manutenção e desenvolvimento socioeconômico do Vale, ao remeiro competem também as funções de poeta, cantador e jornalista. Os remeiros e suas histórias de aventura forjam o imaginário mítico da região, as lendas, superstições, além de informar às populações ribeirinhas o que acontece acima e abaixo do trecho do rio. Além de dedicar ao remeiro o papel de personagem protagonista de sua obra em folhetim, Lins dedica muitas páginas de seu ensaio sociológico O médio São Francisco: uma sociedade de pastores e guerreiros (1952) no qual afirma: Os remeiros são os fiéis depositários da riqueza oral do folclore do vale e conservam vivas as tradições e lendas da zona e as transmitem ao povo, de geração em geração, alimentando a imaginação popular com a lembrança dos heróis e crenças dos primogênitos da terra cabocla. (LINS, 1983, p. 93)

O remeiro é o Homero do Vale do São Francisco, é na voz do remeiro que a cultura do vale encontra narrativa. É nos músculos e no peito calejado do remeiro que a economia do Vale progride. Quando, em maré baixa, a barca repleta de mercadorias não consegue avançar, o recurso do remeiro é apoiar no peito a vara de madeira e empurrá-la contra o fundo do rio, tarefa que demanda grande força e que gera ao remeiro uma ferida, um calo que nunca cicatriza. Metáfora de um peito calejado, ferido, ressecado, mas que sempre volta a sangrar. Wilson Lins se refere ao remeiro nestes termos:

O remeiro é um herói que desconhece o seu próprio heroísmo. (...) Traz no peito, como uma condecoração de sangue, na própria carne, um calo do tamanho de um bolachão. É o “calo da vara”, em alto relevo. De tempo em tempo aquilo sangra, abre em ferida, o caibra remeiro “acalma” o calo colocando sobre ele sebo quente ou toucinho derretido. (LINS, 1983, p. 90)

É na barca de “Seu Miguel” que trabalha Arlindo, também ele traz no peito o símbolo da vida sofrida de remeiro, e é na barca, bem na “hora de jacubar” que Arlindo mostra, ao travar um debate com Nanita, sobrinha do dono da barca, que já não é mais

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ingênuo como quando chegara a Juazeiro, não é apenas músculo, que o remeiro não é apenas mão-de-obra: Desde que “seu” Miguel subiu para a rua, que estou ouvindo, sem entender essa história de ficar com os pés pubos. Que é isto? – Que é isto? – responde Arlindo. – É desgraça, senhora. É vida de pobre. (...) E isto dá em todo mundo que viaja em barca? – Não – ruge Arlindo. – Só em nós, os desgraçados, os remeiros. (...) Mas isto é uma barbaridade – acha a moça Nanita. – É, mas tem outro jeito? – grune Arlindo, acabando de lavar os pés e se erguendo na tábua da prancha. E olhando fixo para a jovem: – É bom que a senhora veja isto, para contar aos seus irmãos de classe, os burgueses, o que é a vida de remeiro. Nanita olhou-o calada. E ele conclui: – Fome, semi-fome: jacuba, doença, frieira, pé pubo, eis a vida do remeiro do São Francisco. Diga isto aos ricos.

Arlindo é remeiro, consciente do seu papel neste mundo mal dividido, que. não bastasse o sofrimento do trabalho árduo e mal remunerado, precisa lidar com as frieiras e com o calo no peito, visto como louco pelo discurso revoltado e por encontrar na aguardente a fuga para sua dura realidade. Estes elementos são fundamentais para o nosso objeto de estudo e principalmente para a nossa tentativa de ampliação desta construção denominada de cultura baiana, pesquisar obras e autores que busquem representar e destacar aspectos culturais fundamentais para a formação cultural de determinada localidade, abrindo nortes para que outros estudiosos de literatura e diversidade cultural se empenhem na busca de produções artísticas de força representativa nas “Bahias” ainda não descobertas em suas identidades e culturas, como, por exemplo, as regiões da Chapada Diamantina, Região do Sisal e etc. Em constante diálogo com as demais ciências sociais, Jornalismo, Antropologia, Sociologia, História, Sociologia, buscamos colaborar com a Área de Letras através de resgate, leitura e análise de produções de grande potencial representativo, percebendo a Literatura como agente atuante de representação e formação das relações sociais e da cultura como um todo. ______________________ A primeira edição data de 1952.

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RESUMO

O presente trabalho visa contribuir para os estudos literários e estudos em cultura pondo em evidência uma obra literária do autor baiano Wilson Lins de Albuquerque publicada no ano de 1941 no jornal baiano O Imparcial, intitulada Jacuba que assiste, principalmente, a representar identidades e culturas do Vale do Médio São Francisco na Bahia. Na tentativa de ampliar a compreensão de uma cultura baiana que não se restrinja ao litoral, ao sertão, ao recôncavo e à zona cacaueira, regiões que gozam de maior prestígio político e sociocultural. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Baiana; Cultura Baiana, Wilson Lins.

ABSTRACT

This article aims contribute to literary studies and to studies about culture evidencing a literary work by Wilson Lins de Albuquerque an author from Bahia, written on 1941, titled Jacuba which approaches the identities and cultural aspects from Vale do Médio São Francisco at Bahia. Trying to effort the analysis about Bahia’a Culture not restricted on Bahia’s “litoral, sertão, recôncavo e zona cacaueira” locations which enjoy most political and sociocultural prestigious. KEYWORDS: Literature from Bahia, Culture from Bahia, Wilson Lins. BIBLIOGRAFIA GOLDMANN, Lucien. Sociologia do Romance; tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1976. LINS, Wilson. O Médio São Francisco. (ensaio), Salvador. 1. ed. 1952 e 2. ed. 1959. PIERSON, Donald. O Homem no Vale do São Francisco. Tomo II. SUVALE: Rio de Janeiro, 1972. PINHO, Adeítalo Manoel. Uma história da literatura de jornal: O Imparcial da Bahia. (tese de doutorado), Porto Alegre: PUCRS, 2008.

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A CONCEPÇÃO DE CULTURA DE AFRÂNIO COUTINHO N’O IMPARCIAL DA BAHIA Patrike Wauker Pereira da Silva 1

1 INTRODUÇÃO

Afrânio Coutinho consta, com certeza, entre a lista dos críticos literários de maior renome no Brasil. Contudo, e é importante ressaltar que ele não escreveu apenas sobre crítica literária; por exemplo, desde o seu início, no Jornal O Imparcial da Bahia, os seus textos já discursavam sobre variados temas como: crítica literária, política, sociologia, filosofia etc. Ao se analisar os seus textos deixados no jornal O Imparcial da Bahia, pode-se então se aprofundar na cosmovisão de Coutinho. E assim, perceber de forma mais clara como era estruturado seu pensamento. Talvez, o elemento desta estrutura que mais aparece nesses textos são os temas que envolvem a cultura. Coutinho, em seus 117 textos deixados naquele jornal, sempre procura envolver as questões discutidas com a cultura. Isto porque para ele a cultura era algo essencial ao homem. Por isso, neste artigo, busca-se primeiramente responder a pergunta: qual é a concepção de cultura de Coutinho? Assim, após ter sido esclarecido esse tema poder-seá discutir outros temas. Estes outros são dois: a associação entre a concepção de cultura de Coutinho e a de Otto Maria Carpeaux e a associação entre a concepção de cultura de Coutinho e de Crítica literária. Poder-se-ia indagar sobre a importância da associação entre Carpeuax e Coutinho. Essa pergunta é respondida ao se notar que os dois são grandes críticos, ensaístas e historiógrafos que representaram no Brasil, o melhor da cultura brasileira. Carpeaux escreveu a magnífica – tanto em qualidade como em quantidade – História da Literatura Ocidental e Coutinho trouxe para o Brasil a conhecida Nova Crítica através do volume marcante na história A literatura no Brasil (do qual Coutinho participou como autor e organizador). Assim, todos os artigos aqui citados por Coutinho, quando

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Graduando/GELC/UEFS.

ISBN 978-85-7395-210-0

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não vierem com a fonte bibliográfica, são dos que foram publicados n’O Imparcial. E que podem ser acessados através da consulta ao acervo do professor orientador, Adeítalo Manoel Pinho. Contudo, além disso, o que chama atenção é que os dois tinham concepções semelhantes da cultura. Aqui será usado como base o texto A ideia da universidade e as ideias da classe média de Carpeaux, no qual ele demonstra de maneira clara suas ideias sobre cultura. E de Coutinho, se usará principalmente os seus textos deixados no jornal O Imparcial da Bahia. Que foi coletado pelo professor Dr. Adeítalo Manoel Pinho na sua tese Uma história da literatura de jornal: O Imparcial da Bahia, e que vem sendo estudado pelo autor deste artigo, orientado pelo mesmo professor. Sobre a associação entre a concepção de cultura de Coutinho e a sua concepção de crítica, a justifica há de se encontrar nos seus próprios textos. Já que, se Coutinho permitia-se juntar “cultura” e “crítica literária” era porque ele via alguma ligação entre elas. Então, aqui não será o lugar para uma argumentação sobre se há mais alguma evidência de que ele cria nisso, já que os seus textos (que constam n’O Imparcial) já o demonstram. Esse fato será levado, então, como pressuposto para responder as perguntas: qual associação Coutinho faz entre aqueles dois fatores? Pode-se tentar argumentar que uma associação entre os dois iria contra as ideias de Coutinho, já que ele era um representante da Nova Crítica – o que diria que ele estuda o texto pelo texto, sem associação com fatores extraliterários. Essa ideia é falsa por dois motivos: (1) Os textos de Coutinho fazem esta associação, então já está demonstrada que pode haver alguma ligação entre os dois e (2) A Nova Crítica não procurou se desfazer por completo de fatores extraliterários , mas sim procurou demonstrar que o centro da crítica literária não são esses fatores, contudo não virou o rosto completamente para eles. O próprio Coutinho diz que : Dessa maneira, segundo a perspectiva aristotélica, a obra de arte – e no caso, o poema ou o romance – é vista em si mesma “como um todo, um sistema dinâmico de sinais servindo um propósito estético específico”, e é apreciada e julgada por dentro. Não interessam, pois, senão secundária e subsidiariamente, subordinados ao ponto de vista propriamente crítico, interno, forma, os dados exteriores sobre o autor, sobre o meio físico, social, histórico. Esses dados só devem interessar se servem ao estudo da obra em si. Caso contrário são material antes para o sociólogo, o historiador, o psicólogo. Jamais para o crítico literário, em oposição à concepção digamos “poética” da literatura, em 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 204-214.

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oposição à concepção “Política” ou histórica. (COUTINHO, 1980, p. 16)

Contudo, será também lembrado que os textos deixados por Coutinho n’O Imparcial da Bahia não tem a intenção de ser pura crítica literária. Então, não se pode ir aos seus textos de jornal, procurando uma análise crítica digna do grande crítico brasileiro. Mas sim, textos de jornal que contém a erudição e ousadia do grande crítico brasileiro, porém, ainda assim textos de jornal.

2 CULTURA, EDUCAÇÃO E CRÍTICA.

Para Coutinho a cultura é aquilo que torna o homem, Homem. Ele assim descreve a cultura em A questão da cultura: “A noção de cultura implica a de luta. É a luta do homem no mundo: recusando-se a viver como animal.” (COUTINHO, 1934, p. 4). Para Coutinho, a cultura não é o conhecer certas especificidades, mas conhecer a realidade em seus aspectos gerais. Assim, a cultura seria uma visão geral. Ele diz o seguinte, no último texto citado: “Cultura, no ponto de vista do espírito, envolve um complexo de elementos gerais” (COUTINHO, 1934, p. 4). E, por isso, ele critica, já naquele tempo, a escola brasileira. Para Coutinho, o sistema de ensino brasileiro nada mais era do que um guia para o conhecimento das especificidades. Logo, para ele a escola não introduzia cultura e sim alguns ensinos. Chegando ao ponto, de dizer que a escola não dava educação. Isso porque Coutinho concebia educação como a transmissão de cultura. Observem as considerações que ele fez também em seu artigo A questão da cultura: Uma das graves queixas que tem a mocidade brasileira a fazer a suas antecessoras é quanto a falsa educação que lhe deram. Não nos fizeram homens cultos. Ensinaram-nos nas escolas a pensar em ser grandes técnicos, mas não nos mostraram que antes disso deveríamos ser homens. O resultado foi a criação de escravos, cada qual mais tiranizados pela sua arte, e impossibilitado de dominá-la e a sua vida. (COUTINHO, 1934, p. 4)

Assim, ele demonstrava qual a sua concepção de Cultura. A concepção de Coutinho é similar a apresentada por Jacques Maritain em seu Rumos da Educação, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 204-214.

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neste livro, que é uma reunião de ensaios do filósofo francês, a educação é revelada como processo de amadurecimento do homem e que só se consumaria realmente no aperfeiçoamento do homem no amor. Se fossemos buscar mais além as fontes dessas ideias, iríamos descobrir que essas não se iniciam com Maritain, mas já estavam em vista desde os tempos medievais. Um exemplo é a educação da Idade Média, que era baseada no Trivium. Que formariam, juntamente com o Quadrivium, as Artes Liberais que teriam como o objetivo o amadurecimento do homem, ou novamente citando Coutinho transformar o homem em Homem. A irmã Miriam Joseph diz o seguinte sobre elas: As artes liberais denotam os sete ramos do conhecimento que iniciam o jovem numa vida de aprendizagem. O conceito é do período clássico, mas a expressão e a divisão das artes em trivium e quadrivium datam da Idade Média. (JOSEPH, 2002, p.21)

Ficam-se então claras as influências aristotélico-tomistas sobre Coutinho. Se quiséssemos corroborar ainda mais sobre estas influências sobre Coutinho bastaríamos falar sobre a Nova Crítica – da qual Coutinho é representante no Brasil – pois, esta recebe influências da filosofia de Aristóteles. No seu livro “Crítica e Poética”, Coutinho diferencia dois tipos de crítica literária: uma baseada nas teorias de Platão outra na de Aristóteles. Ele diz os seguintes sobre isto: A crítica, para Aristóteles – segundo está implícito no seu tratado – é uma crítica de análise e avaliação da obra literária, como obra de arte. Aristóteles, ao contrário de Platão, é um espírito indutivo. Platão era um espírito dedutivo – partia da ideia, do arquétipo geral para a realidade. Enquanto Aristóteles era um indutivo – partia do fato para a lei. Ele vinha da observação dos elementos que constituíam a realidade, para então induzir a concepção geral. (COUTINHO, 1980, p.58)

E logo depois, quando procurar definir a Crítica, seguindo a sua concepção, ele diz que: [...] À verdadeira crítica, - a crítica literária, a crítica poética, isto é, a crítica que procura estabelecer, interpretar e analisar a obra de arte literária, - compete procurar, justamente, valorar a obra literária através desses que são os elementos específicos da obra de arte.

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Essa crítica – que poderia chamar formal ou crítica estética, ou crítica intrínseca, ou crítica poética, literária propriamente dita – é aquela, portanto, que se sitia no plano especificamente literário. (COUTINHO, 1980, p. 60)

Vê-se então a influência aristotélico-tomista em Coutinho. Não somente na sua concepção de crítica literária, mas também na sua visão de cultura – o que acaba por influir sobre sua concepção de educação. Essas influências se fazem perceber, n’O Imparcial da Bahia, principalmente em citações de nomes como Jacques Maritain (aqui já citado), Ortega y Gasset, Daniel Rops e François Mauriac. Podemos dar exemplos disso nas seguintes citações - do texto Por uma nova cultura (Sobre o livro de Rougemont): “Cultura, não a simples erudição.[...] Organismo espiritual (Keyserling). Sistema vital das idéias de que vive o tempo, sistema das concepções sobre o universo sobre o que são as coisas e o mundo (Ortega y Gasset). Hoje o pensamento criador não está com os conservadores... Mas na oposição, e se chama Jacques Maritain, François Mauriac, Chesterton, Daniel Rops, Denis de Rougemont, André Malraux, José Bergamin... (COUTINHO, 1934, p. 4)

3 COUTINHO E CARPEAUX

Concebendo a educação como formação do Homem, Coutinho acaba por se aproximar não apenas do pensamento dos filósofos medievos, mas também do historiador literário Otto Maria Carpeaux. Dono de uma verve toda própria e de um conhecimento todo amplo, Carpeaux tinha a mente de um típico Renascentista (por possuir uma cultura enciclopédica). Em seu livro mais glorioso, História da Literatura Ocidental, conseguiu fazer o que nenhum outro fez: narrar com precisão e graça a história dos estilos literários desde a Grécia até o Modernismo. Vê-se, desde já, então, a compatibilidade entre os dois intelectuais: ambos donos de opiniões que confrontavam a vida brasileira, os dois donos de grande erudição e os dois se dedicando a literatura. Quando pensamos sobre as opiniões deles que confrontaram a realidade brasileira, logo podemos pensar sobre as suas considerações sobre educação, cultura e inteligência. Como já foi relatado, Coutinho possuía a opinião

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de que a inteligência está inter-relacionada não ao conhecimento especifico, mas ao conhecimento geral, e é por isso que ele diz o seguinte no seu texto A questão da cultura: “Cultura, no ponto de vista do espírito, envolve um complexo de elementos gerais.”(COUTINHO, 1934, p.4) Cultura, educação e inteligência, então se tornam conceitos inter-relacionados. E o mesmo faz Carpeaux, em seu texto A ideia da universidade e as ideias da classe média, quando diz: É preciso que se digam, aqui, algumas verdades muito impopulares e muito desagradáveis. Existe Inteligência e existem "intelectuais". Intelectuais são os médicos, os advogados, os funcionários superiores de toda espécie, os especialistas científicos de toda sorte. Mas deve-se dizer que somente uma parte desses "intelectuais" pertence à Inteligência, que é, por seu lado, o resto dos "clercs", da elite de outrora. Sejamos sinceros: podemos ser bom médico, bom advogado, bom professor, e ter o espírito preso aos limites da profissão; e sabemos que o grau acadêmico nem sequer é sempre a garantia de boas qualidades profissionais. Mas ele confere sempre uma autoridade social. José Ortega y Gasset caracterizou essa nova espécie de intelectuais, violentamente, mas sinceramente: "Nuevo bárbaro, retrasado com respecto a su época, arcaico y primitivo en comparación con la terrible actualidad de sus problemas. Este nuevo bárbaro es principalmente el profesional más sabio que nunca, pero más inculto también — el ingeniero, el médico, el abogado, el científico." (CARPEAUX, 2012)

E depois, acrescenta, semelhantemente a Coutinho, observações valiosas sobre o mecanicismo:

Segundo o regime escolar vigente em todos os países, sem exceção,a Universidade dedica-se ao ensino profissional superior, enquanto a "cultura geral" fica reservada ao ensino secundário, aos ginásios e aos liceus. Quer dizer: o ensino da cultura geral limita-se aos jovens de dez a dezoito anos. Depois, a "cultura" termina, e a medicina e a jurisprudência começam, sem nenhuma "cultura geral". Os conhecimentos do ensino secundário empalidecem, naturalmente, com o tempo; mas ainda há coisa pior: todo esse ensino de "cultura geral" é feito ao alcance de jovens de dez a dezoito anos: a história, a filosofia, a literatura, amoldadas ad usum Delphini, e forçosamente puerilizadas. E aí fica. Nunca mais o jovem médico ou engenheiro ouve falar em história, filosofia, literatura, exceto pela imprensa ou pelo rádio, que se colocam ao alcance do espírito das grandes massas, pueris por natureza. Resultado: um espírito artificialmente preservado 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 204-214.

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no estado pueril com uma formação profissional superposta. Conheço bem as numerosas exceções que felizmente existem. Mas, em geral, estas massas graduadas se distinguem dos iletrados somente por uma autoridade profissional que as torna menos úteis que perigosas. Ainda uma vez cito Ortega y Gasset: "La peculiarísima brutalidad y la agresiva estupidez con que se comporta un hombre, cuando sabe mucho de una cosa y ignora de raiz todas las demás" (O. c., p. 1291). Eles, porém, os iletrados, têm sempre razão, porque são muitos e ocupam um lugar de elite, esse "proletariado intelectual", sem dinheiro ou com ele, isso não importa. Julgam tudo, e tudo deles depende. Lêem os livros e decidem sobre os sucessos de livraria, criticam os quadros e as exposições, aplaudem e vaiam no teatro e nos concertos, dirigem as correntes das idéias políticas, e tudo isto com a autoridade que o grau acadêmico lhes confere. Em suma, desempenham o papel de elite. São osnouveaux maîtres, os señoritos arrogantes, graduados e violentos; e nós sofremos as conseqüências, amargamente, cruelmente. "We are entered in a race between education and catastrophe." Wells tem muita razão. Mas é de grande importância datar a desgraça. Esta catástrofe irrompeu sob o signo do progresso, e o progresso ilimitado, muito do gosto de um Wells, cavará mais profundamente o abismo. O verdadeiro caminho é a volta. (CARPEAUX, 2012)

Para que se retire todo o tipo de dúvida, incluir-se-a uma citação de Coutinho, no seu texto Maquinismo e Civilização: “O problema do maquinismo invade os domínios da metafísica....[..] A maquina é o símbolo da soberania do homem sobre a natureza que o cerca, resume o papa Henry Ford” (COUTINHO, 1934, p.4)

E até a solução colocada por Coutinho, para o mundo, é parecida com a de Coutinho. Por certo, os dois colocam a solução no campo do espírito (uma nova ressurreição da inteligência, e não de intelectuais), ele diz – em seu artigo Por uma nova cultura (Sobre o livro de Rougemont): “...se queremos reconstruir, é preciso começar pelos fundamentos, e refazer no espírito” (COUTINHO, 1937, p.4) E Carpeaux fala que: Voltemos aos estudantes: o seu utilitarismo, mais perigoso que o das ciências, perdurará enquanto a freqüência das universidades for a chave para as posições de mando na sociedade. Verdadeiramente, o oposto deste utilitarismo é o desinteresse, no qual Newman via o espírito e a idéia de universidade, o espírito do clero universitário medieval que se sentia independente do mundo e somente responsável perante Deus. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 204-214.

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Sem tais padres o altar fica vazio e o culto abandonado. Poderia chegar o dia em que ninguém compreenderia mais as fórmulas nem os poemas, em que os quadros de Rembrandt seriam pedaços de tela e as partituras de Beethoven farrapos de papel; dia da barbaria, em que a história humana se transformaria, pela sucessão de desgraças, num formigueiro mal organizado. E este dia talvez já esteja mais próximo do que realmente pensamos. "Somos a última reserva, fiquemos conscientes disto." — dizia Hugo Ball. Fiquemos conscientes, "dreading to leave an illiterate Ministery to the Churches, when our present Ministers shall lie in the dust". (Carpeaux, 2004)

Assim, demonstra-se a semelhança entre o pensamento de Coutinho e Carpeaux, a respeito da cultura, inteligência, educação e sobre a modernidade.

4 A CONCEPÇÃO DE CULTURA E A CRÍTICA LITERÁRIA

No estudo dos textos de Crítica Literária, deixados por Coutinho no jornal O Imparcial da Bahia, uma dúvida se levantou: por que Coutinho não se detém mais ao texto, do que a interpretações do texto? Certamente, a resposta reside no fato de que o que Coutinho fazia ali não era crítica literária propriamente dita; era jornalismo, com sustentação crítica. Coutinho analisava a obra segundo princípios da crítica, mas com os resultados dessa análise buscava aplicá-los a situação brasileira e mundial. Por isso, quando fala sobre a obra Coriolano, de Shakespeare, tira daí lições para o Mundo.Citemos, então, um trecho seu do artigo Actualidades de Shakespeare, para corroborar o que se diz: “A propósito da representação do ‘Coriolano’ de Shakespeare [...] A sua preocupação com de humanidade é tanta que, por vezes, ele é infiel ao modelo que lhe oferece Plutarco para ser mais fiel a vida [...] ‘Coriolano’ é uma sátira aos costumes políticos, a democracia” (COUTINHO, 1934, p.4)

Assim, nota-se que Coutinho não quer escrever sobre a estrutura de Shakespeare, ou sobre a sua linguagem, ou sobre a sua unidade; mas sobre suas considerações sobre o Homem e o Mundo. Coutinho quer compreender a compreensão de Shakespeare de mundo, e assim o aplica na sua época. Contudo, ele não toma caminhos de interpretações sociológicas, culturalistas ou mesmo psicanalíticas, mas baseia o seu andar interpretativo em crítica literária pura (que é uma análise do texto, pelo texto). 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 204-214.

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Coutinho, simplesmente, parece usar essa crítica literária como um caminho, e não com um fim em si mesmo. 5 CONCLUSÃO Coutinho, nos seus textos deixados n’ O Imparcial da Bahia, se mostra como grande conhecedor do cânone literário antigo e contemporâneo. Comenta Shakespeare, Papini, Mauriac e outros. Nestes textos Coutinho já demonstra ser guiado por uma crítica competente e por uma boa compreensão literária. Contudo, estes textos não são textos de critica literária, e sim textos jornalísticos que usam da crítica literária como um meio. A sua concepção de cultura está interligada com a filosofia das Artes Liberais, indo, então, contra a temática “mecanicista” da idade moderna. Um dos autores modernos que partilham de sua mesma concepção de cultura, é o crítica, ensaísta e historiador da literatura, Otto Maria Carpeaux.

RESUMO

Afrânio Coutinho foi um dos críticos mais importantes do Brasil. Isto testemunha-se pelos seus livros A literatura no Brasil (como organizador e escritor), Introdução à literatura no Brasil e Enciclopédia da literatura brasileira. Ele iniciou a sua bemsucedida carreira no Jornal O Imparcial da Bahia. Uma vez constatada a produção de um autor tão importante nas folhas do jornal, é imprescindível a conservação e o estudo desse suporte de cultura. Em O Imparcial, Coutinho cria e produz na coluna Pela Ordem... Nesses textos Coutinho disserta sobre variados assuntos: filosofia, cultura, política e literatura. Contudo, o que prepondera é o aspecto cultural dos seus textos. Isto demonstra a importância que ele dava a este tema. Tem-se então como objetivo deste trabalho chegar a uma compreensão de cultura, em Coutinho, para que daí se possa compreender melhor o seu pensamento. Coutinho via a cultura como o principal na educação, e por isso enfatizava-a quando escrevia. Não só isso, para Coutinho a cultura era o que tornava homem, por assim dizer, Homem. Assim, Coutinho, buscava sempre uma definição de cultura como uma elevação do ser humano. Pode-se, então, constatar a

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 204-214.

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importância do estudo dos textos de Afrânio Coutinho, presentes n’O Imparcial da Bahia. Já que através deles pode-se inferir sobre o pensamento de Coutinho, pensamento este que veio influenciar em grande parte a cultura e a crítica literária brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Crítica Literária. Crítica Cultural. O Imparcial da Bahia.

SUMMARY

Afranio Coutinho was one of the most important critics of Brazil. This is a witness for his books A Literatura no Brasil (as an organizer and writer), Introdução a literatura no Brasil and Enciclopédia da Literatura Brasileira. He began his successful career in O Imparcial Journal of Bahia. Once verified the production of an author so important in the leaves of paper, it is essential to the conservation and study of media culture. In O Imparcial, Coutinho creates and produces column Pela Ordem ... In these texts Coutinho lectures on various subjects: philosophy, culture, politics and literature. However, what prevails is the cultural aspect of their texts. This demonstrates the importance he attached to this issue. You now have the objective of this work come to an understanding of culture, Coutinho, so then you can better understand your thinking. Coutinho saw culture as the primary education, and so emphasized when he wrote it. Not only that, for Coutinho culture was made that man, so to say, Man. Thus, Coutinho, always seeking a definition of a raising of the culture as a human being. You can then see the importance of the study of texts Afranio Coutinho, present in O Impacial of Bahia. Because through them we can infer about the thought of Coutinho, who thought that came to influence largely the Brazilian culture and literary criticism. KEYWORDS: Literary Criticism. Cultural Critique. The Impartial Bahia.

BIBLIOGRAFIA CARPEAUX, Otto Maria. A ideia da universidade e as ideias da classe média Disponível em: 10/06/2012 COUTINHO. Afrânio. 1934. Actualidades de Shakespeare. O Imparcial, Bahia, p. 4, 27 de Julho de 1934.

3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 204-214.

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COUTINHO. Afrânio. 1934. A questão da Cultura. O Imparcial, Bahia, p. 4, 23 de maio de 1934. COUTINHO. Afrânio. 1934. Maquinismo e Civilização. O Imparcial, Bahia, p. 4, 9 de dezembro de 1934. COUTINHO. Afrânio. 1937. Por uma nova cultura (Sobre o livro de Rougemont). O Imparcial, Bahia, p. 4, 22 de maio de 1937. COUTINHO, Afrânio.Crítica e Poética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. JOSEPH, Miriam. O Trivium. São Paulo: É Realizações, 2008.

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O CONQUISTADOR: UM ENTRELAÇAMENTO PARODÍSTICO ENTRE O TEXTO HISTORIOGRÁFICO E O FICCIONAL Sinéia Maia Teles Silveira 1

1 INTRODUÇÃO

A construção da história de Portugal teve por base alguns mitos originados da tradição judaico-cristã (Messianismo), Mito Arturiano etc. Este, baseado também no Messianismo, prega a chegada de um rei nobre, puro de coração, salvador e narra a história do Rei Arthur, de Camellot, localizada na ilha de Avalon, local onde a espada mágica chamada Excalibur foi cravada, só sendo possível ser retirada por um homem revestido de bondade e pureza de alma, o qual seria o novo Rei, capaz de governar sabiamente seu povo, trazendo-lhe salvação. Os dois mitos, portanto, centram-se no mesmo foco: um povo sofredor que espera salvação advinda de um ser superior, redentor. Estes mitos foram sendo propagados ao longo do tempo. Em Portugal, o maior divulgador e incentivador do mito sebástico foi o Infante D. Enriques, o qual, batalhando contra os mouros, afirmou que Cristo lhe dissera para divulgar a fé cristã e, em contrapartida, ele o ajudaria nessa batalha. D. Henriques creu que os portugueses foram escolhidos por Cristo para divulgar o Cristianismo e, caso ele encontrasse o santo Graal (cálice usado por Cristo na última ceia), seria o salvador do seu povo. Cristo e o Rei Arthur morrem. Cristo tem seu corpo desaparecido e Maria Madalena afirma tê -lo visto após isso, dizendo-lhe que ressuscitaria. O povo atribui ao rei Arthur uma morte misteriosa, sendo que seu corpo não foi visto por ninguém, acreditando-se que ele está encoberto pela névoa da Ilha de Avalon. Percebemos que, da mesma forma como o povo judaico-cristão passou por momentos difíceis e de sofrimento, invocando um salvador, naquele contexto Portugal também atravessava um período de dificuldades, tendo em vista que D. João e sua

SILVEIRA. Professora Assistente da Universidade da Bahia, Departamento de Ciências Humanas ― DCH ― Campus V. Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional. E-mail: [email protected]. 1

ISBN 978-85-7395-210-0

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mulher não tinham gerado herdeiro, o que provocaria o fim da linhagem real. Isso leva o povo a clamar por um rei capaz de salvar a pátria dessa situação. É nessa conjuntura que D. Sebastião foi gerado, em meio a orações e promessas, daí ter sido aclamado como O Desejado. D. Sebastião foi coroado rei aos três anos de idade e começou a governar aos quatorze. Apesar de destemido, personalidade forte, voluntarioso, ele não queria casar, rejeitando várias candidatas. Com vinte e quatro anos foi para Marrocos, lutar na batalha de Alcácer-Qubir, onde morreu sem deixar herdeiros. Portugal perdeu seu reino, o qual foi ocupado provisoriamente pelo cardeal D. Henrique, morto em 1580. Em seguida, D. Felipe II, da Espanha, decide tomar Portugal, que passa a ser mera colônia espanhola, situação que permaneceu por sessenta anos. Quem estava na batalha de Alcácer-Quibir alega não ter visto o corpo de D. Sebastião. A partir desse fato, começa a ser divulgada em Lisboa umas quadrinhas populares de um poeta popular e sapateiro conhecido como Gonçalo Eanes Bandarra, cujo conteúdo passa a ser interpretado pelo povo como uma profecia segundo a qual D. Sebastião não estaria morto, mas tão somente esperando a hora certa para voltar e recuperar a soberania portuguesa, livrando o seu povo do domínio espanhol. Dá-se a mitificação de D. Sebastião, rei que morreu pelo seu povo, iniciando-se o mito do “Encoberto”, acreditando-se que ele perambula pela Terra e que voltará para restabelecer a monarquia e o V império. Tal profecia nunca se cumpriu, mas originou o mito sebastianista, o qual vem à tona sempre que o país atravessa dificuldades e serve de pano de fundo para várias obras literárias, as quais evocam a figura do Encoberto, umas de forma laudatória, outras de modo crítico e parodístico, como é o caso do romance O Conquistador (1990), de Almeida Faria.

2 UM PERCURSO PELA ESTRUTURA DA OBRA

Uma das características marcantes da prosa portuguesa atualmente é a revisitação do passado pelo viés crítico, muitas vezes parodisticamente. E é a partir desse enfoque crítico que muitos autores empreendem uma reflexão sobre seu país, revisitam sua história, como o faz Almeida Faria, evidenciando as profundas transformações pelas quais Portugal passa. Ele faz uma reescrita e reinvenção da

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história, questiona os fatos históricos que servem de matéria para o romance, problematizando-os, interrogando sua legitimidade e, desta forma, coopera para a desestabilização da identidade nacional portuguesa fundada neste passado histórico. Neste sentido, o romance é uma possibilidade de releitura do misticismo português e é a partir do mito sebastianista que o autor põe em xeque e desestabiliza a história oficial a partir do diálogo entre a ficção e a historiografia i. O livro se estrutura em sete partes, as quais revelam etapas da vida de Sebastião, de suas conquistas amorosas, iniciando com seu nascimento, no primeiro capítulo, até ao seu recolhimento, no sétimo. Pelo viés da memória, ele percorre vinte e quatro anos: “De nada mais preciso neste dia do meu vigésimo quarto aniversário” e, pela escrita, sete meses: “Trouxe economias suficientes para sete meses [...]” ii. Desde a capa, o livro mescla distintas linguagens que se imbricam, mesclam-se provocativamente, convidando ao leitor para mergulhar nesses possíveis sentidos. Enquanto o título sugere várias leituras, o desenho aponta para a relação com o rei D. Sebastião. A obra traz sete capítulos, os quais são anunciados por sete desenhos e sete epígrafes (em várias línguas), formando textos que se interrelacionam, os quais abrem várias possibilidades de leitura, inclusive a partir de ricas relações intertextuais. O protagonista de O Conquistador não é apenas um homônimo do Rei D. Sebastião. Notamos que Faria cria um narrador autodiegético (o narrador é também o protagonista da história e como tal, revela suas próprias experiências de vida), que conta o que sucederia a alguém que, mediante vários elementos coincidentes, fosse confundido com o rei D. Sebastião, sumido tragicamente. Esse paralelismo que une os dois “sebastiões” é marcado pela ambiguidade, já que na narrativa há vários fatos que cooperam para reiterar essa idéia do retorno de D. Sebastião e, paralelamente, são tecidas críticas mordazes, a partir de uma fina ironia, cooperando para desconstruir esse mito português: [...] Mas a verdade pode surgir da mentira repetida. iii Como racionalista esclarecida, Clara tinha outra atitude em relação à História. Comparadas com o milenário messianismo hebraico, as sebastianices locais eram-lhe a penas caricatas. iv

Ao longo da trama, o Sebastião narrador se distancia do Rei no que concerne à forma de aprendizagem e ao modo de encarar a vida. Faria contrapõe ao “Desejado” (rei 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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que assume um caráter salvívico) a figura de outro Sebastião que questiona os fatos, se insurge contra guerras que ele chama de “sem sentidos”, sendo visto como “o Enjeitado” (p. 12), numa clara oposição de sentidos marcada via léxico. Enquanto Camões, em Os Lusíadas, põe na figura do Rei D. Sebastião a esperança do povo português, Faria deixa em suspenso esse mito, propiciando o seu esvaziamento. Para isso, ele faz o resgate da história mesclando dois tempos: um passado distante, evidenciado pelas conquistas portuguesas, o qual é resgatado por intermédio de Sebastião de Castro, numa paródia do rei Sebastião; passado mais recente, quando Sebastião, personagem, escreve suas memórias em sete meses.i Neste sentido, a história é trazida è memória pela paródia (como rei Sebastião) e pelo presente do personagem Sebastião, isso a partir de linguagem solta, suave, beirando o chiste, por meio da qual o burlesco se evidencia, enquanto que a linguagem mais culta, mais letrada se presentifica nas várias intertextualidades, convocando outros autores para esse diálogo. Essa intertextualidade é algo marcante na literatura contemporânea e, de modo geral, recurso bastante empregado na obra Fariana. Pelo viés da crítica, da fina ironia, o autor revisita obras clássicas, construindo seu texto a partir de um diálogo com outros textos e autores, abrindo a possibilidade de múltiplas leituras, fazendo remissão a textos consagrados. Nesse sentido, sua narrativa dialoga com outras a partir de retomadas, referências, paráfrases e citações, o que coopera para o leitor construir sentidos. Isso já se delineia desde a capa, que é tecida com um texto multissemiótico, até as várias epígrafes que são empregadas como um mecanismo lingüístico que possibilita ao leitor fazer antecipações, previsões, conjecturas acerca do teor da narrativa. Percebemos, por exemplo, uma intertextualidade explícita nas citações que abrem os capítulos, assim como a implícita, quando o autor insere, no seu texto, intertexto alheio, não citando a fonte, mas sendo facilmente recuperável para o leitor capaz de ativar o texto-fonte em sua memória. Textos de Fernando Pessoa, por exemplo, se presentificam no romance, alguns retomados subversivamente:

As cartas que Clara me enviou, semana após semana, e que nunca me soaram a ridículas [...]. vi Continuo ignorando quem sou eu. Se fui quem hoje julgo ser, se sou quem dizem que fui, se nunca serei mais que não saber quem sou ou quem serei, mesmo assim valeu a pena. vii 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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Meu pai tornou-se marinheiro em terra, reúne-se com amigos em duvidosas tascas perto do porto, empolando aventuras por mares nunca mais navegados. viii

Seus personagens, em O Conquistador, fazem reviver parodisticamente mitos da história de Portugal. Nesse viés, Faria consegue tanto a sacralização quanto o questionamento do passado português, no que tange à criação de mitos que cooperam para conduzir “[...] muito boa gente [...] a um masoquismo coletivo que define bem o fraquinho deste país por tudo que seja fracasso, amadorismo e misticismo de pacotilha.” ix

, algo que é reforçado pelo sebastianismo, como defende Eduardo Lourenço, quando

advoga que “[...] esse sebastianismo representa a consciência delirada de uma fraqueza nacional, de uma carência, e essa carência é real”. Para ele, [...] essa nossa maneira de ter passado como se não o tivéssemos, ou tendo-o para nos exaltarmos oniricamente com ele, é um sério obstáculo para conceber um futuro onde o que nós sonhamos de melhor específico seja realmente, como toda a pulsão futurante deve ser, filho das exigências e dos imperativos de um presente singular. x

Com o

foco

ficcional de alguém

que narra sua própria história,

autodiegeticamente Sebastião nos conta o que poderia acontecer com um indivíduo que, por conta de algumas semelhanças com o Rei D. Sebastião, fosse confundido com ele. Nesse paralelismo, observamos elementos coincidentes que o aproximam do Sebastião histórico, mas também percebemos distanciamentos, rupturas, dessemelhanças que os afastam abruptamente, evidenciando outro destino para o narrador-personagem. Ou seja, ele foge do caminho predestinado para ele, alegando que “[...] já se nasce fadado. Mas nem os fados nem as fadas bastam” xi. Ao final, Sebastião retorna do exílio em Paris, para onde fugira na intenção de não guerrear na África, refugia-se em Peninha para não ser preso, onde espera o seu destino, ficando o mito em suspenso: o fim deixa aberta a possibilidade de um novo (re)começo, mexendo, mais uma vez, com a imaginação do leitor que é convocado a (re)esquadrinhar o texto em busca de novas pistas textuais.

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3 RECONTEXTUALIZAR PARA DESSACRALIZAR: UMA FORMA DE SUBVERSÃO

A narrativa do romance O Conquistador faz uma recontextualização, no final do século XX, da volta às avessas de D. Sebastião. Para ocupar tal papel é convocado um homem simples, que coopera para dessacralizar a figura mítica do rei a partir de um comportamento dionisíaco acrescido de um discurso mordaz e irônico. O protagonista é construído de forma parodística e, ao mesmo tempo em que dialoga com o referente histórico e mítico deste homônimo, distancia-se temporalmente e em relação ao modus vivendi dele. Notamos que a narrativa é construída tendo por base algumas aproximações e distanciamentos entre a história vivida pelo Sebastião histórico, rei de Portugal, e pelo narrador-protagonista do romance, Sebastião Correia de Castro. Dentre as similitudes em relação ao mito sebastianista, podemos elencar algumas que são bastante significativas, conforme perceptível na análise de trechos do romance abaixo citados. O protagonista é nomeado como Sebastião, como uma forma de homenagem, tendo em vista que o herói do romance nasce no mesmo dia do Rei D. Sebastião (20 de janeiro), quatrocentos anos depois, conforme explicitado no romance: Este espetáculo criou nos presentes [...] a convicção de que não seria casual a coincidência de El-rei D. Sebastião e eu termos vindo ao mundo no dia do santo do mesmo nome. [...] O meu bilhete de identidade marca a data de vinte de janeiro de mil novecentos e cinqüenta e quatro para o meu nascimento. [...]. Nome completo: Sebastião Correia de Castro. [...]. xii

O personagem nasce em um dia de nevoeiro vindo do norte da África, local onde Dom Sebastião desapareceu, quando da batalha de Alcácer-Quibir:

Na véspera do meu nascimento caíra sobre a serra de Sintra a tempestade mais tremenda de que as pessoas se lembram. A autora chegara enrolada em nimbos baixos, tão carregados de cúmulos em forma de couve-flor de chumbo que nunca, em muitos anos de embarcado, meu pai observara tal espessura de nuvens, tal secura de trovões [...]. xiii

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Percebe-se, nesse trecho, uma relação com o sebastianismo, visto que este menino vem do mar, encoberto pela névoa, como se D. Sebastião estivesse regressando, o que, de imediato, aponta para dois mitologemas: o primeiro, “do salvador oculto”, que é um eco do terceiro, conhecido como “o fundador vindo de fora”. Esses mitologemas que a memória portuguesa recupera com vigor sempre que o país atravessa situações difíceis, segundo Durant, apontam para “a paixão do além, o absoluto “ex-otismo” do imaginário” xiv do povo português. Justamente a partir da lenda do nascimento de Sebastião notamos que se configura a reconstrução desse mito, o qual é alimentado dia a dia pelo imaginário coletivo representado pela avó do protagonista: Foi minha vó Catarina – e as avós nunca mentem- quem me meteu essa idéia na cabeça. Costumava contar-me que, num dia de inverno, de manha cedo, apesar do nevoeiro, o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da Adraga apanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com a cabeça, as pernas e os braços de fora. xv [...] a avó dava-lhe alento dizendo que um dia o Rei voltaria, numa certa madrugada, no meio da neblina. xvi

Outra semelhança que chama a nossa atenção diz respeito a algumas características físicas bastante peculiares do narrador-personagem, dentre elas a polidactilia, que se caracteriza pelo excesso de dedos nas mãos ou nos pés, tal como o Rei D. Sebastião que apresentava seis dedos nos pés: [...] E Joana, minha mãe, para todos os efeitos, deve ter gostado desse filho-mistério que primeiro a assustou porque tinha seis dedos no pé direito [...]. xvii Que te importam as diferenças físicas, por vária gente notadas, em relação aos pais que te geraram, ou que só te adotaram? ... Que teus pais fossem morenos, altos, de feições e narizes compridos, enquanto tu és louro, entroncado, de olhos claros, curto o nariz, redonda a cara, a boca de carnudos lábios, o de baixo descaído como o de Catarina [...]. xviii [...] Nessas reuniões surgia sempre o tema das semelhanças entre o Rei e eu: os olhos amendoados, os cabelos alourados, a cara oval, o beiço belfo dos descendentes de Carlos V, os dedos delicados, o tronco curto, desproporcionado em relação aos membros compridos demais. xix

Merece destaque, ainda, a ênfase imaginativa que aproxima o narrador3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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personagem do rei, o qual era bastante visionário, a ponto de empreender uma luta como a de Alcácer-Quibir, a qual diz respeito à “desastrosa expedição do cavalheiresco e quimérico jovem rei D. Sebastião a Alcácer-Quibir, em Marrocos, a 4 de agosto de 1578, que colocou Portugal sob a dominação espanhola durante mais de meio século”, como informa Durant.xx E, por conta desse jeito devaneador, sofre uma fragorosa derrota, colaborando para a morte de tantos soldados nessa batalha que o narradorprotagonista chama de “absurda batalha”: [...] Durante dias inteiros ele [o rei Sebastião] ele cavalgava entre arvoredos, imaginando em tais caçadas furiosas batalhas contra os árabes que, do alto do Castelo dos Mouros, desafiavam os seus sonhos de glória. xxi Não corre mais quem caminha, mas quem imagina. Esta sensata sentença de meu pai várias vezes me ocorreu nos tempos em que corri atrás de mundos e mulheres. xxii

Outra semelhança que propicia uma aproximação entre as duas histórias (a real e a gestada) é a data da narração (julho do ano do vigésimo quarto aniversário do herói mesma data que o corpo de D. Sebastião desapareceu nessa batalha de Alcácer Quibir. Isso contribui para o medo que o narrador tem de uma morte prematura: Assaltado pelo supersticioso receio de não viver mais que D. Sebastião, e mergulhado na melancolia pela precariedade da vida, refugiei-me há um mês, durante o Natal do ano passado, na ermida da Peninha... Só quero repensar, até ao ameaçador mês de agosto, o que fiz e não fiz de mim. [...] De nada mais preciso neste dia do meu vigésimo quarto aniversário [...]. xxiii

Também as invenções da avó Catarina sobre do nascimento do herói, alardeadas por João de Castro, revelam aproximações com as quadras do poeta popular Gonçalo Eanes Bandara, as quais serviram para ratificar junto ao povo português a idealização do retorno do Desejado e surgimento o mito sebastianista: Foi minha avó Catarina – a as avós nunca mentem – quem me meteu esta idéia na cabeça. Costumava contar-me que, num dia de inverno, de manhã cedo, apesar do nevoeiro, o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da Adraga apanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com a cabeça, as pernas e os braços de fora. xxiv

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Essa crença perpassa todo o imaginário português e diz respeito a um retorno pouco provável de um rei cuja morte “nunca o imaginário português conseguiu admitir [...] apesar da inverossímil sobrevivência do desafortunado rei “escondido” durante 60 anos”. xxv O texto ficcional, ao mesmo tempo em que faz uma retomada ao passado histórico pelas semelhanças e aproximações, parodisticamente o subverte pelas diferenças, dessacralizando o mito por um reforço nesses elementos diferenciadores. Dentre os distanciamentos perceptíveis entre a narrativa e o mito sebastianista, podemos citar alguns, referenciando-os com trechos do romance que confirmam tais alusões. Diferente de D. Sebastião, o herói da narrativa é avesso a batalha, a guerras, conflitos dessa natureza. Ele chega, inclusive, a fugir da guerra das Províncias Ultramarinas, na África (diferente de seu homônimo, que deu a vida por esse continente). Há um trecho no romance que evidencia de forma irrefutável esse posicionamento do protagonista, bastante avesso ao do seu homônimo, quando ele diz: Calhavam optimamente as férias parisienses, visto que em breve completaria vinte anos, o que significava ir às sortes, ser apurado para todo o serviço e enlatado num avião ou num paquete para “defender as Províncias Ultramarinas” contra a insurreição dos povos colonizados [...]. Eu, porém, por natural pacifismo, não estava disposto a matar inocentes, a perder mil e muitos dias e quem sabe minha vida. A minha missão específica, se a tinha, não se compadecia com guerras sem sentido. xxvi [...] Depois de alusões várias, à avó e aos pais, sobre a minha determinação de não me sujeitar ao serviço militar, entreguei-me, e às minhas poupanças, mãos de um cigano contactado por um colega meu que também queria escapar à criminosa estupidez. xxvii (grifo nosso)

Sebastião desloca-se para a Paris, onde passa a ser acompanhante “de mulheres que detestam sair ou comer sozinhas”. Ao fugir à luta, Sebastião não só instaura a desmistificação de uma imagem cavaleira e guerreira desenhada pelo outro, como também atrela a isso o prazer dessa ação de se manter neutro, longe de fatos históricos que nada mais eram que uma guerra gestada em gabinete. Com isso, ele traz à luz o fato de que os portugueses, longe de serem cavaleiros, não eram sequer peões desse jogo de poder e vaidades tão renegados por ele, que enxerga em D. Sebastião um arremedo, um ser inseguro que se esconde atrás da armadura majestosa, como o personagem bem 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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descreve, estabelecendo um contraponto entre os elementos que compõem a imagem portentosa do rei e aquilo que, de fato, o caracteriza. Em um jogo de oposições e dualidades, o narrador vai tecendo, via palavra, o retrato desse rei, numa gradação de itens simbolizadores de poder e ostentação de força para, ao final, reduzi-lo a um indivíduo que se estabelece mediante guerras e batalhas para esconder suas fragilidades e inseguranças, as quais, de forma também gradual e subversivamente, mostram o contraponto, o avesso dessa situação: [...] E quase me era antipática a pose majestática, o frio olhar arrogante e crispado de quem sempre representando se apresenta. A armadura verde-escura [...], a gola alta [...], a mão esquerda pegando no cabo, decorado de pedras preciosas, da espada que se esconde atrás das pernas; o punhal à cintura; a mão direita exibindo os anéis [...]; o focinho do canzarrão farejando submissamente o dono e simbolizando a mansidão dos súbditos; tudo no quadro está pensado para investir de sinais de poder o adolescente pouco seguro de si, órfão de pai antes de ter nascido, abandonado pela mãe, mal-amado, desejoso de provar o seu valor e de se vingar do mundo todo custo.A face imberbe; a testa alta, o cabelo alourado e curto como o meu; os olhos verde-tília; as arredondadas sobrancelhas; os lábios tão impecavelmente desenhados, que se suspeita o favor do pintor; o queixo pouco afirmativo e as rosadas orelhas: tanta fragilidade não se disfarça sob o olhar neutro de quem cedo foi ferido e à força quis ser adulto. xxviii (grifo nosso)

Após tecer esse quadro, o narrador desconstrói a visão mítica dessa guerra, desse herói, evidenciando como esse misticismo foi pernicioso para o povo português tão apegado a esse passado. Essas diferenças se consolidam ainda mais no decorrer da história. Ao contrário de D. Sebastião, que tem a sua vida precocemente interrompida por conta da guerra, o herói dessa narrativa não morre: Como se fosse um sol, sete estrelas giram à minha volta. São Plèiades, da constelação do Touro, e de repente tranqüiliza-me a evidência de que aquele Sete-Estrelo há-de guiar pela vida afora e há de defender de morrer cedo. xxix

Enquanto o Rei procura conquistar terras, vencer batalhas, o herói Fariano procura conquistar mulheres. E é por intermédio dessa diferença que se percebe a dessacralização do mito, já que essa postura contrastante possibilita uma reflexão crítica entre os dois tempos, D. Sebastião deixando de ser visto como o messias esperado, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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passando pelo crivo do olhar do Sebastião do romance. A retomada pelo viés da paródia traz à tona a descrença no sebastianismo e a procura por alternativas: em vez de sentimento épico, eclode a possibilidade do lírico, promovendo-se o autoconhecimento, a busca pela(s) identidade(s), o questionamento de um mito alimentado pelo imaginário e pelo excesso de crença personalizada numa avó excessivamente mística: [...] Mas a verdade pode surgir da mentira repetida. xxx A avó, pelo contrário, interpretava meus espetáculos como mais um certíssimo sinal de reencarnação predestinada. xxxi [...] Calhou bem, e daí por diante todas turistas fizeram parte dos meus feitos fictícios, sempre na patriótica tarefa de defender a boa fama da honra lusitana. Previ um futuro grandioso para mim. Se já tinha sucesso em aventuras inventadas, como seria quando eu passasse à prática? xxxii

Desta forma, a retomada do mito pela avó Catarina (“que um dia o Rei voltaria, numa certa madrugada, no meio da neblina), e conseqüente releitura paródica, marcada pelas diferenças postas entre ambos, coopera para dessacralizá-lo, exibindo a sua fragilidade:

[...] Por ironia da história o Rei Virgem passou a ser alvo dos fascínios femininos e, após a sua morte numa derrota ominosa, muito boa gente caíra num masoquismo colectivo que define bem o fraquinho deste país por tudo que seja fracasso, amadorismo e misticismo de pacotilha. xxxiii [...] Os ossos, supostamente trazidos de África, não são decerto seus. Só raramente a fama é verdadeira. xxxiv

Enquanto narrador, Sebastião vai, pela paródia, desmitificando o mito de D. Sebastião: “dedicar-me em exclusivo àquilo em que o Outro estrondosamente falhara ao manifestar pelo belo sexo uma a versão extraordinária”

xxxv

. Enquanto o Rei engendrava

“furiosas batalhas contra os árabes que, do alto do Castelo dos Mouros, desafiavam os seus sonhos de glória”

xxxvi

, Sebastião imaginava furiosas batalhas amorosas. Assim,

ironicamente, a dessacralização do Rei vai sendo processada. Burlescamente, a diferença se estabelece, induzindo uma comparação e consequente reflexão crítica entre os dois tempos, ou seja, a evocação de D. Sebastião não é mais um sebastianismo original, ele deixa de ser o Messias, o Desejado, e a sua 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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evocação traz à tona a necessidade de uma conquista pessoal de cada indivíduo. Com isso, o narrador desconstrói a falsa ilusão portuguesa centrada na “esperança” do “termos sido”, como sustenta Durant

xxxvii

, ao tempo em que ousa duvidar das certezas,

questionar as ditas verdades, numa clara demonstração de uma identidade em fluxo permanente, quando declara: [...] o percurso por dentro ainda avançou menos. Continuo ignorando quem sou eu. [...] E alguma coisa aprendi: quem não quero ser. xxxviii

Com isso, o narrador vai processando a desconstrução da verdade oficial, estabelecendo outra diferença. E, pouco a pouco, ele vai esboçando esta vertente: enquanto criança, crê piamente na história contada pela avó Catarina, alegando que “as avós nunca mentem”; aos vinte e quatro anos, porém, já se mostra consciente que “a verdade pode surgir da mentira repetida” xxxix. Ou seja, inicialmente aceita servilmente a “verdade posta”, mas passa ao questionamento, pondo em xeque o discurso estabelecido. Nesse sentido, a desmistificação aponta uma descrença no sebastianismo e conseqüente procura por alternativas. D. Sebastião atende a convocação para a luta armada, nega sua sexualidade e suas individualidades. Diferentemente, o herói fariano se rebela, foge de uma guerra gestada em gabinetes para uma luta em busca de sentidos, identidades, descoberta de si mesmo. Para isso, “fecho-me sobre mim, volto costas ao mundo, demasiado vasto para a fadiga” xl, com vistas a repensar sua identidade e consequentemente essa identidade portuguesa fixa, forjada em mitos e elementos místicos e míticos. A história atrela ao rei Sebastião a dedicação à guerra, às conquistas, tão próximas do povo português, o personagem, por sua vez, volta-se para “os fluidos e eflúvios, calores e tremores”

xli

do

corpo feminino, preocupando-se em proceder conquistas amorosas, revelando, ainda, sua aversão às guerras: “A minha missão específica, ser a tinha, não se compadecia com guerras sem sentido.”xlii Essas diferenças cooperam para o estabelecimento de uma comparação e reflexão crítica entre os dois tempos. Neste sentido, evocar D. Sebastião por esse viés não tem mais o propósito sebastianista, pois que dessacralizado, ele não é mais o messias, o desejado, antes, o resgate de sua lembrança traz à tona a necessidade de “a conquista ser realização” de cada indivíduo. Dessacralizado o mito, a sua retomada não 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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esta atrelada a vinda de um messias, mas a descrença no sebastianismo e a procura por alternativas. E essa ousada ruptura redireciona o olhar português para o futuro e, como advoga Eduardo Lourenço,

[...] Só com morto ou mitificado [o passado] goza da nossa complacência, a ponto que é legítimo interrogar-nos se alguma vez existiu, salvo na nossa memória, ao mesmo tempo esburacada e hagiográfica, com a realidade e as cores que lhe atribuímos. [...] essa nossa maneira de ter passado como se não o tivéssemos, ou tendo-o para nos exaltarmos oniricamente com ele, é um sério obstáculo para conceber um futuro onde o que nós sonhamos de melhor específico seja realmente, como toda a pulsão futurante deve ser, filho das exigências e dos imperativos de um presente singular. xliii

Observamos, no decorrer da leitura de O Conquistador, que o sentimento lírico suplanta o épico, marca o percurso individual de Sebastião em busca de si. E ele vai, pela paródia, criticando o modo como Portugal lida com suas crises a partir da procura de salvação em mitos. Isso fica bem claro em um personagem que é bastante dual: Gabriel Gago de Carvalho, professor de história que demonstra um fanatismo absurdo por D. Sebastião, acreditando, inclusive, no retorno dele: O primo do insigne Alcides chamava-se Gabriel Gago de Carvalho e, antes de conhecê-lo, nunca eu imaginara que existisse alguém assim. Professor de História, os seus heróis eram D. Sebastião e Pomponazzi. Por causa do tom fanático, paquidérmico e autoritário com que falava fosse do que fosse, lembrei-me de tratá-lo, nos intervalos, por Nazi Pompom.xliv A casa de Catarina passou a ser a minha [...]. Hoje, ainda, isolado nessas serranias, tenho saudades das suas onirocríticas ao pequenoalmoço, quando lhe contava sonhos da noite anterior e ela os interpretava sem hesitações e sem nenhum tabu, [...], decidido a sobreviver aos rebarbativos doutores Gagás e a outros bichos que tais, menos empolados mas não menos letais. xlv

Sendo professor de história, suas aulas se pautavam no misticismo e aí se estabelece um paradoxo: um professor de história, que deveria pensar racionalmente a realidade do seu país, é um mítico e, por perpetuar esses mitos através da docência, coopera para a cegueira advinda de uma “[...] duvidosa virilidade de uma retórica engasgada”xlvi. E, como alega Eduardo Lourenço, “Levar para o futuro o nosso passado mais mitificado do que transfigurado, [...] é apenas a máscara dourada da nossa 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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impotência presente, não é a melhor maneira de nos dirigirmos para e de realmente alcançarmos um futuro.”xlvii

4 (IN) CONCLUSÃO

Em um primeiro plano, procuramos apontar a riqueza do romance O Conquistador, vazado em uma linguagem fluida, que irrompe nas folhas do livro furtivamente, de forma provocativa, o autor nos incita a mergulhar nos meandros de uma história contada e recontada ao longo do tempo, mas por um outro prisma. Para isso, Faria instiga o leitor a rever caminhos, percorrer novos rumos, enxergar de multifacetadamente fatos históricos transvestidos de forma parodística, em um convite à reflexão crítica. Fica evidenciado, na incursão feita, o entrelaçamento entre história e ficção, já que Almeida Faria narra a história de Sebastião Correia de Castro, homônimo do décimo sexto rei português, Dom Sebastião (1554-1578), desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir e, a partir dessa realidade histórica, os mitos oriundos dela são problematizados pelo autor, que questiona a validade dessa perpetuação. Dando corpo a esses questionamentos, Faria revisita o passado pelo viés crítico, oportunizando ao leitor refletir sobre esses fatos históricos. Para isso, ele reescreve e reinventa essa história, questionando-a, interrogando sua legitimidade no que diz respeito à perpetuação mítica dos fatos nela envolvidos. Percebemos, após a análise empreendida, que a forma inusitada como o autor engendra a trama narrativa coopera para desestabilizar a identidade nacional portuguesa que se funda nesse passado histórico. Desse modo, ele possibilita ao leitor uma releitura do misticismo português e, desse modo, desestabiliza a h istória oficial a partir de um diálogo entre a ficção e a historiografia. É nesse sentido que fatos e discursos oficiais são questionados, o que confere à obra um toque especial que a difere de boa parte da literatura que versa sobre o Sebastianismo, uma vez que não há evocações saudosistas de um tempo que se perdeu na história, muito menos um incentivo ao saudosismo exacerbado. Ao final da narrativa, o autor opta pela incompletude e alega que “[...] o percurso por dentro ainda avançou menos. Continuo ignorando quem sou eu. [...]. E

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alguma coisa aprendi: quem não quero ser” xlviii. E mexe com a imaginação do leitor quando diz provocativamente: “Não corre mais quem caminha, mas quem mais imagina.”xlix Esse recurso empregado pelo autor acaba por se configurar em um convite à cooperação do leitor, que é conclamado implicitamente a estabelecer uma dialogia mais forte, preenchendo essas lacunas de acordo com suas experiências. E, aqui, optamos também pela incompletude, afinal, outros leitores mergulharão nesse microcosmo literário, trarão novos olhares, leituras, várias interpretações, afinal, a riqueza desse texto literário abre múltiplas possibilidades de análise e contribuições teóricas. _______________________ i

Trabalhamos, neste artigo, com o conceito de metaficção historiográfica apresentado por Linda Hutcheon (1991), entendendo que o texto de Faria se enquadra na definição da autora quando diz que a metaficcionalidade “ao mesmo tempo que explora, ela questiona o embasamento do conhecimento histórico no passado em si.” (Heutcheon, 1991, p. 126). ii Faria, 1993, p. 20 e 118. iii Faria, 1993, p. 18. iv Faria, 1993, p. 72. v Borges, 2011. vi Faria, 1993, p. 75. vii Faria, 1993, p. 126. viii Faria, 1993, p. 129. ix Faria, 1993, p. 104. x Eduardo Lourenço, 2001, p. 65. xi Faria, 1993, p. 48. xii Faria, 1993, p. 15; p. 18-19. xiii Faria, 1993, p. 12. xiv Durant, 1997, p. 98. xv Faria, 1993, p. 11. xvi Faria, 1993, p. 19. xvii Faria, 1993, p. 12. xviii Faria, 1993, p. 16. xix Faria, 1993, p. 71. xx Durant, 1997, p. 153. xxi Faria, 1993, p. 70. xxii Faria, 1993, p. 128. xxiii Faria, 1993, p. 19-20. xxiv Faria, 1993, p. 11. xxv Durant, 1997, p. 154. xxvi Faria, 1993, p. 111. xxvii Faria, 1993, p. 112. xxviii Faria, 1993, p. 103-104. xxix Faria, 1993, p. 130. xxx Faria, 1993, p. 18. xxxi Faria, 1993, p. 34. xxxii Faria, 1993, p. 36. xxxiii Faria, 1993, p. 104. xxxiv Faria, 1993, p. 73. xxxv Faria, 1993, p. 70. xxxvi Faria, 1993, p. 70. xxxvii Durant, 1997, p. 28. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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xxxviii

Faria, 1993, p. 126. Faria, 1993, p. 18. xl Faria, 1993, p. 123. xli Faria, 1993, p. 4. xlii Faria, 1993, p. 111. xliii Eduardo Lourenço, 2001, p. 65. xliv Faria, 1993, p. 82. xlv Faria, 1997, p. 92. xlvi Faria, 1997, p. 86. xlvii Eduardo Lourenço, 2001, p. 66-67. xlviii Faria, 1993, p. 126. xlix Faria, 1993, p. 128. xxxix

RESUMO

Almeida Faria, em sua obra intitulada O Conquistador (1990), narra a história de Sebastião Correia de Castro, homônimo do décimo sexto rei português, Dom Sebastião (1554-1578), desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir. A partir dessa realidade histórica, a literatura portuguesa, ao longo dos anos, a representa literariamente de forma mitificada, criando mitos nacionais, como o sebastianista, os quais acabam por se incorporar à visão do país, sendo evocados sempre que ele atravessa momentos difíceis, numa supervalorização de um passado idealizado, sem se questionar a validade ou pertinência dessa perpetuação. E é justamente essa validade que é interrogada por Faria, que empreende uma revisitação do passado pelo viés crítico, muitas vezes parodisticamente, e a partir desse enfoque, propicia uma reflexão sobre seu país, revisita sua história, evidenciando as profundas transformações que marcam a história portuguesa. Ele faz uma reescrita e reinvenção dessa história, questiona os fatos que servem de pano de fundo e matéria para o romance, problematizando-os, interrogando sua legitimidade. Com base nessas conjecturas, empreendemos a análise dessa obra com vistas a investigar se a forma como o autor engendra a trama narrativa coopera para a desestabilização da identidade nacional portuguesa fundada nesse passado histórico que ele revisita e oferece ao leitor, como uma possibilidade de releitura do misticismo português, desestabilizando a história oficial a partir de um diálogo entre a ficção e a historiografia. Empreendemos o estudo fazendo uma interlocução entre o romance citado e as discussões feitas por Eduardo Lourenço (2001), Gilbert Durant (1997) e Hutcheon (1991). PALAVRAS-CHAVE: Almeida Faria. O Conquistador. Imaginário Português. Mitologia. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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ABSTRACT

Almeida Faria, in his work titled O Conquistador (1990), tells the story of Sebastião Correia de Castro, homonym of the sixteenth Portuguese king, Dom Sebastião (15541578), who has disappeared in the Battle of Alcazarquivir. From this historical reality, the Portuguese literature represents it during the years in a mythical way. It also creates national myths as the Sebastianista, which incorporates the country vision evocating them when he faces difficult moments, overvaluing an idealized past without question the validity or relevance of this continuation. This validity is questioned by Faria who engages a revisit of the past in a critical way. From this focus, it permits a reflection about his country and revisits his history, giving emphasis to the transformations in the Portuguese history. He rewrites and reinvents this history, question the background and the material to the novel, problematizing and questioning its legitimacy. Based on these conjectures, we undertake the analysis of this work in order to investigate whether the way the author creates the narrative contributes to the destabilization of the Portuguese national identity based on this historical past that he revisits and offers to the reader, as a possibility of a rereading of the Portuguese mysticism, destabilizing the official history from a discussion between fiction and historiography. This study was undertaken through an interlocution between the mentioned novel and the discussions made by Eduardo Lourenço (2001), Gilbert Durant (1997) and Hutcheon (1991). KEYWORDS: Almeida Faria. O Conquistador. Portuguese Imaginary. Mythology.

BIBLIOGRAFIA BORGES, João Felipe Barbosa; ROANI, Gerson Luiz Roani. De (des)cavaleiros e (des)conquistadores: literatura, história e identidade no romance de Almeida Faria. Disponível em: . DURANT, Gilbert. Tradições da idade de ouro e criatividade portuguesas. In: Imagens e Reflexos do Imaginário Português. Trad. de Cristina Proença. Lisboa: Hugin, 1997. FARIA, Almeida. O Conquistador. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. HEUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 215-232.

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LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. 2. ed. Lisboa: Gradativa, 2001.

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A AULA DE ARTE-EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE REFLEXÃO CULTURAL Wilson Sousa Oliveira 1

1 EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E ARTE-EDUCAÇÃO: BREVE HISTÓRICO

A disciplina Arte-educação passou a ser incorporada ao rol de conteúdos programáticos para o Ensino Fundamental e Médio no Brasil, a partir da Lei 9394/96. A disciplina que hoje recebe tal nome, se constitui num desdobramento da tão conhecida Educação Artística implantada a partir da Lei 5692/71. Havia um momento de crise para com essa disciplina. Desconfiava-se de que ela não correspondia aos anseios de um trabalho em arte que provocasse a reflexão e as discussões de questões que envolvessem arte e cultura no país, pois se inseria à grade curricular de forma a preencher espaços entre as demais disciplinas. Com isso, a Educação Artística não se constituía como uma disciplina, mas sim, encarada como uma “atividade educativa.” Fica evidente assim, a descaracterização e a consequente despotencialização a que era submetida uma disciplina com tanta força. O seu potencial era renegado. Essa primeira percepção da força, vitalidade e desempenhos que poderiam fazer desencadear com uma nova disciplina voltada para o campo das artes no Brasil, foi logo percebido “a partir de Congressos Nacionais e Internacionais sobre Arte e Educação, organizados pelas universidades e pela Organização Nacional dos Arte-educadores do Brasil – FAEB (criada em 1987).” (BRASIL, PCN,2000,p.47). Formam-se nesses espaços elos que começam a ganhar força as discussões sobre a importância, funções que pode ter a Arte e descobre-se o potencial que essa disciplina pode proporcionar no que diz respeito às produções dos alunos, criatividade e aguçamento do senso crítico. Percebe-se claramente que o movimento de criação da disciplina não se deu de forma isolada pensada a partir de movimento político partidarista ou algo de cima para baixo. Ao contrário, quem provoca no país a discussão Mestrado Pós-Crítica. Mestrando em Crítica Cultural pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB – Campus de Alagoinhas, Bahia. Bolsista CAPES. Linha de Pesquisa: Margens da Literatura. Orientador: Profº Drº- Osmar Moreira Santos. E-mail:[email protected] 1

ISBN 978-85-7395-210-0

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são grupos e entidades ligadas à área das artes, preocupadas com as discussões que envolvessem as manifestações culturais diversas no Brasil. Segundo Ana Mae Barbosa,

Fora das universidades um movimento bastante ativo (Movimento Escolinhas de Arte) tentava desenvolver, desde 1948, a auto-expressão da criança e do adolescente através do ensino das artes. Em 1971 o "Movimento Escolinhas de Arte" estava difundido por todo o país com 32 Escolinhas, a maioria delas particulares, oferecendo cursos de artes para crianças e adolescentes e cursos de arte-educação para professores e artistas.(BARBOSA, 1989,p.01)

Reitera ainda Ana Mae: “Naquele período não tínhamos cursos de arte-educação nas universidades, apenas cursos para preparar professores de desenho, principalmente desenho geométrico.” (BARBOSA, 1989,p.01). Assim, é nesse contexto e nessa intenção que se tenta revitalizar no Brasil o ensino através da arte. “Em grupo, lutou-se para que a Arte se tornasse presente nos currículos das escolas de Educação Básica no Brasil e fizesse parte da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 – Artigo 26,parágrafo 2 (BRASIL, PCN,2000,p.47). É com essa formatação que, enfim, a disciplina Arte-educação é introduzida nas escolas a partir dos anos 90. “Para ajudar no enfrentamento e superação dos problemas, que dificultam o ensino e aprendizagem de arte, foram organizados, a partir de 1982, as associações de Arte-educadores em diversos estados de nosso país, compostas por professores licenciados, educadores e artistas atuando em artes plásticas, música, teatro e dança.” ( BARBOSA, 1989,p.02)

A necessidade de se ter uma disciplina que contextualizasse discussões diversas que envolvessem linguagem, signos, expressões culturais e arte era crescente e foi se revitalizando com as inquietações de artistas e educadores que compreenderam logo que a educação por meio do campo da Arte tem em si o potencial enriquecedor de espalhar novos olhares sobre o mundo. Então, “é na travessia dessas mútuas e múltiplas influências entre reelaborações imaginativas de arte e experiências com as realidades culturais em que vivem que os adolescentes, jovens e adultos da escola média vão desvelando o sentido cultural da Arte e de seu conhecimento para suas vidas.” Nesse sentido, cabe à escola revitalizar esse campo do conhecimento, rico por excelência, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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capaz de provocações diversas que está em constante processo de trocas com todas as demais áreas do conhecimento humano.

2 A AULA DE ARTE-EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE REFLEXÃO CULTURAL

Pensar em arte e cultura no Brasil, é imediatamente nos reportarmos à ideia de um país marcadamente multicultural. Dessa forma, essa característica muito peculiar a nós, tem nos estudos culturais nas escolas brasileiras, uma grandiosa e rica fonte que por ela pode passar conhecimentos diversos, experiências múltiplas de vida, modos, fazeres diversos, enfim, expressões de mundos tão múltiplos que se tornam uma breve fotografia de como se compõe a malha cultural da nação. É inegável essa caracterização ao observarmos o redor do nosso dia a dia: as cores do nosso povo são múltiplas: cabelos, pele, tons, cores, vestimentas, músicas, danças, cantos, ritos, crenças, crendices, falares, comidas, iguarias...Então, é nesse farfalhar de multiplicidades que se insere e do qual emerge nosso estudante. Para as salas de aula toda essa carga de representações são levadas. Nesse sentido, o papel da escola, entre tantos, pensando numa educação de tom democrático que visa à dignidade do cidadão, cabe a ela o respeito e o devido tratamento a toda essa caracterização que, sem dúvidas emerge dos cantos mais recônditos de nossa formação social. Nossas salas estão multifacetadas de representações culturais constantemente. Nosso olhar não pode ser tomado pelo espírito da ingenuidade e querer conceber ou mesmo escamotear essa diversidade de valores. Não se pode negar direitos de expressões a quaisquer povos, entidades ou tribos. Pensando assim, não se deve fechar os olhos para as diversas manifestações culturais que povoam uma nação como o Brasil. Roberto Shwarz dá uma pista de por onde pode correr a implantação dos estudos culturais no Brasil: o fito é juntar-se a uma conversação teórica fluente que se desenvolve na academia em diversos lugares do mundo, e adicionar nossas peculiaridades latino-americanas ao coro pluralista que procura mapear um lugar de onde se possa falar em cultura em um mundo globalizado. (CEVASCO, 2003, p. 174)

A esse respeito, o mundo globalizado quebrou definitivamente as fronteiras contribuindo pra que as manifestações culturais se alarguem, pois os povos estão em

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constantes movimentos de ir e vim levando suas manifestações e ao mesmo tempo entrando em contato com outras pluralidades culturais. Esse constante processo contribui enormemente para o enriquecimento multicultural dos povos, das nações. Fazse lembrar aqui de identidades culturais, hibridismo e não mais pensar em purezas de manifestações. Segundo Kuper (2006), “toda cultura é multicultural: ‘todas as culturas são resultado de uma miscelânea, de empréstimos e misturas que ocorreram, embora em ritmos diferentes, desde os primórdios da humanidade.’ Não há como negar a evolução e as constantes trocas e intercambiações, desde há muito entre os povos. Decididamente, falar em cultura, em manifestações artísticas é reportarmos a todo instante às questões do multiculturalismo. Porém, seguindo a linha de pensamento de Kuper (2006), pensemos num multiculturalismo não o de diferença que

É voltado para dentro, que atende aos próprios interesses e é inflado de orgulho acerca da importância de determinada cultura e de sua alegação de superioridade. Mas, o multiculturalismo crítico, que é voltado para fora e está organizado de modo a desafiar os preconceitos culturais da classe social dominante com o propósito de expor a parte vulnerável do discurso hegemônico. (KUPER, 2006, p. 294).

Segundo o mesmo Kuper, esse multiculturalismo crítico é fortemente influenciado pelos estudos culturais, e nesse contexto, a questão multicultural acaba por abarcar “questões políticas de representação, sexualidade e gênero, raça e ideias sobre diferença.” Militar pelo campo do multiculturalismo é andar de mãos dadas com as relações estabelecidas a partir operações com as diferenças. O heterogêneo é o substancial. É mola de sustentação do multiculturalismo. As produções culturais estão assim repletas dessas diferenciações. Lynn Mario(2004), comentando Bhabha vai dizer que “ no projeto pós-colonial, em oposição ao conceito dominante de cultura como algo estático, substantivo e essencialista, a cultura passa a ser vista como algo híbrido, produtivo, dinâmico, aberto em constante transformação.” (MARIO,2004,p.125). Não há como conceber uma hegemonia dominante de manifestações culturais que opere como única, absoluta, pura. Ao contrário, o que se mais percebe são os constantes processos de misturas presentes na formação dos diversos povos, nações que colocam em dúvida a existência de formas purificadas de expressões artísticas e culturais ao redor do mundo. Como reforço dessa noção constante de marcas de impurezas em se

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falando em termos de culturas, Durval Muniz retrata bem ao dizer que “Na verdade nunca temos cultura: temos trajetórias culturais, fluxos culturais, relações culturais, redes culturais, conexões culturais, conflitos, lutas culturais.” (MUNIZ,2007,p.17). Tal colocação permite-nos concluir que conexões, trajetórias, fluxos são atos que fatalmente proporcionam uma constante ebulição a ponto de deixar povos e manifestações em constante processo de intercambiações culturais. É nesse sentido que pesquisadores e programas voltados para a área da pesquisa em cultura devem afinar seus sentidos e, seja na área da literatura, cultura ou mesmo antropologia, perceberem que a contemporaneidade traz laços que se devem antenar com todos esses movimentos culturais e seus variantes.

A confluência de objetos de estudos verificada em várias áreas do conhecimento e a crescente diluição de fronteiras disciplinares permitem a relativização de saberes particularizados e fechados em uma única direção. Os estudos contemporâneos situados no campo das ciências humanas colocam-nos diante desse conflito, incitando-nos a não só nos interessarmos pela especificidade disciplinar como ampliarmos o olhar frente aos cruzamentos e afinidades transdisciplinares.(SOUZA, 2002,p.23)

O multiculturalismo reinante no país, não nos permite mais trilhar por um caminho em que se ignore as diversas e múltiplas manifestações culturais de diversos grupos, comunidades, povos, cantos, cantigas, danças e questões folclóricas que envolvem uma série de ícones representativos.

Como exemplo, pode-se citar as danças e as manifestações populares, nas quais o movimento/corpo/ritmo/forma é integrada à construção educativa do sujeito. As danças e manifestações populares fornecem elementos para aulas com grande ludicidade, alegria e prazer. (SEC – BAHIA,2005, p. 126).

O olhar que a escola deve estender às manifestações artísticas deve passar pela visão que se deve ter de arte e a sua importância grandiosa para a promoção do homem como cidadão e sujeito de si. Essa visão de arte, sobretudo, além de valorizar o homem com toda sua carga de manifestações que lhes são próprias, cria no âmbito da educação formal, novos olhares, desperta novas atenções sobre a questão do ensino e convivências com as diversidades. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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O estudo da Arte deve proporcionar à comunidade escolar, como um todo, a oportunidade de ser um construtor de cultura, respeitando-se as diferenças de gênero, de etnia, de classe social ou qualquer outra referência cultural e estética, percebendo-as como forma de dar significado ao mundo.” (SEC – BAHIA,2005, p. 127)

Além disso, começa-se assim a atribuir funções múltiplas para o campo da Arte, pois “devemos reunir o máximo esforço para suprir os recursos necessários, tanto materiais quanto didático-pedagógicos, para que o ensino da Arte cumpra verdadeiramente sua missão de formar e educar.” Assim, ao campo de ensino e estudo da Arte se incorpora novos paradigmas. Dessa forma, a Arte, integrada ao currículo escolar, deixa de ser mero exercício de espontaneísmo e se insere na realidade cultural, assumindo um fazer artístico contextualizado com seu tempo histórico-social e seu espaço político-geográfico, numa perspectiva de incentivar a formação de um ser humano crítico, sensível e consciente de sua cidadania. (SEC – BAHIA,2005, p. 127)

Claro que, em certo momento, a escola precisa de iniciativas que quebrem ou rompam com certas visões até antiquadas sobre a questão do ensino da disciplina Arteeducação. “[...] A arte-educação é epistemologia da arte e, portanto, é a investigação dos modos como se aprende arte na escola de 1° grau, 2° grau, na universidade e na intimidade dos ateliers.” (LEÃO, 1991, p. 02). Nessa visão, o campo de estudo e ensino da Arte se expande, Devido à natureza plural que a Arte tem, é possível conceber o seu ensino a partir de qualquer uma de suas linguagens, tais como a música, as artes visuais, a dança ou o teatro, entre outras, como forma de Expressão pessoal! Existe todo um conteúdo mais amplo a ser conhecido e analisado pelo estudante e que compõe a história da arte e da cultura universal ou das civilizações. (SEC – BAHIA, 2005, p. 128).

Imagina-se, então, uma disciplina na escola em que consegue travar relações com todos os campos do conhecimento. Assim é que é a Arte-educação. Ela não se constitui como um campo isolado, uma ilha dentro da grade curricular entre as demais disciplinas. “Diretores de escola, coordenadores e professores devem estar preparados 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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para entender a arte como ramo do conhecimento em mesmo pé de igualdade que as outras disciplinas dos currículos escolares.” (LEÃO, 199, p. 03). Essa valorização da disciplina Arte-educação nas escolas deve partir justamente de uma nova e mais ampla concepção do ensino dela nas escolas, que vai aí está inserido qualquer coisa pensado acerca da finalidade, objetivos e funções da Arte para a vida dos estudantes, da escola e, enfim, da comunidade em que ela se encontra inserida. A atual legislação educacional brasileira reconhece a importância da arte na formação e desenvolvimento de crianças e jovens. Ela visa a destacar os aspectos essenciais da criação e percepção estética dos alunos e o modo de tratar a apropriação de conteúdos imprescindíveis para a cultura do cidadão contemporâneo. As oportunidades de aprendizagem de arte mobilizam a expressão e a comunicação pessoal e ampliam a formação do estudante como cidadão, principalmente por intensificar as relações dos indivíduos tanto com seu mundo interior como com o exterior. (ZANIN,p.03).

E a esse respeito a Professora Lúcia Gouvêa Pimentel vai dizer que “O estudo desse campo supõe considerá-lo tão importante quanto cada um dos outros campos do conhecimento humano, não sendo ferramenta para outras áreas, mas co-agente da construção de saberes em sua abrangência possível.” (PIMENTEL, p.156). Arte-educação é força viva que leva à reflexão, oportuniza à comunidade escolar as diversas formas de se expressar; a aula de Arte torna-se, nesse sentido, como um espaço democrático que por ela pode fazer transitar todos os elos que compõem a malha cultural de um lugar, uma região, um estado. A escola jamais poderá ignorar esses aspectos. A concepção de arte no espaço implica numa expansão do conceito de cultura, ou seja, toda e qualquer produção e as maneiras de conceber e organizar a vida social são levadas em consideração. Cada grupo inserido nestes processos configura-se pelos seus valores e sentidos, e são atores na construção e transmissão dos mesmos. (LEÃO, 199, p. 03)

Sabe-se que a nova LDB (Lei 9394/96) é quem já vai impulsionar o sentido do ensino de Arte nas escolas tentando já ali destacar o sentido do ensino de Arte nas escolas por razões culturais:

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§ 2º. O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. (LDB, Art. 26)

Claro que essa obrigatoriedade ainda não se reverteu em importância. a Professora Lúcia Gouvêa Pimentel ratifica esse posicionamento ao destacar que “Nesse novo espaço que começou a ser assumido pela sociedade civil, é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases Nacional (LDB – Lei 9.394. de 20 de dezembro 1996), com uma nova concepção de educação:”

A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos Movimentos Sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (p.163)

Cabe que órgãos designados a cuidar da educação do país, secretarias, escolas, educadores, comunidades, pais, alunos, se despertem para atitudes que revitalizem o sentido e a grande importância para os aspectos de ensino de Arte nas escolas e que não permita que as aulas sejam meros espaços a serem preenchidos demonstrando essa falta de importância a esse campo tão rico do conhecimento. Assim, é importante ressaltarmos que a presença da arte no currículo tem como pressuposto oferecer oportunidade aos alunos de desenvolver o pensamento artístico e estético, como mais um modo de se relacionar com o mundo. Nem melhor, nem pior, mas tão importante quanto os outros campos de conhecimento quando se propõe a uma formação integral, complexa e sintonizada com as questões da contemporaneidade. ( MACEDO, p.162)

Ultimamente, é crescente a preocupação de estudiosos, professores e pesquisadores com os aspectos positivos que rondam a importância da disciplina Arteeducação nas escolas. Infelizmente essa nova forma de apreensão e de conceituação dos novos parâmetros que envolvem o ensino de Arte nas escolas, sua relevância ainda não contemplou a todos os envolvidos no processo de ensino. É nesse sentido que a aula de Arte-educação ainda não se configura como potência. As más interpretações e as incompreensões ainda são fortemente reinantes, embora pesquisadores dêem destaques, conclamando todos para uma tomada de novas posturas, destacando esse campo do 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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conhecimento, muitos ainda não se sentiram tocados. “Por meio da Arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada”. (BARBOSA, 2003, p.18)

Talvez ainda se demorará muito tempo para que tais relevâncias quanto ao ensino de Arte nas escolas brasileiras assim configure. Temos ainda aulas marcadas pelo forte improviso e marcante improviso. Carência de materiais didáticos, Professores com outra formação lecionando para a disciplina, pequeno número de aulas, alunos desmotivados etc...enfim, todo esse rol se constitui no agravante da descaracterização que ronda a disciplina Arte-educação.

Arte, enquanto área de conhecimento, além de ser um modo de pensar, de chegar a produções inusitadas e estéticas, de propor novas formas de ver o mundo e de apresentá-las com registros diferenciados, é também uma construção humana que envolve relações com os contextos cultural, sócio-econômico, histórico, político etc.(PIMENTEL, p.182)

Sabemos da tentativa de revitalizar nas escolas a competência e importância que a disciplina Arte-educação deve ganhar. O PCN em Arte e outros documentos do governo tem tentado dá outra configuração para os objetivos, sentidos e tem destacado importâncias a respeito do ensino de Arte nas escolas. “conhecer Arte no Ensino Médio significa os alunos apropriarem-se de saberes culturais e estéticos inseridos nas práticas de produção e apreciação artísticas, fundamentais para a formação e o desempenho social do cidadão.” (PCN – Arte, 2000,p.46) A esse respeito, num artigo publicado há pouco tempo a Educadora Maura 22

Penna , refletindo acerca desse documento, chama-nos atenção percebendo uma outra realidade ao dizer que:

2

Professora do Departamento de Artes da UFPB, lecionando no curso de Educação Artística e no Mestrado em Educação. Coordenadora do Grupo Integrado de Pesquisa em Ensino das Artes. Graduada em Música e em Educação Artística pela UNB. Mestre em Ciências Sociais pela UFPB. Doutora em Lingüística pela UFPE. 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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No entanto, há certamente um grande descompasso entre a realidade das escolas e essa renovação pretendida pelas instâncias regulamentadoras e pelos trabalhos acadêmicos, até porque os Parâmetros são bastante recentes: os PCN para as 5a a 8a séries completaram 2 anos de seu lançamento oficial no Palácio do Planalto em outubro de 2000 – e não chegaram de imediato a todas as escolas do país.(PENNA, p.01)

Porém, observa-se, claramente, que, com o passar dos anos, não muita coisa tem mudado desde a divulgação dos parâmetros. É evidente que os efeitos e mudanças esperadas e sugeridos por esses documentos ainda não se cristalizaram. Nota-se um fosso enorme entre o sugerido e a realidade vivenciada pela maioria das escolas, principalmente no que diz respeito no ensino de Arte. Logo, os próprios produtores do PCN- Arte já demonstram no documento essa preocupação. Observando a nossa história de ensino e aprendizagem de Arte na Escola Média, nota-se um certo descaso de muitos educadores e organizadores escolares, principalmente no que se referem à compreensão da Arte como um conhecimento humano sensívelcognitivo, voltado para um fazer e apreciar artísticos e estéticos e para uma reflexão sobre sua história e contextos na sociedade humana. (PCN – Arte, 2000,p.46)

Acerca desse tema, o Professor Raimundo Matos, retomando as palavras de Ana Mae Barbosa, destaca:

Eliminemos a designação arte-educação e passemos a falar diretamente de ensino da arte e aprendizagem da arte sem eufemismos, ensino que tem de ser conceitualmente revisto na escola fundamental, nas universidades, nas escolas profissionalizantes, nos museus, nos centros culturais a ser previsto nos projetos de politécnica que se anunciam. Isso tem interferido na presença, com qualidade, da disciplina Arte no mesmo patamar de igualdade com a s demais disciplinas da educação escolar (1991: 6-7).

É notório como que o convite, os alertas, os chamativos e as freqüentes tentativas de despertamento para a importância e relevância que esse campo do conhecimento ganha a cada instante, a cada dia, em depoimentos, palavras, colocações de pesquisadores, Professores e outros que já descobriram o valor do ensino de Arte nas escolas. No entanto, percebemos como que muita coisa ainda se encontra adormecida, 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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hibernando nos campos do desleixo, do descrédito e da falta de compromisso até, por parte daqueles que deveriam zelar pelas manifestações artísticas e culturais e pela formação humana do cidadão. É sabido que há longas datas esse proceder-se se normatizou entre docentes e discentes nas instituições de ensino pelo país inteiro, na comunidade em geral, pois A maioria vivenciou, em sua trajetória escolar na educação básica, a arte dentro da concepção, que já deveria estar superada, de aulas simplesmente relaxantes e vinculadas quase que exclusivamente às habilidades manuais, à artesania, ao fazer. Ou seja, os desvios na compreensão do ensino de arte, não raramente confundido com „atividades‟, também se relacionam com a nossa memória, com a nossa experiência como alunos. .(PIMENTEL, p.182)

Conscientizados somos das complexidades que envolvem o ensino de Arte. Creio que o ensino de arte nas escolas pode propiciar e fazer desencadear nos educadores e educando mudanças múltiplas nas formas de ser e estar no mundo. A Arte tem em si esse potencial de fazer, instigar, provocar formas outras de propiciar leituras a ponto de provocar a sensação de que, a todo e qualquer momento, dois mais dois, poderão ser cinco. E tem esse potencial de fazer deslocamentos, descentrar-se a todo instante, além de perambular pelos campos de desmontamento e desmantelamento nas concepções de signos, esvaziamento total, nesse constante processo de refazer-se. A Professora Juliana Gouthier Macedo comentando um artigo da Professora Lúcia Govêa Pimentel realça dizendo que Também é sempre bom lembrar que a arte na escola não é para descobrir talentos ou formar artistas. Se isto acontecer, ótimo. Mas, muito mais, precisamos nos pautar em ampliar este conhecimento que é um modo de ver o mundo, e como nos diz Ana Mae Barbosa, “arte não tem certo e errado, tem o mais ou menos adequado, o mais ou menos significativo, o mais ou menos inventivo” (PIMENTEL, p.182).

É nesse contexto (e outros) que se instaura o ensino e a concepção de Arte. A Arte que está em tudo, em todos, nas formas, no pensar, no fazer, no falar, nas relações diversas, está nos campos, nos cantos, no batuque, nas cores, nas roupas, nas estrelas, nos cabelos, nas universidades e nas mesas de bares, no supermercado, nos órgãos 3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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públicos, no rádio, na Tv, nas páginas de relacionamentos, no nosso dia a dia, nas nossas mesas, nas prateleiras; está ainda no choro, na gargalhada, nos olhares, enfim... mas querem ignorá-la nas escolas, nos espaços educativas, local mais propício para discuti-la, para remoldurá-la e deixá-la fluir dando novos sentidos, ampliando novos horizontes, provocando, (re)fazendo os jeitos, os homens, os atos, a vida...

3 CONCLUSÃO

Desde a implantação da disciplina Arte-educação no currículo das escolas brasileiras nota-se um certo avanço no que diz respeito a tão importante campo do conhecimento. Porém, ainda são geradas muitas expectativas de mudanças no tocante ao que está por acontecer. Sabemos que a inserção de uma disciplina por intermédio de uma lei, isso não se traduz em garantias de eficácia. Ainda, há muito por se fazer. As limitações para se lidarem com a disciplina Arte-educação nas escolas são grandiosas. Há muito por se vencer. O primeiro e grande desafio ainda é fazer valer, e despertar em todos ligados à área da educação, o sentimento do valor, da função e da importância de tão rica disciplina para formação do homem, do cidadão. É necessário urgência no tratamento de diversos aspectos que envolvem a Arte-educação no Brasil. Por sua riqueza, por sua abrangência, pelo raio de relações que ela pode travar com outras áreas do conhecimento, ela se torna grandiosa para a humanidade. Nesse sentido, tal disciplina tem a potência de reunir em si os diversos valores de marcas multiculturais presentes na sociedade brasileira. A compreensão de que a manifestação artística é multifacetada, não possuindo valores hierárquicos condicionados ao seu caráter mais erudito e popular, tem sido de grande importância para que se vislumbre, para a arte-educação, novos caminhos mais afinados com as realidades socioculturais das diferentes comunidades. (OSINSKI, 2002, p.115).

Essa é uma das grandes marcas do que pode abarcar a disciplina Arte-educação: está presente, possibilitando que no interior das escolas todas as classes, todas as vozes tenham vez. Assim, é imensurável o valor do espaço propiciado pelas aulas dessa disciplina. Nela, pode-se fazer transitar todas as discussões inerentes às mais diversas

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manifestações culturais. Pelo viés da Arte, é possível fazer que outros mundos se vislumbrem, que outras invenções são possíveis e que a vida pode, sim, ser (re)inventada a cada dia, a cada instante.

RESUMO

O presente trabalho tem por pretensão analisar o ensino da disciplina Arte-educação, instituída pela lei 9394/96, e discutir o seu espaço no contexto escolar, não como mera disciplina em meio a tantas outras, mas como momento que oportuniza reflexões múltiplas de diversas expressões culturais e artísticas, de caráter libertário. Pretende-se, ainda, destacar a importância do ensino de arte nas escolas, por considerar que essa disciplina ganha fundamental importância, quando propicia a reflexão sobre os fazeres e expressões artísticas, contribui para a elevação do espírito criativo, instiga a imaginação e, como arte, tem em si, a potência de poder (re)ssignificar o mundo, atribuir novos valores e significados. Pretendo lançar mão das ideias de educadoras como Ana Mae Barbosa e outros como suporte teórico para este trabalho. Barbosa (1991, p.03), afirma que "como a matemática, a história e as ciências, a arte tem domínio, uma linguagem e uma história. Se constitui, portanto, num campo de estudos específicos e não apenas em meia atividade [...]”. PALAVRAS-CHAVE: Arte. Cultura. Educação.

REFERÊNCIAS BAHIA. Secretaria da Educação e da Cultura. Departamento de Ensino. Orientações Curriculares Estaduais para o Ensino Médio: Área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. 3. Arte. Salvador: 2005. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1997. BARBOSA, A. M. Arte-educação no Brasil. Das origens ao modernismo. São Paulo: Perspectiva/ Secretaria da Cultura, Ciências e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978. __________. Recorte e colagem. Influências de John Dewey no ensino da arte no Brasil. São Paulo:Autores Associados/Cortez, 1982. BARBOSA, A. M. e SALES, H. M. (orgs.). O ensino da arte e sua história. São Paulo: MAC/USP,1990.

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3º COLÓQUIO DO GRUPO DE ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS: UM COSMOPOLITISMO NOS TRÓPICOS e 100 ANOS DE AFRÂNIO COUTINHO (1911-2011): A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

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3º Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 anos de Afrânio Coutinho: A crítica literária no Brasil, 3., 2012, Feira de Santana. Anais. Feira de Santana: Uefs, 2012, p. 233-246.

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