A Socialidade contra o Estado: A Antropologia de Pierre Clastres (Tese de Mestrado)

October 2, 2017 | Autor: Gustavo Barbosa | Categoria: Anthropology, Objectivity, Subjectivity, Pierre Clastres, Anthropological Debates
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Mestrado em Antropologia Social

A SOCIALIDADE CONTRA O ESTADO: A ANTROPOLOGIA DE PIERRE CLASTRES

Gustavo Baptista Barbosa

Rio de Janeiro, 2002

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

A SOCIALIDADE CONTRA O ESTADO: A ANTROPOLOGIA DE PIERRE CLASTRES Gustavo Baptista Barbosa Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de

Pós-Graduação

em

Antropologia Social do Museu Nacional da

Universidade Federal do Rio de

Janeiro

Marcio Goldman Orientador  

Rio de Janeiro, 2002

2

Resumo Clastres promove uma “dessubstancialização” do Estado, que não é “o Eliseu, a Casa Branca, o Kremlin”, mas um “acionamento efetivo da relação de poder”. Não há por que acreditar, então, que ele tenha reificado o outro lado do par da expressão que dá título à sua obra mais famosa, a sociedade. Em alguns dos ensaios do Arqueologia da Violência e no Crônica dos Índios Guayaki, presenciamos o funcionamento de máquinas sociais, produzindo chefes, guerreiros, homens, mulheres, homossexuais, nemhomens-nem-mulheres-nem-homossexuais, através dos quais aquelas máquinas operarão. Ainda que não recorra ao conceito, parece-nos que existe já socialidade em Clastres: a socialidade contra o Estado, portanto. Em seus livros, encontramos, assim, indicações de como enfrentar alguns dos impasses da antropologia. De fato, como construir modelos de intencionalidade sem sujeitos? Como não personificar a sociedade, fazendo dela um mega-sujeito? Como sair do individualismo metodológico sem cair num holismo transcendental e vice-versa? Como pensar relação social sem sociedade? Procuraremos verificar como Clastres enfrenta tais dificuldades, procedendo, na primeira divisão deste trabalho (“Raízes: a ‘Sociedade’ em Pierre Clastres e a Escola Sociológica Francesa”), a um mapeamento das transmutações que a noção de “sociedade” conheceu no âmbito da Escola Sociológica Francesa e em Lévi-Strauss. Nossa expectativa é a de demonstrar que as aproximações e afastamentos de Clastres com relação a Lévi-Strauss não implica um restabelecimento de Durkheim. A seguir, na segunda divisão deste estudo (“Radículas: o ‘Estado’ em Pierre Clastres e a Filosofia Política’’), tentaremos acompanhar o tratamento que Clastres reserva para o “Estado”, que, parece-nos, permite uma desterritorialização suplementar de seu conceito de “sociedade”. Finalmente, na terceira parte (“Rizomas: o ‘Contra’ em Pierre Clastres e a Antropologia Menor”), verificaremos que também Strathern fornece uma solução, “contra-intuitiva”, para os impasses da antropologia que indicamos acima. Coisas, pessoas e corpos “carregam” significados e, para percebê-los, o analista tem de 3

acompanhar as relações que lhes são internas e constitutivas. Relações são impalpáveis, apenas perceptíveis a partir de algo palpável – aparências, sejam objetos, sejam corpos, sejam pessoas – que acuse sua presença. O que significa que cada um de nós é múltiplo, objetivação de muitas relações. Somos “pessoas”, com as redes de “socialidade” em que estamos inseridos atuando como constitutivas de nós mesmos. possível que pensemos a “objetividade”

A

partir

daí,

é

da socialidade operando por meio da

“subjetividade” das pessoas-em-interação. A obra de Clastres é pródiga em exemplos etnográficos sobre este particular. Nela, as máquinas sociais não exibem nenhuma externalidade com as formas de subjetivação que engendram e que as engendram: a dívida e o chefe; a guerra e o guerreiro; o casamento poliândrico e o marido; o tabu de comer da própria caça e o caçador; a tortura e os adultos (homens e mulheres). O que não se presta a sustentar identidades do gênero “o chefe”, “o guerreiro”, etc, mas serve de inspiração a uma antropologia que, menor, hesita diante das certezas bem-acabadas e estáticas das noções identitárias.

4

Abstract Clastres “de-substantializes” the State, which is not “the Elysées, the White House, the Kremlin”, but “an actualization of a relation of power”. There is no reason, therefore, to believe that he has reified the other half of the expression which gives name to his most famous book, the society. In some of the essays of Archeology of Violence and in his Chronicle of the Guayaki Indians, we observe the working of social machines, producing chiefs, warriors, men, women, homosexuals, neither-men-norwomen-nor-homosexuals, through whom those machines work. Even though he does not make use of the concept, it seems to us that there is already a “sociality” in Clastres: thus, the sociality against the State. In his books, we find indications as to how to deal with some of the dilemmas of anthropology. As a matter of fact, how can we erect models of intentionality with no subject? How can we escape from personifying the society, making a supersubject out of it? How can we avoid the methodological individualism without being grasped by a transcendental holism or vice-versa? How can we conceive of social relations with no society? We will try to follow how Clastres deals with these obstacles, by proceeding, in the first division of this essay (“Roots: ‘Society’ in Pierre Clastres and the French School of Sociology”), to a mapping of the modifications proposed by the French School of Sociology and Lévi-Strauss to the notion of ‘society’. Our intention is to show that Clastres’ movement, both of getting close to and distancing himself from LéviStrauss, does not mean reestablishing Durkheim. Following this, in the second division of this study (“Radicles: ‘State’ in Pierre Clastres and the Political Philosophy”), we will see that Clastres’ way of treating the ‘State’ allows an extra deterritorialization of his concept of ‘society’. Finally, in the third part (“Rhizomes: ‘Against’ in Pierre Clastres and a Minor Anthropology”), we shall observe that Strathern, for her turn, provides us with a “counter-intuitive” solution for the dilemmas of anthropology listed above. Things, 5

persons and bodies convey meanings and, in order to perceive them, the student has to follow the relations which are internal to and constitutive of them. Relations are invisible, and perceptible only through something visible – appearances, be they objects, bodies or persons – which indicates their presence. That means that each one of us is multiple, the objectification of several relations. We are “persons”, with the “sociality” network in which we are inserted working as constituents of ourselves. We can therefore visualize how the “objectivity” of sociality may work through the “subjectivity” of persons-ininteraction. Clastres’ books offer us several ethnographic examples of this. In his texts, social machines have no externality with the forms of subjectification which they produce and through which they are produced: the debt and the chief; the war and the warrior; the polyandric marriage and the husband; the taboo against consuming of one’s own game and the hunter; the torture and the adults (men and women). This does not serve as a basis for identities of the kind “the chief”, “the warrior” and so on, but is an inspiration to a minor anthropology which hesitates in front of the static and well-established certainties of the notion of identities.

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Para o pai e para a mãe, que souberam vencer o susto, entenderam e participaram da torcida.

E para a Beta, presente na aparente ausência.

7

“… alguma coisa existe na ausência.”

                                               Pierre Clastres, 1974

“… o pensamento (…) não pensa lealmente senão contra a corrente.”

Pierre Clastres, 1969

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Contra-agradecimentos e Reconhecimentos Este trabalho – conforme logo se aperceberá o leitor – opera por subtração. Retirarei de Pierre Clastres um dos conceitos que seus glosadores tradicionalmente censuram – o de “sociedade” - e proporei sua substituição por outro – o de “socialidade”, que, quer parecer-me, sempre esteve lá, presente na aparente ausência. Permaneço leal à liturgia proposta e sugiro, já de início, outras subtrações: as de alguns agradecimentos habituais. Furto-me, assim, a expressar qualquer gratidão às agências de fomento à pesquisa, que não me concederam nenhum financiamento para o estudo ora concluído. A inexistência de financiamento obrigou-me a reverter a física: tive de fazer-me presente simultaneamente em vários lugares e procurar conciliar – a elevado custo pessoal – minhas atividades profissionais e acadêmicas. O processo, bastante penoso, terá resultado em trabalho que seguramente não é o melhor, mas o possível. Evidentemente, não espero contar com a condescendência do leitor para as inevitáveis falhas. Antes, meu objetivo é, sem eximir-me da responsabilidade, dividi-la: com as agências de fomento à pesquisa. Eventuais méritos tampouco são inteiramente meus: este trabalho, como todos os outros, foi escrito a muitas mãos e, desde o início, formávamos já legião. Meu orientador, Professor Marcio Goldman, sempre esteve à espreita e terá poupado as páginas seguintes de incontáveis ingenuidades. Sua correção intelectual e pessoal revestem os intrincados labirintos acadêmicos de maior humanidade e meu gosto pela antropologia deve muito a ele. Muitas das cadeiras que cursei no Museu Nacional sugeriram diversos dos argumentos que desenvolverei a seguir e sou grato aos respectivos professores, especialmente a Lygia Sigaud, Carlos Fausto e Otávio Velho, que concordou ainda em compor a banca examinadora como suplente: vários dos trechos das próximas páginas traem suas inspirações. Agradeço também aos Professores Eduardo Batalha 9

Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima, que gentilmente aceitaram o convite para integrar a banca. Alguns dos colegas de Mestrado deixaram de sê-lo apenas e, já irremediavelmente amigos, revelaram-se sempre cúmplices: Ana Paula, Célia, Roberta, Luiz e Elena. O Juanito, a Liloca e a Marcela deram-me prova de paciência inesgotável, incontáveis vezes posta à prova pelas minhas constantes lamentações. Com o Paulo e a Vanessa,

compartilhei

apreensões

e

deleites

médio-orientais:

as

narguileras

invariavelmente calavam nossas angústias e nossas dissidências sobre antropologia e política libanesa. Os amigos de Damasco – Guilherme, Samia, Maher, Guy, Cristina, Rubem e Ciro – e os de Lisboa – João Miguel e Paulinho - fizeram crescer a família e mostraram-me que há vida, mesmo quando a terra e quando a gente resseca.

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ÍNDICE

1. Por um Shakespeare Menor 2. Raízes: a “Sociedade”

em Pierre Clastres e a

Escola Sociológica Francesa 3. Radículas: o “Estado”

12

24 em Pierre Clastres e a

Filosofia Política

57

4. Rizomas: o “Contra” em Pierre Clastres e a Antropologia Menor

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5. Bibliografia

101

Apêndice: Crônica de um Autor

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1. Por um Shakespeare Menor Elizabeth – Le roi?!… Y a-t-il un roi?… Que Dieu nous protège et le garde du titre de roi… Carmelo Bene, Ricardo III

Seu narrador assegura que o incidente é verdadeiro. Na aula inaugural de curso de introdução à Antropologia em um estabelecimento de ensino norte-americano, a aluna teria reagido à proposta do professor de estudar as sociedades indígenas. Impetuosa, traduziu sua irritação: -

Mas não foram elas as “perdedoras”?



Carmelo Bene gosta dos perdedores. Ao rescrever dois clássicos de Shakespeare – Romeu e Julieta e Ricardo III – procede a “cirurgia”1 semelhante. Num caso, “amputa” prematuramente o galante Romeu da história original; no outro, todos os influentes personagens masculinos, à exceção do próprio Ricardo III. Como resultado, o que presenciamos no palco é um contumaz Mercúcio, que não quer morrer, e um Ricardo III, que, com “suas” mulheres, desafia a derrota, inelutável na peça de Shakespeare, até porque as vinculações políticas do “dramaturgo maior” com a Casa de Tudor o constrangiam a desvirtuar a rival Casa de York, à qual pertencia o monarca. No teatro de Bene, sai de cena, literalmente, o Poder, o das famílias em Romeu e Julieta, e o do aparelho de Estado, em Ricardo III. Ao conceder “tratamento menor” (Deleuze e Bene 1

É como Deleuze descreve o teatro de Carmelo Bene (Deleuze e Bene 1978: 97). Os comentários que se seguem baseiam-se, em grande parte, nas observações de Deleuze sobre o Ricardo III de Bene (Idem: 85 et passim).

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1978: 96) ao “dramaturgo maior”, Bene desencadeia potencialidades que permaneciam inexploradas nas tragédias de Shakespeare e nos revela, por exemplo, um Ricardo III e “suas” mulheres, que, não disciplinados ou domesticados pelas forças da política e da polícia (e haverá muita diferença entre as duas?), afrontam dogmas e doutrinas e assumem plenamente sua natureza guerreira (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 2: 79-80 e Vol. 5: 16). Algo sempre existe nas aparentes ausências: mesmo em Shakespeare. Como dar “tratamento menor” a um “autor maior”, de forma a desvelar potencialidades inexploradas de suas obras, devires precocemente abortados? Deleuze fornece a “fórmula”, ao evidenciar as conseqüências da dramaturgia de Bene (Deleuze e Bene 1978: 103): começa-se por extirpar todos os elementos de poder - na língua, nos gestos, na representação, no representado. Não se trata tanto de uma operação negativa, opina Deleuze; antes pelo contrário, uma vez que ela impulsiona desdobramentos positivos. Abole-se a História, “marcador temporal do Poder”, e extingue-se a estrutura, seu “marcador sincrônico, conjunto de relações entre invariantes” (Idem: 103). Anulamse as constantes e banem-se os elementos estáveis ou estabilizados, que pertencem a uma “utilização maior”. O que sobra? Tudo, responde Deleuze. Assim, “operação por operação, cirurgia contra cirurgia, concebe-se (…) como ‘minorar’ (termo empregado pelos matemáticos), como impor um tratamento menor ou de minoração, para extrair devires contra a História, vidas contra a cultura, pensamentos contra a doutrina, graças e desgraças contra o dogma” (Idem: 97). Saem de cena Romeu, a Casa de Tudor, a História, a Cultura, o Dogma, a Certeza; permanecem, apenas – ou antes de tudo -, os devires, as vidas, as graças e desgraças, as hesitações, que nos fazem gaguejar e na nossa própria língua, revelando suas insuspeitas potencialidades. Ser estrangeiro na sua própria língua (Idem: 108; Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 48): e de que mais trata a antropologia? Qual o sentido de “minorar” um autor já “menor”? Na verdade, “menor” e “maior”

não designam características intrínsecas dos autores, mas “operações”,

“cirurgias” a que seus textos são submetidos (Goldman 1994: 32; Vargas 2000: 260). Conforme raciocinam Deleuze e Guattari para as línguas, mesmo o inglês, apesar de sua ambição universalista, presta-se a usos “menores” e o black-english e todos os americanismos de gueto corrompem-lhe as constantes e a pretensa homogeneidade 13

(Deleuze e Guattari 1980, Vol. 2: 47-48; Deleuze e Bene 1978: 98-102). Contudo, não raro, os dogmas e regras da “régia ciência” (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 26) e as mesquinhas exigências de nossos “marcos teóricos” inibem as “leituras menores”, possíveis mesmo no caso de autores considerados “maiores”. A utilização disciplinadora de seus textos mais reconfortantes afastará qualquer ameaça desestabilizadora: que nos seja dado o bálsamo alentador do positivismo d’As Estruturas Elementares do Parentesco, ao invés do inquietante e fluido método de “rosácea” do Mythologiques2. Entende-se, perfeitamente, que tanto mais esforço seja desprendido na domesticação dos “autores menores”. Se incomodam os cânones de nossa “régia ciência”, que se os submeta às assépticas leituras corretivas para que possamos dormir tranqüilos. Infelizmente, há algum tempo, sofro de aguda insônia.



Data de quase quinze anos meu primeiro contato com a obra de Pierre Clastres. Suas páginas afectaram-me3: inquietaram-me profundamente. Bem iniciado, havia já me habituado a vícios quase imemoriais e, de boa fé, acreditava piamente que os Trobriandeses agiam de modo específico, os Nuer se organizavam de determinada maneira e os Nambiquara se estruturavam de acordo com dadas regras. Os Guayaki de Clastres (1972) fizeram-me duvidar dos Trobriandeses, dos Nuer e dos Nambiquara. Desterritorializaram-me. Meus professores agiram como mestres4 e forneceram-me a grade de leitura “correta” para os artigos mais populares de Clastres, especialmente “A Sociedade contra o Estado” (1974a) e “Arqueologia da Violência: a Guerra nas Sociedades Primitivas” (1977b). A “sociedade” agora parecia beirar o voluntarismo; possuía vontades – contra a Economia e contra o Estado – e até um ser – ser-para-a-guerra – e pairava, todo-poderosa, sobre os indivíduos. Aquilo que aparentemente havia me 2

Pelo exposto, compreende-se, evidentemente, que mesmo As Estruturas Elementares do Parentesco comportem eventualmente uma “leitura menor”. 3 Utilizo-me da palavra “afecto” na acepção que lhe emprestam Deleuze e Guattari: não como sentimento, portanto, mas como devir que transborda aquele que passa por ele, transformando-o em outro (Deleuze e Guattari 1980, Vol 4: 21 e Vol. 5: 79). 4 Em uma de suas peças, S.A.D.E., Bene amputa precisamente a imagem sádica do Mestre.

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seduzido quando da primeira leitura – certa insatisfação com os excessos formalistas do estruturalismo e uma tentativa de verificar que mudanças os ensinamentos do Grande Mestre exigiam quando combinados com etnografia – nada mais era do que estratagema para camuflar um onipresente Durkheim à espreita. Triunfo da sacrossanta tradição: neutralizava-se o potencial desestabilizador de “costumes, crânios, escavações e léxicos” (Geertz, citado em Goldman 1994: 6) e, uma vez mais, a Antropologia lograva protegerse da etnografia. Mais um antropólogo saía da fornada: reterritorializaram-me.



Qual o sentido do retorno à obra de Clastres? A pergunta lembra outra, que se repete mil vezes em quem lê Mille Plateaux e com a cadência de um ritornelo: “por que voltar aos primitivos, quando se trata de nossa vida (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 3: 84)? François Châtelet (1976) fornece elementos para a resposta ao afiançar a absoluta contemporaneidade do estudo da história da filosofia. A referência ao passado – assevera – permite uma dessacralização e uma desmitologização dos discursos atuais do poder (Idem: 34). Em suma: uma desterritorialização. Pura ironia. Se a Antropologia terá sempre procurado conjurar a perpétua ameaça do evolucionismo, isto não a impediu de lançar sobre sua própria história olhar tipicamente evolucionista (Goldman 1999: 9), como se as idéias nascessem, amadurecessem e perecessem e pudessem ser asseadamente organizadas em escaninhos: evolucionismo; funcionalismo, estrutural-funcionalismo; estruturalismo; fragmentação contemporânea; blá-blá-blá. Contudo, as idéias não morrem. “Não que elas sobrevivam a título de arcaísmos” – ensinam Deleuze e Guattari. “As idéias sempre voltam a servir, porque sempre serviram, mas de modos atuais os mais diferentes” (1980, Vol. 4: 14). É Deleuze que continua, agora sozinho: “Os tempos os mais distintos se comunicam”. E aconselha: devemos buscar “não o histórico, nem o eterno, mas o intempestivo” (Deleuze e Bene 1978: 96). Trata-se de levar o exercício antropológico suficientemente a sério de maneira a viabilizar um olhar etnológico também sobre a história da disciplina, capaz de registrar diferenças, e de registrá-las precisamente para nós e para nossa atualidade 15

(Goldman 1994: 23-24). É o que Châtelet recomenda para a história da filosofia: “a referência ao passado permite-nos pensar nossa atualidade (e quem sabe: imaginar nosso futuro) através do diferencial” (1976: 40, grifo do autor). Desta maneira, “conceitos elaborados em circunstâncias históricas específicas – quer dizer, durante lutas intelectuais (políticas) datadas, inseridas em estruturas mentais distintas das nossas e dispondo de códigos diferentes – (…) podem ser importados a uma outra época, para outro sistema de racionalidade, e permanecerem operantes, constituindo fatores de inteligibilidade decisivos” (Idem: 51). Uma genealogia das idéias como crítica da atualidade ganha então sentido: a démarche sugerida por Châtelet permite, a um só tempo, a compreensão dos enunciados filosóficos; das regras de produção precisas, datadas, que lhes deram origem, e um distanciamento da realidade em que estamos imersos, para a qual importaremos conceitos que funcionarão como grades de inteligibilidade e, eventualmente, norte para a atuação política (Idem: 49 e 52). Uma “visão espacial” da filosofia, que faz com que a história se transmute em geografia das idéias. O ritornelo: os tempos se comunicam. As gentes também – ou, ao menos, deveriam. A aposta que faremos aqui em muito se aproxima da de Châtelet: os conceitos podem ser desenraizados, desterritorializados,

e,

reterritorializados

mais

à

frente,

fornecer

“grades

de

inteligibilidade” ou funcionar como “reveladores fotográficos” (Goldman 1996a: 186) em outras realidades e em outros autores. Na verdade, o próprio Clastres já nos havia sugerido o caminho, em artigo em que expõe o paradoxo da etnologia e o que - quer parecer-me - constitui sua única saída: “Entre o Silêncio e o Diálogo” (1968b). A etnologia nasce como ciência caudatária de certo humanismo, cuja “razão” recusou a aliança com as “linguagens estranhas” dos loucos e dos selvagens: Artaud entre os Tarahumara (Idem: 35). Define-se, entretanto, como saber sobre aquilo que se preferiria ver excluído: “O paradoxo da etnologia é que ela é, a um só tempo, ciência e ciência dos primitivos; que, absolutamente desinteressada, ela realize, melhor do que qualquer outra atividade, a idéia ocidental de ciência, mas escolhendo como objeto aquilo que se encontra mais distante do Ocidente: o surpreendente é, finalmente, que a etnologia seja possível!” (Idem: 36). Se o é, há um preço: o de afirmar-se como um discurso sobre os primitivos, carregando consigo toda a arrogância “daquilo que o século XIX produziu de mais bobo, o cientificismo” (Clastres 1978: 167). Como os paradoxos corrompem-lhe, de 16

dentro, a organicidade, cumpre encontrar a fuga possível: como única “ponte” lançada entre o Ocidente e os selvagens por ocasião da trágica partilha, cumpre à antropologia evitar discursar sobre os primitivos e procurar estabelecer, com eles, um diálogo (Clastres 1968b: 37). Saem de cena os etnólogos distanciados, ditando, desde Sirius, regras de casamento, tabus alimentares e normas de evitação social para “seus” nativos. Não mais supostas metaperspectivas, geometrais, ponto de vista dos pontos de vista, de onde olharia para “suas” sociedades o antropólogo, orgulhoso. Deixemos o lugar reservado a quem de direito: aos deuses. Como diálogo, a antropologia se faz junto, com, ao lado de. É ponte – e de mão dupla. Imersos nas formas-Estado, compreenderemos facilmente que as sociedades indígenas recorram a poderosos mecanismos para inibir o pleno desenvolvimento delas – que já estão lá e atuam, presentes na aparente ausência. Da mesma forma e inversamente, as sociedades indígenas nos concederão as grades de inteligibilidade para que compreendamos a atuação das forças anti-Estado entre nós, inibidas e, contudo, presentes na aparente ausência. Tudo estará em tudo e reciprocamente, na feliz expressão de Donzelot (citado em Carrilho 1976: 155): Estado entre os indígenas; anti-Estado entre nós; Clastres nos dilemas da antropologia contemporânea e às avessas. Uma vez mais, o ritornelo: os tempos, as gentes, os autores se comunicam. Rizomaticamente.



Nenhum autor é único: este trabalho, já foi dito, foi escrito a muitas mãos. Tampouco Clastres será único e evitaremos, aqui, a todo custo, emprestar a ele ou a seus escritos organicidade excessiva e artificial. Conhecem-se as ilusões e os riscos da “função-autor” (Foucault 1969), que transforma o escritor em unidade; sua obra em unidade; num e noutro caso, ilhas isoladas, Trobriands eternizadas, à espera de biógrafo que lhes traduza o equilíbrio. Nem obra nem autor serão tratados aqui como mônadas fechadas e auto-suficientes. Sabemos o motivo: os tempos, as gentes, os autores e as obras se comunicam. Não queremos fazer biografia nem crítica literária: a outros, menos ansiosos, a tarefa. Esquivaremo-nos, a um só tempo, de dar mais atenção às molduras do 17

que aos quadros e de prender-nos aos detalhes infinitesimais de cada pincelada: procuraremos mover-nos entre. As contextualizações excessivas – como bem lembra Vargas – “acantona[m] as idéias na época e no lugar em que surgiram” (2000: 27) e inibem os enxertos, que farão com que os mesmos conceitos polenizem territórios outros. Foi a contra-gosto, assim, que incluí o apêndice a este trabalho. Procurei retirar-lhe as “durezas” e “consistências” de um relato biográfico e optei por emprestarlhe forma mais fluida, batizando-o, inclusive, de “crônica”. Deve-se, contudo, levar sua designação como “apêndice” completamente a sério e na acepção botânica mesmo do termo: parte curta e estreita de uma planta, de importância secundária, apesar de saliente. Por sua saliência mesmo, alguns “episódios” da vida – e morte – de Clastres impuseramse a mim: eles têm relevância para os argumentos que desenvolveremos aqui, de forma que resolvi poupar o paciente leitor de meus excessos e caprichos metodológicos. Por exemplo, o acidente de carro de 1977, que interrompeu a trajetória deste “meteoro difícil de seguir”5, precisamente num momento em que suas pesquisas pareciam voltar-se para as situações em que o Estado se insinuava6. Ou então sua primeira experiência de campo, entre fevereiro e outubro de 1963, entre os Guayaki do Paraguai, que lhe servirá para o paulatino distanciamento com relação a Lévi-Strauss. Ainda que permaneça mais ou menos fiel ao programa que havia traçado com seu primeiro artigo – “Troca e Poder: Filosofia da Chefia Indígena”, de 1962 -, escrito com base nos dados do Handbook of South American Indians, Clastres não ficará imune à experiência de campo (e alguém o fica?). Terá início seu devir-etnógrafo; Lévi-Strauss permanecerá um racionalista. Enquanto Lévi-Strauss continuará a perguntar-se sobre a lógica que permite o funcionamento da sociedade, Clastres passará a preocupar-se com a lógica da sociedade em funcionamento. Também nosso trabalho tomará partido. E a favor da etnografia. Apesar de – ou talvez porque – puramente bibliográfico. Pura ironia. Certamente não será 5

É como Jacques Meunier descreve Clastres em artigo adicionado à edição do Chronique des Indiens Guayaki com a qual trabalhamos (Clastres 1972). 6 Ver as notas ao final de dois de seus últimos artigos, das quais extraímos os seguintes excertos: “(…) Em que condições a divisão social aparece na sociedade indivisa? A estas questões e outras, procuraremos responder em uma série de estudos que o presente texto inaugura.” (1977b: 207) e “[Nota da Revista Libre] Pierre Clastres deixou em suas notas algumas indicações sumárias sobre o campo que pretendia explorar. Aqui estão as que parecem ter sido as outras articulações principais do seu livro [inacabado]: (…) A guerra de conquista nas sociedades primitivas como indicação possível de uma mudança da estrutura política (o caso dos Tupi); (…) a guerra ‘de Estado’ (os Incas)” (1977c: 247).

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a única. Na verdade, não poderia ser de outro modo. O próprio Clastres o exige. Se a lingüística de Sapir e Whorf terá sugerido certa “semântica da cultura” – como se existisse correlação necessária entre estruturas lingüísticas e culturais – e a de Saussure e Trubetzkoy terá inspirado uma “sintática da cultura” – com língua e cultura sendo vistas como atualizações de regras imanentes que presidiriam à organização de ambos os sistemas –, Clastres nos oferece uma fuga, sob uma terceira modalidade: a de uma pragmática da cultura. “Deste terceiro ponto de vista,” – escreve Goldman – “não se trata de encarar os códigos a partir de sua organização interna (privilégio da sintaxe), nem de analisá-los segundo suas relações com os referentes aos quais remetem (privilégio da semântica), mas de buscar os modos específicos através dos quais esses códigos são atualizados, jogados ou manipulados na realidade concreta de cada sociedade particular – uma espécie de ‘pragmática’ , portanto” (1999: 20). O que presenciamos nas páginas de Clastres – especialmente no Crônica dos Índios Guayaki (1972) – é Pichugi, no momento do parto e logo após, submetendo-se às cerimônias de purificação correspondentes (Idem: 11 et passim); é Chachugi, que procura fugir às dores do ritual de iniciação e aparece morta pouco depois (Idem: 133 et passim); é Chachubutawachugi que, mesmo impossibilitado de caçar, não pretende assumir o lugar que lhe passa a ser correspondente no universo das mulheres e se torna ridícula figura, pretenso ocupante de uma terceira esfera – nem masculina, nem feminina -, que, a rigor, não existe (Idem: 213 et passim); é Jygi que, seduzida pelas balas convenientemente oferecidas pelo antropólogo – e para estudar uma sociedade primitiva, alertava Métraux, é necessário que ela já esteja um pouco apodrecida (Idem: 72) – compartilha com ele um dos maiores segredos de seu grupo: “Comemos nossos mortos” (Idem: 234 e 235). Não que Clastres se deixe fetichizar por certa concepção da “pessoa” como indivíduo, inexistente entre os Guayaki. Ao identificar a preocupação com a praxis como característica que se acentua nos estudos dos antropólogos a partir da década de 80 – conferindo-lhes, eventualmente, certa unidade -, Ortner não se nega a apontar as dificuldades evidentes – e não resolvidas – daí decorrentes, que advêm precisamente da natureza da interação entre a “prática”, de um lado, e o “sistema”, do outro (1984: 144 et passim). De fato, como a “prática” engendra o “sistema” e como o “sistema” engendra a 19

“prática”? Encontramo-nos, ao final, sempre diante das mesmas dicotomias, dos mesmos pares eternamente julgados excludentes: a “sociedade todo-poderosa”, de um lado, o “indivíduo manipulador”, de outro; Durkheim, de um lado, Malinowski, de outro; Marx, de um lado, Weber, de outro. Contudo, como aponta Ortner – resgatando argumentação de Giddens – “o estudo da prática não constitui alternativa antagonista ao estudo dos sistemas ou estruturas; é-lhes, antes, o complemento necessário” (Idem: 146 e 147). Havíamos já anunciado nossa opção: preferimos mover-nos entre. Assim, não nos sentiremos constrangidos pelas opções excludentes e nossa aposta será precisamente a de que, em alguma medida, podemos conectá-las. Não o “sistema” ou a “prática”, mas o “sistema” e a “prática”. Clastres faria aposta semelhante. Na “pragmática” Guayaki – queremos crer – encontra a linha de fuga para o paralisante dualismo “indivíduo” e “sociedade”7.

A este respeito, Ortner resgata

Foucault – ainda que o restrinja, com confesso pesar, a nota de pé de página – e recorda que seus estudos o encaminhavam para determinados “nós”, como as idéias de “intencionalidade sem sujeito” e “estratégia sem estrategista” (1984: 157). Na verdade, este parece precisamente o desafio: como construir modelos de intencionalidade sem sujeitos? Como não personificar a sociedade, fazendo dela um mega-sujeito? Como sair do individualismo metodológico sem cair em certo holismo transcendental ou vice-versa? Há como pensar relação social sem sociedade? Ou alternativamente, em termos que se aproximam mais da discussão que travaremos a seguir e que – espera-se – ganharão maior precisão ao longo das páginas seguintes: como a “objetividade” da socialidade opera por meio da “subjetividade” das pessoas-em-interação? Dilemas da antropologia contemporânea (Ingold 1996: 55-98; Strathern 1988 e 1992), sobre os quais a etnografia e os estudos de Clastres nos ajudam a pensar. Buscaremos, em sua obra, o que há “de mais interessante (…)

para uma determinada época (a nossa); (…) reativar(emos) para o

presente algumas idéias, algumas intuições às vezes, que podem funcionar como linhas de fuga e de força para nossos impasses contemporâneos” (Goldman 1994: 32, grifo do autor). De maneira que o meteoro continuará a movimentar-se no céu.

7

Para instigante debate a respeito da atualidade ou obsolescência do conceito de “sociedade” - e de sua excrescência, o de “indivíduo” -, ver “The Concept of Society is Theoretically Obsolete” em Ingold 1996: 55-98.

20



Que a estudante americana citada no início deste texto tome suas precauções: como Bene, também nós gostamos dos “perdedores”. Se não nos queremos nem biógrafos nem críticos literários, muito menos nos pretendemos juízes. Não faremos uma recensão crítica da obra de Clastres, o que quer que isto signifique. Certamente outros encontrarão prazer em tal tarefa. Não constitui absolutamente nossa intenção rebater as críticas de que seus escritos foram objeto. Tampouco queremos discutir a legitimidade das leituras que seus detratores costumam fazer de sua obra: elas serão, sem dúvida, perfeitamente válidas. Não necessariamente as mais interessantes, entretanto8. Como sugere Deleuze, tomaremos “a obra inteira, [vamos] segui-la e não julgá-la, apreender[emos] suas bifurcações, seus titubeios, seus avanços, seus buracos, [vamos] aceitá-la, recebê-la por inteiro” (citado em Goldman 1994: 31). Até porque, senão, “não se compreende nada” (Idem: 31). Terá havido certa tendência a banir a obra de Clastres para degredado escanteio, a extirpá-lo do corpus da régia ciência – que terá suas exigências e sua política (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 24 et passim) – e a transformá-lo em “autor menor”, num “perdedor”. Em certo sentido – irônico, claro –, levaremos esta tendência ao paroxismo: o degredo vai desterrritorializá-lo, permitindo que o recuperemos sob nova perspectiva, livre já da camisa-de-força da leitura estritamente durkheimiana. Por isto, vamos “minorá-lo” ainda mais e extirpá-lo de um de seus conceitos centrais – o de “sociedade”. Não tanto, evidentemente, porque aspiremos convertê-lo em “ganhador”, mas simplesmente porque as “regras do jogo” parecem destituídas de sentido. A insistência nos possíveis equívocos de um autor – raciocina Goldman – costuma restringir-se ao que não há de original em sua obra. E “[t]alvez valha a pena insistir justamente em sua originalidade” (Goldman 1994: 15).

8

Parece digno de nota (ao menos, de pé de página) a freqüência com que o adjetivo “interessante”, em toda sua ambigüidade, é utilizado para referir-se à obra de Clastres, para descartá-la logo em seguida. Ver, por exemplo, Overing 1995: 107. Eventuais – e relativamente raras – referências elogiosas costumam compartilhar das críticas na ligeireza com que tratam o autor: por exemplo Taylor 1984: 216. Alguns dos juízos negativos traem leitura apressada e rasa demais para que mereçam aqui algo mais do que simples registro: Konder 1986. A outros – mais atentos e, nem por isso, mais escrupulosos – retornaremos nas notas de rodapé oportunas: Descola 1988.

21

Libertada

dos

constrangimentos

do

conceito

de

“sociedade”

à

durkheimiana, que alguns analistas insistem em impingir-lhe, a obra de Clastres vai bascular – como as tragédias de Shakespeare, emancipadas do galante Romeu e dos poderosos personagens masculinos de Ricardo III.

Basta que selecionemos outras

passagens e outros desenvolvimentos que aqueles que sustentam as abordagens tradicionais e identificaremos em seus escritos potencialidades insuspeitas – por exemplo, certa concepção de “socialidade”, na acepção mesmo emprestada pela recente antropologia britânica ao termo (Gell s/d; Ingold 1996: 55-98 e Strathern 1988) –, que, na verdade, sempre estiveram lá, presentes na aparente ausência. Trata-se, enfim, de leitura, se não obrigatoriamente interessante, ao menos interessada de Clastres. A qual assumidamente terá boa vontade para com o autor, precisamente de forma a permitir que “devires, vidas, pensamentos, graças e desgraças” ganhem a frente da cena. Uma leitura política, sem dúvida. Todas são.



Há um Clastres-sociólogo, um Clastres-filósofo político, um Clastres em devir-etnógrafo. Simultânea e reciprocamente – como se imagina. Ressente-se de acentuada artificialidade, portanto, a divisão deste estudo em partes9. Ainda não sabemos escrever em círculos que se decompõem, porém. A “parte-raiz” deste estudo fará genealogia. Vistoriará a tradição e exigirá precauções: a ciência régia estará à espreita. Procuraremos mapear as transmutações (Châtelet 1976: 52) por que passou o conceito de “sociedade” no horizonte da Escola Sociológica

Francesa

-

especialmente

em

Durkheim

-

e

em

Lévi-Strauss.

Reconhecidamente faremos dos dois leituras bastante clássicas10. Precisávamos disto. Até para levar adiante a “cirurgia” a que estaríamos submetendo Clastres e que requeria demonstrar que seu saudável exercício de “aproximação e afastamento” – de près et de

9

Sobre as “raízes”, as “radículas” e os “rizomas” – de que nos utilizamos para dividir este trabalho em partes –, ver Deleuze e Guattari 1980, Vol. 1: 13 et passim e Vol. 5: 220 et passim. 10 Foi Paulo Gabriel Pinto que chamou minha atenção para o fato. Certamente, Lévi-Strauss e Durkheim comportarão, também eles, eventuais leituras menores. Simplesmente não nos propusemos a fazê-las. Tal empreendimento exigiria outra tese.

22

loin – para com Lévi-Strauss não implicava um restabelecimento de Durkheim. Quando a genealogia ameaçava converter-se em arborescente estrato (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 1: 54, 88 e 89), empreendemos a primeira fuga e abortamos a raiz, convertendo-a em radícula: voltamo-nos para o que há de filósofo político em Clastres. Na verdade, o tratamento que ele reservará ao “Estado” permite-nos desterritorialização complementar de seu conceito de “sociedade”. De fato, Clastres promove certa “dessubstancialização” do Estado, que “não é o Eliseu, a Casa Branca, o Kremlin” (1978: 166), mas o “acionamento efetivo da relação de poder” (1976b: 115): é o que nos faculta, por exemplo, afiançar que haverá Estado entre os primitivos11, presente na aparente ausência. Por que, então, acreditar que ele reificaria o outro lado do par, a sociedade? A esta altura, a terceira fuga, rizomática, impôs-se: “o rizoma é uma antigenealogia” (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 1: 20). Ao colocar a concepção de Clastres sobre o Estado contra sua acepção para a sociedade, um e outro conceito se desenraízam e podemos ver, em ambos, conjuntos de relações: socialidades, máquinas de subjetivação sem nenhuma externalidade com relação às pessoas que engendram e que as engendram. A estéril , histérica e livresca dicotomia “ indivíduo” / “sociedade” terminará descartada, em benefício de socialidades em operação. Identificando no que Clastres “não diz e que está entretanto presente no que diz” (Deleuze, citado em Goldman 1984: 379), reencontraremos, no desenlace deste trabalho e ao longo de toda sua obra, sua etnografia. Uma palavra final sobre as evocações botânicas que acabamos de fazer. Somente até determinado ponto, trata-se de metáforas “boas para pensar”. Não constituem, necessariamente, indicações de filiação exclusiva ou de pertencimento às linhagens dos mesmos e sagrados totens. Preferimos as alianças táticas. Até porque achamos que bulbos e tubérculos são também “bons para comer” e porque nosso pensamento continua impetuosamente selvagem.

11

O próprio Clastres reconhecerá: “sim, o Estado existe nas sociedades primitivas” (Carrilho 1976: 76).

23

2. Raízes: a “Sociedade” em Pierre Clastres e a Escola Sociológica Francesa Raiz – Bot. Porção do eixo das plantas superiores que cresce para baixo, em geral dentro do solo, e cuja função fundamental é fixar o organismo vegetal e retirar do substrato os nutrientes e a água necessários à vida da planta. Há raízes aquáticas e aéreas, razão porque a raiz se caracteriza melhor pela estrutura. Aurélio XXI

Durkheim sempre fez ciência de Estado. Não exatamente no sentido de ter constituído uma sociologia política. Chamboredon demonstra como os estudos das instituições políticas – especialmente no que diz respeito à relação entre o Estado e os grupos secundários na proteção que o primeiro contra os segundos ou vice-versa oferecem à liberdade individual – sempre ocuparam lugar marginal na obra de Durkheim (Chamboredon 1984: 489-490). Nem tampouco apenas no sentido caro a Bourdieu de que Durkheim, ao lançar mão das “estratégias” adequadas à “estrutura”, então ainda em formação, do campo científico da sociologia, teria se sagrado vencedor na “luta concorrencial” para definir a doxa da nova disciplina: condignamente, passariam a ser-lhe reconhecidos os louros acadêmicos de uma Terceira República ávida por encontrar alternativas - de preferência, “cientificamente” fundadas - para certa crise moral e política da França que datava, mais 24

longinquamente, da Revolução de 1789 e que se aprofundara com a derrota para a Alemanha na Guerra de 1870 (Vargas 2000: 64 et passim). É, na verdade, num sentido ainda mais radical que Durkheim fez ciência de Estado. Não há por que espantar-se que seus escritos tão bem tenham se harmonizado com as aspirações dos burocratas da Terceira República: Durkheim contribuiu para certa canonização de uma forma-Estado de pensar em sociologia. Deleuze e Guattari recordam que, no Timeu, Platão opôs dois modelos de ciência – um do Idêntico e do Uniforme, outro do Devir – apenas para, muito ligeiramente, descartar-se do segundo (1980, Vol. 5: 36). O primeiro modelo, legal e legalista, põe as constantes em evidência, raciocina por teoremas e axiomas e pretende subtrair as operações das condições da intuição, a fim de convertê-las em “conceitos” e “categorias”: trata-se da ciência régia, forma-Estado de pensar. “Vê-se nitidamente” – argumentam Deleuze e Guattari – “o que o pensamento ganha com isso: uma gravidade que ele jamais teria por si só, um centro que faz com que todas as coisas, inclusive o Estado, pareçam existir graças à sua eficácia ou sanção própria. Porém, o Estado não lucra menos. Com efeito, a forma-Estado ganha algo de essencial ao desenvolver-se assim no pensamento: todo um consenso” (Idem: 44). Contudo, haverá sempre “um Palestino, mas também um Basco e um Corso” (Idem, Vol. 3: 94) a desafiar a segurança assim adquirida e o segundo modelo operará antes com variáveis do que com constantes, raciocinará por problemas e, ao invés de ocupar-se do estável, do eterno e do idêntico, optará pelos devires e pelas heterogeneidades e, às essências, preferirá acontecimentos, acidentes e transmutações. Os “binarismos acabados” – dom e mercadoria; status e contrato; Gemeinschaft e Gesellschaft; racionalidade

afetiva

e

racionalidade

instrumental;

solidariedade

mecânica

e

solidariedade orgânica; indivíduo e sociedade, para ficarmos apenas com alguns –, verdadeiros pontos de parada, tão característicos da ciência de Estado, terminam, neste segundo caso, descartados em nome de uma lógica dos fluxos, que passa entre os pontos, intermezzos em contínuo movimento. A axiomática da ciência de Estado reagirá: “a axiomática não constitui uma ponta da ciência, mas muito mais um ponto de parada, um restabelecimento da ordem a impedir que os fluxos semióticos descodificados, matemáticos e físicos, fujam por todos os lados. Os grandes axiomatistas são homens de Estado da ciência, que colmatam as linhas de fuga tão freqüentes (…), que pretendem 25

impor um novo nexum, mesmo que provisório, e fazem uma política oficial da ciência” (Idem, Vol. 5: 162). Durkheim, o imperador. Durkheim fundou um império, instituiu uma origem, criou uma tradição. Ou, antes, em seu nome, foi fundado um império, instituída uma origem, criada uma tradição. A história é um conhecimento necessariamente mutilado – a reconstituição integral dos acontecimentos permanecendo uma impossibilidade (Veyne 1971: 26 et passim) – e a “história oficial” das ciências sociais, por meio da “regressão fetichista”, da “canonização escolástica” e da “teologia laicizada” (Chamboredon 1984: 461 e 463) que opera, lança mão de “expedientes hagiográficos” específicos que constituem uma “catatônica uniformidade da origem” (Vargas 2000: 40-41). A invenção da tradição obriga à repressão das intrigas, do alarido em dissonância que marca cada etapa da história de um saber, desde sua constituição. Instituem-se centros de gravidade e definem-se territorialidades, todos devidamente sacralizados: no início, era o Verbo e Durkheim, a única voz finalmente legitimada. Talvez nossa argumentação peque em seu exagero: é proposital. Em meticulosa nota de rodapé, Chamboredon alega que foram as necessidades da polêmica contemporânea que deformaram Durkheim e o aviltaram como “um gauche na vida”, com o holismo hipertrofiado de seu sistema e certo desprezo pela ação individual, da mesma forma que deturpação simétrica teria erigido Weber em arauto de certo individualismo metodológico (1984: 499). De pouco importam as precauções de Chamboredon, porém: em oposição a toda uma refinada microssociologia das crenças e dos desejos de Gabriel Tarde, foi o privilégio concedido por Durkheim às grandes representações coletivas, binárias, ressoantes e sobrecodificadas, que fez escola (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 3: 98-99). Durante muito tempo, permaneceram marginalizadas as objeções de Tarde, de acordo com as quais as representações coletivas pressupunham precisamente aquilo que deveria ser explicado, “a similitude de milhões de homens”, cuja compreensão obrigava à

observação do mundo do detalhe e do infinitesimal, das

pequenas, cotidianas e infinitas imitações, oposições e invenções, que teceriam uma trama num nível propriamente sub-representativo, no qual a distinção entre indivíduo e sociedade perderia todo o sentido (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 3: 98-99; Joseph 1984: 550; Vargas 2000: 22 et passim; Vargas 1995: 104). 26

O entendimento das grandes

revoluções, assim, exigiria que se soubesse que camponeses, em que regiões do Midi, pararam de cumprimentar os proprietários da vizinhança. A doxa que terminaria se afirmando na sociologia, entretanto, passaria ao largo de tais preocupações: ambiciosa, a ciência de Durkheim preferia grandes conjuntos, todos englobantes como a sociedade, e para chegar até ela ressonaria uma série de binarismos. Em A Sociologia Francesa, Lévi-Strauss demonstra como todo o sistema durkheimiano pode ser remetido ao par indivíduo/sociedade (1947: 527 et passim). Estorvado por antinomias de uma ponta à outra - o finalismo da consciência versus a cegueira da história; a sociologia versus a psicologia; o sentido lógico das “origens” e das “formas elementares” versus o genealógico; as regras morais versus os apetites sensuais; os conceitos versus as sensações; o sagrado versus o profano (Lukes 1973: 16 et passim) -, o edifício durkheimiano procura vencer as inevitáveis ambigüidades daí decorrentes por meio da determinação de níveis intermediários na realidade coletiva (Lévi-Strauss 1947: 527). Recusa, veementemente, entretanto, adotar atitude semelhante no plano individual. Será precisamente a delimitação de tais níveis intermediários - como o do pensamento inconsciente -, porém, que, na opinião de Lévi-Strauss, facultará a transposição da aparente oposição indivíduo/sociedade. Negando-se a encarar a questão de frente, Durkheim perseverará na ambivalência do par, que perpassará toda a sua construção teórica. Na paulatina migração que seus escritos farão do conceito de “consciência coletiva”, fundamental no A Divisão do Trabalho Social, para o de “representações coletivas”, presente já no O Suicídio e, posteriormente, depurado no Algumas Formas Primitivas de Classificação e especialmente no As Formas Elementares da Vida Religiosa, e em sua sociologia do conhecimento, sua sociologia da religião e sua apenas formulada

sociologia

da

moralidade,

persistirá

a

centralidade

da

distinção

indivíduo/sociedade, que Durkheim acreditava ontológica. Divergindo dramaticamente, sobre o particular, de Weber - para quem a compreensão subjetiva constituiria particularidade do conhecimento sociológico e as coletividades deveriam ser tratadas como resultantes dos atos particulares dos indivíduos (Lukes 1973: 19-20) -, Durkheim advoga a natureza sui generis dos fatos sociais, passíveis de explicação somente a partir de outros fenômenos sociais e não por meio de características e atitudes dos indivíduos. 27

Este “realismo sociológico” excessivo - comprometido, ademais, por certa imprecisão conceitual na demarcação da bifurcação indivíduo/sociedade, conforme veremos a seguir - era, a rigor, desnecessário. Ainda que quisesse resguardar a peculiaridade da sociologia, Durkheim - ao invés de estatuir, exagerada e precipitadamente, que as explicações dos fatos sociais somente podem concretizar-se pelo recurso ao entendimento de outros fenômenos da mesma natureza - poderia limitar-se tão-somente a afirmar que tais fatos não podem ser reduzidos apenas a características e atitudes dos indivíduos: de fato, “a negação do individualismo metodológico não implica a aceitação do ‘sociologismo metodológico’ ou holismo” (Idem: 20). A “sociedade” intoxicava Durkheim - observa, com precisão, Morris Ginsberg (citado em Lukes 1973: 21) - e facultar-lhe-ia o itinerário tortuoso que vai da sociologia, como ciência, à sociocracia, como técnica de reforma social, e, por fim, à sociolatria, como religião. Em seu nome, o autor normalmente tão vigilante de As Regras do Método Sociológico terminará eximindo-se das compulsórias exatidões conceituais. A própria “noção-chave” da sociologia durkheimiana prestar-se-á, assim, a certa fluidez conceitual e será diversamente definida ao sabor do momento: por exemplo, como transmissão ou fixação de crenças e práticas; como associação; como imposição de obrigações socialmente prescritas; como objeto do pensamento, de sentimentos e ações, e, finalmente, como realidade concreta, apesar de certa ambigüidade perdurar mesmo neste último sentido, com “sociedade” sendo entendida algumas vezes como todo (“a França”) e outras como grupos ou instituições particulares (“o Estado”; “a família”) (Lukes 1973: 21). Ainda mais grave, como veremos mais à frente, a “sociedade”, no arcabouço construído por Durkheim, tem como necessária, involuntária e perigosa excrescência a concepção de “indivíduo”, também esta prestando-se a notória inconsistência conceitual. “Indivíduo”, deste modo, designará, em algumas ocasiões, o ser pré-social, unidade orgânica, num nível propriamente biológico; em outras, o ser abstrato, dotado de determinadas propriedades invariáveis, como os raciocínios de inspiração utilitária e economicista; em outras, ainda, o ser extra-social, isolado, e, por fim, as pessoas reais, vivendo em sociedade (Idem: 22). A divisão básica indivíduo/sociedade desdobra-se, portanto, em tantas outras, sem perder, contudo, sua centralidade no sistema durkheimiano, na medida mesmo em que servirá de pedra de 28

toque para as dicotomias regras morais/apetites sensuais, conceitos/sensações e sagrado/profano, que definirão, respectivamente, sua sociologia da moralidade, sua sociologia do conhecimento e sua sociologia da religião. A distinção indivíduo/sociedade constituía, na realidade, instrumental especialmente oportuno na empreitada de Durkheim de definição de domínio autônomo para a sociologia. Buscava-se tal independência particularmente diante da psicologia e da filosofia. Não sem certa dose de ironia, ambas as disciplinas acabariam influenciando decisivamente a argumentação de Durkheim: “eminências pardas” eternamente à espreita, instituiriam

contrapontos

onipresentes

às

teorias

de

nosso

autor,

diuturnamente os arroubos emancipatórios da sociologia nascente,

corroendo no fundo

completamente destituídos de sentido. Operando uma série de substituições epistemologicamente inócuas (e plenas de conseqüências nos planos ontológico e político) (Vargas 2000: 140), Durkheim procurou livrar seus raciocínios de noções metafísicas até então em voga – como Deus ou os a priori kantianos -, recorrendo a conceitos que lhe pareciam revestidos de maior cientificidade, na verdade tão metafísicos quanto os anteriores. Em Algumas Formas Primitivas de Classificação e As Formas Elementares da Vida Religiosa, Durkheim demonstrou como as categorias da lógica e as idéias de Deus e totalidade possuíam matrizes extra-lógicas ou, mais propriamente, sociológicas. É a sociedade – argumenta – que se encontra na raiz dos sistemas classificatórios, de conceitos como os de totalidade e divindade e das concepções filosóficas clássicas. As origens da religião e da lógica pareciam, desta forma, ganhar explicação sociológica e estavam lançadas as bases para sua sociologia da religião e do conhecimento. Ainda mais: ao evidenciar a natureza última dos sistemas lógicos e da idéia de Deus, a sociologia, imperial, reclamava para si precedência sobre a filosofia e a religião (Idem: 141). Graças à concepção do homo duplex, Durkheim podia, a um só tempo e algo contraditoriamente, contemplar a eventual constituição de um saber que se ocupasse simultaneamente das representações coletivas e individuais (1895 [1901]: XXVII), e velar para manter nítida a fronteira que conservava apartadas a psicologia e a sociologia. Conviveriam no homem – postula – um ser individual, cuja base é seu organismo, e um ser social, “que representa em nós a mais alta qualidade, na ordem intelectual e moral, 29

que possamos conhecer pela observação, ou seja, a sociedade” (Durkheim 1912: 46), realidade sui generis, expressa por representações, cujo “conteúdo [é] completamente diferente das representações puramente individuais” (Idem: 45). Prévia “higienização” analítico-metodológica, observadas estritamente determinadas rotinas de purificação, evitaria contaminações que ameaçassem a inteligibilidade de nosso objeto, a “sociedade”, e resguardaria, no seu entorno, as necessárias fronteiras: não só os Estados as possuem. Durkheim buscará nas ciências biológicas pós-Darwin, que saboreavam então o primeiro momento de sua duradoura popularidade, e na idéia romântica de “organismo” a inspiração para conceber o social como totalidade sistêmica, una e delimitada (Vargas 2000: 146): “A célula viva não contém senão partículas minerais,” – escreve – “como a sociedade nada contém a não ser os indivíduos; e, no entanto, é impossível, segundo toda a evidência, que os fenômenos característicos da vida residam nos átomos de hidrogênio, de oxigênio, de carbono e de azoto […]. Não é admissível […] que cada aspecto da vida […] se encarne num grupo diferente de átomos. A vida não poderia se decompor desta maneira; é una e, por conseguinte, não pode ter por sede senão a substância viva em sua totalidade. Ela existe no todo e não nas partes” (1895 [1901]: XXIV-XXV) A preservação de tal totalidade exige a manutenção da ordem. Durkheim faria o gosto dos burocratas da Terceira República, carentes de palavras de ordem que parecessem garantir a recuperação da coesão da tecitura social francesa, em franca decomposição. Sua obra seria pródiga em conceitos como os de “anomia” e “solidariedade mecânica e orgânica”. O objetivo: a promoção de certo “equilíbrio moral”. A custo, é verdade, de pronunciada artificialidade. Ainda que a sociologia apareça em Durkheim como uma espécie de ciência natural e que certo “organicismo”, caro às ciências biológicas, se insinue, com alguma freqüência, em seus escritos, a sociedade será, para ele, irredutível à natureza. As homologias sociedade/natureza, portanto, não devem ultrapassar estritos limites: a realidade social não é de ordem biológica, mas moral. Razão por que não apenas os conceitos de “solidariedade” e de “anomia” – fundamentais nos estudos de morfologia social, proeminentes na primeira fase de sua carreira - mas também os de “consciência 30

coletiva” e “representações coletivas” dependerão da equação entre vida social e moralidade. Durkheim define “consciência coletiva” em A Divisão do Trabalho Social como “o conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma sociedade [que] forma um sistema determinado, dotado de vida própria” (1893: 46, grifo meu). Esses “sentimentos e crenças” são morais, religiosos e cognitivos (Lukes 1973: 4) e antecipam as sociologias da moralidade, da religião e do conhecimento que Durkheim procuraria desenvolver nos anos seguintes. Se bem que somente atualizada por meio dos indivíduos, a consciência coletiva não se confunde com as consciências particulares de cada um e, em certo sentido, independe deles: “Eles passam; ela permanece. Ela é a mesma no Norte e no Midi” (Durkheim 1893: 46): nosso pobre camponês do Midi de algumas páginas atrás vê-se agora constrangido a cumprimentar os proprietários da vizinhança e a Revolução de 1789 e Maio de 1968 permanecem impossibilidades. O próprio Durkheim reconhecerá a “estabilidade excessiva”

do conceito e tenderá a

substitui-lo, em suas obras subseqüentes, pelo de “representações coletivas”, que lhe parecia dotado de maior flexibilidade, capaz de dar conta da forma como os indivíduos são ligados a e controlados por suas respectivas sociedades e como as crenças e os sentimentos coletivos são mantidos e reforçados. Trata-se de flexibilidade, entretanto, ainda insuficiente e viciada desde a origem – conforme veremos mais à frente. A vida social, estatui Durkheim em O Suicídio, constitui-se de representações. Mais oportunamente, definirá as representações coletivas como estados da consciência coletiva, diferentes, portanto, dos estados da consciência individual (Durkheim 1895 [1901]: XXVI). Seus escritos posteriores procurarão sistematizar o estudo de tais representações pelo exame das origens, das referências e das funções sociais do pensamento cognitivo, das crenças religiosas e dos ideais morais, respectivamente em sua sociologia do conhecimento, sua sociologia da religião e sua apenas projetada sociologia da moralidade (Lukes 1973: 6). Nos três casos, as representações coletivas resultarão do substrato dos indivíduos em associação, cuja natureza sui generis amofinará quaisquer esforços para reduzi-las às características dos indivíduos (Idem: 7 e 233). Exatamente como ocorria com a noção de consciência coletiva, também aqui o individual e o social permanecerão absolutamente – e 31

absurdamente – estranhos um ao outro, “entidades” com absoluta externalidade entre si. O terceiro conceito-chave da obra de Durkheim – o de “fatos sociais” - apenas levaria tal tendência ao paroxismo. Os

“fatos

sociais”



cuja

objetividade

parecia

a

Durkheim

ontologicamente inquestionável (1895: 25) – são exteriores aos indivíduos, sobre os quais exercem coerção (Idem: 2-3) e gerais ao grupo em estudo (Idem: 11). A eloqüência e os excessos retóricos de algumas passagens do As Regras do Método Sociológico quase nos eximem de comentários complementares (Idem: 11 e 24): “Pode-se afirmar em princípio que os fatos sociais são tanto mais suscetíveis de serem objetivamente representados quanto mais suscetíveis de se desprenderem completamente dos fatos individuais em que se manifestam” (Idem: 38, grifo meu). A conquista de domínio pretensamente autônomo para a sociologia no campo dos saberes científicos demandava, assim, preço elevado: o da cisão radical entre indivíduo e sociedade e o da prevalência – imperial – desta sobre aquele, inaugurando tradição cujas dificuldades a antropologia herdaria por inteiro e das quais apenas muito recentemente vem adquirindo consciência e buscando libertar-se (Viveiros de Castro 1996: 518 e 521; Ingold 1996: 57 et passim). De pouco adiantam os desmentidos de Durkheim, sua negação de que estivesse reificando ou hipostasiando a “sociedade” e sua argumentação de que nada haveria de coletivo se não existissem as consciências individuais (Durkheim 1895: 90; Durkheim 1912: 264, 277, 307 e 327; Lukes 1973: 234). Ao tentar salvaguardar a especificidade da sociologia, reservando-lhe domínio próprio, Durkheim, constrangido em conceder à noção absoluta centralidade em seu construto teórico, terminará irrecuperavelmente comprometendo sua tentativa de libertar-se da filosofia espiritualista e da psicologia e ironicamente “naturalizará” o social. Se o conceito de “representações coletivas” tem, por um lado, o mérito de franquear o portal do simbólico para a sociologia (Durkheim 1912: 288: Lévi-Strauss 1947: 526; Lukes 1973: 235-236), por outro, aborta prematuramente as expectativas assim geradas. Em Durkheim, o símbolo apenas traduz a exterioridade inerente aos fatos sociais: “[A]o invés de mostrar como a aparição do pensamento simbólico torna a vida social simultaneamente possível e necessária, Durkheim esforça-se por fazer o inverso, quer dizer, faz derivar o simbolismo do estado de sociedade” (Lévi-Strauss 1947: 527). 32

As “representações coletivas”, portanto, apenas expressam algo de verdadeiro: a “sociedade”. Da mesma forma, os “fatos sociais” são meras “projeções” da “sociedade” (Vargas 2000: 156). O raciocínio fecha-se em si mesmo, em círculo vicioso, que nos remete sempre à mesma onipresença: a sociedade, a sociedade, a sociedade! Em Durkheim, a “sociedade”, chave explicativa para tudo, termina naturalizada e permanece, ela própria, inexplicada. O mistério apenas começou: que entidade é esta? Ela existe? A crença em sua existência talvez exija mesmo profissão de fé (além de justificar “profissões” bem mais mundanas, como a de “cientista social”…), semelhante à dos devotos diante de Deus. Como bem observa Gianotti, recuperado por Vargas (Idem: 158), no fundo, não há qualquer diferença epistemológica entre o Deus dos espiritualistas e a “sociedade” de Durkheim: todos dois constituem o fundamento último, a atribuir racionalidade a tudo e para além dos quais nenhuma pergunta se justifica. As Formas Elementares da Vida Religiosa guardam trecho primoroso a este respeito: “[N]ão há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, unicamente pela ação que ela exerce sobre eles, a sensação do divino; porque ela é para os seus membros o que um deus é para os seus fiéis.” (Durkheim 1912: 260) Entre os quais, evidentemente, os sociólogos. Hierarquicamente, a “sociedade”

em Durkheim precede e submete o

indivíduo. Conforme sói acontecer com as dicotomias – como tão bem entenderão os dumontianos… -, também aí há um termo preponderante, que se sobrepõe ao segundo, sobrecoficando-o. Ao mesmo tempo que se opõe ao indivíduo, a “sociedade” em Durkheim se impõe a ele: fonte criadora do indivíduo, mantém, soberba e divinamente, existência sui generis com relação à sua criatura. Como ocorre com o sagrado, que designa, a um só tempo, o que é isolado do profano e o que servirá para defini-lo. (Durkheim 1912: 72). O que nada tem de surpreendente: em Durkheim, esses pares dicotômicos amparam-se reciprocamente, emparelham-se e ressoam em uníssono. Como escreve Vargas: “[E]nquanto o social soa junto com o moral, o sagrado, o conceitual e o sociológico, o individual, o afetivo, o profano, o sensorial e o psicológico garantem o repique do sino e fazem vibrar juntas as dicotomias” (2000: 161). Há, desta maneira, marcada ironia em que o sociologismo extremado de Durkheim dependa visceralmente de sua excrescência, o indivíduo. Não poderia ser de 33

outro modo, aliás: a dificuldade – conforme argumentaremos nas páginas seguintes – advém precisamente da suposição de que tais entidades – indivíduo e sociedade – existam e levem vida independente, autônomas e externas uma com relação à outra. Deleuze e Guattari demonstraram como o Estado sempre esteve em relação a um “fora” e não se sustenta independentemente desta relação (1980, Vol. 5: 23): daí a importância das fronteiras, das alfândegas, dos agentes de controle de passaporte. A “sociedade” de Durkheim trai os objetivos emancipacionistas que o estudioso entressonhava para sua disciplina. Impura – como não poderia deixar de sê-lo -, dependerá dos indivíduos, porque terminará, ela própria, pensada como um mega-sujeito: dotada de vontades, de uma consciência, de uma personalidade, de um ser. De alma, inclusive (Lukes 1973: 11, 236, 523 e 526). E, surpreendentemente, destituída de vida. É van Gennep quem escreve: “Temo que M. Durkheim, apesar de seu aparente respeito pelos dados etnográficos, possua apenas apreço pelas concepções metafísicas e, ainda mais, escolásticas; ele atribui verdadeira realidade a conceitos e palavras. Privado do significado da vida – quer dizer, do sentido biológico e etnográfico -, ele transforma entidades vivas em plantas cientificamente dissecadas, como num herbário” (citado em Lukes 1973: 526-527).

 A dádiva com que Mauss presenteou as gerações seguintes de antropólogos (Sahlins 1972: 149), seu Ensaio sobre o Dom, insere-se, sem maiores dificuldades, no que Deleuze e Guattari descrevem como livro-radícula (1980, Vol. 1: 14). Diferentemente do livro-raiz – magnânimo em sua organicidade interior, significante e subjetiva e açambarcador em sua pretensão de imagem fiel do mundo, como se a natureza, furtiva, não ultrapassasse, em sua velocidade e multiplicidades próprias, a lentidão do espírito (Idem: 13) -, o livro-radícula aborta, prematuramente, as aspirações à unicidade: enxerta-se, na raiz principal, uma multiplicidade imediata e as raízes secundárias explodem num crescimento imprevisto (Idem: 14). Não sem certa dose de ironia, a fertilidade do Ensaio provém precisamente de sua falta de ambição. Guardando muito ainda de um esboço, de um texto sob forma de projeto, suas lacunas e não-ditos, 34

suas hesitações e gaguejos prestar-se-ão a interpretações e desenvolvimentos múltiplos, como se a obra, grávida em devires, trouxesse em si, em caráter de potência, desdobramentos das diversas antropologias posteriores. O Ensaio, de fato, satisfará apetites distintos e, nos obtusos labirintos da busca do reconhecimento acadêmico, os novos mestres se sentirão constrangidos à identificação linhageira com Mauss (Sigaud 1999: 109), de cujo mana esperam beneficiar-se. O estruturalismo reclamará, assim, filiação ao Ensaio (Lévi-Strauss 1950); a fenomenologia invocará, também ela, ascendência semelhante (Brumana s/d: 82): como predizem Deleuze e Guattari (1980, Vol. 1: 14) , a obra mais parcelar apresenta-se como a Obra Total, Magnum Opus por excelência. Cada um moldará o livro às exigências de seus marcos teóricos e fornecerá grades de leitura específicas. Humildemente, proporciono-lhes a minha. Ainda que aborte as aspirações à unicidade, o livro-radícula não a exclui: a unidade permanece, como passada ou por vir (Idem: 14). Fazedores de anjos apelidaram-nos Deleuze e Guattari (Idem: 14), os abortadores da unidade nada mais fazem senão “afirmar uma unidade propriamente angélica e superior” (Idem: 14). As vicissitudes que conheceu o Ensaio sobre o Dom – principalmente com a leitura proposta por Lévi-Strauss no Introduction à l’Oeuvre de Marcel Mauss (1950) – parecem especialmente ilustrativas a este respeito. Lévi-Strauss reinstaurará uma unidade a partir do Ensaio, restabelecerá uma totalidade não mais da ordem da concretude do vivido – conforme sugerida pelos “fatos sociais totais” de Mauss (Brumana s/d: 50 et passim) – mas no nível de uma objetividade estranhamente abstrata, localizada no cérebro. “[U]ma teologia sem deus […], uma sociologia sem sociedade”, escreverá Clastres (1978: 160): o sujeito fazedor de ciência e de anjos ganha o céu e coloca-se junto a Sirius. Escrevem Deleuze e Guattari: “Estranha mistificação, esta do livro, que é tanto mais total quanto mais fragmentada” (1980, Vol. 1: 14). Se a redução do Ensaio sobre o Dom à troca e à reciprocidade – tendência caudatária a Lévi-Strauss (Sigaud 1999: 115) – traz o risco de rejeição intempestiva de outras potencialidades que o livro encerra, o estreitamento de Mauss ao Ensaio tampouco lhe faz justiça (Brumana, s/d: 66-67). Em seus escritos, Mauss revela sempre uma “ânsia de concreto” (Idem: 47) e parece, no mais das vezes, em busca dos intermezzos perdidos por conta da concepção de homo duplex de Durkheim (Idem: 58) e da conseqüente 35

externalidade entre indivíduo e sociedade. Identifica-se esta busca por níveis intermediários nas mais variadas frentes, seja em suas discussões sobre o mana e o sacrifício, seja naquelas sobre a moeda e o corpo, seja, enfim, nas dedicadas ao dom. Conforme apresentado no Esboço de uma Teoria Geral da Magia, o mana constitui uma categoria à mi-chemin. Simultaneamente material e espiritual, pessoal e impessoal, motor imóvel e fator em movimento, o mana, na síntese inconsciente e simbólica que opera, intermedeia termos excludentes entre si no mundo empírico, que terminam, assim, devidamente amalgamados no pensamento e ação mágicos (Idem: 45). Por sua vez, os sacrifícios – estatui Mauss no Ensaio sobre a Natureza e Função do Sacrifício – apresentam, para além da diversidade de suas manifestações concretas, um traço comum, a saber: a união que promovem de dois mundos – o sagrado e o profano – por intermédio da vítima, cuja vida é reclamada no decorrer da cerimônia. A interpenetração, via sacrifício, de dois mundos separados reflete, através da expressividade cerimonial do ritual, outra dualidade vivenciada

socialmente,

conseqüência mesmo da natureza dos fatos sociais, que existem, a um só tempo, dentro e fora do indivíduo (Idem: 40). A moeda coloca em comunicação não só os agentes que trocam, mas, em alguma medida, universos semânticos que imaginaríamos separados. Para além da função mediadora que assumirá nos intercâmbios propriamente econômicos, a moeda guarda muito do poder sagrado que lhe foi originalmente conferido pela religião e pela magia (Idem: 49). Talvez mais do que qualquer outra instância, a modelação de um estilo corporal – de que Mauss se ocupa em As Técnicas Corporais - ilustrará a marcada artificialidade das tentativas de separar em bem delineados escaninhos os diferentes níveis de faticidade: o fisiológico, o psicológico e o social. De fato, como diferenciar, com absoluta, científica e arrogante segurança, o que, em dada técnica corporal, resulta da tradição e das imposições sociais daquilo que se origina da vontade individual ou de movimentos fisiológicos involuntários? Uma piscadela permanecerá sempre um mistério e terá infinitas motivações. No lugar do “homem cindido” – homo duplex à Durkheim -, Mauss nos oferta o “homem total” – fisiológico, psicológico, social e histórico à la fois -, irredutível em sua radical concretude, para além – ou aquém, pouco importa – do crescente abstracionismo do estruturalismo. 36

Pouco existirá de mais palpável e corpóreo do que uma rocha. Ao pretender tocar uma das rochas sobre as quais se erguem nossas sociedades (Mauss 1923/24: 148) – as obrigações de dar, receber e retribuir, estudadas a partir de suas manifestações nas prestações totais e nas prestações totais de tipo agonístico (os potlatch) na Melanésia, na Polinésia e no Noroeste americano e em suas “sobrevivências” nos direitos antigos -, Mauss permanece, no Ensaio sobre o Dom, num estádio de abstração muito aquém do que o reivindicado pelo estruturalismo: não há terra prometida, apenas rochas. Lévi-Strauss (1950) o acusa de ter ficado a meio caminho, engolido pelo plano empírico e sua ideologia explícita (o hau), como se houvesse uma obrigação de transcendê-los e como se não residisse precisamente aí seu mérito. Tanto para um quanto para o outro, os agentes não sabem o que fazem; o termo “inconsciente”, porém, não significará o mesmo para os dois, até porque Mauss, “mistificado pelo indígena”, levará suficientemente a sério as explicações nativas para as respectivas atitudes. “Passemos ao trabalho positivo”, provoca ele, convencido de que o sentido do real está inserido nas próprias ações do agente – nos quadros das representações coletivas a que se referem – e que estes eventualmente teorizam, e com razão, a este respeito. De fato, como hierarquizar teorias, as do hau, as do mana, as da ciência? Antes a mistificação pelo indígena do que pela ciência. Das categorias aos atos, dos atos às categorias – tal é o procedimento de Mauss, que reduz a realidade empírica multiforme a uma realidade subjacente mais simples (Brumana s/d: 81). E, escrupulosamente, pára. A lingüística serve-lhe de modelo apenas na medida em que abandona pretensões filosóficas, abraça em sua inteireza o caráter histórico de seu objeto e o reveste de concretude. Os fenômenos sociais – crê podem ser analisados como fatos de linguagem, mas num nível propriamente semântico e não sintático. Não são as propriedades formais da mensagem, suas leis constitutivas e sua remessa a uma matriz inconsciente que o interessam e sim os fatos sociais que, tal como os fenômenos lingüísticos, constituem um sistema significativo, codificado e arbitrário. Prende sua atenção o agente ou emissor que, em situações concretas, seleciona suas mensagens; opera inclusões e exclusões; atua integralmente, como “homem total”, com “todas as fibras de seu ser”, e comunica. “[A Antropologia procura] o que é comum aos homens […], mas eles só 37

podem ter esses símbolos, e comunicar por seu intermédio, porque têm os mesmos instintos”, escreve Mauss (citado em Lévi-Strauss 1960a: 32-33). O simbólico, sempre a meio caminho entre eu e outrem, viabiliza, como centro da vida social, a comunicação; não se trata, todavia, de um pensamento simbólico vazio, a atender, em seu purismo formalista, metafísico e quase teológico, às exigências assépticas de um esteta. Lefort comenta: “[…] é à significação que Mauss aponta, não ao símbolo; é para compreender a intenção imanente às condutas que ele tende, sem deixar o plano do vivido, não para estabelecer uma ordem simbólica em relação à qual o concreto seria apenas uma aparência” (citado em Brumana s/d: 82). A rocha: sempre há uma pedra no meio do caminho. A despeito de sua apropriação pelo estruturalismo - algo espartana em seus rigores lógicos, metodológicos e matemáticos -, a troca como base da socialidade, a que Mauss se refere em O Ensaio sobre o Dom, continua insurgentemente a revestir-se de concretude. O que não elimina ambições generalizantes. “Há uma segunda via rumo ao universal: não mais o universal de sobrevôo de um método estritamente objetivo, mas como que um universal lateral, cuja aquisição é possível através da experiência etnológica, incessante prova de si pelo outro e do outro por si”, ensina Merleau-Ponty (1960: 199). Afinal, “[é] preciso […] observar o que é dado. Ora, o dado é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o melanésio de tal e tal ilha” (Mauss, 1923/24: 276). Kati ena.

 Um planejador tem suas lembranças. Que apontam em duas direções distintas, de acordo com os planos que terá concebido (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 4: 54-55). Em sua primeira versão, o plano permanece oculto. A cada instante, faz com que o dado seja dado, mas o plano, ele próprio, esconde-se e nada mais se pode fazer a não ser inferi-lo ou induzi-lo – simultaneamente ou sucessivamente, em sincronia ou diacronia – a partir daquilo que ele concorda em desvelar. Estrutural ou genético – e os dois ao mesmo tempo -, tal plano induz desenvolvimentos específicos das formas e formações singulares dos sujeitos. Entende-se por que ele não pode ser dado: a estrutura que fornece às formas jaz encoberta e o significante que concede aos sujeitos continua 38

secreto. Teleológico, funciona como um princípio mental, sempre numa dimensão suplementar (n + 1) àquilo que efetivamente revela. Plano de transcendência por excelência: “[p]ode estar no espírito de um deus, ou num inconsciente da vida, da alma ou da linguagem” (Idem: 54). Na segunda versão do plano, não mais existem formas ou desenvolvimentos de formas, sujeitos ou formação de sujeitos, estruturas ou gêneses, mas apenas relações de movimento e repouso, de velocidade ou lentidão de elementos ainda não – ou jamais – formados. Plano de imanência por excelência, não se conhecem aí senão longitudes e latitudes, velocidades e hecceidades, afectos e individuações sem sujeitos a constituírem agenciamentos coletivos (Idem: 55). O estruturalismo de Lévi-Strauss depende fundamentalmente de um plano de transcendência. Ao procurar contornar as dificuldades das proposições de Durkheim sobre as origens sociais do simbolismo e substitui-las pela tese das fundações simbólicas do social, Lévi-Strauss recorrerá à noção de inconsciente. Transcendente, o inconsciente é primeiro; seu funcionamento – por meio de operações binárias, decorrentes da forma de atividade do cérebro – viabiliza, na ordem, o pensamento simbólico, a sociedade e - na medida em que estabelece as condições de operação, atualizadas diferentemente segundo os grupos, mas compartilhadas por todos eles, em todos os tempos – o próprio exercício antropológico. A antropologia não é necessária, porém. Roma, Atenas e o melanésio de tal ou tal ilha, sim. Existiram ou, teimosamente, insistem em continuar a existir. As obrigações de dar, receber e retribuir, as trocas concretas e seus cimentos místicos e afetivos (Lévi-Strauss 1950: XLVI), rochas da vida social em Mauss, passam em LéviStrauss à condicão de aparências, a denunciar a operação, num plano mais profundo, do inconsciente. Nas trocas, quer Lévi-Strauss, há mais do que as coisas trocadas (1967: 520): como reflexos da operação do princípio de reciprocidade, as trocas testemunham, no domínio cultural, uma estruturação natural inconsciente, responsável pela emergência do pensamento simbólico (Simonis 1968: 35). Troca, reciprocidade e comunicação – em níveis crescentes de abstração – ocuparão posição central no edifício teórico de LéviStrauss na medida em que permitirão ultrapassar a contradição inerente ao pensamento simbólico, a percepção do mesmo como pertencendo a si e a outrem, e viabilizarão o “diálogo” entre os dois.

Daí porque as mulheres nos casamentos, as palavras na 39

comunicação e os bens na economia funcionarão como mecanismos de mediação das oposições, uma vez que pertencerão simultaneamente a mim e a outrem e rematarão a passagem da “hostilidade à aliança, da angústia à confiança, do medo à amizade” (LéviStrauss 1967: 107). Assim, a proibição do incesto – que, em função de seu duplo caráter, negativo e positivo, ao interditar o acesso a determinadas categorias parentais de mulheres a um ego masculino, faculta-as, por este procedimento mesmo, a outros – constitui a charneira no limiar entre a universalidade da natureza e a normatividade da cultura e permite divisar a eclosão do pensamento simbólico. Tal pensamento – vê-se – torna a sociedade, a um só tempo, possível e necessária e possui um custo: concede-nos cunhados, é verdade, mas a preço das mães, das irmãs, das filhas. E se também faz com que a antropologia seja possível, ainda assim não a torna necessária e, também sob este aspecto, conforme veremos, terá um custo. Compreende-se por quê a Lingüística Estruturalista e os estudos do Círculo de Praga, por meio das contribuições de Saussure e, especialmente, de Jakobson e Trubetzkoy, fornecerão a Lévi-Strauss não apenas inspiração, mas um método de análise que ele pretenderá aplicável também aos fenômenos culturais. Ao relegar para segundo plano os estudos diacrônicos

de busca por uma protolíngua, empreendidos pela

Filologia; ao introduzir a noção de sistema e buscar leis gerais, e, finalmente, ao reduzir todas as línguas a determinadas oposições de fonemas, com base nas quais se constituiria o arco fonético – condição virtual, manifestada ou “atualizada” diferentemente em cada caso, para todas as línguas de todos os tempos -, a Lingüística Estrutural servirá de base para a análise que Lévi-Strauss desenvolverá nos campos do parentesco e da mitologia, nos quais ele buscará os pares-chaves de oposição, elementares. Desta forma, se das condições de possibilidade oferecidas pelo arco fonético, o português resolveu atualizar a diferença entre “b” e “v” (e “b” só terá sentido ou, mais propriamente, valor, por oposição a “v”), démarche semelhante poderá ocorrer nos domínios da mitologia e do parentesco (Lévi-Strauss: 1945): dentre os mitemas e os “átomos” do parentesco – verdadeiros pares-chave de oposição constitutivos -, cada cultura elegerá apenas alguns. Bastará a Lévi-Strauss bascular este princípio que opera por meio de oposições binárias no cérebro e torná-los inconscientes – pertencentes, portanto, para recuperar a terminologia empregada por Meyer Fortes, ao universo da gramática e da 40

sintaxe e não ao da palavra falada, ou, como preferiria Saussure, ao da langue e não ao da parole – e estaremos já em pleno domínio do estruturalismo. Será tal perspectiva que permitirá a Lévi-Strauss poupar os estudos do totemismo, por exemplo, de certa lógica utilitária que os caracterizava até então e indicar que, se determinados pares da ordem natural são escolhidos pelo raciocínio totêmico, isto ocorre porque tais espécies são “boas para pensar” e não “boas para comer” (1962a). Importam, por conseguinte, menos os termos do que as relações entre eles e o estruturalismo não se contentará em identificar as oposições mas procurará verificar como ocorre a mediação entre elas. Trata-se, portanto, de uma discussão sobre a relação entre as relações. Resta saber o que colocará os termos em relação, permitindo vencer a contradição característica do inconsciente, que consiste em perceber tais termos simultaneamente como de si e de outrem, do ponto de vista de si e do de outrem. Já conhecemos a resposta. Em Rousseau, a piedade permitia a identificação com o outro; tal identificação em Lévi-Strauss será possível porque a reciprocidade permitirá vencer a contradição inerente ao inconsciente e garantirá o diálogo entre todos os homens, de todos os tempos e de todas as culturas. Estão aí as bases para um novo humanismo, que torna possível o próprio exercício antropológico: “O risco trágico que espreita continuamente o etnógrafo, lançado neste empreendimento de identificação, é o de ser a vítima de um malentendido; quer dizer que a apreensão subjetiva a que ele chegou não apresente, conjuntamente com a do indígena, nenhum ponto comum, fora de sua própria subjetividade. Esta dificuldade seria insolúvel, sendo as subjetividades, por hipótese, incomparáveis e incomunicáveis, se a oposição entre eu e outrem não pudesse ser ultrapassada num campo que é também aquele em que o objetivo e o subjetivo se encontram, isto é, o inconsciente. (1950: XXX). O ritornelo parece à espreita: se a antropologia é possível desta maneira, nada faz com que ela seja necessária. Quais são, então, as condições de possibilidade desta antropologia, preocupada, kantianamente, com as condições de possibilidade da vida em sociedade? O que, para funcionar, ela se vê obrigada a excluir? Qual é o preço que cobra? Há aí uma relação bastante particular com a etnografia, devidamente refreada e submetida à condição de ferramenta de acesso ao universal inconsciente. Durkheim e Mauss recorriam às “formas elementares” – em sentido mais propriamente lógico do que 41

cronológico, ainda que eventualmente confundissem os dois – como instrumento para isolar os traços fundamentais de determinado fenômeno. Lévi-Strauss segue o credo: “É na medida em que as sociedades ditas primitivas estão afastadas da nossa que podemos nelas atingir estes ‘fatos de funcionamento geral’, mencionados por Mauss, e que têm a vantagem de serem ‘mais universais’ e de possuírem ‘mais realidade’” (1960a: 35). O apego desmedido a esta realidade “em excesso” (como se isto existisse…) constitui, porém, obstáculo a ser transposto em momento posterior da pesquisa, uma vez que a estrutura por que anseia o antropólogo – ou, ao menos, Lévi-Strauss - não pode ser apreendida diretamente na realidade concreta. A liturgia de Lévi-Strauss sugere um círculo. Reza o seguinte, em seu duplo raciocínio progressivo e regressivo: na diversidade cultural concreta – e recordemos que mesmo o As Estruturas Elementares do Parentesco, do alto de seu reconfortante formalismo, inicia com demonstração sociológica -, deve o analista buscar as constantes que lhe insinuem o sistema da estrutura social estudada (Simonis

1968: 170 et passim). A investigação não termina aí,

porém: uma vez

verificadas as constantes, pode o estudioso pensar a diversidade cultural e extrair dela os pares constitutivos, cuja relação, de oposição, caracterizará a estrutura do inconsciente. O fechamento do círculo estaria a exigir, entretanto, o retorno ao concreto vivido. Aí contudo algo se perde – porque algo sempre se perde – e o retorno deixa de ser eterno. Perdem-se a história, o tempo – que não chega a ser reencontrado -, o vivido. “[…] para atingir o real, é necessário, inicialmente, repudiar o vivido”, assume Lévi-Strauss (citado em Simonis 1968: 194). A atividade intencional da consciência deve ser posta entre parênteses e os eventos – contingentes, inanes e vãos – deixam de ter significação. “[N]ão está ao alcance dos galhos mais altos comprometer a estabilidade da árvore ou modificar sua forma característica. Sua multiplicidade e insignificância libertaram-nos dos constrangimentos iniciais e sua distribuição geral explica-se indiferentemente por uma série de repetições […] ou como o resultado de flutuações estatísticas. Inteligível em seu começo, a estrutura atinge, com sua ramificação, uma espécie de inércia ou indiferença lógica. Sem contradizer sua natureza primordial, ela pode agora resistir ao efeito de incidentes múltiplos e variados, que ocorrem muito tardiamente para impedir que um observador atento possa identificá-la e classificá-la num gênero” (Lévi-Strauss, citado em Simonis 1968: 222). 42

Viveiros de Castro enumera o que normalmente se aponta como limitações do estruturalismo: a “passagem” do sentido para a ação, da ordem das idéias para a ordem da experiência, da estrutura para a história (1996: 518).

Gaboriau (1963)

identifica, na obra de Lévi-Strauss, dois modelos para pensar a sociedade e a história. O primeiro, batizado de “psicanalítico”, trai, à primeira vista, certo sabor durkheimiano, ao atribuir à sociedade a capacidade de uma reflexão objetiva, que não se confunde com as consciências dos indivíduos: “A sociedade aparece aí como uma espécie de sujeito” (Idem: 104). O segundo trata a sociedade como “máquina”, cujo funcionamento objetivo opera, por si só, ajustes e reações, independentes das consciências individuais ou coletivas. Goldman assegura que a contradição entre os dois modelos é apenas aparente; trata-se, antes, de dois modos alternativos para descrição dos mesmos fenômenos: “[T]ermos como desejo ou vontade não remetem necessariamente para constantes enraizadas em uma suposta natureza humana ou social dada de antemão; […] eles podem ser compreendidos como efeitos subjetivos de funcionamentos que se dão sobre um plano de intersubjetividade primeira, […] que se manifestam igualmente no nível sociológico propriamente dito. A ‘vontade’ de uma sociedade resistir à história é o correlato – nem causa, nem conseqüência – de uma maquinaria social que funciona dificultando o trabalho da história” (1998: 61-62). As diferentes sociedades recorrerão, de fato, a historicidades distintas ao reagir ao fato inescapável de que se encontram imersas no tempo: algumas traduzirão sua vontade a favor da história e colocarão sua maquinaria para funcionar de acordo com tal desejo – e neste sentido, a história será o mito destas sociedades -; outras, contra a história, organizarão seu funcionamento de forma a procurar anular os efeitos – de todo modo, irresistíveis – decorrentes da passagem do tempo (Lévi-Strauss 1962: 309-310). Sociedades com “vontades” – a favor ou contra a história -, que organizam sua instrumentária da maneira correspondente (Châtelet e Pisier-Kouchner 1983: 635), não reeditam certo durkheiminismo já desgastado: está-se em presença de máquinas sociais, com suas intersubjetividades específicas, e cujo funcionamento podemos acompanhar. Etnograficamente. A etnografia, insubmissa, volta a reclamar presença. Pouco adianta tentar anestesiar seus efeitos evidentes, submetendo-a à camisa de força de mera manifestação 43

de um inconsciente estrutural – forma de ultrapassar, mas tão-somente neste plano, as antinomias do durkheiminanismo, especialmente entre indivíduo e sociedade -, remetendo-a às matrizes binárias cerebrais que fazem do homem Homem e fazendo submergir a cultura na natureza. Desta forma, o homem termina, realmente, nu. Tal procedimento, entretanto, desnuda também, em alguma medida, o rei.

 “Nu como um verme”, à exceção “[d]as botas – não teria podido andar descalço e temia as serpentes – e [de] um grosso cinturão de couro que sustentava meu 38 na bainha. […] Foi com esse bizarro equipamento que eu prossegui a marcha” (Clastres 1972: 146). Assim Clastres relata sua decisão de livrar-se das roupas, ao imergir na floresta junto com um grupo de indígenas que havia partido em busca de outro, que não retornara de uma caçada. Ao aperceber-se que sua indumentária constituía um estorvo a inviabilizar passos acelerados como os de seus companheiros, Clastres decide-se pelo desnudamento. Há aí um certo devir-indígena do etnólogo, condição mesmo de possibilidade de uma antropologia que não elabora discursos sobre a alteridade, mas que se constrói a meio-caminho, eterno intermezzo, esforço sempre renovado de desterritorialização que faz de nós estrangeiros em terra estranha e, em sentido ainda mais radical, estrangeiros em nossa própria terra. “[E]u estava mesmo entre os selvagens”, constata Clastres (Idem: 70), em seu primeiro dia de campo, ao som do chengaruvara, a saudação lacrimosa das Guayaki, que expressavam, deste modo, as boas-vindas a um novo grupo de indígenas que decidira juntar-se ao acampamento em Arroyo Moroti. A centralidade reconhecida à etnografia em sua obra – conforme magistralmente ilustrado pelo Crônica dos Índios Guayaki – explicará o paulatino afastamento e o desenraizamento em relação a Lévi-Strauss. Se Clastres parece começar onde Lévi-Strauss havia parado – com os homens nus (Verdier in Abensour 1987: 25) -, não se trata mais dos mesmos homens. A exemplo de Elena Valero, raptada, ainda menina, pelos Yanomami, com os quais conviveria até que, já adulta, optaria por evadirse da tribo e brindar-nos com o relato dos anos vividos entre os indígenas, o que Clastres faz é uma etnografia selvagem: ao invés de permanecer apenas diante do mundo 44

indígena, ele estará, também, dentro dele (Clastres 1969b: 34). No lugar do pensamento selvagem, uma etnografia – e uma política, conforme veremos no próxima parte deste estudo – selvagem. Como conseqüência, muda o herói do relato (Verdier in Abensour 1987: 26). Os deuses batem em retirada (Idem: 35) no próprio plano da narração: não há mais perspectiva das perspectivas, Sirius, o etnógrafo orgulhoso que retira a fórceps declarações de seus informantes ou que, uma vez visualizada a estrutura social do grupo estudado, pode desfazer-se da pesquisa de campo, tais quais folhas de papel que se jogam ao mar. Ainda que Clastres não busque absolutamente dissimular sua presença naquilo que relata (Dadoun in Clastres 1972: 292) – discorrendo eventualmente inclusive em primeira pessoa (Lefort in Abensour 1987: 184) -, quem verdadeiramente fala, age e reclama o centro da cena em sua etnografia são os Guayaki (Verdier in Abensour 1987: 26), que, vivos, “ganham uma subjetividade geralmente excluída das análises antropológicas, […] têm paixões, são ativos” (Goldman e Lima 2001: 308). Clastres é um homem de campo (Abensour 1987: 7) e sua obra, etnológica, obriga a uma revisão de nossa condição de aprendizes de filósofos (Cartry 1978: 39), sem, entretanto – como indicaremos a seguir -, eliminá-la. Quer-se cronista: nenhum resquício do desejo de construir um “sistema de explicação universal, ao qual todas as formações sociais passadas e presentes vêm revelar seus segredos” (Idem: 44). “Não elaboro programas,” – escreve – “contento-me em descrever” (citado em Cartry 1978: 49). Às perguntas “o que isto significa?”, “como isto é possível?” ou “para que isto serve?”, antepõe outra, menos ambiciosa: “como isto funciona?” De fato, como propõe, “[o]s Aché são o que fazem” (Clastres 1972: 209). Atrás dos Aché, sua estratégia de investigação parece nomadizar (Deleuze in Clastres 1972: 297). Sempre em busca de linhas: de conjunção, de disjunção, de fuga. A leitura de “O Arco e o Cesto” (1966), por exemplo, sugere uma primeira linha de conjunção: homens-caçadores-floresta-arco-animais caçados. Tal linha chama outra, já de disjunção: mulheres-arco, uma vez que é interditado às mulheres tocar os arcos. Esta, por sua vez, induz outra linha, novamente de conjunção: mulheres-afazeres domésticosacampamento-cesto. A partir daí, o texto inflaciona as linhas. À disjunção caçadoresanimais caçados (que constituem tabu alimentar para seus próprios matadores) responde 45

a conjunção interdições alimentares- aliança entre os caçadores (forçados a compartilhar com os outros a caça que não podem consumir), que insinua outra, aliança matrimonialinterdições do incesto: “[D]e um ponto de vista formal, a caça é para o caçador o que a mulher é para o marido, pelo fato de que uma e outra apenas mantêm com o homem uma relação mediatizada: para os caçadores Guayaki, a relação com o alimento animal e com as mulheres passa pelos outros homens” (Idem: 105). O mesmo procedimento de investigação repete-se em diversas outras oportunidades. Em “De que Riem os Índios?” (1967c), Clastres indicará a disjunção – falseada pelo humor dos mitos – entre o riso de deboche, de um lado, e, de outro, os jaguares e xamãs, pelos quais se deve ter respeito (Idem: 126). Tal disjunção, é claro, atrai imediatamente uma conjunção, precisamente entre jaguar e xamã, identificados um com o outro pelo gai savoir dos índios (Idem: 131132). Ainda outro exemplo: a partir da indiscrição de Jygi que, seduzida pelas balas ofertadas pelo etnólogo, lhe revela que os Guayaki são canibais (1972: 234), Clastres novamente dá a partida. A conjunção de um corpo vivo e um corpo morto através do canibalismo compele à disjunção entre homens vivos e almas dos mortos (ove): “A conjunção – pela perspectiva do repasto canibal – entre corpo vivo e corpo morto é a disjunção entre vivos e ‘almas mortas’, e a supressão do cadáver, tratado como comida, obriga ove a se tomar irrevogavelmente pelo que ela é: um fantasma sem espessura, que nada mais tem a fazer perto dos vivos” (Idem: 248). Eventualmente, as linhas de conjunção e disjunção explodem numa linha de fuga. Especialmente se comparadas à relativa boa sorte de Krembegi, as desventuras de Chachubutawachugi, relatadas por Clastres em “Vida e Morte de um Pederasta” (1972), bem ilustram este ponto. A perspectiva da linha de fuga - que viabiliza o abandono do “território” (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 224) – favorece certa riqueza analítica não apenas porque realça a “ordem” da sociedade em questão, mas porque poupa o estudioso de estorvar seus informantes com apertadas camisas de força, que lhes prescrevem comportamentos únicos e os congelam no tempo, exilando-os da história. Krembegi é um kyrypy-meno, um ânus-fazer-amor, um pederasta. Os Guayaki não lhe serão agressivos, desde que Krembegi não se pretenda um caçador, um homem. “Uma ordem preside a disposição das linhas de força dessa geografia, ela mantém separadas as diferentes regiões” (Clastres 1972: 212): só se é homem contra a mulher. Krembegi 46

observará fielmente estes limites e portará um cesto, não um arco. Seus parceiros sexuais serão seus irmãos e esta metáfora do incesto confirmará para o grupo que o incesto verdadeiro, entre irmão e irmã, ameaça o corpo social. “Krembegi é o mundo aché invertido, mas nem por isso é a contra-ordem da ordem social existente, ele não é a sua negação; à sua volta, desdobra-se um outro tipo de ordem, um outro conjunto de regras, imagem invertida, mas imagem, contudo, da ordem e das regras ‘normais’” (Idem: 219). Chachubutawachugi não desfrutará da mesma fortuna. Ainda que vítima de pane e, portanto, incapaz de caçar, quer permanecer no universo da masculinidade. Sua obstinação em ocupar um terceiro lugar, entre o masculino e o feminino, que, a rigor, não existe, suscitará resistência por parte dos Guayaki, que o terão por avaro, apesar das evidências em contrário, e, se não debocharão abertamente dele, não vão deixar de considerá-lo ridículo e, no máximo, passível de piedade. “[P]atético habitante de um impossível abrigo. Eis o que o torna ‘invisível’, ele está alhures, em parte alguma, por toda parte” (Idem: 217) E, no entanto, Chachubutawachugi de fato existe e esta sua existência – ainda que quase subliminar, por assim dizer - encontra espaço nas páginas de Clastres. Descrito assim de modo abstrato – adverte Deleuze (in Clastres 1972: 297) -, este método de investigação que procede por linhas – de conjunção, de disjunção, de fuga - perde muito de seu dinamismo e há o risco de que desapareça seu caráter progressivo. A vida guayaki, evidentemente, não se resume a alinhamentos de conjunções e disjunções; na verdade, uma linha incita outra, admite remanejamentos e compensações e ambas convidam uma terceira ou arrebentam numa linha de fuga. Desenvolve-se, por meio desta composição em forma de irradiação, uma teoria local do grupo: pedaço por pedaço, segmento por segmento (Idem: 297). Não há necessidade de nenhuma totalidade preexistente – uma sociedade à Durkheim, por exemplo -, cujas partes seriam devidamente decupadas. Ao invés de buscar estruturas, Clastres meramente acompanha o que os índios fazem. Procura verificar como os discursos, os mitos e os ritos interagem e atuam como paliativos ou catalisadores nas conexões, disjunções e fugas das diversas linhas. Simplesmente, “[s]egue o caminho dos nômades selvagens” (Idem: 297). Por conta mesmo de sua etnografia, Clastres ultrapassará o estiolamento que a etnologia tradicionalmente impinge às relações entre mito, rito e existência social e 47

evitará as armadilhas fáceis das análises que muito prematuramente enxergam, entre um e outro, “espelhos”, ou percebem “reflexos”, ou, ainda, escutam “ecos”. Seu grande mérito – opina Verdier (in Abensour 1987: 29) – é o de perseguir o movimento que liga os três: os mitos, como saber da sociedade sobre si mesma; os ritos, como atualização deste saber, e a existência social, como afirmação de seu “ser-no-mundo”. Afinal, os Aché são o que fazem e fazem o que sabem. “O conjunto mitos-ritos sempre prendeu minha atenção” – reconhece Clastres. “Por exemplo, tentando compreender todo o ritual que se segue ao nascimento de uma criança, percebi que, de fato, este complexo ritualístico constituía uma ilustração de passagens dos mitos. O ritual de nascimento repetia e ilustrava o mito de origem. Devemos – creio – desenvolver a análise do mito através do rito, o rito funcionando como caminho para compreensão do mito” (in Clastres 1972: 294). Pichugi dá à luz um menino logo no capítulo de abertura do Crônica dos Índios Guayaki (Idem: 11 et passim). Clastres acompanhará o complexo ritualístico que se segue – com a upiaregi do bebê enlevando-o aos céus, forma de compensar a “queda” que marca o nascimento (Idem: 14); a menina que apaga o fogo na cabana do recémnascido, de maneira a evitar a repetição do incêndio e do dilúvio do início dos tempos (Idem: 33), e Chachugi, pai da criança, que parte para a caça, na expectativa de que a morte de um animal reequilibre a ordem momentaneamente ameaçada pela vinda ao mundo do novo ser e, deste modo, poupe a vida do próprio caçador (Idem: 23) – e demonstra como são as narrações míticas que lhe prescreve as diversas fases. O mito, assim, faz-se história e por intermédio mesmo das vidas dos Guayaki: em seu nascimento, em sua passagem para a vida adulta, em sua morte. “A ordem secreta das coisas se desvela assim pouco a pouco, uma mesma lógica subentende a história e a cerimônia, o mesmo pensamento impõe a lei de suas formas inconscientes à sucessão de palavras e gestos, e a velha floresta abriga uma vez mais a celebração de seu fiel encontro” (Idem: 16). Por meio mesmo dos rituais e das instituições, os incidentes da vida dos Guayaki serão integrados num plano de intersubjetividade primeira, que pertence ao domínio sociológico e ao psicológico e a nenhum dos dois ao mesmo tempo e que faz com que se empalideça até o ponto de seu total desaparecimento as fronteiras entre as 48

duas disciplinas (e quem precisa das disciplinas?). Diz Clastres: “Preocupação constante dos índios em utilizar o acontecimento da história individual como meio de restaurar a unidade tribal, como pretexto para ressuscitar em cada um deles a certeza de constituir uma comunidade. […] Dissimulam-se aí uma ética pessoal e uma filosofia da sociedade, segundo as quais é proclamado que o destino dos homens desenha sua figura somente sobre o horizonte do coletivo e exige de cada um a renúncia à solitude do seu eu, o sacrifício da delícia privada” (Idem: 41). “Ecos” da última página do As Estruturas Elementares do Parentesco (Lévi-Strauss 1967: 537)? Sem dúvida. Mas somente até determinado ponto. De près et de loin. O vigor de uma disciplina – e quem precisa dele? – não é comprovado pela veneração subserviente que os estudiosos devotam a seus clássicos; antes, é o constante desafio que concederá dinamismo às suas obras, condenadas à esterilidade se não sujeitas à constante profanação. O diálogo que Clastres terá sabido manter com Lévi-Strauss jamais se traduziu em sujeição: sempre tão perto da problemática lévi-straussiana e, paradoxalmente, sempre tão longe. Alguns identificam nos afastamentos de Clastres com relação a Lévi-Strauss um eterno Durkheim à espreita. É bem verdade que o vocabulário mesmo utilizado por Clastres parece, em algumas ocasiões, reificar a sociedade, que terá vontades – contra o Estado, contra a economia – e um ser – ser-para-a-guerra. Certamente, trata-se de leitura perfeitamente legítima. Não necessariamente a mais interessante. De fato, a sociedade em Clastres, por vezes, beira o voluntarismo; é o que ocorre precisamente em seus artigos mais “populares”, como “A Sociedade contra o Estado” (1974b) – redigido, ao que tudo indica, para finalizar a coletânea de artigos que leva o mesmo nome, promovendo, portanto, certo “barateamento” das idéias do autor -, onde se lê, por exemplo: “A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de quaisquer dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e na direção desejados pela sociedade. […] Sociedade à qual nada escapa, que nada 49

deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas” (Idem: 180181). Levantam-se, assim, suspeitas a respeito de certo “viés durkheimiano” que estaria a conceder sustentação teórica a esta sociedade que paira, todo-poderosa, sobre os indivíduos. A valorização excessiva do vocabulário possivelmente inadequado ou de raciocínios sinuosos de alguns de seus artigos, entretanto, apenas dificultará o acesso a chaves de leitura alternativas. O afastamento com relação a Lévi-Strauss não necessariamente implica um restabelecimento de Durkheim, até porque Clastres, no mais das vezes e particularmente quando faz etnografia, evita as dicotomias simplificadoras do gênero indivíduo versus sociedade e não propõe – conforme exploraremos mais à frente – nenhuma exterioridade entre as “máquinas sociais primitivas” e as “formas de subjetivação” que elas operam. No texto “O Retorno das Luzes”, o próprio Clastres, ao rebater as críticas de Birnbaum, reflete sobre a distância que o separa de Durkheim: “Trata-se […] [para Birnbaum] de estabelecer que ‘a sociedade contra o Estado se apresenta (…) como uma sociedade de constrangimento total’. […] O ‘controle social’ exerce-se aí de maneira absoluta: não se trata mais da sociedade contra o Estado, é a sociedade contra o indivíduo. Ingenuamente, Birnbaum nos explica por que sabe tanto sobre a sociedade primitiva: leu Durkheim. Leitor crédulo, nenhuma dúvida se apodera dele. A opinião de Durkheim sobre a sociedade primitiva passa a ser realmente a verdade sobre a sociedade primitiva” (1977a: 149). Causa, além disto, algum estranhamento que Clastres – sempre muito atualizado a respeito dos debates acadêmicos de sua época – tenha feito “opção durkheimiana” absolutamente obsoleta, enquanto seus colegas procuravam, por vias diversas, apropriar-se das contribuições do lacanismo e do estruturalismo, sem incorporar os excessos racionalistas e formalistas (“iluministas”, diria, sem dúvida, Clastres) de um e de outro. Tal esforço teria levado Bourdieu ao conceito de praxis; Foucault, ao de poder; Deleuze e Guattari, ao de desejo. Conhece-se a dificuldade do estruturalismo em dar conta dos ritos (Clastres 1978: 160). Este “discurso magno da antropologia” (Idem: 158) foi elaborado com outro objetivo: sua preocupação centra-se nos sistemas de parentesco e nos sistemas

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mitológicos. Tem o mérito de “[pôr] em xeque toda reificação da sociedade ou da cultura, toda antinomia entre uma ordem social transcendente e uma ordem do indivíduo” (Goldman e Lima 2001: 299). Porém, tanto na análise do parentesco quanto na das mitologias, o estruturalismo renunciará ao estudo do lugar de produção dos parentes e dos mitos: a sociedade (Abensour in Abensour 1987: 9). “O que é eliminado, suprimido do discurso estruturalista, […] aquilo de que esse discurso não pode falar, pois não foi elaborado para isso, é a sociedade concreta, seu modo de funcionamento, sua dinâmica interna, sua economia e sua política” (Clastres 1978: 158). A “etnografia selvagem” de Clastres fará a diferença e, em certo sentido, ele é que levará a cabo o duplo raciocínio progressivo e regressivo que Lévi-Strauss havia anunciado no Pensamento Selvagem (1962), trazendo, de volta à cena, o concreto vivido. Esta é mesmo a distinção fundamental entre Lévi-Strauss e Clastres: a preocupação de um é com a lógica que permite o funcionamento da sociedade, a do outro, com a lógica da sociedade em funcionamento. Clastres é um etnógrafo; Lévi-Strauss, um racionalista, que faz uma “teologia sem deus […], uma sociologia sem sociedade” (Clastres 1978: 160). Talvez seja este mesmo o motivo por que Clastres tinha de utilizar a palavra sociedade, que não trairá aí nenhum pendor durkheimiano. O que presenciaremos, em sua etnografia selvagem, serão sociedades-em-funcionamento, máquinas sociais em operação que, a partir das formas específicas de subjetivação que engendram, impedirão a emergência entre exploradores e explorados, entre dominantes e dominados, agindo, portanto, contra a economia e contra o Estado. O primeiro ensaio de Clastres – “Troca e Poder: Filosofia da Chefia Indígena” (1962) – lança programa de trabalho, ao qual ele permanecerá fiel ao longo de toda sua carreira, que parece inscrito em problemática tipicamente lévi-straussiana. Ao estudar o lugar da chefia nas sociedades primitivas, Clastres verificará que as “trocas” entre o chefe e o grupo se constituem dos mesmos elementos cuja circulação, de acordo com a teoria lévi-straussiana, instaura a sociedade – palavras, bens e mulheres -, o que estaria a indicar a natureza profunda das questões colocadas pelo poder. Já aí, entretanto, Clastres não estatuirá nenhuma espécie de reciprocidade entre o chefe o grupo (e, incidentalmente, cabe perguntar: a leitura do Ensaio sobre o Dom (Mauss: 1923-1924) a partir de Lévi-Strauss (1950) não teria introduzido certo privilégio da reciprocidade e da 51

troca, em detrimento de outras dimensões, como a da dívida e da violência?). Nem por isto, porém, empurrará as inevitáveis torções da reciprocidade para o terreno etéreo da mitologia. Palavras e bens – afirma Clastres – desenham fluxo de direção única, invariavelmente do chefe para o grupo; as mulheres tomam a direção inversa. Trata-se de “termos”, portanto, que não se encaixam facilmente na categoria de “signos” que fundam a comunicação. As palavras do chefe, especialmente, “doces” porque faladas para não serem ouvidas, fazem ecoar, sobre este particular, a dos caçadores, que cantam, solitariamente, cada um para si, no meio da noite: puros “valores”, que promovem, no máximo, a comunicação consigo mesmos (Clastres 1966: 97 et passim). Clastres espanta-se que o grupo reconheça a seu chefe – e recordemos que se trata de um chefe sem poder – o privilégio da poliginia. Por que, se não forçados a isto, os indígenas alienam ao chefe graciosamente um de seus bens mais valiosos, suas mulheres? O impasse revela aspecto fundamental da política, presente mesmo no “poder não potente” dos chefes indígenas: o poder é contra o grupo. O chefe beneficia-se de mulheres a mais e as palavras e bens que caminham na direção contrária são insuficientes para qualquer espécie de compensação. O artigo “A Economia Primitiva” (1976) traz esclarecimentos suplementares. A unidade familiar do chefe, fortalecida com os “braços extras” de suas “mulheres extras”, terá como produzir os bens que o grupo espera receber dele: isto porque o chefe deve ao grupo. Deve palavras – daí a importância de seu manejo da oratória (e os discursos, sempre ignorados, imporão ao chefe a evidência de que não dispõe de voz de comando) -; deve bens – daí sua “generosidade forçada”. Mais ainda: a dívida demonstra onde, verdadeiramente, está o poder nas sociedades primitivas: no grupo, que submeterá o chefe à condição de seu eterno devedor (Idem: 140). `

No lugar da reciprocidade, a dívida. No lugar da troca – conforme

veremos a seguir -, a guerra. Diferenças com Lévi-Strauss – e, definitivamente, diferenças que fazem diferença. A “revolução copernicana” a que Clastres nos convida em “Copérnico e os Selvagens” (1969a) exige que pensemos “dívida” e “guerra” em sua positividade e não como reflexos da falta – de fé, de leis, de reis – que condenariam as sociedades primitivas a um estádio aquém do político. A dívida evidencia o lugar do político nos grupos indígenas, ao produzir, num só movimento, um chefe sem poder e uma sociedade sem Estado, sem corpo político que paire acima dela, portanto. Será o 52

mesmo fito que perseguirão a máquina produtiva e máquina de guerra dos primitivos, ambas facultando à sociedade primitiva resguardar sua totalidade una, isto é, manter-se como todo homogêneo e evitar a emergência do Um, do Estado, da distinção entre um chefe-que-ordena e um grupo-que-obedece (Clastres 1977b: 191-192). A máquina produtiva primitiva persegue um ideal de autarquia, porque opera segundo uma lógica do centrífugo, exatamente como a máquina de guerra (Idem: 194-195). Opondo os grupos, os conflitos armados conspiram contra sua unificação e permitem a cada um manter a sua totalidade una contra o princípio unificador do Um, o Estado: as sociedades primitivas exigem uma leitura de Hobbes às avessas. Por esse motivo, a sociedade contra o Estado é uma sociedade-para-a-guerra, o que a etnografia apenas confirma (Idem: 187 e 201). Reside aí precisamente sua positividade, que impedirá a Clastres proceder a uma leitura troquista da guerra e caracterizar a guerra, a reboque de Lévi-Strauss, como simples negação da troca, como a troca quer não deu certo (Idem: 186 et passim). Novamente, a negação da reciprocidade, novamente a releitura e ampliação da problemática de Lévi-Strauss. Clastres não questiona que, no nível de uma socio-lógica, da preocupação de inspiração kantiana com as condições de possibilidade da vida social, a reciprocidade operará e garantirá a instituição da sociedade, por meio do estabelecimento de uma descontinuidade com relação à natureza (Idem: 198). “Aquele que dorme com sua mãe será transformado em tapir; aquele que goza com sua irmã, em macaco guariba, e o pai que faz amor com sua filha, em veado” – ensinam os Aché. “O homem incestuoso abole nele a humanidade de que viola a regra mais essencial, renuncia ao que ele é, coloca-se no exterior da cultura, recai na natureza: ele se torna um animal” (Clastres 1972: 173). Isto não nos faculta, porém, procurar troca e reciprocidade partout, como se cada piscadela de olho tivesse de ser devolvida. Daí a necessidade de distinção dos planos em que a análise é desenvolvida (Clastres 1977b: 188 e 199 et passim) – no da instituição da sociedade, a troca necessariamente agirá; no da vida social em funcionamento, não, precisamente conforme ilustra a discussão a respeito da troca de mulheres e da aliança com os cunhados. A proibição do incesto obriga à troca de mulheres: neste sentido, funda a sociedade e inaugura a distinção, a nossa separação definitiva da animalidade. Até aí, Clastres acompanha Lévi-Strauss (Idem: 201). Mas a 53

operacionalização da troca de mulheres, a troca de fato, em operação, exige outro tipo de raciocínio: neste terreno, estabelece Clastres, a guerra precederá a aliança e a aliança estabelecerá os limites da troca. É porque as sociedades primitivas têm inimigos – e precisam tê-los, se não os tivessem teriam optado por inventá-los, na medida em que as guerras conspiram a favor da lógica do centrífugo – que os cunhados são necessários. Espera-se, portanto, que as alianças fortaleçam o grupo, habilitando-o a defender-se e a preservar sua autonomia e independência diante dos demais. Bem o entenderam os Guarani, que deram suas filhas e irmãs, em casamento, aos espanhóis (Clastres 1972: 55) e os Aché Gatu e os Iröiangi que, forçados a compartilhar o acampamento em Arroyo Moroti, rapidamente forjaram núpcias entre um integrante de cada grupo (Idem: 75). Os Guayaki fornecem-nos ainda mais um exemplo: no encontro anual do tö kybairu, antes mesmo de permitir que homens e mulheres se escolham – ao se apoderarem, por intermédio de cócegas, do feijão que o parceiro eleito mantinha em seu poder até então simularão uma guerra (Idem: 168 et passim). Que, curiosamente, terminará também em cócegas, o que estaria mesmo a indicar a “relação secreta” (Idem: 168) que faz se avizinharem casamento e violência, mulheres e guerra: “Eis a única circunstância em que os Aché toleram – e mesmo procuram – o que de hábito é firmemente proscrito das relações cotidianas: o contato físico. […] Ora, que melhor meio, quando se quer desmentir a aparência agressiva do momento, do que aceitar por uma vez o que de ordinário seria interpretado como um ato de hostilidade: a saber, o contato dos corpos? Se agora os homens acolhem isso, é que verdadeiramente eles não são inimigos. Também se entregam ao jogo cerimonial do kyvai: as cócegas, prelúdio necessário a todos os desdobramentos do ritual” (Idem: 169). Clastres resume nos seguintes termos sua argumentação sobre troca, aliança e guerra, que o distanciará de Lévi-Strauss: “O discurso troquista sobre a sociedade primitiva, ao querer limitá-la integralmente à troca, engana-se em dois pontos distintos mas logicamente ligados. Ignora inicialmente – ou recusa reconhecer – que as sociedades primitivas longe de procurar sempre estender o campo da troca tendem, ao contrário, a reduzir constantemente seu alcance. Conseqüentemente desconhece a importância real da violência, pois a prioridade e a exclusividade concedidas à troca conduzem, na realidade, a abolir a 54

guerra. Ora, dizíamos que enganar-se sobre a guerra é enganar-se sobre a sociedade. Acreditando que o ser social primitivo é ser-para-a-troca, LéviStrauss é levado a dizer que a sociedade primitiva é sociedade-contra-aguerra: a guerra é a troca mal-sucedida. Seu discurso é muito coerente, mas falso. A contradição não é interna a este discurso, é o discurso que é contrário à realidade sociológica, etnograficamente legível, da sociedade primitiva. Não é a troca que é primeira, é a guerra, inscrita no modo de funcionamento da sociedade primitiva. A guerra implica a aliança, a aliança suscita a troca (entendida não como diferença do homem e do animal, como passagem da natureza à cultura mas, é claro, como desdobramento da socialidade da sociedade primitiva, como livre jogo de seu ser político)” (Clastres 1977b: 200). As constatações de Clastres são as de um etnógrafo. Ele parece perguntarse: como, a partir de Lévi-Strauss, se pode fazer etnografia? Será o próprio Lévi-Strauss, entretanto, que sairá transformado do embate com a etnografia selvagem. Para o Homem, com “h” maiúsculo, vale a Troca; para os homens – irredutíveis em sua intransigente existência – não necessariamente.

Ao cabo, o que Clastres indica é que, do par

virtual/atual, tão caro ao estruturalismo, Lévi-Strauss dá muito mais conta do primeiro termo do que do segundo. Afinal, por onde vagará o atual de Lévi-Strauss? Ao trazer-nos de volta à Terra, Clastres apresenta-nos a sociedade Guayaki (1972), Guarani (1974c), Yanomami (1969b e 1971a). A sociedade que retorna, porém, não mais padece das mesmas moléstias que, desde Durkheim, comprometem irremediavelmente o conceito. Não se trata aí de entidades coesas, unidades discretas, a se oporem, em pretensa concretude, à sua inescapável e perigosa excrescência, o indivíduo. A obra de Clastres – etnográfica, em sua essência – comporta inapelavelmente uma dimensão filosófica e política (Abensour 1987: 7). Em certo sentido, o conhecimento etnológico intima a interrogação filosófica, na medida mesmo em que a vida social implica, para os que nela se encontram imersos, um questionamento sobre o homem e o mundo (Lefort in Abensour 1987: 191-192). Etnólogo e filósofo – e os dois ao mesmo tempo -, Clastres levará sua reflexão sobre as sociedades primitivas suficientemente longe de forma a “revelar-nos um aspecto desconhecido e crucial de toda sociedade” (Gauchet 1977a: 55). Evitará, desta maneira, os essencialismos e os teleologismos – sejam os da sociedade, sejam os do Estado – e nos legará obra que, filosófica e etnológica a um só tempo, ganhará forma ao encontro de um planeta 55

sociológico diferente do nosso (Richir in Abensour 1987: 61-62).

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3. Radículas: o “Estado” em Pierre Clastres e a Filosofia Política

Raízes Fasciculadas12 – Bot. Conjunto de raízes adventícias que substitui a raiz primária, abortiva nesses casos, e forma um feixe. Aurélio XXI

Clastres jamais fez ciência de Estado. Não exatamente no sentido de que não tenha constituído uma sociologia política. Ainda que não tenha propriamente instituído uma escola - Clastres “pertence a uma família de espíritos sem espírito de família” (Meunier in Clastres 1972: 307) –, fundou, sim, uma sociologia política, só que de outro modo e a partir de outra perspectiva. Trata-se aí do sentido mesmo da revolução copernicana por ele proposta (1969a: 23), ao proceder ao deslocamento da privação para a oposição e identificar, nas sociedades indígenas, não ausências – de fé, de leis, de reis – mas presenças e vontades afirmativas – contra a economia e contra o Estado. A asserção acerca do estatuto plenamente político das sociedades indígenas assenta-se numa aposta: a de que é possível escapar ao guarda-chuva do Estado e pensar fora das fronteiras por ele impostas, o que, no limite, culminará com o questionamento da própria instituição como princípio inescapável de organização social. Tanto a chamada antropologia política quanto a filosofia política viciaram12

Deleuze e Guattari chamam as raízes fasciculadas de “radículas” (1980 – Volume 1: 14).

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se muito cedo no ponto de vista do Estado e tenderam a conduzir a atenção para a análise da ordem, da coesão e das instâncias de controle. Já no Prefácio ao African Political Systems, Radcliffe-Brown escrevia: “No estudo da organização política, temos de lidar com a manutenção ou o estabelecimento da ordem social, num território delimitado, por meio do uso, ou da possibilidade de utilização, da força física. […] Ao buscar definir a estrutura política em uma sociedade simples, temos de procurar comunidades territoriais unidas pelo império da lei’ (1940: xiv e xviii). Entretanto, tal privilégio da ordem, da coesão e das instâncias de controle denuncia precisamente certa consagração da perspectiva do Estado, como se se aceitasse como “necessidade antecipadamente dada aquilo que talvez só exista como seu modo próprio de operação” (Goldman e Lima 2001: 304). O círculo, desta maneira, fecha-se em discutível filosofia da história, à qual Clastres confronta uma etnologia que nos exclui nem tanto como objetos – conforme veremos – mas como pontos de vista. Apesar de a tradição das gerações mortas pesar como pesadelo sobre o espírito das novas, muito cedo os trópicos imporiam suas particularidades aos antropólogos que aqui desembarcaram a partir da década de 60. O instrumental analítico de inspiração fortesiana que muitos traziam em sua bagagem logo revelaria suas insuficiências. As sociedades locais não se dobravam submissamente a categorias analíticas elaboradas em outras latitudes e os estudiosos que vinham para a América do Sul somariam sua perplexidade à de seus colegas que haviam tomado a direção oposta, rumo à Papua Nova Guiné. Os grupos ameríndios não tinham “profundidade genealógica”, não abrigavam “corporações”, como os africanos; eram “fluidos” e exigiam a elaboração de idioma próprio que desse conta de suas especificidades. “Talvez, depois das áfricas de certezas nítidas e das melanésias de dilemas fluidos, seja doravante possível equacionarmos as questões reais e próprias das sociedades do continente, dispensando as aproximações a contrário, as definições por carência e desvio, os lugarescomuns sobre a ‘flexibilidade’”, opina Eduardo Viveiros de Castro (1986a: 266). Muito do esforço empenhado pela etnologia sul-americana desde então constitui precisamente tentativa de dar conta das peculiaridades ameríndias, numa busca de idioma próprio que poupe os analistas do constrangimento de descrever como fluido aquilo que não se “comporta” à africana: “As tipologias britânicas das sociedades africanas são 58

possivelmente pertinentes para o continente negro; não servem de modelo para a América”, antecipa Clastres (1969a: 12). Salvo no caso de raras exceções, a equação tradicional que reduz o poder à coerção e à relação comando-obediência – precisamente nossa concepção do que deva ser a política – não funciona na América13 (Idem: 10 e 11) e, por detrás da recusa da etnologia em reconhecer o caráter eminentemente político do poder não-potente característico das sociedades ameríndias, esconde-se, em eterna espreita, o “adversário sempre vivaz” (Idem: 15) da pesquisa antropológica, o etnocentrismo, que, ao fazer de nós mesmos inescapáveis telos de todos os grupamentos humanos (Clastres 1974a: 161), “mediatiza todo olhar sobre as diferenças para identificálas e finalmente aboli-las” (Clastres 1969a: 15). Contudo, ainda que o espelho não nos devolva nossa imagem (Idem: 18), isto não significa que nada haja para ser visto. Se as sociedades indígenas rejeitam o poder político como coerção ou violência, tal negação não necessariamente traduz um vazio. “Algo existe na ausência” (Idem: 21), assegura Clastres. Pode-se pensar o político sem a violência, mas não há como pensar o social sem o político (Idem: 21). Uma revolução heliocêntrica impõe-se: é necessário, pois, pensar a contra a corrente para dar conta do oxímoro, do “escândalo” lógico (Richir in Abensour 1987: 62), do paradoxismo pleno de estranheza do poder não-potente, “da persistência bizarra […] de uma função que funciona no vazio” (Clastres 1962: 27). Há que pôr-se em movimento e mudar de sóis. A certeza de que o poder político se restringe a uma relação de coerção caracteriza tanto certo pensamento político quanto determinada etnologia, de maneira que, ao menos neste item, as distâncias entre Hobbes, Hegel, Weber, até mesmo

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Na realidade, ao menos no que concerne à política, nem mesmo a África necessariamente se comportará “à africana”. No necrológio que dedica a Clastrres, o africanista Cartry, sem em absoluto recusar a especificidade dos grupos de “tipo estatal” que analisa, indaga-se, a partir mesmo da leitura de seu colega americanista: quando as aldeias da oeste africano acercam o “poder monstruoso” dos chefes - desligados de seu pertencimento a famílias e clãs e transgressores da interdição do incesto, colocados, portanto, em certo sentido, fora da sociedade -, não estariam tais sociedades sinalizando que, na realidade, são elas que os submetem (Cartry 1978)? Ver, para raciocínios semelhantes, Adler e Luc de Heusch (in Abensour 1987), este último argumentando que, ao converter o chefe em monstro sagrado e constrangê-lo às transgressões, a fim de confiar a ele o poder sobre a natureza, o grupo põe em marcha uma armadilha, “plena de novas potencialidades históricas”, que inverte o sentido da dívida e termina por enredar o próprio grupo, transfigurado em eterno devedor de seu suserano: “O simples g que separa, em inglês, kinship de kingship resume uma formidável transmutação simbólica. Proponho chamá-lo de fator g da história. G como gap, buraco, abismo, vertigem, moderna fantasmagoria” (Idem: 57).

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Nietzsche14 e os antropólogos são menores do que suporia nossa (vã?) filosofia política. Lebrun recorda que a definição da política costuma fazer-se acompanhar da noção de força, ainda que tome a cautela de observar que a força e a coerção não necessariamente significam posse de meios violentos (Lebrun 1984: 11). Recorre, sobre o particular, a enunciado de Julien Freund sobre a política: “[Trata-se d]a atividade social que se propõe a garantir pela força, fundada geralmente no direito, a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política particular” (Idem: 11). O poder - que pressupõe a força de acordo com tal visão - só existiria assim contra alguém: só haveria dirigentes, capatazes, caudilhos, timoneiros e presidentes porque os destituídos de voz de comando acatariam suas ordens (Idem: 18). Pouco importa que o poder – e, já a esta altura, qualifiquemo-lo oportunamente como potente - se tenha burocratizado, tecnicizado, sofisticado, de forma a organizar a dominação: seu fundamento, a força, continuaria indistinto (Idem: 22). Nem sempre é assim. Nem sempre foi assim. Por conta de sua opção pela etnologia, a aparente renúncia de Clastres à filosofia política naturalmente não vai desobrigá-lo de a ela retornar eternamente (Cartry 1978: 47-48; Abensour in Abensour 1987: 115-116). Como algo continua a funcionar mesmo na aparente renúncia e como “nenhuma recusa cancela o problema” (Châtelet & Pisier-Kouchner 1983: 19), a filosofia política, inicialmente desterritorializada pela démarche de Clastres para ser reterritorializada logo a seguir – só que em terrenos banhados por outros sóis –, revelará potencialidades até então insuspeitas. Loraux inicianos em salutar “despudor acadêmico” ao confessar o prazer com que desrespeitou a interdição - recomendada pela moral e pelos apelos ao método - da comparação (in Abensour 1987: 157). O especialista em Grécia clássica, assegura-nos, sente-se, no mais das vezes, em casa e encontra, ao menos até determinado ponto, cumplicidade entre os 14

Os claros constrangimentos decorrentes dos limites mesmo deste trabalho inibem-nos a ambição e não teremos evidentemente como revisitar a tradição do pensamento político ocidental para identificar nela aproximações e/ou distanciamentos com a obra de Clastres. Refrearemo-nos aqui, acanhadamente, à indicação de que os escritos de Clastres comportam relações diferenciadas com o que se pode batizar como três tendências distintas da filosofia política ocidental (Abensour in Abensour 1987: 119-120): a primeira – a única que teremos oportunidade de desenvolver -, de franca hostilidade aos autores que reivindicam a identificação entre poder e coerção, com particular destaque para Hobbes; a segunda, de afinidade com filósofos como Montaigne, La Boétie e Rousseau, pertencentes a determinada contra-corrente que não toma como natural e indiscutível a divisão entre mestres e sujeitos, antecipando, em certo sentido, a revolução copernicana de Clastres; a terceira, finalmente, de ambigüidade, ainda a ser elucidada, para com pensadores como Nietzsche, que, apesar de parecer permanecer sob o signo da identidade entre poder, coerção e violência, foi, não obstante, capaz de problematizá-la.

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Guayaki de Clastres15 (Idem: 155). Uma sociedade indivisa que, desejando permanecer como tal, recorre à guerra - como mecanismo que produz e protege a dispersão dos diferentes grupos -, para preservar-se frente à multiplicidade de outras unidades de natureza semelhante: “Clastres fala dos índios; eu penso nos gregos”, escreve Loraux (Idem: 156). Ainda que inevitável distância separe o discurso da prática – com os Guayaki, ao menos a se julgar pelas páginas de Clastres, parecendo de fato viver de acordo com a imagem que os atenienses querem fazer de si mesmos (Idem: 156) -, a mesma regra prevalece num caso e no outro: contra o exterior, a violência, de forma a eliminar os rompantes entre os companheiros indígenas e entre os cidadãos gregos, iguais em função do mito clássico da autoctonia (Idem: 156). Tanto entre os Guayaki quanto entre os atenienses, portanto, a indivisão interna não é dada nem imediata: sua manutenção e reinstauração exigem estratégias específicas (Idem: 157). Uma delas: a guerra. Certamente, não a única. Também para Lebrun, a arkhé politiké dos gregos em nada antecipa o conceito de poder político da modernidade, visceralmente dependente da idéia de dominação (1984: 26). O expositor, por excelência, de tal conceito será, ainda por

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Já que “o diálogo […] não vive apenas de concordâncias” (Loraux in Abensour 1987: 159), é precisamente quando Clastres recorre, de maneira explícita, ao pensamento grego como origem do Um, do Estado, que o historiador da Grécia deixa de reconhecer, nas páginas do antropólogo francês, um universo que lhe é familiar (Idem: 159 et passim). À “insurreição ativa contra o império do Um” de seus índios, Clastres opõe a suposta “nostalgia contemplativa do Um” que impõe aos gregos, como se, ao pensar sobre o mesmo, o Um, os profetas selvagens e os gregos antigos lhe atribuíssem valores trocados: negativo, no primeiro caso; positivo, no segundo. Para Loraux, ao querer encontrar em Atenas a origem da metafísica política ocidental - fundada na diferença entre dominantes e dominados, considerada como imanente à sociedade -, Clastres fabrica para si uma Grécia sob medida. A política na Grécia antiga – ensina Loraux – faz-se entre iguais, segundo o modelo da arkhé, que, ao promover uma rotação das tarefas da administração da polis entre os cidadãos, permite que todos e cada um, a seu tempo, comandem e obedeçam. Se os gregos de fato terão colocado a política sob o domínio do Um, fizeram-no não no sentido de inaugurar uma hierarquia entre dominantes e dominados - na verdade, inexistente - mas, opina Loraux, no de dissimular a potencialidade ameaçadora do dois. Ao submeter sua política ao império do Um, os gregos procuram preservar a indivisão no seio da polis e evitar a emergência do dois (Idem: 163). Já os Guarani, segundo Clastres, cultivam o dois como o número da Terra sem Mal, que lhes facultaria ser homens e deuses ao mesmo tempo. Em certo sentido, Loraux inverte a esta altura o raciocínio de Clastres, ampliando-o e subvertendo-o: à “insurreição ativa contra o dois” de seus gregos, opõe a “nostalgia contemplativa do dois” dos índios de Clastres. E curiosamente apenas contemplativa, conforme observa Loraux com argúcia: diante do dois bem real, manifestado na inescapável existência dos dois sexos, os índios de Clastres optam por refugiar-se no monadismo do um, que faz com que um homem obrigatória e inapelavelmente seja um homem; um caçador seja um caçador; A seja A, tornando Chachubutawachugi, o homem que não consegue caçar e que, no entanto, quer permanecer no universo da masculinidade, ridícula figura, porque obstinada em ocupar um lugar a meio-caminho entre o masculino e o feminino, que, a rigor, não existe (Clastres 1972: 217).

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excelência, um anti-aristotélico (Idem: 37): Thomas Hobbes. Os requisitos da política à Hobbes subverterão a teleologia aristotélica. Os cidadãos - antes iguais pelo mito grego da autoctonia e dirigidos, por assim dizer, por seus fins, previamente estabelecidos na comunidade, koinonia, a que pertencem (Idem: 43) – terão sua igualdade preservada, só que em sua submissão diante de outro mito, o Leviatã (Idem: 44). A comunidade por princípio não existe mais e a integração dos homens – retraídos em seu atomismo de lobos desagregados, ciosos de sua independência e egoístas na defesa de seus interesses – somente ocorre por meio da operacionalização do Leviatã, mediante a criação dos estratagemas adequados: o indivíduo, isolado, apolítico e detentor de direitos naturais (Idem: 44 e 45); o povo, constituído como corpo político (Idem: 32-33), e, finalmente, a sociedade (societas), como esfera em que se desenvolve a vida privada, distinta da participação na vida pública (Idem: 37). Para funcionar, a política de Hobbes obriga, paradoxalmente, conforme veremos, a pronunciada despolitização dos homens (Idem: 38). Pura ironia: decerto não a única. Se o Leviatã logo terminará erigido em símbolo do Estado autoritário, o discurso político que o inaugura tem, como fundamento, certa concepção do indivíduo como originário e natural, cujos direitos devem ser resguardados (Idem: 44). É inextricável, portanto, o laço estabelecido entre o advento do indivíduo isolado, entendido como ferramenta fundamental na construção da política, e a instituição do poder único como condição da Cidade (civitas) – e, incidentalmente, é menor do que se imagina a distância que separa certa definição dos direitos fundamentais do homem e a ascensão do autoritarismo (Idem: 45). “Evitemos […] demasiada pressa em alegar que o indivíduo é o Outro do Estado, que o Estado lhe é hostil por princípio” - alerta Lebrun. “Genealogicamente, foi apenas graças à tutela de um poder único e centralizador que o ‘indivíduo’ se viu capaz de compensar o seu isolamento e de reivindicar a sua condição de indivíduo” (Idem: 45)16. Em certo sentido, foi o Estado que o criou portanto (Idem: 87). A diferença entre civitas e societas cavará o abismo, o gap abissal, a moderna fantasmagoria que sepultará definitivamente para nós a Grécia, na qual o 16

Freud problematizará definitivamente a concepção do indivíduo como consciência independente, “ego sempre mais eu, vontade cada vez mais livre” (Châtelet & Pisier-Kouchner 1983: 38), ao apresentá-lo como lugar fronteiriço, conflitual ponto de encontro entre duas instâncias, o id e o superego. E, ciente do abalo que tal visão representa para a imagem que o homem tradicionalmente construiu de si mesmo, previne: “[T]razemos a peste” (citado em Châtelet & Pisier-Kouchner 1983: 37).

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homem só realizava a sua essência de animal político pela participação plena nos negócios da polis (Châtelet, Duhamel & Pisier-Kouchner 1982: 15). Ao transferir o direito de governar-se a si mesmo ao Leviatã, identificado como a única anti-desordem eficaz possível (Lebrun 1984: 35), o cidadão moderno – já agora inapelavelmente súdito – inaugura a cisão vida privada/negócios públicos, sociedade (societas)/civitas. A vida em sociedade não mais requer a vida na Cidade; irremediavelmente despolitizado, o homem passará a ocupar-se dos assuntos que lhe dizem direito apenas – os quais, para serem levados a cabo a contento, requerem tão-somente a preservação da paz -, transferindo a condução dos negócios públicos ao Leviatã (ou a seus substitutos mais recentes, os tecnoburocratas especializados do Estado-Cientista (Châtelet, Duhamel & Pisier-Kouchner 1982: 321 et passim), numa nova modalidade de despotismo, menos tirânico do que administrativo (Lebrun 1984: 92)). Conforme escreve Lebrun: “É neste ponto remoto que principia a nossa modernidade: quando a comunidade não mais é entendida como congregação de homens que são diretamente encarregados de zelar pelo funcionamento do Todo, mas como uma congregação de homens (societas) a quem seus próprios afazeres ocupam demais para que possam dedicar-se aos interesses do Todo e que, por isso, devem ser protegidos pela instância política, em vez de participarem dela” (Idem: 38, grifos do autor). Ao mesmo tempo que a viabiliza, o Estado - sob determinado prisma e ao menos na acepção que indicamos aqui - inventa a sociedade portanto. Para além da crueza e absoluta generalidade de tais afirmações e dos contornos e refinamentos diversos que conhecerão nas obras dos filósofos políticos posteriores – o Estado sempre foi capaz de demonstrar particular astúcia (Hegel, citado em Lebrun 1984: 85) -, ressalte-se que parecem labirinticamente amalgamados os três lados do triângulo - Estado, indivíduo e sociedade -, tendência que o totalitarismo apenas levará ao paroxismo (Lebrun 1984: 72-73; Châtelet & Pisier-Kouchner 1983: 572-573). É o que Lebrun traduz nos seguintes termos: “Excetuando-se os casos extremos, o poder estatal não pode ser definido como uma máquina monstruosa que, cinicamente, esmigalha os indivíduos: acima de tudo é uma máquina que produz os indivíduos e, dando-lhes ‘bons hábitos’, institui ou tende cada vez mais a instituir o social” (Lebrun 1984: 86-87, grifos do autor). Ainda que “Estado” – como “indivíduo” (Idem: 77) e “sociedade”, aliás - constitua um “pavilhão” e que não seja de modo algum evidente que 63

os diversos estudiosos estejam referindo-se à mesma idéia quando recorrem ao conceito – como se uma espécie de “essência Estado” fosse explicitando-se cada vez melhor (ou pior) desde a polis grega ao Estado contemporâneo, passando pelo imperium romanum e pela realeza medieval (Châtelet & Pisier-Kouchner 1983: 9-10) -, pode-se afirmar que o Estado, como operação, exige, para funcionar, o concurso de figuras subjetivas e ordenamentos sociais específicos – que, muito grosso modo, designamos aqui por indivíduo e sociedade. Resta saber o que ocorre com tais figuras e ordenamentos quando sai de cena ou, ao menos, deixa de prevalecer a operação Estado, cuja “obscenidade insuportável” grande parte da filosofia pós-hobbesiana eternamente se esforçou para reprimir (Lebrun 1984: 117). Em vão: refreados e domesticados, os animais, o pensamento, o selvagem terminam doentes. Étienne de La Boétie promove um deslizamento da História para a lógica (Clastres 1976b: 112) e espanta-se que tantos tenham se sujeitado a só um e que o tenham feito de bom grado: “[Q]ue malencontro foi este que tanto desnaturou o homem, o único nascido, de verdade, para viver livremente e o fez perder a lembrança de seu ser primeiro e o desejo de a isto retornar?” (La Boétie 1576: 143) O assombro deve-se ao fato de que, ainda que as sociedades a que se refere La Boétie lhe fornecessem apenas exemplos do malencontro, ao menos no terreno da lógica poderia imaginar-se que tudo pudesse processar-se de outro modo. Clastres proporá outro deslizamento, da lógica de volta para a história (o que, por mais uma pura ironia, demonstrará que o Estado não é historicamente inelutável (Clastres 1976b: 112; Châtelet & Pisier-Kouchner 1983: 712) , não mais aquela com “h” maiúsculo, mas a cotidiana, que sua crônica capta tão bem. Seu espanto diferencia-se do de La Boétie. Ele pergunta-se: por que Jyvukugi, o “chefe” dos Guayaki em Arroyo Moroti, se obrigava a ir de tapy em tapy notificar seu povo daquilo de que todos já tinham conhecimento, porque previamente informados pelo paraguaio que se encontrava à frente do acampamento? “Pela primeira vez, eu podia observar diretamente – pois ela funcionava, transparente, sob meus olhos – a instituição política dos índios. […]. Os Guayaki, votados à […] filosofia política selvagem, separavam radicalmente o poder e a violência: para provar que era digno de ser chefe, Jyvukugi devia demonstrar que, diferente do paraguaio, ele não exercia sua autoridade por meio da coerção, mas que, ao contrário, a desdobrava no que é mais oposto à violência, […] na 64

palavra” (Clastres 1972: 78-79). Presenciamos aí, sob nossos olhos, por assim dizer, um não-Estado em operação, que confere nova inteligibilidade ao Estado, também em operação, e já entre nós (e não apenas). Ensina Clastres: o Estado não é “os ministérios, o Eliseu, a Casa Branca, o Kremlin. […] O Estado é o exercício do poder político” (1978: 166, grifo meu). “O Estado […] é o acionamento efetivo da relação de poder. Deter o poder é exercê-lo” (1976b: 115, grifo meu). Diante de um poder que se exerce, a pergunta “como isto funciona?” parece mais profícua do que as alternativas e muito mais ambiciosas “o que isto significa?” ou “de onde isto vem?”. Isto funciona pela concorrência de máquinas sociais e figuras subjetivas específicas, que fazem isto funcionar. O mesmo vale para um poder que não se exerce. Também o não-Estado tem suas astúcias. O poder que não se exerce, o não-Estado opera por meio de máquinas sociais e figuras subjetivas que conjuram diuturnamente a possibilidade da emergência da divisão no seio do grupo. As sociedades contra o Estado recorrem a estratégias próprias e lançam mão de vigorosos mecanismos – como a guerra, a economia, a religião, a linguagem e a própria “subjetivação”, por assim dizer, de seus “chefes”, também por assim dizer – de forma a evitar que surjam nelas o mau desejo de comandar e, como sua necessária contrapartida, o de obedecer (Idem: 119) (e vemos o quanto há de político no desejo (1977a: 154-155)). Hobbes e os selvagens. Deste embate, surge o “Contra-Hobbes” de Clastres (Abensour in Abensour 1987: 121). Ao reconhecer à guerra proeminência no estudo das sociedades selvagens – ao invés de marginalizá-la e reduzi-la a manifestação menor, tão ao gosto de certa antropologia que placidamente privilegiou a reciprocidade à violência -, Clastres descarta, no mesmo golpe, os discursos naturalista, economicista e “troquista” sobre a matéria (Clastres 1977b: 176 et passim). Em vez das reduções epistemológicas da guerra urdidas por tais discursos – circunscrevendo-a a mera exteriorização de uma suposta agressividade inata e “zoológica” da espécie humana (Idem: 176-177), ou a luta por aquisição de bens na miserável e conjectural subsistência em que apenas sobreviveriam os selvagens (Idem: 179), ou, ainda, à troca que tão simplesmente falhou (Idem: 183 et passim) -, Clastres oferece três proposições positivas sobre o assunto: a guerra constitui, de fato, um fato social; a guerra não deriva da 65

economia no hipotético cenário de indigência dos indígenas, mas constitui fenômeno essencialmente político, e a guerra não resulta da troca abortada, mas possui lógica própria e função sociológica na sociedade primitiva. Copérnico e os selvagens. Sói inverter Hobbes e pensar a guerra de outra forma. Não mais como sintoma de estado associal (ou, pior, pré-social, em raciocínio que de novo nos eleva a telos inescapável dos grupos indígenas) e de caos inclemente, mas como mecanismo mesmo de instituição do cosmos social primitivo ou, para utilizar de maneira deliberadamente provocadora conceito por si só polêmico, como sua estrutura (Idem: 195). A guerra, como máquina anti-Estado por excelência, preserva a lógica do múltiplo característica dos grupos indígenas e conspira contra o Um (Idem: 188): há uma socialidade que se institui na e pela guerra, o que nos obriga ao saudável exercício intelectual de, por um lado, evitar os maniqueísmos dialeticamente excludentes e, por outro, pensar guerra e sociedade e a um só tempo: já o sabemos, tudo está em tudo e reciprocamente (Donzelot citado em Carrilho 1976: 155). Como Clastres, também Sahlins acredita numa politeia selvagem (Abensour in Abensour 1987: 128). Os dois chegam a ela, entretanto, a partir das apropriações distintas que farão da obra de Hobbes. Sahlins havia procedido a uma aproximação bastante instigante entre Hobbes e Mauss (1972: 171 et passim). Fazendo o Ensaio sobre o Dom reverberar sobre o Leviatã e vice-versa, descobrira uma insuspeita ordem política já no estado de guerra hobbesiano, no sentido de que ele convidaria à troca. O dom é apresentado, então, como o contrato político das sociedades primitivas, precisamente porque impediria a guerra (Idem: 169). A referência obrigatória é a uma das últimas frases do livro de Mauss: “Foi opondo razão e sentimento, pondo a vontade de paz contra bruscas folias deste gênero que os povos lograram substituir a aliança, o dom e o comércio à guerra, ao isolamento e à estagnação” (1923-1924: 278). Precisamente neste ponto, inaugura-se o gap abissal, o abismo que afastará Sahlins de Clastres. Para Clastres, a politeia selvagem, forma original da política, se institui na e pela guerra, não porque a guerra atraia a troca e clame o nascimento da razão, mas porque, na e pela guerra, passamos de “lobos a homens” (Abensour in Abensour 1987: 128). Em Sahlins, persistiam certa repulsa à violência e certa concepção idílica da sociedade primitiva como tendendo à paz (Sahlins 1972: 170 e 182); já Clastres assume 66

plenamente que a guerra constitui dimensão permanente das sociedades indígenas. Permanência da guerra não significa, evidentemente, batalha constante, conforme veremos adiante; indica apenas que as relações de hostilidade entre as comunidades são constitutivas da politeia selvagem, organizada como ser-para-a-guerra. A guerra viabiliza a instituição de uma sociedade do múltiplo - porque, orientada contra a aparição do Um, faculta a ininterrupta pulverização dos grupos indígenas17 -, e, como vimos algumas páginas atrás, possui, no caso das sociedades indígenas em funcionamento e em operação, prioridade sobre a troca. Como os Araweté de Viveiros de Castro, que mortos, canibalizados e ressuscitados - se casam com os deuses e, agindo antidialeticamente, não se tolhem à escolha excludente entre “to marry out” ou “to be killed out” (1986b), os indígenas de Clastres não se constrangem à opção entre Hobbes e LéviStrauss: Hobbes contemplou apenas a guerra e ignorou a troca; Lévi-Strauss favoreceu a troca e não fez caso da guerra. “A sociedade primitiva é o espaço da troca e é também o lugar da violência: a guerra, como a troca, pertence ao ser social primitivo” – polemiza Clastres (1977b: 187, grifo do autor). Ele não propõe uma justaposição entre guerra e troca (Idem: 196), porém, como se uma solução de continuidade unisse as duas e houvesse propensão a que a guerra aumentasse à proporção que diminuísse a troca ou vice-versa. Defende a precedência, na prática, da guerra sobre a troca, conforme indicará ao discorrer sobre as relações intracomunitárias e extracomunitárias das sociedades indígenas, ou, para utilizar vocabulário que muito nos aproxima da ciência política, entre sua política interna e sua política externa. Raciocina Clastres: “A comunidade primitiva é, ao mesmo tempo, totalidade e unidade. Totalidade na medida em que é conjunto acabado, autônomo, completo, atento a preservar sem cessar sua autonomia, […]. Unidade na medida em que seu ser homogêneo persevera na recusa da divisão social, na exclusão da desigualdade, na interdição da alienação” (Idem: 192). Como totalidade autônoma, inscreve sua ordem 17

Se, como quer Clausewitz, a guerra é uma continuação da política por outros meios, presenciamos aqui suas implicações sobre o que poderíamos denominar provocadoramente de “política demográfica”. Ao salvaguardar a contínua fragmentação das sociedades indígenas, a guerra assegura que a ordem de grandeza populacional de tais grupos não ultrapassará limiares relativamente estritos. De fato, eventuais unificações de grupos distintos teriam implicações políticas. As repercussões políticas do crescimento populacional sempre constituíram preocupação de Clastres, especialmente em “Elementos de Demografia Ameríndia” (1973a) e nas páginas finais de “A Sociedade contra o Estado” (1974a). Ver, ainda, as páginas que Hélène Clastres dedica ao assunto (1975: 59-60).

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política num território de onde se exclui o Outro (Idem: 189 e 192) e isto demarca sua política externa; como unidade homogênea, impede a emergência de qualquer clivagem em seu seio, de qualquer divisão entre dominantes e dominados e isto determina a sua política interna. Ambas – a política externa e a interna – siamesamente solidárias (Adler in Abensour: 98). A guerra - que, como possibilidade sempre presente, trama a favor da divisão externa entre os diversos grupos - e a chefia – que, destituída de poder, trama a favor da indivisão interna – constituem, na verdade, as duas faces de uma mesma moeda (Clastres 1977b: 205), cujo padrão a politeia selvagem define, impedindo, tanto num caso quanto no outro, a emergência do Um, e coibindo-nos de aventar tanto a hipótese da troca generalizada – que atentaria contra a lógica da contínua fragmentação dos grupos indígenas – quanto a da guerra generalizada – que, na eventualidade de que resultasse na consagração de um vencedor, comprometeria precisamente a indivisão que se procura resguardar (Idem: 195). Como quer identificar na guerra antes panacéia a funcionar na prática do que princípio ontológico e atemporal, Clastres vai atribuir-lhe precedência sobre a troca: ao produzir inimigos – e em série (talvez a única produção em série que tais grupos aceitem…), “se os inimigos não existissem, teriam de ser inventados” (Idem: 204) -, a guerra, por dividir o mundo, inapelavelmente, entre amigos e adversários, estabelecerá os limites dentro dos quais se podem selar legitimamente as alianças e promoverá uma lógica da diferença (Idem: 194). Haverá aí certamente modelo a polemizar com – e polenizar – certa antropologia que, muito graciosa e prematuramente, se prostrou diante de determinada lógica da identificação… Se nenhum autor é único e Hobbes necessariamente será dois (ou mais), mais de um Contra-Hobbes será possível. Lévi-Strauss apresenta-nos um: o mundo primitivo demarca já um universo social pleno, porque, pela troca, passamos de animais a homens. O outro, é-nos introduzido por Clastres: o mundo primitivo é completamente social porque, pela guerra – que viabiliza uma troca, já política, a transformar inimigos em cunhados e aliados -, passamos de lobos a animais políticos. Abensour resume tal argumentação nos seguintes termos: “É totalmente inédito este Contra-Hobbes de Clastres: ele acorda a Hobbes 68

o estado de guerra permanente como estrutura; a Sahlins, a existência de uma politeia; a Lévi-Strauss, a presença da troca. Mas guerra permanente, politeia, troca constituirão objeto de tratamento e interpretação radicalmente novos. Em primeiro lugar, a guerra: o estado de guerra, de cuja realidade sociológica não se pode duvidar, longe de ser sinal de um vazio de sociedade, de um estado miserável quase animal, de um caos, é plenamente reconhecido como fenômeno social total. Um cosmos social autêntico pode instituir-se e constituir-se na e pela guerra. A comunidade primitiva constitui uma politeia não, como sustenta Sahlins, graças à atenuação da guerra, mas, ao contrário, pelo pleno reconhecimento, pela efetivação mesmo da guerra. Ainda mais, a guerra é o meio da politeia selvagem de perseverar-se em seu ser: seu conatus essendi exige o desenvolvimento da uma lógica de fragmentação ininterrupta que ocorre na guerra, na determinação do inimigo. Trata-se, pelo recurso à guerra, de prevenir e evitar o surgimento de uma meta-comunidade unificadora que, ao mesmo tempo em que instauraria a paz, arruinaria o reino do múltiplo. Por fim, a troca: de fato a politeia selvagem pratica a troca, mas submete-a não à sua própria lógica, mas à da guerra. Pode-se mesmo dizer que a guerra, longe de contrariar a troca, a produz, a suscita, mas, precisão importante, enquanto tática que lhe permanece completamente subordinada” (in Abensour 1987: 136). Lévi-Strauss revisitado e revolvido. Hobbes revisitado e retorcido; Copérnico restaurado: “[Para Hobbes], o laço social se institui entre os homens graças a este ‘poder comum que os mantém a todos em respeito’: o Estado é contra a guerra. Que nos diz em contraponto a sociedade primitiva como espaço sociológico da guerra permanente? Ela repete, invertendo-o,

o discurso de Hobbes, ela proclama que a

máquina de dispersão funciona contra a máquina de unificação, ela nos diz que a guerra é contra o Estado” (Clastres 1977b: 206-207, grifo do autor). Sói, agora, subverter Engels e pensar a economia de outra forma, a obstar, também ela, a emergência do Um. Mesmo que urrem os brontossauros (Clastres 1978: 170). A operação da máquina produtiva primitiva exibe a fragilidade de algumas das argumentações de Engels e, ainda que “[n]em o Concílio Vaticano II […] [tenha renunciado] à divindade do Cristo” (Lebrun 1984: 111), impõe – ou, ao menos, deveria impor – certa humildade às ambições normalmente universalistas das explicações marxistas18. Na verdade, a máquina produtiva primitiva vira Engels ao avesso. Já Marx

18

Na crítica simultaneamente severa e bem-humorada que dirige ao marxismo, Clastres observa que as leis da história propostas por tal escola não podem comportar nenhuma exceção, sob pena de fazer ruir todo o

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parece ter ensinado que não há como separar o trabalho do sobretrabalho e da alienação: quem trabalha, no mesmo golpe, produz sobretrabalho (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 202). De fato, quem não sentirá a artificialidade que recende da caracterização como “trabalho” da atividade do índio que se dedica à pesca? O que exige a inversão da argumentação clássica de Engels: é o Estado, como relação de poder, que garante a exploração (Clastres 1974a: 169 e 173; Lefort 1978: 52) e que faz com que o homem se submeta ao trabalho, criando o sobretrabalho e o excedente que tornam possível precisamente a exploração (e não mais por pura ironia); o Estado, portanto, antecede a propriedade privada e a família. Escreve Clastres: “A relação política de poder precede e fundamenta a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, a alienação é política, o poder antecede o trabalho, o econômico é uma derivação do político; a emergência do Estado determina o aparecimento das classes” (1974a: 169). Nas sociedades primitivas, ao contrário, a economia, como não funciona de forma autônoma (Clastres 1978: 167) (e, possivelmente, nas nossas sociedades tampouco…), jamais será política (Clastres 1974a: 170) – o que precisamente denuncia já certa escolha, esta sim, política. O que nos dizem em contraponto as sociedades indígenas como espaços sociológicos de operação da máquina produtiva primitiva, que conspira, em permanência, contra a acumulação? Precisamente como ocorria com a política selvagem, tanto em sua faceta externa – o estado permanente de guerra – quanto na interna - a instituição de uma chefia sui generis -, também a economia selvagem, seja no plano doméstico, seja no internacional, maquinará contra a emergência do Um. Longe estamos do cenário de penúria em que chafurdariam os desditosos índios, agrilhoados em labuta febril para garantir – e apenas – sua sobrevivência. Os estudos de Lizot e Sahlins já haviam

edifício teórico assim erguido (1978: 168). Daí a necessidade de elaboração, para seus adeptos, de uma antropologia marxista, que constrange, “a fórceps” (Idem: 168; Adler 1976: 128), as sociedades indígenas a se adaptarem a categorias analíticas – como “produção”; “relações de produção”; “desenvolvimento das forças produtivas”, “exploração” – desenvolvidas para dar conta de outras realidades e a se amoldarem a uma concepção pré-estabelecida do que devam ser a sociedade e a história, em visão que, mais uma vez, nos promove a inexoráveis telos dos grupos humanos (Clastres 1976c: 128 e 1978: 169). Esta démarche, evidentemente, tem como contrapartida a supressão, pura e simples, das sociedades indígenas, negandolhes sua especificidade e imortalizando-as numa espécie de grau zero da história, em estado sempre aquém daquele no qual nos encontramos (Clastres 1977b: 181 e 1978: 169; Abensour in Abensour 1987: 10). Desta forma, o que a chamada economia política e o etnomarxismo terminam por economizar é antropologia e etnografia: fazem ambas de menos (Adler 1976: 123).

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demonstrado suficientemente que as sociedades indígenas constituem as primeiras (provavelmente as últimas) sociedades de abundância: elas garantem seu relativo bemestar a custo de pequeno esforço (Clastres 1974a: 162-167; 1976c : 130 e 1978: 165) e, se não produzem mais, é porque simplesmente não o desejam (Clastres 1974a: 166; Gauchet 1977a: 62) . O que esconde este bom desejo (e, de novo, vemos o quanto há de político no desejo)? Que a sociedade primitiva conjura qualquer possibilidade de acumulação (Clastres 1976c: 130-131): “[o]s selvagens produzem para viver, não vivem para produzir” (Idem: 134). Com efeito, qual o sentido de possuir mais numa sociedade de iguais? O infortúnio do chefe selvagem – que, produzindo mais, porque forçado a isto, se vê coagido à generosidade, conforme retrataremos a seguir – bem atesta o quanto a economia primitiva exorciza a acumulação primitiva, impedindo, desta forma, que se destaque do corpo social aquele que, mais rico ou mais poderoso, poderia ver-se tentado a subjugar os demais. Não há, por conseguinte, como refletir sobre a economia primitiva na exterioridade da política (Idem: 132) – o que a forma como se processam as relações econômicas internacionais, por assim dizer, dos grupos indígenas só virá confirmar. Realmente, a máquina produtiva primitiva procurará assegurar sua independência diante das demais, traduzindo um ideal de autarquia econômica (Idem: 132), que nada mais é do que o reflexo, na esfera da economia, da lógica de contínua pulverização destes grupos. Sahlins resume suas considerações sobre o modo de produção primitivo de maneira deliberadamente polêmica: estruturalmente (isto é, na independência da política) – diz -, a economia simplesmente não existe em tais sociedades, subprodutivas e, nem por isto, deficitárias (Idem: 135). Verdadeiras máquinas de anti-produção (Idem: 144): exatamente como haviam se erguido contra o Estado, é agora contra a economia que tais sociedades se insurgem (Idem: 135). “Uma tal ‘estratégia’ implica evidentemente como que uma aposta sobre o futuro, isto é, que ele será feito de repetição e não de diferença, que a terra, o céu e os deuses cuidarão para manter o eterno retorno do mesmo” (Idem: 134). A religião viabilizará esta estratégia. Servindo-se dos acontecimentos da história individual – nascimento, passagem à vida adulta, casamento - como oportunidades para reafirmar a unidade tribal (Clastres 1972: 41), os ritos, repetidos sempre da mesma forma, para todos e à exaustão, renderão os indígenas à evidência de sua lei: cada um é igual aos demais. Mais: marcarão, dolorosamente, a pele de cada um, 71

nos rituais iniciáticos adequados, com as cicatrizes permanecendo como as necessárias e inescapáveis memórias da lei ancestral (Clastres 1973c: 154 et passim), como a maquinar contra a passagem do tempo, em tudo o mais inelutável. A possibilidade da mudança se lhes escapa: os deuses e os ancestrais quiseram que o mundo tomasse esta forma; aos índios, resta tão-somente conformar-se às suas lições, exemplo e vontade (Gauchet 1977a: 61). O que se lhes nega, desta maneira, é a capacidade mesmo de afetar uma ordem que lhes é superior, é o poder potente de modificar as regras e os usos. Irredutível em seu conservadorismo, a religião primitiva reforça a igualdade e inibe qualquer ambição de poder19.

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Paradoxalmente, a religião parecerá, tanto em Clastres quanto em Gauchet, constituir o domínio em que poderiam emergir a divisão, a desigualdade, o germe fatal que ameaçará a sociedade primitiva. As afirmações de Gauchet a respeito são peremptórias. Partindo de discutível filosofia da história (Châtelet e Pisier-Kouchner 1982: 732) – assentada sobre um fundamento conjectural que se pretende geral para a sociabilidade, a saber, o de que toda sociedade ganha razão a partir de um ponto de vista que lhe é exterior, estando assim sempre submetida a uma dívida de sentido -, Gauchet chega à conclusão de que todo grupamento humano já se encontra, de antemão, grávido de Estado: “O Estado não surgiu em sociedades até então donas delas próprias, livres na sua organização e capazes de se transformarem livremente, pelo jogo do consenso geral. Sucedeu a sociedades que se pensavam privadas de toda a ação eficaz sobre a sua maneira de ser, que não se reconheciam com o direito de estabelecer a sua ordem interna na medida em que a julgavam ditada de algures e legitimada por uma fonte exterior” (1977b: 53). “A determinação religiosa de votar a sociedade a uma entidade diferente dela mesma intervém, justamente, para neutralizar o aparecimento efetivo de uma instância do poder, neutralização que vai até o ponto de a esvaziar de todo o sentido. O discurso religioso afirma, ao contrário, que existe uma sede de poder onde radicam a origem e a razão de ser daquilo que os homens fazem, uma sede dos poderes invisíveis que comandam o visível. Mas esse lugar, ao menos no caso das sociedades primitivas, coloca-o ele em posição tal relativamente aos homens que nenhum dentre eles pode pensar validamente em o ocupar” (67). “[O] nascimento do Estado corresponde a uma inversão na utilização da dimensão de exterioridade do fundamento social. De instrumento de igualdade, a separação entre os vivos e as forças fundadoras e legisladoras que regulam a sua existência transforma-se em motivo de sujeição. Nas sociedades anteriores ao Estado: todos podem invocar a sabedoria dos heróis míticos, a vontade dos deuses, por virtude da qual as coisas existem tais como as conhecemos e devemos continuar; ninguém dentre os homens está do lado dos ancestrais, dos heróis ou dos deuses para ditar a lei sagrada aos outros, representar as últimas razões de ser do universo e impor a submissão aos fins últimos. Com o advento do Estado: aparecimento entre os homens de um representante do invisível e dos senhores do sentido. […]. O Estado surge fazendo refluir contra a sociedade o dispositivo de diferença destinado inicialmente a defender a sociedade contra o Estado” (68). “[A] religião foi historicamente a condição de possibilidade do Estado (69, grifo do autor)”. Apesar de parecer não dispor, ao menos no artigo citado, de evidência etnográfica suficiente a conceder sustentação à ambição de sua afirmação de que a religião constitui a condição de possibilidade do Estado, diga-se, a favor de Gauchet, que, a partir de Clastres, ele se coloca a pergunta correta: como as sociedades indígenas são contra algo que não está lá, como conjurar o que não existe? As dificuldades surgem quando, ao pretender encontrar uma resposta, somos levados a uma peregrinação interminável – e infrutífera – à procura da origem do Estado. O próprio Clastres vai enredar-se na problemática, ao buscar um “mito de origem” do Estado, que o fará fabular em torno das motivações demográficas que teriam facultado aos profetas cindirem suas tribos e arrastarem multidões inteiras atrás de si, terminando, armados apenas de seu logos, por unificar os grupos diversos: o início do Estado no Verbo (Clastres 1974a: 185-186). Diga-se, já agora a favor de Clastres, que ele parece bem mais hesitante que Gauchet: “Que formidável aparecimento, que revolução permitiram o aparecimento da figura do Déspota, daquele que comanda os que obedecem? De

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Que política encerra a palavra, especialmente em sociedades que, diferentemente das nossas, souberam defendê-la do desgaste a que a submetemos (Clastres 1962: 37), de tal forma a preservar que “a língua permaneça a morada do ser” (Heidegger, citado em Verdier in Abensour 1987: 37) e a resguardar a não-exterioridade entre homem e linguagem (Goldman e Lima 2001: 301)? O chefe fala, ninguém o ouve ou todos fingem não prestar atenção. E, ainda assim, nada perdem: porque, paradoxalmente, a palavra do chefe não quer dizer absolutamente nada (Clastres 1973b: 135). O que, neste caso, falar quer dizer? Por que constrangem seu chefe à loquacidade – e não é seu palavrório, mas seu silêncio, que inquieta (Clastres 1972: 80) – se tais grupos não têm intenção de escutá-lo? A palavra é o oposto da violência e, ao obrigarem seus líderes à verbosidade sem, contudo, dar-lhe qualquer consideração, as sociedades indígenas impingem-lhes a evidência de que não dispõem de voz de comando. Clastres afirma: “Forçando o chefe a mover-se somente no elemento da palavra, isto é, no extremo oposto da violência, a tribo se assegura de que todas as coisas permanecem em seu lugar, de que o eixo do poder recai sobre o corpo exclusivo da sociedade e que nenhum deslocamento de forças virá conturbar a ordem social. O dever da palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que ele deve à tribo é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem da palavra se torne o homem do poder” (1973b: 136, grifo do autor). Demasiado vazia para funcionar como instrumento de ação de um homem sobre o outro, a palavra-valor que enuncia o líder define o próprio limite da instituição política nestas sociedades e bane, por assim dizer, o chefe para o exterior da comunicação: “[N]a própria eloqüência de que é capaz e que se lhe exige, o chefe encontra um obstáculo para agir contrariamente à vontade do grupo. Preso em seu discurso, ele executa sua atividade política no exterior da comunicação” (Goldman e Lima 2001: 301). Precisamente no lugar da chefia e demarcando-o, desta forma,

onde provêm o poder político? Mistério, talvez provisório, da origem” (Idem: 174-175, grifo do autor). De qualquer modo, as repercussões políticas do profetismo guarani constituem tema bastante fértil, do qual pretendo ocupar-me em projetos posteriores. Sobre o assunto, ver ainda o belo livro de Hélène Clastres, Terra sem Mal (1975).

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presenciamos certa curvatura no fluxo das trocas de palavras, a indicar que, do ponto de vista da reciprocidade, “a relação entre a sociedade e a instituição política em geral é uma relação de exterioridade” (Idem: 301). O mesmo acontecerá nos casos das trocas de bens e de mulheres. Como se faz um chefe? Com suas palavras. E com o suor de seu próprio rosto. E o de suas mulheres, que a poliginia estrategicamente lhe concede (Clastres 1962: 33 e 1976c: 137-138; Lizot 1976: 167). Os três termos – palavras, bens e mulheres -, cuja troca havia-nos garantido a travessia definitiva da animalidade para a sociedade, servemse agora a torções (Clastres 1962: 34 et passim) – e não no terreno etéreo das mitologias, mas sob nossos olhos, por assim dizer, assegurando-nos a passagem, também ela irrevogável, da sociedade para a socialidade política. Não porque exista aí já um déspota em miniatura (Clastres 1972: 81 e 1974a: 175), cujas potencialidades as formas posteriores de organização política desdobrariam de maneira cada vez mais perfeita. Mas porque o problema da política se coloca aí já em sua inteireza - o poder é inevitavelmente exterior e contra o grupo (Clastres 1962: 38 e Gauchet 1977a: 64) – e resolve-se, com particular sutileza (Clastres 1962: 40), por meio do estabelecimento de uma instituição – a chefia – que funciona no vazio e, justamente por esta razão, funciona. Funciona negando e indo contra a exterioridade do poder: ao fazer com que se rompa, precisamente no lugar da chefia, a lógica da reciprocidade, a sociedade primitiva, ao mesmo tempo em que reconhece a exterioridade inescapável que qualifica o poder20,

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Clastres suspeita que haja, nas sociedades primitivas, certa identificação entre poder e natureza, ambos negação da cultura e da sociedade: “[As sociedades primitivas] pressentiram muito cedo que a transcendência do poder encerra para o grupo um risco mortal, que o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua própria legalidade é uma contestação da própria cultura; foi a intuição dessa ameaça que determinou a profundidade de sua filosofia política. Pois, descobrindo o grande parentesco do poder e da natureza como dupla limitação do universo da cultura, as sociedades indígenas souberam inventar um meio de neutralizar a violência da autoridade política. Elas escolheram ser elas mesmas as fundadoras, mas de modo a não deixarem aparecer o poder senão como negatividade logo controlada: elas o instituem segundo sua essência (a negação da cultura), mas justamente para lhe negarem toda potência efetiva. […] A mesma operação que instaura a esfera política proíbe o seu desdobramento: é assim que a cultura utiliza contra o poder a própria astúcia da natureza; é por isto que se nomeia chefe o homem no qual se rompe a troca de mulheres, palavras e bens” (1962: 40-41). Richir é de opinião que, desta forma, as sociedades primitivas mantêm o domínio apenas sobre um simulacro da natureza: “O que é o poder? […] [É] o princípio incontrolável de caos e de desagregação do social, negado ou interdito. Mas sua diferença essencial com relação à natureza constitui em que o poder é colocado pela cultura como uma quase-exterioridade para ser negado como ressurgimento da natureza, ou melhor, o poder é ativamente posto em cena pela cultura como o lugar de uma quase-natureza onde se rompe a troca, quer dizer, como lugar de uma quase-natureza identificada pela cultura e no interior da própria cultura. Assim, o poder constitui-se, como lugar onde se

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inibe suas virtuais ameaças, impedindo que o líder se decalque como um núcleo pesado que paire sobre os demais membros da comunidade (Clastres 1962: 38 e Richir in Abensour 1987: 63). Na verdade, o chefe passa a dever ao grupo e permanecerá na chefia enquanto persistir na dívida (Clastres 1976c: 141): sua “generosidade” constitui mais do que uma obrigação: uma eterna – e voluntária? - servidão (Clastres 1962: 28). Nenhuma conjunção aqui entre chefia e autoridade (Clastres 1976b: 118): o chefe não comanda, acata o que o grupo determina (Clastres 1972: 81, 1974a: 176, 1976a: 106 e 1976c: 141) e, procedendo assim, nada mais faz do que atender a si mesmo. A vontade do grupo constitui seu desejo; nenhuma externalidade a separar as duas, ambas reflexos da mesma Lei ancestral. A pena para os recalcitrantes é o abandono. Ou pior, a morte: destino eventual do líder que, caprichosamente, tenta fazer com que o grupo assuma, como seus, anseios apenas individuais (Clastres 1976b: 120; Gauchet 1977a: 59). As arengas cotidianas do líder limitam-se a relembrar aquilo que todos sabem – que nenhum de nós criou a Lei que a todos submete, que nenhum de nós detém o monopólio da palavra legítima e que ninguém vai tentar impô-la pela violência: sou Jyvukugi e “eis por que eu falo, faço o que vocês querem, pois a lei do grupo é aquela do meu desejo; vocês desejam saber quem sou eu: eu falo, me escutam, eu sou o chefe” (Clastres 1972: 80). Já agora sem maiores sutilezas, o chefe é submetido pelo grupo à mais estrita vigilância para manter-se na linha e suas palavras terminarão tão ricas de sentido e tão doces, porque tão vazias de autoridade (Gauchet 1977a: 59). A “força centrípeta” da

rompe a troca, como uma espécie de imagem instituída da natureza, imediatamente neutralizada no ato de sua instituição. Ora, o que mais é uma imagem instituída da natureza senão um simulacro da natureza? (64, grifos do autor) “[S]e as sociedades sem Estado são, de fato, sociedades contra o Estado, é porque o Estado, de fato, já aparece nelas, mas somente como natureza, isto é, como princípio de dissolução da cultura em geral, como iminência do caos puro e simples, destinado a permanecer apenas como iminência na medida em que esta iminência surge como um simulacro da natureza” (66, grifos do autor). Mais adiante Richir continua, em indicação de que entende que Clastres terá sido capaz de privilegiar os pontos de vista do indígena, os do civilizado e os erros de um sobre o outro: “O que aparece aos selvagens como iminência da natureza nos parece a nós como iminência do Estado, do poder coercitivo, da sociedade, portanto […]. Em resumo, o que os selvagens apreendem como o caos (o Estado), nós apreendemos como a sociedade e o que vemos como o caos (a sociedade sem Estado), os selvagens vêem como a sociedade. […] Ao nosso etnocentrismo, responde, como em eco invertido – invertido de acordo com a estrutura de um quiasma -, o etnocentrismo dos selvagens, com as ilusões recíprocas assim engendradas: vemos sociedade onde os selvagens vêem natureza e inversamente, ainda que estejamos a ver o mesmo […], o poder […]”.(67, grifo do autor).

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chefia – já um Estado… - é destilada pela operação das “forças centrífugas” características dos mecanismos sociais primitivos – já os conhecemos: a guerra e a economia, fundamentalmente – de maneira a fazer com que o poder seja exatamente aquilo que o grupo quer que ele seja – nada, e ainda assim continue a existir (Clastres 1962: 39). “[A] recusa da relação de poder, a recusa em obedecer […] [são] o efeito, no nível individual, do funcionamento de máquinas sociais, o resultado de uma ação e de uma decisão coletivas” – ensina Clastres (1976b: 118). Tais mecanismos centrífugos combinam-se, portanto, às figuras subjetivas adequadas – cujos “maus desejos” serão devidamente reprimidos: no “líder” selvagem, o de comandar; em seus companheiros, o de submeter-se (Idem: 119)21 –, de modo a fazer funcionar a política selvagem, que eternizará na dívida o chefe – cujas propriedades, penosamente produzidas, o grupo pilha sem falsos pudores, enquanto, gentil, oportuna e nada gratuitamente, lhe cede estes bens tão preciosos: as mulheres -, rendendo-o à evidência de que é ele, sempre, que se sujeita ao grupo (Clastres 1976a: 108). Impede-se, deste modo, que se torne predominante um poder que já está lá, presente na aparente ausência. “[As sociedades primitivas] não eliminam pura e simplesmente delas a dimensão do poder” – escreve Gauchet.. “Não fazem como se o poder não existisse. Ao contrário, colocam um ‘chefe’, um indivíduo formalmente distinto dos demais, no lugar que poderia ser aquele de alguém que dá ordens, enuncia regras, detém a força. […] [C]olocam-no lá para marcar […] que o lugar permanece vazio” (1977a: 59-60). Conjurar é preceder (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 121) e, se as sociedades primitivas rejeitam o Estado, é porque ele já está lá (Gauchet 1977a: 60): “sim” – concede Clastres – “o Estado existe nas sociedades primitivas” (in Carrilho 1976: 76)22.

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Uma vez mais, o desejo deixa evidente o quanto tem de político. Há, assim, algo de gratuito na crítica que Descola faz a Clastres: “Quer dizer que o poder é totalmente ausente destas sociedades, seja porque não possui o suporte institucional adequado, seja porque tal suporte, quando existe, seria deliberadamente privado dos meios de se exercer? Segundo Clastres, as ‘sociedades indígenas’ tiveram a intuição de que ‘o poder é em sua essência coerção’ e foi esta intuição original que as conduziu a pôr em cena o poder político como ‘uma negatividade logo controlada’ porque destituída de seus atributos coercitivos. Infelizmente, não sou suficientemente familiarizado com o inconsciente coletivo das sociedades ameríndias para julgar, nem filósofo o suficiente para preferir a dedução transcendental à empírica” (1988: 822). Será que não mesmo? “A maior parte das sociedades ameríndias experimentam cotidianamente um poder possivelmente mais imaginário e, no entanto, menos abstrato do que a negação da autoridade política pela chefia impotente. Trata-se do poder supremo que se arrogam os déspotas de 22

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Quanto mais os arqueólogos escavam, mais descobrem Estado. “[O] Estado sempre existiu, e muito perfeito, muito formado” – asseguram Deleuze e Guattari (1980, Vol. 5: 23). É por não raciocinar em termos de virtual-real que Clastres não vê o que não está ali aparente e, no entanto, não deixa de atuar: o Estado. Por isto, hesita e, como que tomado por um pudor – quando a terra prometida parecia logo ali adiante? -, deixa-se emboscar na peregrinação em busca de um “mito de origem” do Estado, que o faz fabular em torno das motivações demográficas que teriam permitido aos profetas tupiguaranis realizarem o “programa” dos chefes e unirem multidões inteiras atrás de si na romaria em direção à Terra sem Mal (1974a: 185-186). Termina, assim, traindo seu projeto de manter-se infenso aos raciocínios de inspiração evolucionista e é sim certo evolucionismo que se insinuará aqui e ali em sua argumentação, facultando-lhe inclusive a organização de uma tipologia, cujo binarismo parece apenas reeditar as mesmas e viciadas oposições tão ao gosto de certa antropologia (dom e mercadoria, status e contrato, solidariedade mecânica e orgânica…): “Existem por um lado as sociedades primitivas, ou sociedades sem Estado; e, por outro lado, as sociedades com Estado. É a presença ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplas formas) que fornece a toda sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade entre as sociedades. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagens e civilizados e traçou uma indelével linha de separação além da qual tudo mudou, pois o tempo se torna História” (170, grifo do autor). Não mais um evolucionismo de contigüidade, decerto, em que invenções e avanços vão paulatinamente acumulando-se e sobrepondo-se uns aos outros ou, tão a reboque de certo marxismo, em que as contradições de classe, desenvolvendo-se, conspiram pela realização da História, mas, ainda assim, um evolucionismo: de ruptura (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 22; Gauchet 1977a: 56; Abensour in Abensour 1987: garantir a vida e impor a morte, o poder de dizer o que foi e o que será; numa palavra, o poder com que são creditados os xamãs” (822-823). Na verdade, Descola não leva suficientemente a sério a proposta da “revolução copernicana” de Clastres e insiste em pensar a política selvagem em função do que ele identifica como sendo suas ausências (o que, no limite, levará a uma negação da política propriamente dita): “Eu seria antes portanto minimalista na definição do político, propondo que a utilização desta categoria é inútil para dar conta da estrutura e do funcionamento de certas sociedades que fazem economia de um órgão efetivo de gestão dos negócios públicos” (825).

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15-16; Clastres 1976c: 140). Ainda mais. A presença diuturnamente conjurada do Estado nas sociedades primitivas - além de emprestar inteligibilidade ao funcionamento da politeia selvagem e aos mecanismos sociais primitivos e às figuras subjetivas específicas por meio das quais ela opera - permite-nos ver o não-Estado onde ele aparentemente não está e, ainda assim, atua: entre nós. Viabiliza-se, desta maneira, uma antropologia que se entende como diálogo, como ponte – e de via dupla - lançada entre nossas sociedades e aquelas de “antes da partilha” (Clastres 1968b: 37). Exposta a absoluta vulnerabilidade dos dualismos ontológicos excludentes – que obriga a que as sociedades ou tenham Estado ou não o tenham, que sua política ou se defina como segmentária ou como centralizada, que sejamos ou homens ou jaguares e que os bororo sejam ou bororo ou araras, descartadas aprioristica e prematuramente as férteis possibilidades de misturas e justaposições -, novos horizontes descortinam-se para a análise, em indicação de que “fecundantes corrupções” podem – desde que pensemos contra a corrente - revelar potencialidades23 até então insuspeitas em “idiomas” antes tomados no radical isolamento de seu monadismo. Herzfeld concorda: “Porque se acostumaram a pensar em termos de uma dualidade que separa sociedades acéfalas daquelas organizadas de forma piramidal, os antropólogos freqüentemente dão pouca atenção ao caráter necessariamente segmentar de virtualmente todos os Estados-nação” (1992: 63). Procurará ele, então, investigar princípios de segmentaridade que, quase que insolentemente, continuam a atuar e – por mais uma destas ironias – logo no berço da polis: a Grécia e a dos dias de hoje. “Parecenos […] difícil dizer que as sociedades com Estado, ou mesmo nossos Estados modernos, sejam menos segmentários. A oposição clássica entre o segmentário e o centralizado afigura-se pouco pertinente” – anuem Deleuze e Guattari (1980, Vol. 3: 85). Um pouco adiante, explicam-se: “Existem já nas sociedades primitivas tantos centros de poder quanto nas sociedades com Estado; ou, se preferimos, existem ainda nas sociedades com Estado tantos centros de poder quanto nas primitivas.” (Idem: 87, grifo dos autores). Para arrematar, finalmente: “As sociedades primitivas têm núcleos de dureza, de arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversamente, nossas 23

Vemos, assim, que “potencial” , “abstrato” e “virtual” não se opõem ao real (Deleuze e Guattari 1980, Vol. 2: 43 e 100-101) e que transitamos aqui por terreno que se afasta do definido pelo par virtual/atual de Lévi-Strauss.

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sociedades continuam banhando num tecido flexível sem o qual os segmentos duros não vingariam” (Idem: 90). De um lado e de outro, os processos maquínicos operarão por meio de mecanismos sociais e de figuras subjetivas específicas sem nenhuma externalidade entre uns e outras: por exemplo e respectivamente, a guerra, como um modo-de-ser (Adler in Abensour 1987: 98) e o “chefe”, num caso, e a “sociedade” (societas por oposição a civitas) ou o Estado e o “indivíduo” – o pai, o professor primário, o coronel, o patrão -, no outro. Há, assim, um certo estado de Estado, constante e presente por toda parte, e um certo estado de guerra, também ele constante e presente por toda parte (o que, evidentemente, não significa batalha constante24 (Clastres 1977c: 230; Deleuze e Guattari 1980, Vol. 5: 100), um ou outro inibidos ou potencializados, a depender da forma como se dá a operação dos mecanismos sociais e das figuras subjetivas por meio dos quais atuam. Num e noutro estados, entretanto, algo sempre ficará de fora, reclamando e impondo presença apesar da ausência aparente. São mesmo insolentes os tais moleques de Bogotá (Meunier 1977)25.

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Por pura ironia, será Hobbes que nos chamará a atenção para o fato: “Porque Guerra não consiste apenas em batalhas ou no ato de lutar, mas no período de tempo em que o desejo de rivalizar por meio de batalhas é suficientemente conhecido. […] Portanto, a natureza da Guerra não consiste em lutas reais apenas, mas na conhecida disposição em a elas recorrer durante todo o tempo em que não houver asseguramento do contrário” (citado em Sahlins 1972: 172) 25 Sobre as galladas, “formas próprias” – anti-Estado, diríamos nós – de organização dos “bandos” de moleques de Bogotá, ver MEUNIER 1977.

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4. Rizomas: o “Contra” em Pierre Clastres e a Antropologia Menor Rizoma – Bot. Caule radiciforme e armazenador (…), que é geralmente subterrâneo, mas pode ser aéreo. Caracteriza-se não só pelas reservas, mas também pela presença de escamas e de gemas, sendo a terminal bem desenvolvida: comumente apresenta nós, e na época da floração exibe um escapo florífero. Gema – Bot. Pequena protuberância, lateral ou apical, em caule ou em ramo, e que dá origem a folha, flor, outro ramo ou caule, ou a um novo indivíduo; botão, borbulha, brotadura, brotamento, broto, gomo, olho, rebento, renovo. Aurélio XXI

There is no such a thing as society. There are individual men and women and there are families. Margaret Thatcher  

  Madness in great ones must not unwatched go. William Shakespeare

Algumas anedotas devem ser levadas a sério. Ao tentar desqualificar os argumentos de Marilyn Strathern e Christina Toren, suas opositoras num debate sobre a obsolescência teórica da concepção de sociedade, no qual ambas advogavam sua 80

substituição pela de socialidade, Jonathan Spencer vale-se da ironia: “‘A Socialidade contra o Estado’, de alguma forma, perde a força do título original de Clastres” (in Ingold 1996: 80). Será mesmo assim? Na realidade, em duas oportunidades, o próprio Clastres utiliza o termo “socialidade”. Ainda que, no que se refere à relação entre dois autores, as idéias de prenúncio e de precedência sejam, no mínimo, complicadas (e se conjurar é preceder talvez preceder seja, em certo sentido, também conjurar…) e que não queiramos ver em Clastres, de modo algum, uma Strathern em forma embrionária ou fetal – démarche ademais totalmente descabida -, o emprego da palavra “socialidade” nos trechos transcritos a seguir é suficientemente instigante para justificar as respectivas citações: “Não é a troca que é primeira, é a guerra, inscrita no modo de funcionamento da sociedade primitiva. A guerra implica a aliança, a aliança suscita a troca (entendida não como diferença do homem e do animal, como passagem da natureza à cultura mas, é claro, como desdobramento da socialidade da sociedade primitiva, como livre jogo de seu ser político). É através da guerra que se pode compreender a troca e não o inverso” (1977b: 200, grifo meu). “Levando a sério, por um lado, as sociedades primitivas e, por outro, o discurso etnológico sobre essas sociedades, eu me pergunto por que são sem Estado, por que o poder não se encontra separado do corpo social. Convenço-me pouco a pouco de que esta não-separação do poder, de que esta não-divisão do ser social não são devidas a um estado fetal ou embrionário das sociedades primitivas, a um inacabamento ou incompletude, mas dizem respeito a um ato sociológico, a uma instituição da socialidade como recusa da divisão, como recusa da dominação. Se as sociedades primitivas são sem Estado, é porque são contra o Estado” (1977a: 153-154, grifo meu).

Acabamos de verificar como Clastres promove certa dessubstancialização do Estado, que não é “o Eliseu, a Casa Branca, o Kremlin” (1978: 166), mas um “acionamento efetivo da relação de poder” (1976b: 115). Evidentemente, ele procederá da mesma maneira com o anti-Estado e com a “sociedade” (por assim dizer), ambos também vistos como acionamentos efetivos de relações, como máquinas que funcionam – “isso trabalha” -, e funcionam precisamente por meio das figuras subjetivas que 81

produzem e que as põem em operação: os chefes, eternamente imersos na dívida; os guerreiros, em eterna busca por guerras que lhe confiram prestígio; os maridos, eternamente constrangidos a compartilhar as respectivas mulheres com outros consortes; os caçadores, eternamente obrigados a doar as presas que estão proibidos de consumir; os homens e as mulheres, cujos corpos – eternamente marcados pelos rituais de iniciação – lhes rendem à evidência da eterna lei do grupo – “vocês, cujas peles trazem as idênticas marcas, não valem mais do que os outros” – e lhes confirmam que o eterno retorno não é (demasiadamente) humano: é-se menino, e só depois rapaz, que seduz as mulheres, e só depois adulto, que tem uma esposa. Tais figuras tampouco são erguidas à condição de tipos ideais e enlevadas a imaterial céu teórico, de onde contemplariam, abstratas, nossa demasiada humanidade. Têm nomes, estão vivas, têm paixões e reações de viventes (Goldman e Lima 2001: 308): é Jyvukugi, que, ciente de suas responsabilidades como chefe dos Aché, se deixa convencer pelo seu pai e volta a Arroyo Moroti, de onde havia se retirado por não querer compartilhar sua mulher, e se submete enfim ao casamento poliândrico (Clastres 1972: 155); é Fusiwe, que, no encalço completamente desmesurado da glória reconhecida ao guerreiro, enfrenta sozinho, tal qual bravo e patético exército, uma tribo inimiga (1977c: 235); é Kybwyragi, que, compelido já pelos prazeres do sexo, solicita a seu pai que o submeta à perfuração dos lábios, de modo a facultar-lhe o acesso às jovens, iniciando assim processo que só terminará anos mais tarde, com o jaycha bowo, a escarificação das costas, que fará do rapaz um adulto e lhe impedirá o trânsito livre às mulheres, reservando-lhe uma esposa (1972: 120 et passim); é Chachugi, que, tendo suas primeiras regras, é flagelada com vergas de tapir, em ritual que, contudo, não se completará a contento (Idem: 133 et passim). Tampouco existem aí propriamente indivíduos, esta “falácia da concretude deslocada”, para utilizar vocabulário caro a Bateson. O “contra” em Clastres – que, rizomaticamente distribuído em sua obra, lhe assalta constantemente os eventuais núcleos de dureza, impedindo que a antropologia logre esvaziar (uma vez mais!) o potencial desestabilizador dos “costumes, crânios, escavações e léxicos” (Geertz, citado em Goldman 1994: 6), que a etnografia insiste em trazer à tona – jamais lhe autorizou estatuir a existência de um “indivíduo” contra a “sociedade”. Ao estabelecer a fórmula “a sociedade contra o Estado” – que, mais propriamente, queremos crer, deveria ser “a 82

socialidade contra o Estado” -, Clastres raciocina não em termos de entidades abstratas – “a sociedade”, “o Estado” -, mas, tanto de um lado, quanto de outro, no sentido de máquinas sociais sem nenhuma externalidade com as formas de subjetivação que engendram e por meio das quais operam26. De fato, presencia-se em alguns dos ensaios do Arqueologia da Violência e especialmente em sua etnografia sobre os Guayaki (Clastres 1972) o funcionamento de máquinas sociais produzindo chefes, guerreiros, homens,

mulheres,

homossexuais,

nem-homens-nem-mulheres-nem-homossexuais,

através dos quais aquelas máquinas operarão. Todos – chefes, guerreiros, homens, mulheres, homossexuais, nem-homens-nem-mulheres-nem-homossexuais – dotados de agency – sem, nem por isto, se constituírem em indivíduos manipuladores – e de dividualities27: é Chachugi, que se apavora diante do ritual de iniciação (Idem: 140); é Pichugi, que dá à luz um menino e observa as subseqüentes regras de purificação necessárias (Idem: 11 et passim); é Jyvukugi que, como chefe, vai de tapy em tapy contar a seus companheiros como se novidade fora aquilo de que eles, entretanto, já tinham conhecimento (Idem: 78-80); é Krembegi, o kyrypy-meno, o ânus-fazer-amor, que, imagem invertida da sociedade guayaki, lhe fortalece a convicção a respeito da respectiva ordem (1966: 94 et passim e 1972: 205 et passim); é Chachubutawachugi, que, vítima de pane e, portanto, incapaz de caçar, teima em permanecer no universo da masculinidade, ridícula figura porque improvável habitante de um terceiro lugar, entre o masculino e o feminino, que, ao menos socialmente, não existe (1966: 94 et passim e 1972: 213 et passim). Etnograficamente – pois “isso trabalha”28 -, Clastres enfrenta algumas das 26

Sob este aspecto, parece-nos possível uma aproximação do exercício de Clastres com o de Foucault. Ao ocupar-se de “sujeitos” em diferentes esferas e de práticas sociais variadas – loucura, delinqüência, sexualidade, etc -, Foucault não entende as subjetividades como simples efeitos passivos do funcionamento de mecanismos situados sobre outros planos ou como reflexo de algo superior, mas como espaço de elaboração de forças extrínsecas, que se projetam, ao mesmo tempo, para fora. Ver Goldman 1996b. 27 Evidentemente, não há aí nenhuma reedição do duplo durkheimiano. Antes, emprega-se a palavra no sentido que lhe empresta Strathern (1988: 13), como termos que podem ser divididos, decompostos nas relações que lhes são constitutivas, conforme veremos a seguir. 28 A frase inspira-se em Deleuze e Guattari, também eles interessados em acompanhar de que maneira as diversas máquinas sociais, em função dos agenciamentos que operam, produzirão formas de subjetivação específicas – veja-se, por exemplo, o capítulo “Selvagens, Bárbaros e Civilizados” de O Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia (1972). Diferentemente da sobrecodificação dos bárbaros e da axiomatização do capitalismo, a máquina primitiva, defendem os dois autores, perseguirá obsessivamente a codificação dos fluxos, tentando impedir, de todas as formas, que se lhe escapem, e para tal lançará mão de formas extremas de crueldade, deixando sua marca indelével sobre o corpo de seus membros, exatamente como a

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dificuldades com que se depara a antropologia. Com efeito, em nome de entidades metafísicas – como o “indivíduo” e a “sociedade”, que, apesar de “falácias da concretude deslocada”, parecem gozar de existência supostamente material -, costuma-se obliterar, com freqüência, aquilo que é verdadeiramente constitutivo: as relações. Como resultado, os “indivíduos” passam a ser “moldados” pela “sociedade” – como queriam alguns adeptos da Escola de Cultura e Personalidade -; ou a “sociedade” torna-se superindivíduo, funcionando como organismo ou sendo sujeito de direitos – como sugerem alguns funcionalistas e estrutural-funcionalistas -; e, mesmo quando se contempla certo “holismo”, termina sendo por oposição e rebatendo-se no “individualismo” – como os dumontianos entenderão tão bem. O desafio parece, pois, ser o de construir modelos de intencionalidade sem sujeitos; o de sair do individualismo metodológico sem cair em certo holismo transcendental e vice-versa, e, finalmente, o de pensar relação social mesmo na ausência de sociedade. Etnograficamente – porque “isso continua a trabalhar” também na Melanésia -, Marilyn Strathern procura encontrar solução para estas dificuldades. E solução engenhosa. O mundo perceptível que Strathern nos apresenta em The Gender of the Gift (1988) é constituído de signos e funciona como veículo de significados, originados não do próprio mundo perceptível, mas do código ou sistema – culturalmente produzido e reproduzido – que o engloba29. Nas palavras de Gell: “Os objetos e corpos materiais não são coisas-em-si, isoláveis, mas existem apenas na medida em que carregam, ou encerram, significado, significado que deriva do código. Por causa disto, não têm, por si sós, identidades fixas ou essências como entidades reais, mas podem assumir identidades ilimitadas de acordo com sua articulação cambiante com o código” (s/d: 3). A fim de certificar como coisas, corpos e pessoas “carregam” significados, cabe ao analista acompanhar as relações que lhes são internas. Haverá aí, evidentemente, certo privilégio etnografia de Clastres ilustra e conforme indicaremos a seguir. Enquanto a axiomatização capitalista, em função mesmo de sua imanência, afasta continuamente para mais longe os limites que lhe garantem a sobrevivência – criando novos axiomas a cada vez que um fluxo oferece resistência em submeter-se -, a máquina primitiva, crêem Deleuze e Guattari, não tem opção: se não domestica os fluxos e os resgata para si, ela explode. Não é o que anuncia Chachugi entre os Guayaki, quando não aceita sujeitar-se às dores do ritual de iniciação? (Clastres 1972: 140) Como prevêem Deleuze e Guattari, a “morte” aí, que esgarçará a máquina, levando-a à exaustão, virá de fora. Durante toda uma noite, o chefe dos Guayaki cantará a sua dor: “Perto dos beeru [homens brancos], os Aché cessaram de ser Aché. Que tristeza!” (Idem: 140) 29 A exposição da argumentação de Strathern que se segue baseia-se principalmente na apresentação, bastante didática, que Alfred Gell faz da autora (s/d).

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analítico das relações, que conectam os termos, os quais, insuficientes por si sós, ganham significado precisamente a partir das relações que lhes são constitutivas: “O mundo social é permeado por relações que parecem estar […] relacionando relata (ou termos), identificáveis somente por e através das próprias relações, como ocorre com mães e filhos. A idéia que temos de entender é que as relações no mundo social não ocorrem entre entidades visíveis, como mães e filhos, mas entre termos dentro do código. As mães e filhos reais são vistos como significantes, encerrando relações entre mães-como-termos e filhos-como-termos. Termos são, em outras palavras, entidades ideais e não aparências perceptíveis dos objetos no mundo físico” (Idem: 5). Não existe, assim, a mãe-an-sich nem o filho-an-sich, pois mãe e filho são termos, constituídos de relações (entre mães e filhos e outras) das quais participam. Só se tem acesso a essas relações constitutivas a partir dos signos-veículos em que se traduzam no mundo sensível. Termos e relações são impalpáveis, ideais, portanto, apenas perceptíveis a partir de algo palpável – aparências, sejam objetos, sejam corpos, sejam pessoas – que acuse sua presença. O que significa que cada um de nós é múltiplo, objetivação de muitas relações – “metáforas mistas”, dirá Gell (Idem: 17) -, algumas eclipsadas, chamadas, contudo, a funcionar em momentos específicos, porque continuam a existir apesar da (aparente) ausência: a visão do sol eclipsado pela lua permanece visão do sol, ainda que tão-somente a lua apareça (Idem: 18). Somos “pessoas”, com as redes de “socialidade”30 em que estamos inseridos atuando como constitutivas de nós mesmos (Idem: 11-12). Verdadeiros fractais, pedaços de curva, que reproduzem, a cada trecho, o todo da curva (Idem: 12). Entendem-se, assim, as dificuldades de Strathern com as dicotomias redutoras, do tipo “indivíduo” e “sociedade” (1988: 12). “Sociedade” e sua perigosa excrescência, o “indíviduo”, pensados como categorias externas uma à outra, obliteram aquilo que é verdadeiramente constitutivo das pessoas: as relações (Idem: 13). Abre-se mão do padrão que conecta – as relações – em nome de entidades metafísicas, como 30

Conforme se repara, Strathern emprega o termo ‘socialidade’ em sentido muito diferente daquele utilizado por determinadas correntes da etnologia amazônica, que tendem a interpretá-lo mais na direção de ‘sociabilidade’, como reflexo das dimensões morais da vida social. Ver a entrevista concedida por Strathern a Eduardo Viveiros de Castro e Carlos Fausto (Strathern 1999: 169).

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“indivíduo”

e “sociedade”, que, entretanto, passam a ter existência alegadamente

concreta. Afirma Strathern: “[E]nquanto o conceito de ‘sociedade’ serviu como um guia para se pensarem a organização social, a vida coletiva e as relações, ele tinha uma razão de ser. De fato, deu origem a derivativos úteis – o epíteto ‘social’, a concepção de ‘socialidade’ como a matriz relacional que constitui a vida das pessoas […]. Não objetamos a nenhum destes derivativos, pois todos referem-se à significância das relações nas quais as pessoas existem. Nossa objeção é à distorção que surge quando o conceito de sociedade deixa de assinalar estes fatos relacionais e passa a obliterá-los. Ao invés de a socialidade ser vista como intrínseca à definição da pessoa, a ‘sociedade’ é estabelecida contra o ‘indivíduo’. E por causa da concretude dos indivíduos em nossa visão cultural de mundo, é difícil libertar-se da assunção de que o indivíduo tenha uma existência logicamente anterior” (in Ingold 1996: 64). E quem precisará de “indivíduo” e “sociedade”, de “partes” e “todo” em detrimento das relações? “[Não há] porções e pedaços que […] precisem ser reunidos novamente, em benefício de uma cultura a ser restaurada ou de uma sociedade a ser concebida” (Strathern 1992: 99). Em sua obra, Clastres multiplica – em “progressão rizomática”, por assim dizer – os exemplos etnográficos de como a “objetividade” da socialidade pode operar por meio da “subjetividade” das pessoas-em-interação31. “Notemos […] que a interrogação do autor é dupla” – observam Goldman e Lima. “Trata-se, por um lado, da sociedade enquanto máquina e, por outro, daquilo que faz a máquina funcionar concretamente e consiste, ao mesmo tempo, em efeito de sua existência e condição de seu funcionamento. […] Pois, como Clastres a encara [a idéia da ‘sociedade contra o Estado’], ora como propriedade das máquinas sociais primitivas, ora sob o ângulo das 31

Com efeito, resta saber até que ponto o esquema proposto por Strathern pode sustentar-se em outras outras áreas etnográficas, mesmo na eventual ausência daquilo que Gell lista como as duas condições básicas para que o “sistema M” (M significando Marilyn Strathern ou Melanésia) possa funcionar: que todas as relações entre os termos sejam relações de troca e que todos os termos das relações possuam um gênero (s/d: 5). Contudo, o próprio Gell parece acreditar em sua aplicabilidade a outras regiões: “Incidentalmente, a Melanésia não é um lugar real, os Estados reais da Papua Nova Guiné, as Ilhas Salomão, Vanuatu, etc. mas uma maneira de falar. É importante sublinhar isto porque a utilidade metodológica da técnica interpretativa de Strathern não se restringe à Melanésia, em oposição à Àfrica, à América, à Ásia ou a qualquer outro lugar” (Idem: 4) e “[…] o sistema M é provavelmente muito esclarecedor em relação a material não-melanésio na medida em que é tomado como uma forma de imaginar-se como o mundo apareceria se considerado desde um ponto-de-vista contra-intuitivo” (Idem: 19).

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figuras subjetivas que as acompanham, corremos o risco de perder de vista que estamos nos dois casos diante da mesma coisa” (2001: 306-308). Nas palavras de Clastres: “[A] recusa da relação de poder, a recusa de obedecer não são absolutamente, como acreditam os missionários e os viajantes, um traço do caráter dos Selvagens, mas o efeito, no nível individual, do funcionamento de máquinas sociais, o resultado de uma ação e de uma decisão coletivas” (Clastres 1976b: 118). Já sabemos como um chefe se faz: pelo suor de seu próprio rosto, o que, pela “generosidade”, por assim dizer, a que se vê forçado, lhe permite saldar para com o grupo, e nunca por completo, sua eterna dívida, necessariamente uma relação. Ele permanecerá na chefia na medida em que for capaz de perseverar na dívida. Nenhuma externalidade, pois, separa o chefe de seu grupo: a dívida põe a ambos em relação e define-lhes os respectivos lugares. Enquanto se alimenta no chefe certo desejo de prestígio – cuidando-se, evidentemente, de saciá-lo -, proíbe-se-lhe, num só tempo, o acesso a certo desejo de poder, devidamente repreendido (Clastres 1976c: 139). “[N]ão há aqui desejo de poder: assim como o funcionamento da máquina social primitiva impede objetivamente a irrupção do Estado, ele reprime o mau desejo. O desejo de poder aí não aparece pelas mesmas operações que fazem o Estado não existir” – escrevem Goldman e Lima (2001: 308). Tanto o chefe quanto seus “liderados” terminam satisfeitos, só que em seu bom desejo32: “Em troca de sua generosidade, o que o big-man obtém? Não a realização de seu desejo de poder, mas a frágil satisfação de seu ponto de honra, não a capacidade de comandar, mas o inocente gozo de uma glória cuja manutenção o esgota. Ele trabalha em sentido próprio para a glória. A sociedade a concede de bom grado, visto que está ocupada em saborear os frutos da labuta de seu chefe. Todo bajulador vive às custas daquele que o escuta” (1976c: 139). Por esta prática, realiza-se uma intenção que é propriamente política, e política já em sua inteireza. Todas as análises de Clastres concorrerão para este ponto, sempre em busca das máquinas sociais e das figuras subjetivas que boicotarão 32

Pela exploração mesmo a que se submete o chefe, vemos que o “bom desejo” nada tem a ver com a imagem idílica do bom selvagem e que não são considerações saudosistas a respeito de uma utopia igualitária, primitiva e primeva que estão a conduzir a démarche de Clastres.

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cotidianamente eventuais veleidades hierárquicas. “Sua tese geral se fundava sobre análises convergentes” – concorda Lefort, para enumerá-las a seguir: “[A] da chefia que revela a interdição feita àquele que foi instalado numa posição preeminente de exercer o comando; a do ritual de iniciação, no qual os velhos imprimem sobre os corpos dos adolescentes, por meios que se assemelham aparentemente à tortura, a lei da comunidade – uma lei da qual eles saberão para sempre que ela impõe a cada um permanecer igual aos demais; […] ou a das guerras incessantes às quais se dedicam as tribos selvagens, cuja função parece ser a de manter a integridade de cada uma em função da luta contra o estrangeiro ou, de forma mais geral, a de preservar a configuração de um mundo diversificado, rebelde a qualquer intrusão de uma potência conciliadora e unificadora. Os fatos que vários etnólogos haviam já descrito sem relacioná-los uns aos outros, Clastres os reúne e esclarece, demonstrando, por cima da singularidade dos comportamentos e das instituições, uma intenção comum a todas as sociedades primitivas, uma intenção política” (in Abensour 1987: 190). De fato, a mesma “ordem preside a disposição das linhas de força desta geografia” (Clastres 1972: 212): seja na forma como um guerreiro se faz; como um caçador se faz; como um marido se faz, e, finalmente, como homens e mulheres adultos se fazem. Como se faz um guerreiro? Pelo seu próprio sangue, que, se não em situação de guerra e frente a outros guerreiros, jorrará, no entanto, em vão (e, ironicamente, ao menos para o próprio guerreiro, mesmo em situação de guerra e frente a outros guerreiros, jorrará necessariamente em vão, conforme veremos a seguir). Com efeito, do mesmo modo que não há guerra sem guerreiros, não haverá guerreiros sem guerras: “o guerreiro é antes de tudo sua paixão pela guerra” (Clastres 1977c: 219). Os guerreiros fazem-se na e pela guerra – cujo estado permanente preserva a lógica do centrífugo das sociedades indígenas, mesmo que as batalhas de fato não sejam constantes – e nas e pelas relações com os outros guerreiros. O desejo de prestígio do guerreiro, perseguido individualisticamente em competição consigo mesmo e com os demais (em mais uma indicação de que o individualismo não exige a abstração do indivíduo tomado em radical isolamento, antes pelo contrário), vai levá-lo a aspirar, no limite, a morte gloriosa. Impede-se, assim, e no mesmo golpe, que, por um lado, o grupo dos guerreiros – atravessado sempre por discórdias intestinas, porque a glória de cada um só se faz à 88

custa de e em comparação com a dos demais – se afirme como facção que alimente o capricho de subordinar a sociedade, e, por outro, que um guerreiro, eventualmente mais valente, queira tornar-se chefe e tome para si o comando: a esta altura, ele já estará inapelavelmente morto (Clastres 1974a: 178-179). Tragado por uma inescapável “escalada da temeridade” (Clastres 1977c: 233), “ajustamento exato entre o mundo ético dos valores tribais e o ponto de honra individual do guerreiro” (Idem: 217), nosso duelista apenas levará a cabo sua sorte: submetendo-o a uma eterna “fuga para adiante” (Idem: 229) – cada conquista, se serve para nutrir seu prestígio, coloca-o à prova e constrange-o a outras façanhas, ainda mais audaciosas -, sua constante insatisfação condena-o de antemão. Clastres relata-nos o infortúnio dos guerreiros selvagens: “[O] guerreiro não é jamais um guerreiro, a não ser no infinito de sua tarefa, quando, realizando a proeza suprema, ganha a morte, juntamente com a glória absoluta. O guerreiro é, em seu ser, serpara-a-morte” (Idem: 237, grifos do autor). “[P]ara um Guayaki, não há alternativa possível para a função que lhe confia o grupo: um homem é por definição, por princípio e por vocação, um caçador” (Clastres 1972: 20). A atividade da caça – “suporte da comunidade e ponto de honra pessoal de cada homem” (Idem: 20-21) – e o tabu de comer da própria presa definem o caçador, convertendo-o necessariamente numa relação. Tudo concorrerá para fazer com que os jovens assumam, “como seu próprio desejo pessoal, a vontade coletiva do grupo” (Idem: 207): a aprendizagem do jyvõ, flechar, no decorrer de longos anos, pelas florestas, com seus pais; a iniciação que confirmará cada um deles na qualidade de caçador; a preferência das mulheres pelos bretete mais hábeis; os cantos noturnos dos homens que comemoram suas proezas de arqueiros (Idem: 206-207). Nenhuma externalidade separa aí, por um lado, o funcionamento, a “vontade”, por assim dizer, da máquina social, e, por outro, o desejo mais íntimo, a “vontade”, também por assim dizer, do homem. Exploração econômica dos caçadores pela sociedade, alienação tanto mais vil porque não percebida como tal? Clastres descarta as brontossáuricas críticas dos vulgarismos marxistas, até porque a caça jamais é vivida como uma corvéia: “Prisioneiros de um destino, talvez: mas aos olhos de quem? Os caçadores Aché, quanto a eles, vivem-no como liberdade” (Idem: 209). Constrangimento existirá, sim, na interdição, observada com todo rigor, de 89

consumir da própria presa, o que obriga à pepy, a troca. Um caçador passa, na verdade, sua vida a flechar para os outros, cujas caças ele consome; se não, cairá vítima de pane e os animais se lhe escaparão. Reafirma-se, assim, a igualdade de todos e indica-se a cada caçador o lugar que lhe é próprio. A relação negativa entre o caçador e o produto de sua própria caça coloca a todos na mesma posição e obriga à reciprocidade do dom da alimentação: todo caçador define-se, ao mesmo tempo, como doador e recebedor de carne (Clastres 1966: 99-100): “A disjunção do caçador e de sua caça funda a conjunção dos caçadores entre si, isto é, o contrato que rege a sociedade guayaki. […] Rejeitando para o lado da Natureza o contato direto entre o caçador e sua própria caça, o tabu alimentar se situa no coração mesmo da Cultura: entre o caçador e seu alimento, ele impõe a mediação dos outros caçadores. Vemos assim a troca da caça, que circunscreve em grande parte nos Guayaki o plano da vida econômica, transformar, por seu caráter obrigatório, cada caçador individual em uma relação” (Idem: 100, grifo do autor). Se pretendesse furtar-se à relação, que, na verdade, o define, o caçador devanearia, ao negar, em certo sentido, a natureza (e já não apenas a sua): se guardasse tudo para si, cairia vítima de pane e, impossibilitado em definitivo de flechar, terminaria irremediavelmente banido do mundo dos animais. Quem não mediatiza sua relação com a comida pela relação com outro caçador corre o risco de ver-se retirado do mundo natural, da mesma maneira que quem pretende subtrair-se à partilha de bens abandona o mundo social (Clastres 1972: 211): “Eis o fundamento de todo o saber dos Aché e a razão de sua submissão a esse saber: ele repousa sobre essa verdade, a de que uma fraternidade subterrânea alia o mundo e os homens e o que acontece com uns não fica sem eco no outro. Uma mesma ordem os rege, não se deve transgredi-la” (Idem: 211). Melhor, então, reservar os caprichos da imaginação para outros momentos. Impossibilitado de furtar-se à reciprocidade no plano das trocas de bens e mulheres – o tabu de consumir da própria caça, conforme já vimos, e o casamento poliândrico, conforme veremos logo a seguir, vão render-lhe à evidência de que ele se define, necessariamente, como uma relação -, já que isto ameaçaria o próprio grupo, o caçador devaneará e, no canto solitário que ecoa no meio da noite, a comemorar seus feitos, 90

imaginará ser possível evadir-se das obrigações que pesam sobre ele: na linguagem, o caçador aché encontrará o “truque inocente e profundo” (Clastres 1966: 107) que lhe permitirá renegar a troca, cuja abolição, no nível do intercâmbio de bens e mulheres, teria comprometido a viabilidade do grupo. Mesmo neste momento de radical afirmação da individualidade do caçador por meio da máquina-canto – “canto, logo existo” (Idem: 108) -, a onipresente existência do homem como relação vai impor-se: os cantos rememoram e comemoram os feitos de cada caçador e é a competição entre eles que fixará seus conteúdos. Nesta descoberta da linguagem como não restrita aos limites da comunicação, Heidegger

e

Lacan

combinam-se

para

copernicamente

conspirar

contra

o

durkheimianismo e impelir a uma ampliação da problemática de Lévi-Strauss. Se certo sedimento lévi-straussiano resiste ao final, ele já se encontrará devidamente revisto pelo embate com a praxis: o texto a que fazemos referência aqui, “O Arco e o Cesto”, data de 1966, quando Clastres já havia feito trabalho de campo e se persistem as referências a trocas e torções da reciprocidade, tratam-se de trocas e torções da reciprocidade em operação e não refletindo, etéreas e cerebrinas, o funcionamento do esprit humano. Clastres escreve: “É pelo canto que ele [o caçador] chega à consciência de si mesmo como Eu e ao uso desde então legítimo desse pronome pessoal. […] Ora, é evidente que, se a linguagem, sob a forma do canto, se designa ao homem como o lugar verdadeiro de seu ser, não se trata mais da linguagem como arquétipo da troca, uma vez que é precisamente disso que se quer liberar. Em outros termos, o próprio modelo do universo da comunicação é também o meio de escapar dele. […] Talvez o canto dos caçadores aché não seja senão seu mito individual. Em todo o caso, o desejo secreto dos homens demonstra sua impossibilidade pelo fato de que só podem sonhálo e é apenas no espaço da linguagem que ele vem se realizar (Idem: 108 e 110) Presas e esposas guardarão marcada similitude estrutural: o acesso a umas e outras, para o caçador e o marido, respectivamente, exigirá a intervenção de um terceiro termo, outro caçador no primeiro caso, um

segundo consorte no segundo. O tabu

alimentar que proíbe o consumo da própria caça e o deficit em mulheres combinam-se e, em função das exigências paralelas que criam, constrangem os homens, convertendo-os numa relação. Desta forma, entre o homem e seu alimento, sob um aspecto, e sua esposa, 91

sob outro, se interporá outro homem e se criará o espaço que habitará o social. Curiosamente, se é a reciprocidade que permite num plano a instauração da sociedade, em outro é certa releitura e antecipação dela que garantem seu funcionamento efetivo: “Todo homem guayaki é, potencialmente, um tomador e um doador de esposa, pois, muito antes de compensar a mulher que ele terá recebido pela filha que ela lhe dará, ele deverá oferecer a outro homem sua própria esposa sem que se estabeleça uma reciprocidade impossível: antes de dar a filha, é preciso dar também a mãe” (Idem: 104). Precisamente isto compreende Jyvukugi, quando aceita retornar a Arroyo Moroti – de onde partira em protesto contra o affaire de sua mulher, Kimiragi, que havia tomado Kybwyragi por amante – e se curva a um casamento poliândrico (Clastres 1972: 155): “[Q]uando um celibatário entra em competição com um homem casado, em vez de deixar a situação estragar-se numa semiclandestinidade, que, inevitavelmente, acabaria por semear a desordem na sociedade e a jogar uns contra os outros os aliados e parentes respectivos dos dois rivais, em vez de correr então um risco a curto prazo mortal para a tribo, decide-se – a pressão da opinião pública ajudando – que o amante ‘secreto’ se tornará um ‘marido secundário’ da mulher que cobiça. A concorrência entre os homens é, desde então, suprimida, não há mais que esposos e a multiplicidade de desejos opostos resolve-se na unidade do casamento poliândrico” (Idem: 155). Loraux já havia nos ensinado que um irredutível princípio de identidade organiza a distinção entre os gêneros no caso dos índios de Clastres: só se é homem contra a mulher. “A é A, B é B. A e B são duas maneiras de ser um” – escreve. “Não há dois, portanto não existe terceira possibilidade. Aqui, não é secretamente que os índios vivem o Um, mas como a realidade mesmo do destino do homem” (in Abensour 1987: 169). A oposição entre homens e mulheres parece, assim, organizar – estruturalmente, digamos – o espaço, o tempo, as atividades e a identificação com os objetos entre os Guayaki (Clastres 1966: 89 e 91). De um lado, os homens: com seus arcos (Clastres 1972: 212), encarregados da “produção” de alimentos (Clastres 1966: 90), senhores da floresta (Idem: 91), que se dedicam, à noite, ao prerä, o canto solitário no qual comemoram, orgulhosos, se não os prazeres da vida, ao menos seus feitos de caçadores (Idem: 96-98). De outro, as mulheres: com seus naku, cestos (Clastres 1972: 212),

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consumindo as caças que se lhes trazem seus companheiros (Clastres 1966: 90), donas dos acampamentos (Idem: 91) e lamentando, por meio de seus cantos coletivos e diurnos, os chengaruvara, o destino dos Aché e a angústia e a infelicidade que se abateram sobre eles (Idem: 96-98). Como se chega a este ponto, como os homens e as mulheres se fazem? Pelos rituais de iniciação adequados. “Preocupação constante dos índios em utilizar o acontecimento da história individual como meio de restaurar a unidade tribal, como pretexto para ressuscitar em cada um deles a certeza de constituir uma comunidade. […] Dissimulam-se aí uma ética pessoal e uma filosofia da sociedade […]” (Clastres 1972: 41). Reencontramos, uma vez mais, Kybwyragi, prestes agora a submeter-se às dores dos rituais de iniciação (Idem: 120). Ele faz conhecer a seu pai que é chegada a hora do imbi mubu, a perfuração dos lábios, que marcará sua primeira entrada na idade adulta e lhe facultará o tão ansiado acesso às mulheres (Idem: 120 et passim). Deixará, a partir daí, de ser um embogi, pênis, e passará à condição de betagi, portador de tembetá. Curiosa dissimulação da linguagem, que torna presente o que está (aparentemente) ausente: é-se betagi, pênis, quando ainda não se pode usá-lo; deixa-se de sê-lo, quando se reconhece ao rapaz a possibilidade de beneficiar-se dele (Idem: 105). A fidelidade às mesmas palavras e aos mesmos gestos prescritos pelo ritual reescreve a mesma prosa e garante a ordem do mundo, revelando seus enigmas (Idem: 126): “[Aí] mesmo jaz o segredo e o saber que têm deles os índios. […] Não se pode ser a um só tempo criança e adulto, kybuchu e sedutor de mulheres, é um ou outro, um após o outro, primeiro se é Pênis, em seguida Tembetá: não se deve deixar as coisas se confundirem, os vivos aqui, os mortos lá, as crianças de um lado, os iniciados do outro. […] [T]odo retorno para trás é impossível. […] A ferida no lábio não se fechará jamais, pois é também a marca do tempo perdido: nem o filho feito homem, nem o pai nem a mãe o reencontrarão. Go nonga, é assim. Então, sob o grande sol imóvel, queima-se um pouco de cera: parada que assinala ao espaço seus lugares, a cada coisa seu canto, às pessoas sua morada. Que diz a fumaça? Os homens são mortais” (Idem: 127, grifo do autor). O ritual, contudo, apenas começou. Seu termo só ocorrerá, para um homem, anos mais tarde, com o jaycha bowo, a escarificação das costas, que fará do rapaz, até então despreocupado sedutor de mulheres, um adulto, capaz de tomar uma 93

esposa (Idem: 130): “Durante o longo entretempo que separa o imbi mubu do jaycha bowo, o rapaz faz o que quer, pois o grupo lhe diz: você pode. Vem um outro tempo e o grupo pronuncia: acabou. Então a prova da dor atesta que é bem assim, não há nada a fazer, o sofrimento quer silêncio, ele paga a dívida contraída pelo beta pou junto à tribo, que o autorizou a seduzir as mulheres. O jaguar azul compromete a ordem do cosmo quando quer devorar o sol e a lua; o betagi ameaçaria a ordem da sociedade se se recusasse a tornar-se adulto. Um celibatário é como um jaguar na comunidade. Os Aché, para impedir o retorno do caos no céu, fendem a terra com seus machados; e também, para prevenir semelhante caos entre si, fendem as costas do betagi. Pele trabalhada, terra escarificada: uma única e mesma marca. Ela enuncia a lei das coisas e a lei dos homens e diz ao tempo o enigma: o sol e a lua, o dia e a noite se sucedem pacificamente, mas esse retorno do mesmo não é para os homens” (Idem: 132-133, grifos do autor)33. Que lei é esta, que se impõe a homens e mulheres pela tortura, que marca a pele de uns e outros para sempre e que se sobrepõe mesmo à distinção entre os gêneros, uma vez que submete uns e outros, indistintamente, ao jaycha bowo? Que saber é este, em que os jovens são iniciados, e o são pela experiência traumática da dor? “[E]ste saber, adquirido pela via iniciática, não é, na verdade, um saber sobre a sociedade e, portanto, um saber exterior a ela. Ele é necessariamente o saber da própria sociedade, saber que lhe é imanente e que, como tal, constitui a própria substância da sociedade […]” (Clastres 1980a: 78, grifos do autor). O que a tribo proclama desta forma? Que os homens são todos iguais, que nenhum deles vale mais do que os outros, que a desigualdade é proibida, é falsa, é má (Clastres 1976b: 120): “E para que não se perca a memória da lei primitiva, ela é inscrita sobre o corpo dos jovens iniciados no saber desta lei, através de marcas idênticas, dolorosamente recebidas. No ato iniciático, o corpo individual, como superfície de inscrição da Lei, é objeto de um investimento coletivo, almejado por toda a sociedade, a fim de impedir que um dia o desejo individual, transgredindo o enunciado da Lei, tente investir o campo 33

Para as mulheres, a passagem à idade adulta também ocorre em duas etapas, com a diferença de que uma sucede imediatamente à outra, e não se separam por anos de intervalo, como acontece com os homens. Inicia-se quando das primeiras regras, quando a jovem é submetida a uma surra com vergas de tapir, e termina, também para elas, com o jaycha bowo (Clastres 1972: 133 et passim).

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social” (Idem: 120). Uma política desenha-se desta forma e uma política que se faz por meio de e sobre os corpos34, onde o desejo de cada um e a vontade do grupo se confundirão e as falsas externalidades a apartarem “indivíduo” e “sociedade” desaparecerão, e de uma vez por todas: definitivamente, o não-Estado tem suas argúcias. Não há, pois, como separarse a escrita da lei e do poder, seja ele potente ou não-potente: ainda que a superfície da escrita seja os próprios corpos. Devidamente submetido à tortura - essência, nas sociedades primitivas, de todo ritual de iniciação -, o corpo individual, ponto de encontro do ethos tribal, mediatiza a aquisição de um saber (Clastres 1973c: 154-156). O ritual iniciático constitui uma pedagogia, que faz do corpo uma memória: esquecidas já as dores do momento da iniciação, as cicatrizes permanecerão lá, como lembranças eternas do saber da lei tribal, à qual foram, desta maneira, introduzidos os jovens (Idem: 157158). Que diz esta lei, que não se presta ao esquecimento e que encontra como superfície de inscrição um espaço não-separado, o próprio corpo (Idem: 159-160)35? Ela estatui que ninguém terá o desejo de poder nem tampouco o desejo de submissão, que todos permanecerão iguais e que ninguém valerá mais ou menos do que outro (Idem: 159-160). “Substância inerente ao grupo, a lei primitiva faz-se [desta forma] substância do indivíduo, vontade pessoal de cumprir a lei” (Idem: 159). Expressões como “vontade” e “desejo” não traem aí nenhuma inspiração psicologizante, como se eterno espectro do “indivíduo” estivesse a perseguir-nos. Tais expressões “não remetem a constante enraizadas em uma pretensa natureza humana dada de antemão, mas sim aos efeitos subjetivos de determinados funcionamentos que se dão sobre um plano de intersubjetividade primeira e que se manifestam igualmente no nível sociológico propriamente dito” – ensinam Goldman e Lima (2001: 308). No que fazem 34

Novamente neste ponto, no que diz respeito ao que podemos chamar de “tecnologia política do corpo”, pode-se aproximar a démarche de Clastres da de Foucault. “[O] corpo está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder operam sobre ele de modo imediato; envolvem-no, marcam-no, adestram-no, torturam-no, obrigam-no a trabalhos, a cerimônias, exigem dele certos sinais” (Foucault, citado em Châtelet & Pisier-Kouchner 1983: 674). 35 Lefort identifica aí uma “intrusão violenta da lei no corpo” (in Abensour 1987: 199), interiorização de uma absoluta exterioridade, que descarta, de antemão, as virtualidades de interpretações diversas, somente factíveis a partir do momento em que a lei se torna escrita e sobre o papel. Resta saber se o raciocínio de Lefort, ao argumentar em termos de “interioridade” e “exterioridade”, não denuncia certo vício de origem, reeditando o velho par “indivíduo” e “sociedade”, válido – e, ainda assim, apenas possivelmente - para nós.

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eco a Deleuze: “Quanto à etnografia, Clastres disse tudo, em qualquer caso o melhor para nós. O que tentamos é pôr a libido em relação com um ‘exterior’” (in Carrilho 1976: 80). Do outro lado do mundo, em Fiji, Toren também procurará acompanhar de que maneira as pessoas se fazem – múltipla e rizomaticamente, por assim dizer -, através das relações inter-subjetivas de que participam e que criam, por meio de sua participação mesmo (1999a, 1999b, 2000 e no prelo), em atividade que, inspirando-se em Varela e Maturana, batiza de autopoiesis (1999b: 7 et passim). Nenhum resíduo aí da idéia de socialização (Idem: 8), que pressupõe uma sociedade primeira, com cujas leis e ordens nos familiarizaríamos paulatinamente: um bebê é já sujeito pleno de sua própria história, só que não a constrói independentemente dos outros, os significados que constitui estando inevitavelmente mediatizados pelas relações sociais diversas em que está imerso e que geram continua e inapelavelmente, elas próprias, significados (in Ingold 1996: 74). Sob esta perspectiva, “regras”, “costumes” e “estruturas sociais” que pairam, qual deuses, sobre os “indivíduos”, dos quais manteriam asséptica distância e absoluta externalidade, deixam de ter sentido (Idem: 74). Fazemos, nós mesmos, sentido do mundo nas relações de intersubjetividade de que participamos ao nos depararmos com os sentidos já feitos e ainda em curso de se fazerem pelos outros (1999b: 10): “cada um de nós é o locus de inúmeras relações com os outros que informam a constituição endógena de nossos esquemas de pensamento; portanto, cada um de nós atualiza para si as relações sociais de que somos o produto transformador” (1999a: 5). As desgastadas antinomias que obrigam a estrutura a manter-se infensa ao processo (1999b: 10); a transformação apartada da continuidade (Idem: 21), e o indivíduo separado da sociedade (Idem: 5) parecem já fraquejar. E, se gaguejam, é porque mesmo os deuses se defrontam com constrangimentos. Se exteriores a e não reconhecidos pelos fiéis, resta-lhes tão-somente o crepúsculo. Bem terminaram por reconhecê-lo os de Fiji, que, abandonados pelos fiéis – seduzidos pelo credo cristão – viram, atônitos, sua palavra perder mana (2000: 18-19). A leitura da presente divisão deste trabalho deve ser sumariamente descartada se tiver se prestado à cristalização de noções identitárias estanques, do gênero o chefe; o guerreiro; o caçador; o marido; o homem; a mulher. Nenhuma necessidade aqui das máquinas identitárias, de produção de rostidade, elas próprias já e inescapavelmente uma forma-Estado de pensar. De fato, “o rosto é uma política” 96

(Deleuze e Guattari 1980, Vol. 3: 50) e existem agenciamentos de poder que prescindem do rosto (Idem: 42). Nas sociedades primitivas, muito pouco passa pelo rosto, pois “os ‘primitivos’ podem ter as cabeças mais humanas, as mais belas e mais espirituais; eles não têm rosto e não precisam dele” (Idem: 43). E Deleuze e Guattari indicam a razão para isto: “O rosto não é um universal, nem mesmo o do homem branco; é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é o Cristo. O rosto é o europeu típico” (Idem: 43), cuja unidade é constituída pela opção entre escolhas sempre excludentes: é um homem ou uma mulher; um rico ou um pobre; um adulto ou uma criança; um chefe ou um subalterno; um x ou um y (Idem: 44). As máquinas polívocas primitivas descortinam novas possibilidades – e também para nós. Assim, é-se chefe e também marido traído, como Jyvukugi; é-se homem e também portador de naku, como Chachubutawachugi; é-se homem adulto e segundo marido, como Kybwyragi; é-se mulher adulta e não completamente, como Chachugi. Quando se atenta para que as pessoas serão múltiplas em função mesmo das relações intersubjetivas variadas de que e que estarão, num só tempo, participando e constituindo, compreende-se que possamos ser e à la fois crisântemos e espadas, cidadãos da Inglaterra, maridos, pais, pedreiros, membros de uma certa paróquia, votantes de um certo círculo eleitoral, membros de um sindicato, filiados ao Partido Trabalhista, homem e mulher: “nossos mil pequenos-sexos” (Idem: 91). Há, com efeito, uma outra forma de individuação que dispensa os sujeitos e os indivíduos e que Deleuze e Guatari chamam de hecceidades: “Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento ou de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado. […] É o próprio lobo, ou o cavalo, ou a criança que páram de ser sujeitos para se tornarem acontecimentos em agenciamentos que não se separam de uma hora, de uma estação, de uma atmosfera, de um ar, de uma vida” (Vol. 4: 47 e 50). Verdadeiros fatos sociais totais – e não apenas e muito mais.

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Quando, acompanhando Clastres, procuramos aqui seguir as relações constitutivas da “sociedade” e do “Estado” (ou, mais propriamente, do contra o Estado), nossa intenção foi a de evitar que fôssemos facilmente capturados, o que parecia constituir efeito colateral mais ou menos inevitável se tivéssemos partido para o pensamento por entidades (Ingold in Ingold 1996: 87) – do gênero a Sociedade, o Estado, etc. Teremos, deste modo, hesitado diante das velhas e plácidas verdades e o nosso pensamento, selvagem, terá recusado as alianças com os mesmos e eternos substancialismos deslocados: o “indivíduo” e a “sociedade”, para ficarmos no exemplo de um par apenas. Nem “indivíduo”, nem “sociedade” como foco de análise; nem esdrúxula combinação de individualismo e coletivismo metodológicos (Vargas 2000: 262): nossa aposta, desde o início, era a de que lograríamos mover-nos entre e evitaríamos as dicotomias, cujo maniqueísmo antecipa já suas inescapáveis repercussões morais (e éticas…). Nem “todo”, nem “partes”. Ultrapassado certo fetichismo metodológico que a antropologia terá sempre mostrado

pelo todo e vencido o “congelamento

metonímico” que costumeiramente “aprisiona” as “partes”, submetendo-as ao “todo”, assumimos o prazer e o risco, que os rigores metodológicos possivelmente condenariam (Loraux in Abensour 1987: 157), a que convida a autonomia do gai savoir de Clastres. Há como raciocinar não-dialeticamente e não há por que ceder aos ardis do entediante e desgastado movimento pendular, que nos arrasta ora para a “estrutura”, ora para a “história”; ora para a “permanência”, ora para a “mudança”; ora para a “sincronia”, ora para a “diacronia”; ora para a “cultura”, ora para a “natureza”, ora para o “masculino”, ora para o “feminino”; ora para o “complexo”, ora para o “nativo”; ora para a “sociedade”, ora para o “indivíduo”. Haverá sempre algo de “nativo” em “nós” e de “nós” no “nativo” e esta parece mesmo ser a condição de possibilidade de uma antropologia que não esvazie o potencial desestabilizador da diferença, que, por trazer em si a evidência de que tudo poderia ser e é também e ao mesmo tempo de outro modo, nos 98

descortina ousadamente a liberdade. Tal antropologia não pretende fazer um discurso sobre a alteridade, mas quer estabelecer com ela um diálogo. O que está já a conspirar contra a cristalização do princípio de identidade, que quer que um “nativo” seja sempre e tão-somente um “nativo”, a satisfazer as necessidades acadêmicas (e não apenas…) de exotismo: a diferença termina aí domesticada e a eterno serviço da identidade, devolvendo a Narciso a imagem – invertida – de que ele tanto precisa para ver-se assegurado precisamente em suas discutíveis certezas. O que é o princípio de identidade? Neste ponto, recorremos uma vez mais aos selvagens – sim, porque se trata sempre de nós – e valemo-nos da metafísica guarani. O que ela nos ensina em sua genealogia da infelicidade? Que as coisas, em sua totalidade, são uma e, para nós, que não desejamos isto, elas são más (Clastres 1972-1973: 147). Os homens habitam uma terra imperfeita e os guaranis nunca foram bons selvagens: residem nela, sim, sem nunca deixar, porém, de sonhar com ywy mara-ey, a Terra sem Mal, o lugar do não-Um, “onde o milho cresce sozinho, a flecha traz a presa àqueles que não têm mais necessidade de caçar, o fluxo regrado dos casamentos é desconhecido, os homens, eternamente jovens, vivem eternamente” (Idem: 150). Os habitantes de ywy mara-ey são ainda homens, mas não apenas: são já deuses. A terra imperfeita, onde as coisas, em sua totalidade, são uma, revela-se assim como o campo do finito, do incompleto, o lugar da aplicação rigorosa do princípio de identidade: “Pois dizer que A = A, que isto é isto e que um homem é um homem é declarar ao mesmo tempo que A não é não-A, que isto não é aquilo e que os homens não são deuses. Nomear a unidade nas coisas, nomear as coisas segundo sua unidade, é também assinalar-lhes o limite, o finito, o incompleto” (Idem: 149). O que é o Um, então? “[A]creditamos poder revelar, sob a equação metafísica que iguala o Mal ao Um, uma outra equação mais secreta, que diz que o Um é o Estado” (Clastres 1974a: 184-185). A que poderes terá, assim, atendido a antropologia em sua busca, sempre renovada e quase obsessiva, pelo princípio de identidade? Que efeitos ilusionistas – no entanto, plenos de repercussões - terão se perenizado desta forma e qual será o futuro desta ilusão? De novo, o ritornello e, uma última vez, retornamos aos indígenas – porque continua a tratar-se de nós -, que, na eloqüência de seu silêncio, nos revelam a tautologia, entretanto aparentemente nem sempre evidente, de que um espelho é um espelho: 99

“[T]ínhamos distribuído aos índios, que jamais os tinham visto, pequenos espelhos nomeados por eles chaã […]. Uma meia hora, por vezes mesmo horas a fio, eles se olhavam (sobretudo os homens), o espelho ora na ponta do braço, ora sob o nariz, mudos de arrebatamento ao ver esse rosto que lhes pertencia e que não lhes oferecia, quando tentavam tocá-lo com a ponta dos dedos, senão a superfície fria e dura do chaã” (Clastres 1972: 101). Talvez uma antropologia menor exija de nós precisamente isto. Ao invés de solidificar-nos as convicções, fará multiplicar as perguntas, efeitos colaterais inevitáveis de um certo “devir nativo” de nós, que nos desterritorializa; nos corrói as certezas; nos faz hesitar – permitindo vir à tona, num “retorno dos reprimidos” (Gell s/d: 19), por assim dizer, aquilo que sempre esteve lá, presente e atuante na aparente ausência -, e nos transforma em estrangeiros em terra estranha e, ainda mais, em nossa própria terra. Mesmo Lady Thatcher – que, em seu credo individualista, justificativa para o desmonte do Welfare State na Grã-Bretanha, concordará, em dado momento, que não existe sociedade, mas apenas para afirmar a radical e suposta “realidade” dos indivíduos, numa curiosa, e nada ingênua, inversão de Clastres, pois trata-se aí do Estado contra a Sociedade - terá lá suas facetas feminina e trabalhista. Devidamente reprimidas, porque não se ocupa o 10 Downing Street a qualquer preço. E, numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, ela poderá dar-se por si na cama, transformada nem tanto em jaguar, mas possivelmente em uma barata.

100

5. Bibliografia A. Livros e Artigos de Pierre Clastres Indicamos as datas originais das publicações dos artigos de Clastres. Muitos deles foram republicados em La Société contre l’État - Recherches d’Anthropologie Politique, Paris, Minuit, 1974 e em Recherches d’Anthropologie Politique, Paris, Seuil, 1980, aos quais me refiro, como SCE ou RAP, respectivamente, colocados entre parênteses ao final da citação de cada artigo: 1962 – “Échange et Pouvoir: Philosophie de la Chefferie Indienne”. L’Homme II (1). (SCE) 1963a – “Indépendance et Exogamie”. L’Homme III (3). (SCE) 1963b – (& Sebag, L.) “Cannibalisme et Mort chez les Guayakis”. Revista do Museu Paulista XIX: 174-181. 1964 – “Compte Rendu de Mission chez les Indiens Guayaki (Paraguay)”. L’Homme IV (2): 122-125. 1966 – “L’Arc et le Pannier”. L’Homme VI (2). (SCE) 1967a – “Mission au Paraguay et au Brésil”. L’Homme VII (4): 101-108. 1967b – “Ethnologie des Indiens Guayaki: la Vie Sociale de la Tribu”. L’Homme VII (4): 5-24. 1967c – “De Quoi Rient les Indiens?”. Les Temps Modernes 253. (SCE) 1968a – “Ethnographie des Indiens Guayaki”. Journal de la Société des Américanistes LVII: 8-61. 1968b – “Entre Silence et Dialogue”. L’Arc 26. Republicado em BELLOUR, R. & CLÉMENT, C. Claude Lévi-Strauss. Paris, Gallimard, 1979: 33-38. 1969a – “Copernic et les Sauvages”. Critique 270. (SCE) 101

1969b – “Une Ethnographie Sauvage”. L’Homme IX (1). (RAP) 1970 – “Prophètes dans la Jungle”. In: Echanges et Communications (Mélanges offerts à Claude Lévi-Strauss à l’occcasion de son 60e. aniversarie). Paris-La Haye, Mouton. (SCE) 1971a – “Le Dernier Cercle”. Les Temps Modernes 298. (RAP) 1971b – “Le Clou de la Croisière”. Les Temps Modernes 299-300. (RAP) 1972 – Chronique des Indiens Guayaki – Ce que Savent les Aché, Chasseurs Nomades du Paraguay. Paris, Plon, (1991). 1972-1973 – “De l’Un sans le Multiple”. L’Ephémère 19-20. (SCE) 1973a – “Eléments de Démographie Amérindienne”. L’Homme XIII (1-2). (SCE) 1973b – “Le Devoir de la Parole”. La Nouvelle Revue de Psychanalyse 8. (SCE) 1973c – “De la Torture dans les Sociétés Primitives”. L’Homme XIII (3). (SCE) 1974a – “La Société contre l’État”. (SCE) 1974b – La Société contre l’État - Recherches d’Anthropologie Politique. Paris, Minuit (1996). 1974c – Le Grand Parler. Paris, Seuil. 1974d – “De l’Ethnocide”. In: Encyclopaedia Universalis. Paris, Éd. Universalia. (RAP) 1976a – “La Question du Pouvoir dans les Sociétés Primitives”. Interrogations 7. (RAP) 1976b – “Liberté, Malencontre, Innomable”. In: La Boétie, E. Le Discours de la Servitude Volontaire. Paris, Payot, (1576). (RAP) 1976c – “L’Économie Primitive”. In: Sahlins, M. Age de Pierre, Age d’Abondance. Paris, Gallimard. (RAP) 1977a – “Le Retour des Lumières” Revue Française de Science Politique 1. (RAP) 1977b – “Archéologie de la Violence: la Guerre dans les Sociétés Primitives”. Libre 1. (RAP) 1977c – “Malheur du Guerrier Sauvage”. Libre 1. (RAP) 1978 – “Les Marxistes et leur Anthropologie”. Libre 3. (RAP) 1980a – “Mythes et Rites des Indiens d’Amérique du Sud”. (RAP) 1980b - Recherches d’Anthropologie Politique. Paris, Seuil. Também foram examinadas as traduções brasileiras dos livros de Clastres, das quais me 102

utilizei em praticamente todas as citações, a não ser quando julguei que havia alguma diferença com relação ao texto original: 1978 – A Sociedade contra o Estado – Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo, Livraria Francisco Alves Editora, (1988). Tradução de Theo Santiago. 1982 – Arqueologia da Violência – Ensaio de Antropologia Política. São Paulo, Editora Brasiliense. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. 1985 – Crônica dos Índios Guayaki – O que Sabem os Aché, Caçadores Nômades do Paraguai. Rio de Janeiro, Editora 34. Tradução de Tânia Stolze Lima e Janice Caiafa. B. Bibliografia Geral ABENSOUR, M. 1987 - L’Esprit des Lois Sauvages – Pierre Clastres ou une Nouvelle Anthropologie Politique. Paris, Éditions du Seuil. ADLER, A. 1976 - “L’Anthropologie Marxiste: vers un Nouvel Obscurantisme?”. L’Homme XVI (4): 118-128. BRUMANA, F. G. s/d – Antropologia dos Sentidos – Introdução às Idéias de Marcel Mauss. São Paulo, Brasiliense, (1983). CARDOSO, S. 1989 - A Crítica da Antropologia Política na Obra de Pierre Clastres – Tese de Doutorado. São Paulo, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, mimeo. 1995 - “Copérnico na Orbe da Antropologia Política – O Projeto Crítico de Pierre Clastres”. Novos Estudos 41: 121-142.

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Apêndice: Crônica de um Autor Apêndice – Bot. Designação de qualquer parte saliente, quase sempre curta e estreita, e de importância secundária, de um órgão ou parte da planta. Aurélio XXI

- Je est un autre. A frase é de Rimbaud.



Arroyo Moroti, junho de 1963. Nada de tropical nesta aurora cinza. Esta não é, porém, a única surpresa com que venho me deparando. Desde o dia em que cheguei aqui, no início do ano, a música triste do chengaruvara, a saudação lacrimosa das índias Guayaki, parecia, no seu modo sempre particular, preparar-me para o terreno: estou mesmo entre os selvagens. Melhor deixar minha sensibilidade ceder às evidências que me apresentam desta forma; treinamento mais eficaz, possivelmente, que os anos de estudos de filosofia e dos princípios do estruturalismo na França. De alguma forma, as categorias em que fui

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iniciado e o Handbook of South American Indians revelam para mim, e apenas aqui, suas insuficiências, o que me convida a refletir sobre a distinção, normalmente sacrossanta na disciplina, entre coleta de dados e estudos teóricos. Quando, há três anos, escrevi “Troca e Poder: Filosofia da Chefia Indígena”, já havia podido constatar certa curvatura no ciclo das trocas no lugar da chefia. Aqui, em Arroyo Moroti, fico com a impressão de que as torções a que a reciprocidade é submetida não poupam outros terrenos. Será que posso falar em reciprocidade no caso do casamento poliândrico, em que o marido, como que antecipa o fechamento do ciclo das trocas, e, antes de compensar com a filha a mulher que recebeu, tem de dar também sua mãe (da filha)? Ou no caso do guerreiros que cantam, solitários, no meio da noite, a comemorar seus feitos? Que espécie de comunicação é esta, que prescinde de um interlocutor? Será que falar nem sempre quer dizer algo? Ou, às avessas, quer sim, mas não necessariamente o que esperamos ou fomos ensinados a escutar? De qualquer modo, a experiência é suficientemente instigante para fornecer-me material para uma série de estudos e imagino que não vá conseguir esgotá-la na tese que tenho de apresentar em dois anos. Pretendo definitivamente ocupar-me, nela, deste grupo, originalmente sedentário, que garantiu sua sobrevivência diante da guerra de conquista empreendida pelos Guarani por meio da nomadização – o que flanqueia já o credo evolucionista que quer que nômades, necessariamente, precedam sedentários. Aqui, em Arroyo Moroti, onde estes índios vieram pôr-se sob a proteção de um paraguaio, fizeram sua parada definitiva: sucessivamente desterritorializados e reterritorializados, estes indígenas parecem aqui estar esforçando-se por colocar sua máquina social em funcionamento,

organizando,

por

exemplo,

em

hierarquia

a

diferença

que

tradicionalmente os opôs aos outros Guayaki, os Irõiangi ou estrangeiros, recémchegados a este acampamento. Pois é aqui que os encontro, eu também desterritorializado. Mas não será esta a condição de possibilidade de uma antropologia que respeite a diferença, ao invés de reduzi-la às nossas necessidades de identificação: este esforço de desterritorialização, que faz de nós estrangeiros em terra estranha e – possivelmente em sentido muito mais radical – em nossa própria terra?

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Arroyo Moroti, agosto de 1963. Dois incidentes forçam-me novamente a pensar nas condições de possibilidade (os vícios do estruturalismo insistem em trair-se na linguagem mesmo que utilizo!…) da antropologia. Sempre tentei experimentar com os Irõiangi o pouco de Guayaki que sei. Reparei que, ainda que sua língua fosse a mesma dos Aché Gatu, eles a falavam de maneira ligeiramente diferente. Fiz a um rapaz uma pergunta que sei não ser indiscreta, pois os Aché Gatu já a haviam respondido sem hesitar: “Ava rõ nde pã? Quem é seu pai?” Ele me olhou; não se pode dizer que estivesse espantado por uma questão extravagante, ou que não tivesse compreendido (tomei cuidado em articular clara e lentamente); um pouco de enfado somente no olhar e nenhuma resposta. Talvez eu tivesse pronunciado muito mal; era preciso saber o que se havia passado. Corri a procurar um Aché Gatu, pedi-lhe para repetir a pergunta, ele a formulou exatamente como eu alguns minutos antes e contudo obteve, ele, a resposta. Que fazer? Então me veio à memória o que já me havia dito Alfred Métraux: “Para poder estudar uma sociedade primitiva, é preciso que ela esteja já um pouco apodrecida”. A sociedade dos Aché Irõiangi não estava apodrecida, sua boa saúde a impedia de inaugurar comigo, com um outro mundo, o discurso de sua decadência. Tal era a selvageria dos Aché: cheia de seu silêncio, signo desolador de sua última liberdade, foi-me também a mim destinado desejar privá-los dela. Pactuar com sua morte: era preciso, à força de paciência e de astúcia, a golpes de pequenas corrupções (ofertas de presentes, de comida, gestos amáveis de toda espécie, palavras sempre doces, untuosas mesmo), era preciso quebrar a resistência passiva dos Aché, atentar contra sua liberdade e obrigá-los a falar. O segundo incidente ocorreu numa tarde, em que eu, sem muita expectativa, escutava Jygi, de um ouvido pouco atento, já à beira do sono. Jygi estava mais desperta, devidamente ocupada em deliciar os kramero que eu havia lhe dado. “Sua filha está morta?” – perguntei. Jygi respondeu: “Sim, morta. Os Aché a mataram”. “Por quê?” “Para vingar”. “Ah, bom”. E continuei: “E então eles a enterraram, juta”. Eu nem esperei que ela o dissesse, já que é assim que procedem os Aché. “E aquele outro?” – 113

tentei ir adiante. “Juta-iã, Kaimbre, duve rõ u pa modo!” - interrompeu-me Jygi. Nesse momento, não prestei senão uma atenção flutuante ao que ela havia acabado de dizer, antes inclinado a abandonar-me ao torpor de uma tarde silenciosa, povoada somente por um ranger estridente, parecido ao de nossas cigarras. De fato, foi o tom de Jygi que me pôs alerta: ela falou com uma voz mais forte, ligeiramente irritada. “Você falou o quê?” Ela repetiu e insistiu: “Cho memby juta-iã rõ u pa”. Silêncio. Olhei-a, bruscamente teso e perturbado, como quem descobre de repente o que havia renunciado a encontrar por ter por longo tempo buscado em vão. Então, mais nenhuma vontade de fazer a sesta, é o caçador à espreita de uma caça inesperada. Jygi, sonhadora – na realidade, ela saboreia os seus bombons -, não me dava mais atenção. Mas é irrevogável, ela falou, não poderá mais voltar atrás. Quase perdi o fôlego. Quando respondi em seu lugar que ela havia enterrado sua filha vítima de um assassinato ritual, ela corrigiu vivamente: “Enterrada não! Ela foi assada; em seguida eles a comeram!” Depois ela confirmou: os Aché Gatu são mesmo canibais, eu não duvido um segundo de que essa velhinha toda pregueada e enrugada me tenha dito a verdade. No dia seguinte, inquérito policial a partir das informações de Jygi, especialmente com o meu “pai”, Tokangi, que me havia descrito prolixamente as tumbas onde os Aché teoricamente depositariam seus mortos. Desmascarado, ele não fez o menor esforço para sair da contradição: “Nde kwa mu, ko! Então você acabou por saber! Kamevwã provi! Menti um pouco!”

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Arroyo Moroti, outubro de 1963. Dois homens em Arroyo Moroti desafiam os esquemas teóricos que elaborei sobre a distinção entre os gêneros no caso dos Guayaki: Krembegi e Chachubutawachugi. O primeiro, nem tanto; o segundo, muito. Com efeito, tudo parecia comportar-se maravilhosamente bem, de um ponto de vista estrutural mesmo. Os homens dedicam-se à caça; encarregam-se da “produção”; reinam na floresta; seus cantos são solitários e noturnos e comemoram seus feitos; o objeto que os representa por excelência é o arco. As mulheres carregam;

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respondem pelo consumo; reinam nos acampamentos; seus cantos, coletivos e diurnos, choram o destino do grupo; o objeto que as representa por excelência é o cesto. Pareciame que poderia elaborar mesmo aqueles pares de oposição bem ao gosto do estruturalismo: homens:mulheres :: “produção”:consumo :: floresta:acampamento :: cantos solitários :: cantos coletivos :: noite:dia :: arco:cesto. Não fosse por Krembegi e Chachubutawachugi, ambos homens e, no entanto, portadores de cestos. Krembegi nem perturba tanto as linhas de força desta geografia: ele continua a ser a ordem Aché, só que às avessas. É um pederasta, um kyrypy-meno, um ânus-fazer-amor. Seus parceiros sexuais são seus irmãos e a imagem invertida do incesto apenas confirma a ordem: o incesto verdadeiro, entre irmão e irmã, tem de ser evitado. Não caça. Porta um cesto com orgulho e não protesta contra sua sorte. Chachubatawachugi, não: incapaz de caçar, quer, entretanto, permanecer no universo da masculinidade. Se se vê constrangido a portar o cesto, não o faz de bom grado e os Guayaki reagem a ele: figura impossível, porque quer habitar um terceiro lugar, entre o masculino e o feminino, que, na sociedade Guayaki, não existe. A sorte mesmo de Chachubutawachugi conspira contra meus esquemas teóricos. Convenço-me, aos poucos, de que as belezas geométricas, por assim dizer, das teorias fechadas, bem acabadas, eternas, não pertencem à disciplina que elegi. Se tenho já material suficiente para um livro, não consigo conceber-lhe como um compêndio que determine como os Guayaki são. Posso tão-somente descrever o que eles fazem, como funcionam no seu dia-a-dia. Escreverei, mais apropriadamente, uma crônica.

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Área Chiripa, Paraguai, agosto de 1965. Tenho de agradecer a Léon Cadogan, que me introduziu a este grupo guarani: de novo, estou entre os selvagens. Aqui, definitivamente, falar que dizer algo. E muito. Deixo-me enlevar pela poesia e por uma metafísica diferencial das palavras que os Chiripa dirigem a seus deuses. Não à toa eles as chamam de “Belas Palavras”. Vale um livro que as registre, com comentários apenas marginais, para facilitar o entendimento de 115

leitor não familiarizado com tal universo. De fato, quem sou eu para pretender compreender o que falar quer dizer?

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São Paulo, maio de 1966. Nem sempre conseguimos ocupar-nos dos selvagens de que gostamos. Estou atualmente dando aulas de antropologia na Faculdade de Filosofia de São Paulo. Tive um novo e breve contato com os Guarani em Santos e preparo-me para o retorno ao terreno.

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Área Chulupi, Paraguai, setembro de 1966. Mais uma vez entre os selvagens. Antes de chegar aqui, na área Chulupi, mas já no Paraguai, tive oportunidade de visitar outro grupo guarani, os Mbya, que me convenceram de vez que tenho de dedicar-me à redação de livro que anote as “Belas Palavras” com as quais este índios se endereçam a seus deuses. De quanto tempo mais disporemos até que estas palavras desapareçam para sempre? Não que outros grupos indígenas não o sejam, mas, ainda assim, a natureza guerreira dos Chulupi impressiona. Tenho a sensação mesmo de que existe, de forma inescapável, uma vizinhança trágica entre guerra, política e morte. Que ao menos eu venha a ter tempo para escrever um livro sobre o tema! Suas linhas gerais poderiam ser: a natureza do poder dos chefes de guerra; a guerra de conquista nas sociedades primitivas como possibilidade de mudança da estrutura política (o caso dos Tupi); o papel das mulheres frente à guerra; a guerra “de Estado” (os Incas).

Impossível

permanecer imune ao infortúnio destes guerreiros selvagens que abraçam tão corajosamente a morte gloriosa: como podem terminar por aceitar como seus anseios mais propriamente do grupo que, extinguindo tais homens, os impede de se destacarem 116

do restante da sociedade e de se constituírem como espécie de “coágulo” político, que, à parte e pretendendo-se acima de seus iguais, queira dar ordens?

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Paris, dezembro de 1966. Retorno à França, depois de longos meses de América do Sul. A experiência de terreno fez fraquejar de vez qualquer veleidade marxista que eu eventualmente tivesse e, se não posso ter a pretensão de negar completamente os ensinamentos do estruturalismo, volto convencido da necessidade de ampliação de sua problemática por meio mesmo da pesquisa de campo. Antes da viagem de regresso, consegui ir ao Brasil Central, onde estive com os Javaés, um subgrupo Karajá. Na Ilha do Bananal, num ponto de encontro entre os dois braços do Rio Araguaia, foi construído um hotel ultra-moderno, dotado de arcondicionado, para os turistas que vêm ver os índios dançarem e lhes compram suas estatuetas. Não que os índios tenham tido escolha. Bem verdade que os Karajá continuam a fazer suas famosas bonecas de terra, mas não mais por motivos imanentes à sua cultura, e sim para vendê-las aos turistas. Prevê-se o resultado: uma fantástica degradação da sua arte, que se torna mais e mais realista, pobre, inerte. Numa ocasião, eu me encontrava na casa do chefe Ataù e examinava as tais bonecas. Havia dos dois tipos: as novas e as tradicionais. Ao verificar que eu me interessava pelas últimas, Ataù quis prevenir-me, imaginando que eu havia me distraído: “Isso é para museu! É de índio velho!”.

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Área Yanomami, Venezuela, 1970/1971. Aqui, junto com Jacques Lizot, neste que me parece ser o último círculo, a última sociedade livre da América do Sul e talvez do planeta, o que me retorna ao espírito é, curiosamente, o espírito de maio de 1968. Não há como negar seu impacto. Toda a 117

atmosfera do momento parecia conspirar: os escritos clandestinos provenientes da União Soviética e dos países do Leste Europeu; a literatura underground nos Estados Unidos; a recusa dos operários britânicos em trabalharem horas extras e adquirirem, assim, o poder de compra para um consumo irrisório, optando, ao invés, por dispor de mais tempo para o lazer, etc. A autonomia destes escritores e operários incomoda precisamente porque não se desenha no horizonte das instituições definidas pelo Estado. De fato, a pergunta parece definitivamente ter mudado. Não se trata mais de descobrir qual o bom Estado, mas o porquê do Estado. A investigação que se impõe é a dos mecanismos que viabilizam a coerção. O que nos obrigamos agora a entender é como o Estado funciona. A compreensão do funcionamento do não-Estado, ou melhor, do contra-o-Estado, nas sociedades a que se dedica a antropologia pode, sob essa perspectiva, ser bastante esclarecedora.

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Área Guarani, Estado de São Paulo, 1974. Estou entre os descendentes daqueles que participaram de uma das últimas migrações religiosas que ocorreram no início deste século e que fizeram chegar aqui, no Estado de São Paulo, este grupo, vindo do Paraguai. Tais migrações religiosas, lideradas pelos Karai, profetas que buscavam a Terra sem Mal – e que remontam mesmo ao período anterior à chegada dos europeus ao continente -, sempre despertaram meu interesse. Até porque tais migrações me parecem plenas de motivações e repercussões políticas. Os grupos guarani vinham crescendo desmesuradamente nos últimos decênios do século XV e é possível que o espectro da unificação política estivesse já em seu horizonte (uma demografia ameríndia, livre dos preconceitos ideológicos que comprometem seu avanço, poderia comprovar tal hipótese). Os Karai estariam, assim, reagindo a tal ameaça ao arrastarem multidões inteiras atrás de si na procura da Terra sem Mal. Por ironia, teriam terminado precisamente, desta forma, por realizar o programa dos chefes, unificando, na migração religiosa, a múltipla diversidade das tribos. Talvez se dissimule aí a figura do Déspota. Palavra profética, poder desta palavra. Começaria o 118

Estado no Verbo?

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Paris, 1977. Preciso parar de dirigir como um louco.

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