A Sociedade dos Deuses é cópia da Sociedade Humana

June 1, 2017 | Autor: Leandro Marshall | Categoria: Philosophy Of Religion, Religião, Antropologia
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A sociedade dos deuses é cópia da sociedade humana

Leandro Marshall1

O divino e o profano estão intimamente arrolados, há uma consanguinidade entre deuses e homens. A política se transforma naturalmente em religiosa, e a religião naturalmente em política Luis Mir

O surgimento da sociedade está associado ao surgimento da própria essência social dos homens. Depois de um longo período vivendo apenas em família ou em bandos, os seres humanos descobrem que é mais vantajoso para sua sobrevivência a união de forças com outros clãs e famílias. Os mais fortes podem ajudar os mais fracos. Os mais rápidos podem favorecer os mais lentos. Os mais sábios agem com mais habilidade e prudência nas horas mais difíceis. A união das potencialidades individuais acaba por trabalhar em benefício de toda a coletividade. A sociedade2 surge, portanto, quando os homens estabelecem um sistema de vida em comum, integrando e partilhando os benefícios extraídos da natureza, e onde o pressuposto básico é a reunião dos lares, com seus altares, cultos e deuses, no mesmo lugar. Não há necessariamente a transformação da estrutura das famílias e das práticas do casamento, da sucessão e do patriarcado, que apenas se somam à nova rotina moral, religiosa e econômica da nova instituição social. A sociedade nascente acomoda em seu interior os arranjos culturais já existentes, combinando, em sua esfera, as oportunidades e as necessidades que a vida em comum estabelece. A própria lógica da religião permanece a mesma. Os deuses domésticos continuam, durante muito tempo, venerados de acordo com a liturgia e as regras 1

Leandro Marshall é professor de Filosofia. Pós-doutor em Sociologia (UnB), Doutor em Comunicação Social (PUC/RS), Mestre em Comunicação Social (UMEP) e Especialista em Filosofia Clássica (UnB). É autor de O Jornalismo na Era da Publicidade (Ed. Summus) e a Hipercomunicação (Ed. Virtual Books). 2

Do ponto de vista fenomenológico, a sociedade deve ser entendida como um processo humano e dialético de construção do mundo. A sociedade produz o homem. O homem produz a sociedade. “É dentro da sociedade, como resultado de processos sociais, que o indivíduo se torna uma pessoa, que atinge uma personalidade e se aferra a ela, e que leva adiante os vários projetos que constituem sua vida. [Portanto] o homem não pode coexistir independentemente da sociedade”. BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociológica da Religião. São Paulo: Paulus, 1985. P. 15.

2 morais e religiosas desenvolvidas durante o mundo do isolamento, embora lenta e progressivamente cada família passe a cultuar e a compartilhar os deuses sociais da cidade. Afinal, os deuses domésticos zelam pelos interesses e pelas causas de cada família e os deuses coletivos trabalham em prol dos interesses e das metas de toda a coletividade. Não há conflito neste sentido, da mesma forma que não há conflito entre os objetivos e metas comuns da convivência pragmática e utilitarista da vida em sociedade. A existência do ser, devotada aos seus entes mais próximos na instituição da família, amplia-se em proporção para entes mais distantes no que virá a consagrar a instituição da sociedade. O princípio é o mesmo: a existência por laços comuns (seja por interesses, por obrigação, por liturgia ou por sangue) expande a união social dos homens também por laços comuns3. Esta união consagra, em sentido geral, a essência da natureza social do homem: viver em comunhão e em comunidade pelas necessidades materiais e sociais da própria vida4. A sociedade expressa a conjugação de interesses e de laços comuns à coletividade e que não passam de representações dos interesses e da necessidade de laços presentes em cada indivíduo ou em cada família. Por isto, a associação tão fácil e tão oportuna dos homens quando passam a ocupar o mesmo espaço e a desfrutar do mesmo ritmo do tempo. Oportunamente, o homem traz para a nova instituição, a sociedade humana, o aprendizado e a experiência adquiridos durante sua vivência no universo da sociedade natural, i. é, no cotidiano biológico da vida regida pelos princípios da natureza. Mesmo que à primeira vista o universo animal, vegetal e mineral não aparente ao homem comum uma organicidade primária em seu funcionamento, a sociedade natural está fundada em lógicas internas e em sistemas interdependentes, que convergem para sua ordem, seu equilíbrio e sua harmonia. O homem descobriu no início da era moderna as estruturas elementares da natureza, percebendo que aquilo que insinuava apenas aleatoriedade e acaso estava assentado no princípio de uma organicidade universal. A sociedade natural revela-se como uma unidade sistêmica e operacional, tanto em sua universalidade como em sua pluralidade. Onde os olhos do acaso visualizam apenas fluxo e efemeridade, os olhos da razão e da ciência percebem dinâmica e operacionalidade. A sociedade natural possui uma inerente ordem matemática, como diziam os fisiocratas, e sua sabedoria interna revela que tudo está interligado e trabalha para o objetivo comum do equilíbrio ecossistêmico. É uma máquina viva, com suas próprias deidades moleculares, seus sistemas de sentido, suas regras morais e suas válvulas de equilíbrio e organização. 3

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Na visão do sociólogo francês, Émile Durkheim, “o social e o religioso são a mesma coisa”.

A própria noção do trabalho, como processo produtivo coletivo, deriva do processo de exploração e transformação dos recursos naturais pelas mãos do homem. Engels chamou isto de a ‘humanização do macaco pelo trabalho’. Engels, Friedrich. A Humanização do Macaco pelo Trabalho. In A Dialética da Natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. P. 215- 228.

3 Nesta sociedade, o homem é mais um elemento do jogo de forças da sobrevivência natural e transcendental, posto que, na natureza, onde convivem os mais intensos e divergentes interesses pela vida, a lógica do vale-tudo estabelece um sistema próprio de poder, hierarquia, governo, dominação e submissão, com suas regras, instituições e valores. Por isso, a poesia da sociedade natural está na sua própria crueldade. Não há piedade ou perdão para as disfunções do sistema. O princípio da entropia comanda a força vital de todos os elementos, habitem eles o mundo da física pequena ou da química ligeira. Não se pode esquecer, portanto, que o homem, e sua engenhosa criação, a sociedade humana, derivam e fazem parte desta suprema estrutura da vida, a sociedade natural, que impõe a priori as lógicas, os princípios e as regras do jogo da própria vida. Consequentemente, não se pode sublimar a dimensão biológica da condição humana, alijando-a do contexto social apenas para ajustar a teoria a uma dimensão meramente cultural. A sociedade humana e a sociedade natural estão interligadas pela consanguinidade biológica e pelo processo de construção social da realidade da essência humana, institucionalizada pelas tecnologias do imaginário, e da essência da natureza, coisificada e naturalizada pela cultura. A natureza cria o homem que recria (i. é, reinventa) a própria natureza e a sua essência como homem. O homem é um fabricante de crenças e, portanto, só o mecanismo da construção social da realidade pode explicar como podemos acreditar fazer parte do mundo aquilo que criamos em nossa subjetividade. De todo modo, isto só acontece porque insistimos em dar ordem e sentido ao universo físico e metafísico que nos rodeia e, portanto, precisamos construir permanentemente um arsenal de crenças para estruturar este universo inexplicado5. Não basta, entretanto, buscarmos a ordem e o sentido na sociedade natural ou na sociedade humana. O homem necessita construir uma dimensão maior, superior ao universo das coisas mundanas, do próprio ser-no-mundo e de suas contingências e circunstâncias. Esta prática acaba jogando para os confins da transcendência as explicações para todos os tipos de fatos e fenômenos que queremos explicar. A sociedade dos deuses surge assim para preencher os gaps que a sociedade natural e a sociedade humana deixam para trás. Seja espelho ou reflexo daquelas, a sociedade sobrenatural dos seres alados atua para servir de matriz causal para tudo

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“O humano verdadeiramente humano descobre nossa irrenunciável condição de seres mitológicos. Fora do símbolo-razão, mito-logos, não existe o humano. Pensar-nos prospectivamente implica aceitar o desafio de integrar no novo modo humano que sempre está por ser uma inovadora forma social que implique essa tensão mitológica que nos permeia. Projetamos um modo de viver em que o simbolismo adquira o mesmo status que a razão. Um mundo onde o Logos e o Pathos convivam não mais como lobo e cordeiro, mas como irmãos siameses que se auto-afirmam à medida que estão em tensão mútua, sem que isso implique exclusão ou destruição de um deles para que o outro possa existir. O humano verdadeiramente humano está abocado a viver a co-implicação do seu Logos-Pathos numa permanente tensão criadora”. Ruiz, Castor Batolomé. Os Paradoxos do Imaginário. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

4 aquilo que não tem causa ou para estabelecer a crença para tudo que não pode ser alcançado pela simples racionalidade, e vice-versa. Os deuses fecham o círculo da vida. A sociedade dos deuses completa a sociedade dos homens e a sociedade natural. São três pontas da mesma linha. Em tese, uma atua como a raiz, a outra, como o motivo, e a terceira, como o sentido. A questão é que, se olharmos com acuidade, todas podem ser a raiz, o motivo ou o sentido. Isto porque as três estão inextricavelmente interligadas e, por isso, fazem parte umas das outras. De modo geral, pode-se dizer que estas três organizações sociais são uma única sociedade universal. Elas contêm em si as mesmas estruturas políticas, culturais, morais e econômicas. Possuem os mesmos sistemas de controle e de poder, observam as mesmas lógicas hierárquicas e seguem os mesmos princípios de ordem e funcionalidade social. Por isso, obedecem a modelos de produção e reprodução de sua arquitetura interna e externa que transbordam de uma sociedade para outra e estabelecem uma interdependência orgânica ao estilo do próprio comensalismo. Vejamos a organização e a dinâmica da sociedade divina. Os deuses governam a sociedade do Olimpo por meio do regime autocrático, onde o poder é centralizado e absolutista. Não há sufrágio universal, câmaras de legisladores, tribunais de justiça ou participação direta ou representativa na tomada de decisões. O imperador dos céus é soberano supremo sobre os seres, as coisas e os objetos. Ele se outorga o poder celestial e, por conseguinte, o poder monárquico de governar discricionariamente de acordo com uma espécie de estatuto geral da vida, criado e promulgado por ele mesmo. É verdade que cada religião prega a virtude, a justiça, a generosidade, a caridade, a equidade e a fraternidade, dentre tantas outras modalidades de bondade existentes na chamada alma humana. Para ser seguido e idolatrado, o detentor do poder proclama aos seus seguidores o exercício de uma vida virtuosa, com compaixão, graça e generosidade, além de, naturalmente, evocar o auto-arbítrio, a autodeterminação e o autogoverno (i. é, a democracia) como condições sine qua non da vida humana na terra. O fato, neste caso, é que a estratégia moral não reproduz a estratégia poder. Este discurso serve apenas para sustentar o teocêntrico sistema de poder, institucionalizado sob os princípios da Crença, da Obediência, do Controle e da Culpa. A. Crença: Deus (i. é, todos eles) têm a propriedade e a soberania absoluta e exclusiva da palavra. Neste sentido, o dogma revela-se como o sistema único de saber e, portanto, de poder em nossa sociedade. Nesta lógica, o saber em Deus implica necessariamente a submissão ao poder imperial da religião. B. Obediência: Sempre, em qualquer circunstância, os fiéis devem servir única e exclusivamente ao seu deus, consagrado por ele mesmo como o original sem cópias. Haja o que houver, Deus é sempre expressão absoluta da verdade, e o compromisso do homem com a verdade exige confiança e lealdade.

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C. Controle: A moral e a religião tratam de estruturar mecanismos de controle dos pensamentos, dos desejos e das vontades humanas, sempre direcionados a alimentar e realimentar as crenças e a energia do sistema geral e a reproduzir as condições de produção deste modelo de (construção da) realidade. D. Culpa: Uma das grandes estratégias de manutenção do poder divino e da organização religiosa é fazer com que os humanos nunca tenham certeza absoluta se estão se comportando de acordo com as máximas da vida virtuosa e justa. Isto mantém o homem permanentemente em estado de culpa e só a renovação permanente dos votos de obediência e subserviência ao senhor é que expiam o pecado ou, ao menos, anestesiam a consciência. O sistema de governo, por sua vez, está estruturado de acordo com a estratégia imperativa de sustentação da lógica do poder. Para isso, Deus precisou montar um gabinete de assessores especiais e distribuir funções para operacionalizar as ações de governo e de poder. Os santos, anjos, arcanjos, querubins, gênios, monges, daimons, desempenham tarefas de propagação da fé, das práticas da liturgia, da manutenção dos cultos e dos ritos e da consagração mágica dos mitos. Tudo para manter o regime de submissão, reverência e obediência, que não admite que nenhuma ovelha se desgarre do rebanho (ou que nem mesmo questione este sistema de pastoreio). É, portanto, natural que a própria sociedade dos deuses organize operacionalmente um modelo militarista para conter, cercear ou coibir possíveis rachaduras no equilíbrio ecossistêmico do governo autocrático. Deus, o El Elah, O Todo Poderoso, o El Raí, O que tudo vê, o Raah, O Pastor, que também é reconhecido como o Adon Hakavod, O Rei da Glória, o El Caná, O Zeloso, o Margen, O Protetor, o Mikadiskim, O Santificador, é, ao mesmo tempo, o El-Elyon ou o El-Berit, Aquele que faz pactos ou alianças, e que é, enfim, o Sabaoth, O Senhor dos Exércitos. O governo na sociedade dos deuses se mantém, assim como todos os demais, pela lógica da força6. O evangelho da liberdade e salvação está condicionado sempre à liberdade e à salvação escolhidas (i. é, impostas) pelo supremo libertador. Quem não segue este ideário e este receituário está ameaçado de nunca pisar no Jardim do Éden (para os cristãos), nos Campos Elíseos (para os antigos gregos), no Nirvana (para os Budistas), ou no Paridaiza (para os Persas)7 e em muitos outros tipos de Paraíso. 6

Em O Partido de Deus (São Paulo: Alaúde, 2007. P. 33), Luis Mir nota que “as duas instituições religiosas monoteístas milenares, cristianismo e islamismo, foram, são, serão enquanto durarem instrumentos do exercício da força. Ora ligadas ao Estado, ora se interpondo como Estado, [são] continuamente vistas como consortes na posse dos corpos e mentes”. 7

Para cada céu, um inferno. As mitologias falam na existência do Tártaro (na antiga Grécia), no Hel (na cultura Celta), no Inferno (dos cristãos), no país-sem-volta (na visão dos mesopotâmios), ou na Geena (aquele que teria sido o primeiro de todos os infernos, localizado na entrada de Jerusalém).

6 Veja-se, por exemplo, que são raros os deuses devotados à causa primeira da paz, no passado ou no presente. Existem, sim, inúmeros deuses da terra, das plantas, do mar, das montanhas, dos raios, do fogo, dos lares ou da Justiça etc. Sem dúvida, a maioria dos deuses são, contudo, aqueles devotados à causa da Guerra. No Dicionário de Deuses e Demônios (Manfred Lurker. São Paulo: Martins Fontes, 1993), existem seis deuses da Paz: Irene, deusa grega, filha de Zeus: Pax, bela e jovem deusa romana; Rongo, deus polinésio, que administra a paz e a agricultura; Salman, deus pré-islâmico reverenciado no norte da Arábia; Salus, deusa romana que personifica o bem-estar geral do Estado; e Whope; deusa dos índios Sioux, filha do deus-sol Wi, e uma lista de 97 deuses da Guerra. Não faltam, afinal, provas da capacidade dos deuses de odiar, vingar, perseguir e matar todos aqueles que não seguirem sua (s) cartilha (s)8. Crono (deus grego), filho de Urano, devora um a um todos os filhos que sua esposa Reia lhe dá, com medo de que eles roubem seu poder e seu trono. Huitzilopochtli, o famoso deus águia dos astecas, exigia que os humanos demonstrassem sua reverência, arrancando o coração de seus corpos. Indra, o deus da guerra entre os Vedas, elimina todos os inimigos do seu povo com raios fulminantes. Marte, deus romano dos exércitos, liquida deuses, titãs, semi-deuses, homens e tudo o que atravessar o caminho ou ameaçar a paz dos romanos. Xipe Totec, um antigo deus mexicano, apreciava muito que alguns de seus súditos fossem esfolados vivos e que a pele fosse vestida por outros como se fosse um troféu. Foi, entretanto, o deus judaico-cristão-muçulmano Javé o primeiro grande genocida da história. Ao desconfiar que toda humanidade não estava mais honrando a sua divina autoridade e que tudo havia decaído em devassidão, o líder supremo mandou 40 dias e 40 noites de temporal que dizimou completamente a vida na terra. Poupou o único homem que, na sua visão moral, nunca tinha pecado no mundo. Em outra ocasião, Javé mandou sete pragas para o Egito: transformou as águas dos rios em sangue; infestou o país de rãs, piolhos e gafanhotos; mandou chuvas de pedra misturadas com fogo; para arrematar, matou todos os primogênitos das famílias egípcias. Depois de perpetrar estas e inúmeras outras matanças, o deus judaico-cristãomuçulmano mandou chamar Moisés e lhe ditou o que foi chamado de os mandamentos sagrados. Entre eles, a exigência de que nenhum homem, servo de deus, deve matar outro homem. No final das contas, a política manda dar com uma mão e tirar com outra. Enquanto toda uma ampla variedade de signos (con) sagrados pelo discurso da redenção e da salvação sustenta o sistema de crenças num determinado deus e em seu sistema de governo, os exércitos divinos devem estar sempre de prontidão para lembrar os ditames do regime de verdades e pontificar que àqueles que 8

Santo Agostinho concorda, por exemplo, em sua concepção teísta, que ”do mesmo modo que depende de Deus afligir ou consolar os homens, segundo os Conselhos da Justiça e de sua Misericórdia, é ele também quem regulamenta a duração das guerras, quem as abrevia ou prolonga segundo sua vontade”. In Cité de Dieu. Livro V. Capítulo 11, p.323.

7 desobedecerem ou desrespeitarem as sábias e generosas palavras do senhor, pagarão com a própria vida por este insulto, na terra ou no inferno. Em decorrência desta mecânica de poder e de seu regime de sustentação pela força ou pela coerção, a sociedade dos deuses, assim como qualquer estrutura organizacional institucionalizada, precisa estabelecer, acima de tudo, planejamento, organização e estratégia para operacionalizar suas ações e, com isso, estabelecer mecanismos de perpetuação de seu governo. Não há verdade que sempre dure, nem poder que nunca acabe. A sociedade dos deuses, pretensamente onisciente, sabe bem disso, e segue rigidamente os princípios da Hierarquia, da Eficácia, da Semiologia e da Pragmática para permanentemente lubrificar e reenergizar suas verdades e suas estratégias de poder. A. Hierarquia: Deus atua como uma espécie de comandante-em-chefe da organização celestial. Ele possui representantes, que atuam como mensageiros de seus comunicados (messias), porta-vozes de sua palavra (papas ou santos), agentes delegados para transmitir suas lições (anjos ou querubins), ordenanças para manter suas crenças (arcanjos, gênios ou daimons) e o síndico ou capataz de sua criação (rei ou espírito santo). B. Eficácia: A lógica da fé, das crenças e os mitos só funcionam e sustentam a eficácia geral do governo graças a um modelo bastante aprimorado de prova e contraprova da verdade divina. Este modelo apresenta periodicamente revelações (aparição da virgem Maria), acontecimentos surpreendentes (estátuas que choram), presságios messiânicos sempre renovados (profetas e profecias do fim do mundo) ou feitos espetaculares e inexplicáveis pela razão (milagres). C. Semiologia: A simbologia do mistério e do inacreditável renova permanentemente a crença no deus e nos seus dogmas e assegura a perpetuação do seu sistema de mitos e ritos. Na fé cristã, encontramos inúmeros exemplos de elementos portadores ou representantes dos desígnios divinos na terra, que operam como uma espécie de cartola mágica a intrigar e, ao mesmo tempo, explicar, pelo dom sobrenatural, a existência de deus. Encontramos a promessa da eternidade no Santo Graal, a busca da planta da imortalidade por Gilgamesh, a virgindade exclusiva de Maria, a verdade absoluta revelada nos mandamentos sagrados, o episódio da ressurreição e a consequente possibilidade da vida edênica após a morte etc9. D. Pragmática: Toda mística envolvida na alquimia da religião, da mitologia, da simbologia, precisam necessariamente de uma boa dose de pragmatismo no gerenciamento deste universo de verdades. Apesar de o modelo ser criado para operar com máxima eficácia, as crenças e os mitos acabam sempre se 9

Diz Joseph Campbell: “O estudo comparativo das mitologias mundiais nos leva a considerar a história cultural mundial como uma unidade, pois encontramos temas como o Roubo do Fogo, a Terra dos Mortos, a Imaculada Conceição e o Herói Ressurrecto distribuídos por todo o mundo, aparecendo em todo lugar, em novas combinações”. CAMBELL, Joseph (Org.). Mitologia da Vida Moderna. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 2002.

8 desgastando pela força do tempo e da razão. Para isso, requer-se flexibilidade, maleabilidade e muito ‘jogo de cintura’ para que nunca se quebre o encanto da palavra divina. O poder na sociedade dos céus demanda obrigatoriamente o exercício do discurso e da prática política. De certo modo, isto faz parte da natureza e das qualidades de toda liderança, mesmo que esta tenha sido ungida pelo próprio líder. Acima de qualquer ser, Deus tem o dever de ser um verdadeiro expert em política. Manter toda uma estrutura universal de crenças, mitologias e rituais e uma imensa massa de seguidores ativos (apóstolos, padres, pastores) ou passivos (crentes comuns) nesta cruzada histórica demanda necessariamente uma desenvoltura cerebral extraordinária, assim como uma habilidade de transigência e de barganha descomunal. Considerando, além disso, que o sistema de poder é absolutista, centralizador e discricionário, o exercício cotidiano da atividade fim da religião (a evangelização, o arrebanhamento, a catequização) precisa estar calibrado para operar de modo a impedir o aparecimento da dúvida, do questionamento, da crítica ou da própria contestação e da rebeldia de um ou de muitos contra todo o sistema. Por isso, a exigência de um forte domínio de sociologia política para manterse o reino sempre de pé. Assim na terra como no céu, prevalece naturalmente a lógica de que os fins justificam os meios, a lei consuetudinária do poder do mais forte sobre o mais fraco, o jogo do toma-lá-dá-cá, o clientelismo aos clãs ou aos protetorados mais simpáticos à causa religiosa, o fisiologismo da promessa e da expectativa, o favorecimento político àqueles que caem nas graças do ungido pelo poder, dentre tantas outras fórmulas políticas bastante pragmáticas e utilitaristas. Os deuses trabalham, afinal de contas, para os seres humanos, um público um tanto disperso, desorganizado e desacreditado, que vive às tontas entre a racionalidade e a fé, e que tem produzido um bocado de desencantamento e de desesperança ao longo de sua curta jornada pela vida terrena. A questão, entretanto, é que os homens foram gerados à semelhança do criador, ou, dito de outra forma, a sociedade humana é a reprodução, por verossimilhança, da sociedade dos deuses. Veja-se que a sociedade humana também produz e reproduz, a seu modo, a gramática de esperança, de redenção e de salvação da vida na terra ou no céu, com doses apropriadas de pragmatismo, utilitarismo e automoralismo. Os homens, ao longo de sua breve jornada civilizacional, querem construir (ou reconstruir) na terra o projeto da vida ideal, cópia da cidade dos deuses, mas pensada, planejada e produzida pela crença no alcance do nirvana divino por meio do próprio antropocentrismo. Um mito fundador sacramentado pelo dogma de que, ao roubar o fogo dos deuses, o titã Prometeu também contrabandeou a sabedoria dos deuses do panteão celestial para o universo mundano dos seres humanos. Verdade ou não (a narrativa), o fato é que a sociedade dos homens está assentada nos mesmos moldes sociais, políticos, morais e culturais da sociedade dos deuses, embora o discurso e as práticas sociais tenham, às vezes, um verniz um tanto

9 simulado ou dissimulado. O sistema de poder é autocrático, absolutista e discricionário e o regime de governo é centralizador, totalitário e monoteísta. Não são sistemas abertos, livres, plurais, justos e participativos, como se fala ou como as leis supostamente prescrevem. O modelo de sociedade baseado nos ideais republicanos, democráticos e liberais esconde, na verdade, a lógica subterrânea dos jogos de poder que movem os homens, bem como os esquemas de interesse, de temor, de fisiologia e de darwinismo que perpassam as estruturas sociais. O Príncipe não mantém o povo em estado de dominação, de opressão e de terror por todo tempo, por meio de mecanismos verticais e fechados, numa luta incessante e desigual entre o cordeiro e o lobo. Todos os regimes que estabeleceram o modelo de despotismo absoluto desapareceram em pouco tempo. Maquiavel bem observou que a sobrevivência do sistema deve estar assentada sob a lógica do poder e da política das máscaras, das sombras, das sutilezas, dos ardis e dos enganos. O exercício do poder é e sempre será a arte da astúcia. Vejamos as palavras de Maquiavel: “É preciso notar que um Príncipe não pode observar todas as condições pelas quais ele é estimado como homem de bem; porque ele é frequentemente obrigado, para manter seus Estados, a agir contra a sua palavra, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. É por isso que é preciso que ele tenha o entendimento pronto para mudar, segundo os ventos da fortuna e as variações das coisas pedem e, como já disse, não se afastar do bem, se puder, mas saber entrar no mal, se há necessidade10” A história nos lembra, com razão, que o modelo clássico de governo, usual entre quase todos os povos, foi sempre o de um comando imperial11 (um tzar, um déspota, um rei, um papa/rei, um ditador) que se investiu de poderes supremos (messiânicos, místicos, religiosos etc) e governou um determinado povo pelo uso da força, do temor e ou da retórica. A leitura atenta deste fenômeno mostra a existência de uma dialética entre o governante e o governado. A tirania monárquica é exercida, sem dúvida, pelo exercício da força, do controle, do medo e do jugo. Por outro lado, o detentor do poder aparece sempre, como um líder (rei, imperador, rei-sol, deus-rei, salvador, protetor, ungido, o escolhido, o iluminado) predestinado a ordenar e regular a vida dos homens em sociedade, estabelecendo as regras do Estado, e trabalhando em prol da felicidade de todos. O rei e seu poder imperial sobrevivem por meio de um jogo de liberdade consentida ou compartilhada. Se o todo-poderoso não souber jogar a sorte nos dados da política do toma-lá-dá-cá, ele sobreviverá tão somente o tempo que o povo quiser. Isto é: enquanto for do interesse social, o sistema de poder sobreviverá.

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MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Capítulo XVIII.

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Este modelo ainda sobrevive em algumas poucas zonas do planeta.

10 Este jogo de luzes e espelhos da liberdade e da dominação mostra que o fio de Ariadne do modelo de poder permanece sempre o mesmo, apesar de o mundo simbólico renovar permanentemente a gramática da realidade. Francis Fukuyama acreditou que a democracia neoliberal seria o destino final dos viajantes da civilização. Ele não percebeu, entretanto, que os nomes e as estruturas do governo mudaram, mas a arquitetura e a lógica do poder permaneceram as mesmas. Em outras palavras: as aparências mudam, mas a essência é sempre a mesma. A democracia, uma concessão histórica da aristocracia e da burguesia para manter-se no poder, representa apenas um suposto governo do povo, ou a vontade da maioria, quando, em síntese, eleva ao poder apenas aqueles que já pertencem às classes poderosas (do ponto de vista político e econômico) e que tem apoio e sustentação política destas classes para poder permanecer no poder. Ademais, o processo democrático demandaria necessariamente esclarecimento, discernimento e conhecimento, em alto grau, do populacho para eleger seus representantes. Como não existem educação e cultura de qualidade para as massas, o processo é sempre viciado e distorcido. E como os eleitos são aqueles que conseguem visibilidade social, graças ao poder econômico, também não existe o princípio da disputa justa entre os candidatos. No final, a democracia acaba validando apenas o governo de um aristocrata, que exerce o poder de modo autocrático, e conduz os negócios do Estado de acordo com os interesses da plutocracia. O Estado torna-se uma rede totalitária e discricionária, já que envolve tanto os legisladores e juízes, originários do mesmo universo social, cultural e econômico dos governantes. O democrata é, neste sentido, um monarca com outro nome, ungido pela chamada vontade popular, graças a um sufrágio sempre decidido antes da abertura das urnas. Ele governa a bel prazer, mancomunado com os monarcas de toga ou de palitó. As realizações sociais destes monarcas, muitas vezes apenas na forma de assistencialismo, são as bonificações econômicas distribuídas às classes sociais fora do jogo do poder e do governo, para que estas se sintam integradas ao sistema. Um dado importante, nesta questão, é que nem sempre o neo-monarca moderno é aquele que emerge do voto. A figura e a representação do monarca aparecem travestidas de muitas formas em uma infinidade de estruturas ou organizações sociais no mundo contemporâneo. É o general, a qual os soldados devem obediência total; o sacerdote, cujas pregações têm foro de verdade absoluta; o juiz, cuja sentença tem o poder semelhante ao de um deus; o gerente-geral, temido como um verdadeiro verdugo pelos funcionários; o empresário, reverenciado como um legítimo guia espiritual do nosso tempo; o chefe, cortejado e endeusado por seus subordinados em nome de uma pragmática lógica de subserviência estratégica e de sobrevivência dos mais fracos no mundo dos mais fortes. Até no modo de governança, a sociedade humana espelha a sociedade dos deuses. O detentor do poder, o chefe de governo, professa o discurso da liberdade, da bonança, da oportunidade, da participação e da boa-venturança. Este é, contudo, tão

11 somente o atávico jogo da política. Na equação do poder e do governo, o alcaide diz o que as pessoas querem ouvir e faz o que estrategicamente é útil e necessário para manter-se no poder. Usa, deste modo, a política, como uma arma tática no exercício de seu reinado e como instrumento para favorecer os estamentos sociais, econômicos e políticos que o favorece12. O homem, em sua sociedade divinizada, governa consequentemente pelas mesmas lógicas da crença (mantida pela invenção de um sistema dogmático) da obediência (subsumida pelo mito, pela razão ou pela força), pelo controle (exercido pelas organizações sociais aliadas) e pela culpa (estabelecida pelas leis ou pelos princípios morais). As condições materiais de produção, assim como as estruturas dogmáticas discursivas da imaginação, servem para reproduzir sempre as mesmas condições e estruturas sociais, políticas e econômicas. Não se pode esquecer, entretanto, que, assim como os deuses, os homens estão sempre de prontidão para usar a força e sacrificar a vida em nome da causa imperial, absolutista e monoteísta da verdade do poder. A barbárie tem sido uma prática constante na história da civilização como instrumento para manter a ordem, a paz, a harmonia, a cordialidade, a racionalidade e a tranquilidade na convivência entre os povos. A história da barbárie é, em muitos momentos, a própria história dos homens. No passado, conta Patrick Banon, “os gauleses tinham por hábito cortar a cabeça dos inimigos mortos. Na Irlanda, a coleta de crânios fazia parte de um rito de passagem da juventude para a idade adulta. Na Indonésia, os jovens só tinham acesso ao casamento depois de cortar uma cabeça. Na Irlanda, o portal da igreja de clonfert alinha ainda duas pirâmides de cabeças cortadas. Entre os celtas, a caça aos crânios faz parte de um sistema de ritos essenciais à perpetuação do grupo. Cortando a cabeça de um morto, o homem se apodera de sua vitalidade e de sua fecundidade”13. A dialética da vida e da morte parece fazer parte da cultura humana, como um dos seus principais caprichos estéticos, poéticos, morais ou teleológicos. Philippe Delmas lembra que “no século XVI, a Europa só conheceu dez anos de paz; no século XVII, quatro anos apenas, e dezesseis no XVIII. De 1500 a 1800, em trezentos anos, a Europa viu 270 anos de guerra, com uma nova guerra a cada três anos. A Áustria e a Suécia, modelos pacíficos, presenciaram, durante esses três séculos, uma guerra a cada três anos, a Espanha a cada quatro anos, a Polônia e a Rússia a cada cinco anos”14. A carnificina deixou um lençol de sangue por toda a Europa, mas também pela Ásia, pela África e pela América, sobretudo por efeito histórico do processo de

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Este império da realidade material e simbólica trabalha para fazer com que tudo permaneça sempre como está, i. é, na lógica perversa da sociedade do espetáculo, onde até mesma a disfunção, a disruptura ou a dissuasão são componentes orgânicos do próprio sistema. 13

BANON, Patrick. Para conhecer melhor as religiões. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: Claroenigma, 2010. P. 44. 14

DELMAS, Phillipe. O Belo Futuro da Guerra. Rio de Janeiro: Record, 1996. P. 196.

12 colonialismo, de imperialismo (cultural, político ou econômico), e de faxina étnica e religiosa entre povos, nações e deuses. “As duas guerras mundiais causaram 100 milhões de mortes, das quais 60 milhões de civis. As revoluções russas e chinesas juntaram no mínimo 50 milhões e um número crescente de historiadores estima que a cifra seja o dobro. Quanto às 146 pequenas guerras desde 1945, elas exterminaram discretamente em torno de 30 milhões de pessoas, três quartos delas civis, e beneficiando essencialmente as grandes potências. As mais longínquas destas não têm uma história diferente das mesmas: durante seus primeiros seis séculos, a China só teve dezessete anos sem guerra. Durante seu último século (XIX), entre a colonização ocidental, a invasão japonesa, a libertação e as sucessivas resoluções maoístas, ela perdeu entre 30 e 60 milhões de mortos (sic)”15. Não se pode deixar de fora deste cenário, as lutas, as batalhas ou as campanhas pacificadoras, libertadoras ou evangelizadoras engendradas por determinadas instituições, seitas, companhias ou países, em nome dos deuses e de suas causas, como foi o caso da Inquisição, das Cruzadas e da catequização dos ameríndios. As Cruzadas, por exemplo, tinham a ambição velada de reconquistar territórios perdidos, mas a pretensão anunciada era mesmo a de arrebanhar novas legiões de fiéis para Cristo. Cem mil voluntários participaram da primeira Cruzada, que, no final, ajudou a reconquistar Jerusalém. Note-se que, para motivar os ‘cristãos comuns’ a se unir a estas peregrinações armadas, o papado prometeu “que todos os cruzados ficariam inteiramente isentos de punições no purgatório, e que suas almas iriam diretamente para o céu se morressem na cruzada”16. Ninguém resistiu à tentação de se livrar automaticamente dos pecados e de ganhar uma vaga privilegiada no Olimpo divino. “A indulgência plena era uma oferta verdadeiramente extraordinária e as multidões se apressaram a tirar proveito dela. À medida que se reuniam eram levados pelos pregadores a um frenesi religioso que raiava pela histeria coletiva. Estavam convencidos de que tinham sido escolhidos para purgar o mundos dos ímpios”17. No final, as Cruzadas ajudaram a revitalizar o enfraquecido Estado Católico, e significaram, nos primeiros séculos do segundo milênio, a conquista de uma condição singular para a Igreja Romana. “A inovação mais fundamental, do ponto de vista da organização, foi o triunfo da monarquia papal. Antes de meados do século XI, certos papas haviam reivindicado primazia no seio da Igreja, porém pouquíssimos tinham chegado perto de concretizar essas pretensões. Na verdade, antes de 1.050 d.C a maioria dos papas mal conseguia exercer plenamente o poder como bispos de Roma. Depois disso, porém, os papas se transformaram nos supremos líderes religiosos do cristianismo 15

DELMAS, Phillipe. O Belo Futuro da Guerra. Rio de Janeiro: Record, 1996. P. 197.

16

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. São Paulo: Globo, 2000. P. 281.

17

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. São Paulo: Globo, 2000. P. 281.

13 ocidental. Centralizaram o governo da Igreja [e] desafiaram o poder dos reis e imperadores”18. Esta trajetória histórica e cultural, de centralização do poder, da institucionalização da opressão e da sistematização da barbárie19, não é exclusividade apenas da sociedade dos homens e da sociedade dos deuses. Mesmo que nossa atenção esteja voltada, sobretudo, para as olimpíadas marciais de deuses contra deuses, homens contra deuses, deuses contra homens e de homens contra homens, sabemos que as estruturas de poder, de governo e de Estado, com sua lógica e sua organicidade, estão presentes, à imagem e semelhança da irracionalidade, na própria sociedade natural. Apesar de ser vista como um hábitat romântico, idílico e encantador, a selva abriga tantas ou mais perversidades, crueldades e atrocidades que as existentes na sociedade dos deuses ou na sociedade humana. Na sociedade natural, não existe piedade. É a lei do mais forte, do mais apto, do mais rápido, do mais capaz. O darwinismo biológico dita a lógica das forças de sobrevivência e o imperativo categórico da evolução. Nada escapa a esta máxima da existência entre seres premidos pelo princípio da guerra motivada apenas por mais um dia de vida, por um pedaço de alimento ou por espaço debaixo da sombra de uma árvore. O absolutismo biológico e o despotismo organizacional e processual entre os habitantes deste universo reproduzem naturalmente as relações e as estruturais sociais humanas, os sistemas de governo e de poder nas relações micro (horizontais) ou macrofísicas (verticais), os mecanismos de tirania e dominação, bem como a institucionalização de mitos e tabus dentro da existência neste universo natural. Vejamos algumas destas situações: A. Sociabilidade: Uma ampla variedade de espécies animais, de diversos gêneros, apresenta o que podemos chamar de cultura, de hábito ou de costume natural das relações sociais, com alto grau de interdependência. È o caso clássico das abelhas, formigas, dos cupins, das vespas e dos chimpanzés, ou mesmo de espécies como as ariranhas, as girafas, os elefantes e os leões. Todos estes grupos convivem em grupos ou bandos, atuam em prol de toda a coletividade e demonstram ocasionalmente laços de afeto e solidariedade. O exemplo mais estridente é o dos bonobos, também chamados de chimpanzés pigmeus, que é talvez, a sociedade mais pacífica de todo o reino animal. B. Hierarquia: As formigas e, abelhas formam uma organização plenamente hierarquizada. Entre as abelhas, a Rainha-Mãe (reprodutora) é a manda18

19

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. São Paulo: Globo, 2000. P. 271.

Ao que parece, esta cultura da morte tem sido um dos mais antigos hábitos (ou costumes) praticados na sociedade dos homens e na sociedade dos deuses. Ela foi quem primeiro ligou os homens à ideia de transcendência, de imortalidade e de eternidade, e, por isso, (re) ligou o mundo profano da humanidade às crenças, aos mitos e ao universo sagrado, místico e natural/sobrenatural da religião.

14 chuva absoluta, e todas as demais são apenas operárias (não-reprodutoras), a cumprirem suas tarefas. Elas são chamadas de os insetos sociais por excelência, posto que vivem em comunidades e trabalham cooperativamente, além de estabelecerem um sistema de proteção total dos filhotes ou das próprias adultas. C. Dominação: A sociabilidade a hierarquia vem acompanhada normalmente de uma estrutura de castas sociais. No caso das abelhas, a Rainha-mãe é soberana absoluta, os machos têm função apenas de acasalamento com a rainha e as operárias ou trabalhadoras têm uma existência dedicada a manter a subsistência do ninho, protegendo a rainha e todas as demais. Modelo semelhante existe entre as formigas: há a rainhas (ou içás), os reis (ou bitus), e as operárias (estéreis). As operárias se subdividem em três tipos: os soldados (que zelam pelo ninho), as cortadeiras-carregadeiras (que cortam e transportam folhas e gravetos) e as jardineiras (que cuidam dos fungos). D. Tirania: Além de obviamente existirem rainhas ou reis em vários dos reinos animais, o sistema absolutista e discricionário permite a ocorrência de situações de nepotismo, traição, escravidão e, até mesmo, de corrupção (caso absolutamente comum no mundo das formigas), de favorecimento e de compensação, ao estilo da máfia (no caso de algumas aves), ou de canibalismo (caso de muitos animais, entre os quais os filhotes de hienas que comem seus próprios irmãos). E. Guerra: Todos sabemos que a vida selvagem é o hábitat natural da violência, da lei do mais forte e da sobrevivência dos mais aptos. Este é um traço normal em um mundo regido pelo princípio do ataque e defesa. O que chama a atenção é que também existe no mundo animal, assim como no mundo humano, a prática da guerra, i. é, a reunião de um grande contingente de espécimes com o fito único de travar batalha contra outro grupo por um ou por vários motivos. Esta prática é natural entre chimpanzés e macacos, e tem como causa principal a defesa do território e de seus recursos naturais. O princípio organizacional do mundo natural (animal, vegetal e mineral) deu origem, mesmo com todos os seus méritos e deméritos, à concepção do darwinismo social e do organicismo social spenceriano. Em síntese, uma vertente importante de filósofos e sociólogos da era moderna viu a semelhança, senão a própria igualdade, entre as regras, as lógicas, as estruturas e os sistemas operacionais e processuais do mundo da natureza com o mundo dos homens. Tal ideia levou à compreensão última de que o evolucionismo biológico, o mecanicismo social e cultural e o determinismo positivista são a razão vulgar da existência universal, privada de qualquer sentido ulterior que não o da sua própria imanência. Nesta perspectiva, a invenção de tamanha sorte de mitologias, crenças, deidades, superstições, totens e tabus, é apenas pura expressão litisconsorte deste vasto mundo natural, o jogo banal do acaso, o conteúdo em si do próprio significado,

15 isto e apenas isto. Não representa qualquer coisa que esteja superposta ou sobressalente ao que representa tão somente a objetividade e a concretude da vida. Portanto, seguindo esta lógica, só podemos compreender o mundo humano como parte do mundo natural e o mundo dos deuses como parte do próprio mundo humano. Como dissemos, são três pontas da mesma linha. Estão inextricavelmente interligadas e, por isso, fazem parte umas das outras. Como já dissemos: as três organizações sociais são uma única sociedade universal. Elas contêm em si as mesmas estruturas políticas, culturais, morais e econômicas. Possuem os mesmos sistemas de controle e de poder, observam as mesmas lógicas hierárquicas e seguem os mesmos princípios de ordem e funcionalidade social. Em certo sentido, a autocracia (monarquia na sua forma de tirania) está na própria essência humana e, por que não dizer, na essência da natureza. A autocracia divina é uma projeção da fantasia de o homem ser o senhor da vida e do seu destino, tornar-se o imperador dos fatos, das causas e dos mistérios. É a humana utopia de querer controlar o que sempre se apresenta como imponderável, inominável e incontrolável. A autocracia é o homem como desejo de ser deus e, ao mesmo tempo, como dizia Sartre, o homem como deus fracassado. Queremos ter o poder sobre nós mesmos e sobre os outros e a vontade de exercer a soberania imperialista sobre a verdade e o sentido das coisas. Todavia, somos sempre ruptura e ilusão. Sonhamos em dominar com rédea curta a realidade e a irrealidade da vida. Tudo o que temos, entretanto, é o sonho e a negação da vida. Projetamos, nesta frequência, nossas próprias necessidades e vontades biológicas. A autocracia nada mais é que o desejo coletivo do pai, do salvador, do redentor, do provedor e do protetor. É o clamor silencioso por algo que nos abrace e nos abrigue do non sense de todas as coisas. Algo que preencha os espaços cósmicos do vazio da imanência e da transcendência, sempre abertos e expostos, a sangrar nossa finitude e insignificância. Dentro desta ótica, os grandes profetas, Cristo, Buda, Moisés, Lao-Tseu e Confúcio, são uma espécie de super-heróis de nossas bizarras existências, sempre trazendo as soluções mágicas para nos afastarmos do mal e caminharmos em direção à verdade, à paz, à salvação e ao paraíso (com suas 33 virgens). O herói possui os poderes dos deuses, logo “torna-se o substituto funcional [daquele], fornecendo aos fiéis o mesmo serviço: segurança, certeza, tranquilização”20. Estes seres - puros, imortais, perfeitos e infalíveis -, representam, ademais, o que todos nós esperamos de um verdadeiro líder. Eles encarnam a virtude, o bem, a justiça e a coragem, predicados esperados de um autêntico guia espiritual, que pode sacrificar a própria vida para salvar a de seus irmãos. Buda, afinal abandonou a família (mulher e filhos), para cumprir sua jornada. Paulo cansou de bater nos cristãos para num momento de ‘iluminação’, largar tudo, e virar o grande apóstolo do cristianismo. Gandhi e Madre Teresa de Calcutá também foram exemplos de abdicação dos prazeres mundanos para se dedicarem a uma vida de caridade. 20

SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado Espetáculo. Rio de Janeiro: Difel, 1978. P. 28.

16 Muitas personalidades políticas de nossa história, antiga ou recente, souberam também assumir o papel de salvadores da pátria e do povo, criando verdadeira deificação e idolatria em torno de suas imagens. Tornaram seu governo a própria religião do Estado, colocando-se na mesma estatura do sagrado e do sublime. Foi o caso do presidente Mobutu, no Zaire, chamando de “Mobutu, o Criador”, “Mobutu, o Construtor”, “Guia da Revolução Zairense”, “Pai da Nação Zairense”; de Kwamé Nkrumah, em Gana, tratado como “o maior africano de nossa geração”, o “renovador de todas as coisas”, “o fazedor de vitórias”, “o bravo guerreiro”; Duvalier, no Haiti, denominado de “Papa Doc”; e Mujibur Rahman, o “Tigre de Bengala”21. Os mais poderosos foram, contudo, aqueles homens que acabaram associados com a imagem de verdadeiros pais do povo, semideuses prontos para abraçar, proteger e liderar seus filhos em todas as situações e em todos os momentos. Stálin foi chamado de o “paizinho do povo”; Idi Amim era o “Big Daddy” (Grande Pai); Bokassa era tratado como “Meu Querido Papai”; Luis XIII era o “Pai do Povo”; Getúlio Vargas ficou conhecido como “o Pai dos Pobres”. No fundo, os homens não disfarçam o desejo consciente ou inconsciente de se apoderar das qualidades mágicas pertencentes apenas aos deuses: o heroísmo, a liderança espiritual, o salvacionismo, o patriarcado amoroso etc. “O grande papel com que sonham os monstros sagrados da política é o de grande homem. O de herói. O do semideus da mitologia. Entre o Céu e a Terra. É o homem excepcional, fadado ao triunfo, e depois à apoteose. O homem das façanhas, do entusiasmo e da glória. Em suma: o ídolo proposto ao culto dos mortais. É o salvador, quase o messias. O chefe providencial, o chefe genial, médium do espírito nacional. É o profeta de sua raça. Sempre imerso no solene, no sublime, na ênfase”22. Por isso, os homens transportam para o Estado e para a Política, no mundo terreno, as exigências psicológicas e as projeções arquetípicas da construção e da ordem natural do universo. O Estado-pai-protetor-provedor é o próprio Deus-pai, que traz para os homens, mesmo que plano do símbolo da promessa da libertação ou da salvação, a realização do ideal religioso (transcendente) e do ideal político (imanente) da eudemonia (realização da felicidade) perfeita tanto na terra como no céu. “A realidade é, [portanto], um plano [por excelência] milagroso, plano [ao mesmo tempo] transcendente e revelado [aos homens]. As semelhanças entre o divino e o humano contidos numa religião política integram os planos transcendente e imanente, [e] se materializam como única essência”23.

21

SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado Espetáculo. Rio de Janeiro: Difel, 1978.

22

SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado Espetáculo. Rio de Janeiro: Difel, 1978. P. 11. MIR, Luis. O Partido de Deus. São Paulo: Alaúde, 2007. P. 36.

23

17 Nada normal, portanto, que a política da religião e a política humana, representada pelo Estado, expressarem e desempenharem o mesmo sentido no andar superior e no andar inferior. Ambas vivem dos mesmos ideais, das mesmas promessas, das mesmas simbologias, das mesmas práticas pragmáticas e das mesmas mitologias e fantasias. Traduzem-se, imediatamente, as mesmas hierarquias, as mesmas instituições, as mesmas regras de dominação e submissão, e as mesmas estruturas de totalitarismo e tirania, mesmo disfarçadas ou dissimuladas pelo desejo [pretensamente realizado] de liberdade e igualdade. Temos, em consequência, um Deus-Estado, que é, ao mesmo tempo, representação de uma “sociedade religiosa dogmática (coercitiva) e de uma sociedade civil [secularizada e] religiosa [que sustenta a superioridade da religião], que aceita a deidade e a religiosidade como domínio privilegiado e indiscutível”24 [do reino absoluto da vida]. Não existe diferença, portanto, entre o modelo autocrático humano e o modelo autocrático religioso [nem com o modelo autocrático natural]. O imperador ou os deuses são déspotas da verdade terrena ou celestial que projetam na imanência ou na transcendência os desejos ou as fantasias fraturadas e irrealizadas do inconsciente humano. A autocracia é, simplesmente, o desejo arquetípico da perfeição humana pelo processo de domínio e de controle de si mesmo, i. é, do controle sobre a vida, de controle sobre os outros, de controle sobre a natureza e de controle (mais do que da própria invenção) do sentido de tudo25. Como diz Jung: “toda religião que se enraiza na história de um povo é uma manifestação de sua psicologia, como o é, por exemplo, sua forma de governo”26. Logo, a religião e a religiosidade são manifestações que nascem do processo de exteriorização, interiorização e objetivação (próprios do processo de construção social da realidade) da alma humana, que vê o dogma como objeto do mundo, ao mesmo tempo em que materializa este dogma como fato do mundo (governo), sem considerar que tudo nasceu pura e simplesmente em sua mente (como causa). Em outras palavras: o governo totalitário existe no mundo porque existe na mente dos indivíduos e se transforma no modelo político e de poder da monarquia como o ideal de nos assenhorarmos do aqui e agora e de submetermos os outros ao nosso desejo (mesmo que eternamente fraturado)

24

MIR, Luis. O Partido de Deus. São Paulo: Alaúde, 2007. P. 38.

25

Na busca pela liberdade, o homem exerce dominação, opressão, exploração. Na sua pregação da liberdade, Deus exige obediência, reverencia, exclusividade, submissão e ignorância. Sua verdade é a única. Em sua vida de total liberdade (em tese), os animais seguem sempre o princípio do ataque e da defesa.

26

JUNG, Carl. Psicologia e Religião. Petrópolis. Vozes: 1999. P. 85.

18 Alan Watts, discípulo de Campbell, observa, por exemplo, que “a imagem em vigor na civilização ocidental tem sido a ideia do universo à semelhança de uma monarquia política” Isto decorre, sobretudo, na crença enraizada entre “um imenso número de nossos cidadãos [que realmente] acredita que o universo é uma monarquia e, se o universo é uma monarquia, essa é, evidentemente, a melhor forma de governo27”. A monarquia é, nesta medida, a própria expressão de um modelo biológico individual, enquanto a ideia da democracia é modelo cultural e social institucionalmente criado para submeter nossos desejos individuais aos desejos coletivos (o princípio do prazer ao princípio da realidade). Neste jogo patológico de crenças, vontades e desejos, a sociedade transformase no universo superestrutural, material e operacional, de castas de monarcas, de imperadores e de súditos, de senhores e escravos, em estruturas hierocráticas, hierarquizadas e institucionalizadas. Somos monarcas sem reino, sem trono e sem cetro, mas somos sempre os monarcas de nossas vidas e de nossas ambições, a exercer uma espécie de monarquia cotidiana como prática de uma subjetividade individual e de uma objetividade social. Tudo está tão preso a esta lógica universal que podemos pensar se talvez o próprio pensamento humano não seria também uma estrutura pertencente à imensa lógica universal da monarquia da vida.

27

WATTS, Alan. Mitologia ocidental: dissolução e transformação. In: CAMPBELL, Joseph (org.). Mitos, sonhos e Religião. Tradução de Angela Lobo de Andrade e Bali Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. P. 11.

19

REFERÊNCIAS BIBIBLIOGRÁFICAS

BANON, Patrick. Para conhecer melhor as religiões. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: Claroenigma, 2010. BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociológica da Religião. São Paulo: Paulus, 1985. BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. São Paulo: Globo, 2000. CAMBELL, Joseph (Org.). Mitologia da Vida Moderna. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 2002. DELMAS, Phillipe. O Belo Futuro da Guerra. Rio de Janeiro: Record, 1996. DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ENGELS, Friedrich. A Humanização do Macaco pelo Trabalho. In A Dialética da Natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago. 1996. JUNG, Carl. Psicologia e Religião. Petrópolis. Vozes: 1999. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Editora Martin Claret, 2007. MIR, Luis. O Partido de Deus. São Paulo: Alaúde, 2007. RUIZ, Castor Batolomé. Os Paradoxos do Imaginário. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 7ª ed. Trad. Oscar Paes Lemes, Rio de Janeiro, Editora: Vozes, 2002. SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado Espetáculo. Rio de Janeiro: Difel, 1978. WATTS, Alan. Mitologia ocidental: dissolução e transformação. In: CAMPBELL, Joseph (org.). Mitos, sonhos e Religião. Tradução de Angela Lobo de Andrade e Bali Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

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