A sociedade é inefável. Sobre a individualidade do protagonista de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795/96), de Goethe

June 14, 2017 | Autor: M. Hoffmann Oliveira | Categoria: German Literature, Ontology, Individuality, Wilhelm Meisters Lehrjahre
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Manoela Hoffmann Oliveira

“A sociedade é inefável. Sobre a individualidade do protagonista de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795/96), de Goethe”

Campinas, SP 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Manoela Hoffmann Oliveira

“A sociedade é inefável. Sobre a individualidade do protagonista de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795/96), de Goethe”

Orientadora: Profa. Dra. Maria Suely Kofes Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Doutora em Ciência Sociais.

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida por Manoela Hoffmann Oliveira e orientada pela Profa. Dra. Maria Suely Kofes _______________________________ orientadora

Campinas, SP 2014 iii

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/338

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Oliveira, Manoela Hoffmann, 1980OliA sociedade é inefável : sobre a individualidade do protagonista do romance "Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister" (1795/96), de Goethe / Manoela Hoffmann Oliveira. – Campinas, SP : [s.n.], 2014. OliOrientador: Maria Suely Kofes. OliTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Oli1. Goethe, Johann Wolfgang von, 1749-1832. 2. Wilhelm Meister (Personagem fictício). 3. Individualidade. 4. Romance. 5. Ontologia. I. Kofes, Suely,1949-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: The society is ineffable : the individuality of the protagonist of the Goethe's novel "Wilhelm Meisters Lehrjahre" Palavras-chave em inglês: Wilhelm Meister (Fictitious character) Individuality Novel Ontology Área de concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutora em Ciências Sociais Banca examinadora: Maria Suely Kofes [Orientador] Luiz Barros Montez Jorge Luiz da Silva Grespan Ricardo Musse Mario Luiz Frungillo Data de defesa: 22-04-2014 Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

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UNICAMI'I

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, em sessão pública realizada em 22 de abril de 2014, considerou a candidata MANOELA HOFFMANN OLIVEIRA aprovada.

Este exemplar corresponde à rédação final da Tese defendida e aprovada pela Comissão Julgadora.

Profa. Ora. Maria Suely Kofes

Prof. Dr. Mario Luiz Frungillo

Prof. Dr. Luiz Barros Montez

Prof. Dr. Ricardo Musse

Prof. Dr. Jorge Grespan

Profa. Dra. Gilda Figueiredo Portugal Gouvea

Profa. Ora. Lívia Cristina de Aguiar Cotrim

Profa. Ora. Susana Oliveira Dias de se \ê·.

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RESUMO

O objetivo desta tese é reconstituir ontologicamente a individualidade de Wilhelm Meister, protagonista do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, defendendo que Wilhelm não pôde efetivar-se por meio de sua autoatividade. No Capítulo 1, apresentamos o caráter do herói, suas qualidades e fraquezas, seus modos recorrentes de pensar, agir e sentir; discutimos em seguida como sua sensibilidade é especialmente aberta a certos estímulos, provocadora e atraente de outros, bem como a constituição subjetiva do herói, por meio da interiorização das experiências e da lembrança; em consciência, as ideias que ele faz sobre a realidade que experiencia. No Capítulo 2, demonstramos o modo como Wilhelm foi ativo no decorrer de sua trajetória, os obstáculos que se interpuseram à inclinação e à disposição que existiam nele para a arte teatral e, por fim, como ele redirecionou sua atividade. No Capítulo 3, abordamos as circunstâncias e as relações que Wilhelm trava com outras pessoas, tentando delimitar os contextos e avaliá-los segundo os objetivos do herói; para tanto, apresentamos um grande painel dos personagens. No Capítulo 4, acompanhamos a trajetória do herói sob o ponto de vista da sua passividade e de como essa característica reúne tanto uma necessidade literária quanto uma necessidade real, da vida social na qual Wilhelm está imerso. Por fim, apresentamos o destino do herói, o desfecho de sua trajetória. Deixamos para a Conclusão a discussão dos possíveis significados do destino de Wilhelm Meister, entendido como trágico para sua individualidade.

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ABSTRACT The goal of this thesis is to reconstitute ontologically the individuality of Wilhelm Meister, protagonist of the romance Wilhelm Meister's Apprenticeship, arguing that Wilhelm could not manifest itself through its self activity. In Chapter 1, we present the character of the hero, its qualities and weaknesses, its recurrent ways to think, to act and to feel; we argue how its sensitivity especially is opened the certain stimulatons, provocative and attractive of others, as well as the subjective constitution of the hero, by means of the internalization of the experiences and the remembrance; in conscience, the ideas that it makes on the reality that experience. In Chapter 2, we demonstrate how Wilhelm was active during its trajectory, the obstacles interposed to the inclination and to the disposal existed in it for teatral art e, finally, how he redirected his activity. In Chapter 3, we discuss the circumstances and relationships that lock Wilhelm with others, trying to delimit the contexts and to evaluate them according to the objectives of the hero; for this, we present a great panel of the personages. In Chapter 4, we follow the trajectory of the hero under the point of view of its passivity and how this feature brings both a literary necessity as a real need, of the social life in which Wilhelm is immersed. Finally, we present the destination of the hero, the outcome of his trajectory. We leave for the Conclusion the quarrel of the possible meanings of the destination of Wilhelm Meister, understood as tragic for his individuality.

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SUMÁRIO

Apresentação..........................................................................................................................1 INTRODUÇÃO Sobre os antagonismos na tradição interpretativa do romance moderno................................5 As origens do ciclo Meister...................................................................................................12 O aprendiz e o aprendizado (primeira e segunda recepções da obra) A correspondência com Schiller: a não pronunciação da ideia.................................15 A carta de Christian Gottfried Körner: a Bildung de um “homem”..........................20 A carta de Wilhelm von Humboldt: a fraqueza do herói (contraposição a Körner)..................................................................................................................................23 A posição de Schiller frente a Körner e Humboldt: Wilhelm é o mais necessário, mas não o mais importante....................................................................................................24 Os estudos de Friedrich Schlegel: a ironia da arte de viver.......................................25 Novalis: a crítica à economia e à razão.....................................................................27 O conceito de individualidade em Goethe............................................................................29 CAPÍTULO 1 Apresentação: A particularidade do caráter como sinônimo de individualidade e sua pertinência para a teoria literária..............................................................................................................33 Nota sobre os significados de sensibilidade..............................................................35 Consciência: a concepção de mundo de Wilhelm.....................................................37 Caráter Ingenuidade, autoengano e moralidade.....................................................................39 Sensibilidade........................................................................................................................61 Natureza................................................................................................................................62 Amor......................................................................................................................................65 Arte........................................................................................................................................71 O filho enfermo do rei...................................................................................73 O teatro e os heróis........................................................................................76 Mignon e o harpista.......................................................................................84 Mignon......................................................................................................................86 Harpista.....................................................................................................................88

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Consciência Destino e acaso..........................................................................................................91 Arte e humanismo.....................................................................................................93 O poeta: individualidade autoativa............................................................................97 Hamlet: o dilema entre a autossuficiência e a necessidade das circunstâncias.......102 A crítica ao comércio e à propriedade.....................................................................107 Idealismo burguês: nulidade das classes, realização individual pela autoatividade e conexão social por meio de representações ideais e sentimentais.......................................110 A consciência de si..................................................................................................118 A simbiose aristocrático-burguesa A exaltação ambígua da nobreza.................................................................122 Classe social e possibilidade de formação [Ausbildung] individual: a carta de Wilhelm a Werner (V3).......................................................................................................127 CAPÍTULO 2 Atividade (a arte como autoatividade de Wilhelm)........................................................137 Inclinação, disposição e talento...............................................................................141 O teatro de marionetes e seus desdobramentos...........................................144 A trupe no castelo dos condes......................................................................153 A companhia de Serlo..................................................................................161 Crise e renúncia.......................................................................................................170 Correção do intelecto e controle da sensibilidade...................................................179 Atividade comercial................................................................................................190 CAPÍTULO 3 Sociabilidade e circunstâncias..........................................................................................195 Época, lugar, duração da história, idade e aparência física de Wilhelm..................199 Família burguesa e baixo estatuto da arte................................................................201 O amigo Werner: a vitória do dinheiro....................................................................205 Mariane: a unidade entre amor e atividade.............................................................210 Philine: lascívia e arte como entretenimento...........................................................212 Mignon e o harpista.................................................................................................216 Aurelie: realização e autodestruição........................................................................221 Serlo: talento e interesse..........................................................................................223 As fraquezas da nobreza: Friedrich, de criado a nobre pícaro..............................................................225 O ridículo conde e seu séquito.....................................................................226 A beleza da condessa...................................................................................229 A história de interiorização excessiva da “bela alma”.................................232 xii

A Sociedade da Torre...............................................................................................237 O tio [Oheim]: razão e arte..........................................................................238 O abade: teorias sobre atividade e Bildung.................................................243 O esperto Jarno............................................................................................246 Lothario: renúncia e individualidade exemplar...........................................249 Therese: satisfação plena da autoatividade..................................................257 Natalie, a individualidade íntegra: amor e atividade...................................261 CAPÍTULO 4 Trajetória...........................................................................................................................269 A tensão entre passividade e ação como jogo entre acaso e destino...................................273 Wilhelm age instado pela Sociedade da Torre.........................................................278 Destino................................................................................................................................285 O ritual de aprendizado e suas consequências.........................................................286 Ascensão social burguesa e nobreza aburguesada...................................................297 Ironias......................................................................................................................301 Correção da sensibilidade........................................................................................306 CONSIDERAÇÕES FINAIS Erro e falsa tendência..............................................................................................313 Renúncia e felicidade. Espinosa, Wilhelm e a Bildung...........................................318 Goethe e a economia política..................................................................................329 O realismo de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister...................................334 A plasticidade favorece o comportamento ético......................................................337 ANEXOS Crítica ao conceito Bildungsroman.....................................................................................343 Asserções de Lukács (1914-15/1932/1936) sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe..............................................................................................................371 [Gotthold Ephraim Lessing:] "Décima Sétima Carta", das Cartas sobre a literatura mais recente (fevereiro de 1759)................................................................................................385 BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................411

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Esta tese é dedicada a Flora, com meu mais profundo amor.

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Agradecimentos Meus agradecimentos ao CNPq e ao DAAD, que financiaram esta pesquisa. Aos professores Ricardo Musse, Luiz Montez, Mário Frungillo, Jorge Grespan e Márcio Seligmann-Silva, que gentilmente aceitaram meu convite e apreciaram cuidadosamente o resultado dos meus trabalhos. Agradeço muito especialmente à minha orientadora, Prof. Suely Kofes, que sempre acreditou nesta pesquisa não apenas me apoiando institucionalmente, o que foi sem dúvida decisivo, mas também por sempre me lembrar do quanto se trata de uma temática sensível e estimulante, reavivando em mim o que desde suas primícias me fez estudá-la com tanta dedicação. Neste longo processo cuja inflexão determinante foi o intercâmbio para a Alemanha, gostaria de registrar minha lembrança carinhosa ao querido Lehrer, Bern Hopf, que foi quem primeiro nos introduziu no aprendizado da língua alemã, que segundo ele, é nada mais nada menos do que Kinderleicht... Ach ja, Lehrer! Agradeço a Bia, que nos deu uma lição de vida desde o primeiro dia em que a conhecemos, por atravessar os pequenos e grandes percalços com alegria inesgotável e generosidade, por nos ter ajudado e confiado em nós num momento em que tanto precisávamos. À minha família, mãe, pai, irmãos, sogros, cunhados e amigos que estiveram presentes quando puderam e da forma como poderiam estar. Ao Diego, meu marido, meu amigo, meu parceiro na vida e em todos os projetos. Esta tese foi construída no nosso diálogo contínuo, em que todas as minhas elucubrações foram séria e detidamente consideradas e analisadas.

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\...\ a soma de nossa existência, dividida pela razão, nunca é exata, restando sempre uma estranha fração (IV 18, p. 263)

APRESENTAÇÃO Nesta tese ambicionamos fazer algumas das principais distinções do complexo da individualidade de Wilhelm Meister e por meio disso alcançar um entendimento mais substancial do sentido do romance. Supomos que a análise do protagonista pela via das determinações ontológicas de sua individualidade permite superar aquilo que foi superficialmente identificado pela crítica como, por um lado, uma rígida oposição entre indivíduo e sociedade fundada no excesso de fantasia de Wilhelm, e, por outro lado, após o reconhecimento de seu erro e como resultado de sua trajetória, sua completa formação humanista. Buscamos no romance as categorias mais gerais que explicam não somente a composição da individualidade de Wilhelm, mas sua trajetória e seu destino. Essas categorias também pertencem à ontologia goethiana (individualidade, caráter ou personalidade1, sensibilidade, consciência, atividade)2 e guardam relações com os conceitos de enteléquia e Dämon, os quais Goethe liga estritamente à individualidade, contudo, nem todas aparecem conceitualmente articuladas à individualidade como estão estes últimos. O que são as categorias ontológicas? Em termos marxianos, categorias são formas

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Embora Goethe entenda a individualidade como um complexo, ele também a toma eventualmente como sinônimo de caráter ou personalidade. Goethe aproxima a individualidade ao conceito de personalidade quando define a primeira como mediadora de características universais especificadas no particular (cf. Rudolph). 2

“Então o homem foi criado... ao mesmo tempo indeterminado e limitado... e já que essa contradição manifesta-se nele por meio de todas as categorias de seu ser, e uma consciência perfeita tanto quanto um decidido desejo devem acompanhar suas circunstâncias, foi então previsto que ele... devia tornar-se a criatura feliz e mais infeliz” (Kosmogonie des jg Goethe, 27,220,28 DuW 8, Parte II, in: Goethe Wörterbuch, grifo meu. [So wurde der Mensch hervorgebracht .. zugleich unbedingt und beschränkt .. und da dieser Widerspruch durch alle Kategorien seines Daseins sich an ihm manifestiren und ein vollkommenes B. so wie ein entschiedener Wille seine Zustände begleiten sollte, so war vorauszusehen, daß er .. das glücklichste und unglücklichste Geschöpf werden müsse]).

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de ser, determinações da existência. As categorias que evocaremos em nossa análise são as mais gerais do ser social – individualidade, atividade, sociabilidade. Indivíduo e sociedade, na medida em que são o próprio ser social, são denominados de pólos do mesmo, e atividade, visto que é o modelo para as demais formas de existência do ser social, denomina-se protoforma. Essas categorias só podem ser corretamente captadas se forem observadas reciprocamente em sua composição categorial, isto é, na síntese concreta de suas múltiplas determinações. Assim, as categorias que só existem no âmbito da individualidade – dentre as quais analisaremos caráter, sensibilidade e consciência – podem ser observadas em si mesmas ou enquanto atributos categoriais da individualidade, tais como se tornam, da perspectiva da individualidade, a atividade e a sociabilidade, que são parte essencial do complexo da individualidade. Diferente daqueles estudos que visam aplicar conceitos exógenos à obra (ou à realidade) para daí extrair um resultado que lhe é totalmente estranho, o desafio que esta tese se impõe é extrair das obras esses conceitos, partindo do pressuposto de que se os extraímos da realidade, eles certamente poderiam ser extraídos da mais social de todas as artes (no que se refere ao conteúdo), a literatura romanesca (Lukács). Esta tese percorre uma etapa do caminho da vida de um indivíduo: iniciamos pela análise de uma individualidade peculiar e determinada, passamos à sua atividade específica entendida como intrinsecamente ligada ao seu modo de ser individual, seu meio social, sua trajetória e seu destino. Em todos os estágios, a dimensão literária do personagem é trabalhada com os termos “caráter”, “ação”, “circunstâncias”, “trajetória” e “destino”. Portanto, a premissa ontológica da qual partimos é a atividade, sobre essa base, as categorias envolvidas na análise ontológica da individualidade do protagonista foram organizadas e orientadas. Os conceitos específicos da teoria literária são também subsumidos a essa direção e se mostram perfeitamente integrados à análise de perfil ontológico. A razão disso é simples, a teoria literária tradicional aborda o romance como o faz a ontologia do ser social: trata-se de buscar as determinações da existência, as formas de ser do protagonista. Assim, conceitos centrais como caráter, circunstâncias, trajetória e destino são criações conceituais que tentam explicar de maneira direta e imediata a vida de 2

um indivíduo singular fictício. Mais do que não se chocarem, essas duas perspectivas complementam-se: pois caráter, trajetória e destino não costumam ser analisados numa análise filosófica ou sociológica de fundamento ontológico, porém, elas são definitivamente parte constituinte da vida de um indivíduo real. Por outro lado, sensibilidade, consciência ou atividade não costumam ser conceitos especificamente elencados como parâmetros analíticos de um personagem, ainda que sejam parte essencial do mesmo, como acontece na própria vida.

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INTRODUÇÃO Sobre os antagonismos na tradição interpretativa do romance moderno Importa sobretudo não fixar o indivíduo em contraposição à sociedade. O indivíduo é o ser social (Marx)

A crítica literária de WML3 foi erigida sobre os antagonismos da “modernidade”: subjetivo x objetivo; interior x exterior, sonho x realidade; loucura x verdade; privado x público; sentimento x razão; indivíduo x sociedade. Essa interpretação não é de todo sem fundamento, uma vez que as relações sociais aparecem dessa forma na realidade e as ideias filosóficas e científicas daí surgidas acabam por sustentar-se no próprio pensamento de Goethe. O fato de que a interpretação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, como a do romance moderno em geral, fundamentou-se fortemente nessas oposições não só limita o entendimento da obra como tem consequências decisivas para a compreensão mais ampla da própria individualidade sob as relações burguesas: a insistência em explicações baseadas nos antagonismos implica não identificar as causas dos mesmos, a ênfase rígida na oposição tende ao apagamento das mediações que ligam os pólos contrapostos, conduzindo progressivamente a antinomias insolúveis. Ao longo do tempo, isso gerou diversos problemas para a interpretação da história de Wilhelm Meister, já que a maioria esmagadora da crítica literária do século XX não conseguiu se desvencilhar dessas oposições na análise de WML e interpretou o herói, por seu turno, como um indivíduo tendente à fantasia, no limiar da irrealidade. A oposição entre romance e épica, que estaria no cerne da teoria do romance, nada mais é que a afirmação da oposição entre o que é entendido como a história interior, subjetiva de um indivíduo singular e a objetividade tradicional do gênero épico, fundada em

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Abreviação para Wilhelm Meisters Lehrjahre. Edição utilizada: Hamburger Ausgabe, volume 7 (München, 2002), citada nesta tese pela abreviação HA7.

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acontecimentos exteriores, por excelência sociais. Apesar do romance não ser expressamente colocado por Hegel4 em oposição à épica, para o filósofo a poesia do mundo épico foi perdida, substituída pela prosa de uma realidade ordenada segundo outros parâmetros, o que resultou numa perda de qualidade. O romance é visto como inferior precisamente por não poder mais ser fundado no “nacional”, e é somente valorizado onde recebe as características do antigo mundo épico (e não, portanto, por suas próprias particularidades). No que concerne aos romances de seu tempo (e aqui Hegel refere-se tacitamente a romances como Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister), mais especificamente aos “heróis agentes” que “se opõem enquanto indivíduos, com suas finalidades subjetivas de amor, honra, ambição ou com seus ideais de melhoramento do mundo, a essa ordem existente e a essa prosa da realidade, a qual de todos os lados põe-lhes dificuldades no caminho” (1835-38), vê-se que a diferença entre os gêneros, fundada na oposição entre “poesia das velhas relações” e a “prosa das relações modernas”, foi deslocada para o interior do romance. O que era entendido como luta de uma sociedade contra outra (o caráter nacional da épica clássica) passou a ser interpretado como luta, na sociedade, entre os indivíduos (e seus correspondentes conflitos interiores), em outras palavras, o romance representaria o conflito entre a “poesia do coração” e a “prosa das relações”. As posições de Hegel sobre o romance inserem-se na linha de desenvolvimento da estética alemã. Em seu Ensaio sobre o romance [Versuch über den Roman] (1774), Christian Friedrich von Blanckenburg vê uma complementação da épica pelo romance justamente por causa da polaridade que cada um encarna (exterior/interior) – e nessa legitimação e equalização do romance frente à épica já se encontraria, portanto, a semente da oposição entre ambos (KOOPMANN: 1983, p. 14). Tendo também em vista, como Blanckenburg, o primeiro grande romance alemão

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A estética hegeliana entende o romance como equivalente moderno da antiga épica, enfatizando assim seu papel de substituto – e como tal o legitima – pela grande proximidade de relações estruturais entre ambos, especialmente porque são uma representação da totalidade, sendo o romance a descrição da “totalidade do mundo e visão de vida” no âmbito dos acontecimentos individuais. O próprio Goethe, em Máximas e Reflexões, refere-se ao romance como uma epopeia subjetiva, mas enquanto Goethe quer tentar elevar, na prática, o estatuto do romance na literatura, Hegel não estabelece o romance como sucessor à altura da antiga épica.

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História de Agathon (1766\67), de Wieland, Heinrich Wilhelm von Gerstenberg (17371823), em Briefe über Merkwürdigkeiten der Literatur (1767-1771), interpreta-o como o romance alemão que primeiro tratou, centralmente, do conflito interior entre fantasia e razão. Na opinião de Gerstenberg, em algumas passagens Wieland imita em demasia Fielding, Rousseau e Cervantes. Essa observação é importante pois exatamente a interpretação idealista-romântica de Dom Quixote, iniciada neste mesmo período (segundo terço do século XVIII), oferece o parâmetro mais interessante para bem avaliar o caminho pelo qual enveredaria a crítica de Wilhelm Meister, tanto porque muitos desses escritores e pensadores foram os primeiros críticos do romance de Goethe, quanto pela importância de Dom Quixote para o estabelecimento do gênero romanesco no século XVIII, momento em que o romance de Cervantes é elevado ao status de clássico e assume uma posição fundamental na teoria do romance (cf. IGLESIAS: 237). A interpretação de Dom Quixote feita pela Aufklärung conflui com a romântica5. Refletindo sobre a obra cervantina as concepções do romance da época, especialmente a função de instruir atribuída ao gênero, esses teóricos veem em Dom Quixote “um conflito entre o real e o ideal protagonizado por um personagem simbólico, do que se depreenderá uma aprendizagem” (IGLESIAS: 24). Sob a ótica dos antagonismos, o primeiro romance moderno representa ao mesmo tempo “finito e infinito, poesia e verdade, elevado e

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O primeiro artigo em língua alemã dedicado exclusivamente ao romance espanhol, Von dem Charakter von Don Quixote und Sancho Pansa, de 1741, escrito pelo crítico suíço Jacob Bodmer, expressa uma visão influenciada pelo empirismo inglês, em que a verossimilhança seria a característica fundamental do romance moderno frente à épica, já que o conhecimento só é possível através da experiência e, assim, para que o leitor possa aprender, o narrador deve guardar similitudes com a realidade (Lessing, em Historie des Passions, 1751, terá uma opinião semelhante). Herder, F. Schlegel, Tieck, Novalis, Schelling, Jean Paul Richter, Karl Wilhelm F. Solger, Hegel – todos escreveram sobre Dom Quixote. Antes disso, no século XVII, a interpretação de Dom Quixote chega com Pierre Daniel Huet (Traité de l’origine des Romans, 1670) à Alemanha como sátira, embora o francês considerasse o herói um símbolo da nação espanhola. Seguindo Herder, que por sua vez parece ter se inspirado em Huet, o romantismo eleva a obra-prima de Cervantes ao patamar de grande romance nacional; Friedrich Schlegel considera Dom Quixote, apesar da ironia, uma obra marcada por ideais nacionais, aristocráticos e católicos (cf. STROSETZKI: 195). Para Schlegel, Cervantes supre o vazio da mitologia moderna; para o filósofo idealista Schelling, Quixote e Sancho são mitos eternos. E no que consiste essa mitologização? Em sua Crítica da obra de Cervantes, Schelling interpreta romanticamente Dom Quixote ressaltando reiteradamente a luta do ideal com a realidade que domina toda a obra por meio das mais diversas variações (cf. ROSALES: 443).

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insignificante, sério e burlesco, poético e prosaico, sabedoria e simplicidade, entusiasmo e ironia, poesia e prosa” (IGLESIAS: 22), e é justamente a reunião desses pares de opostos que faria a grandeza da obra cervantina. Hegel reafirmará o caráter opositivo das interpretações do século XVIII e exercerá sua autoridade intelectual sobre a estética do romance até nossos dias. Discutindo no plano geral o romance moderno, o filósofo remete à mesma comparação na famosa passagem: Esse romanesco é a cavalaria novamente transformada no sério, num conteúdo real. A casualidade da existência exterior converteu-se numa ordem sólida e segura da sociedade civil e do estado, de modo que agora, no lugar de finalidades quiméricas que o cavaleiro criou para si, entram a polícia, o tribunal, o exército, o governo do estado. Com isso se altera também o cavaleirismo [Ritterlichkeit] dos heróis agentes nos romances recentes. Eles opõem-se enquanto indivíduos, com suas finalidades subjetivas de amor, honra, ambição ou com seus ideais de melhoramento do mundo, a essa ordem existente e a essa prosa da realidade, a qual de todos os lados põe-lhes dificuldades no caminho. /.../ Especialmente, são jovens esses novos cavaleiros /.../. Essas lutas no mundo moderno, porém, não são nada mais que os anos de aprendizado, a educação do indivíduo na realidade existente /.../, o fim de tais anos de aprendizado consiste em que o sujeito torna-se comedido [sich die Hörner ablaufen], ele se forma [hineinbilden], com seus desejos e opiniões, nas relações existentes e na razoabilidade das mesmas, adentra no encadeamento do mundo e nele obtém uma perspectiva adequada. /.../ por fim ele recebe, em geral, sua moça e uma colocação qualquer, casa-se e se torna um filisteu como qualquer outro. /.../ Vemos aqui o mesmo caráter de aventura [Abenteuerlichkeit] que apenas nela mesma encontra o seu correto significado, e o fantástico tem de experimentar nisso a correção necessária 6.

Ainda que os comentários de Goethe sobre Cervantes sejam escassos, não é nova a lembrança do espanhol na obra do alemão. Uma das primeiras a ver essa influência foi Rahel Varnhagen von Ense (1771–1833), que classificou o romance de Goethe como “um segundo Dom Quixote” e considerou WML “de novo legível” após uma nova leitura da obra de Cervantes7. Em sua Filosofia da arte, Schelling dedica algumas páginas à análise de Meister precisamente em sua relação com Dom Quixote. Da perspectiva hegeliana, o herói tem suas paixões e elas devem entrar em conflito com suas obrigações. Ao tentar realizar seus anseios no mundo, ele se depara com inúmeros obstáculos, e deve ceder. Essa

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G.W.F. Hegel. Vorlesungen über die Ästhetik, 1835-1838. Citado em Hans-Jürgen Lüsebrink, p. 998, In: Goethe-Handbuch - Spanische Literatur.

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é a constatação da interpretação dualista, que vê na luta (perdida) do herói com seu meio o traço típico do novo romance, e é também o ponto de contato entre Hegel, Goethe e as primeiras recepções de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Schiller, Körner, Friedrich Schlegel, Novalis, seguem todos o mesmo tipo de direção dualista na leitura de Wilhelm Meister: O teatro é a ponte entre o mundo real e o ideal (KÖRNER, HA7, p. 654). O contraste entre a esperança e o sucedido, o imaginado e a realidade desempenha aqui um grande papel: os direitos da realidade são impostos com uma severidade impiedosa, e o pedante é até espancado por ser também um idealista (SCHLEGEL, HA7). \...\ se eu proferisse com palavras secas o objetivo que Wilhelm finalmente alcança depois de uma longa série de erros, eu diria: ele se lança de um ideal vazio e indeterminado em uma vida ativa determinada, mas sem perder a força idealizante (SCHILLER, HA7, p. 642).

O próprio Goethe compreende a obra sob o signo dos antagonismos, como é possível perceber pela analogia entre o romance e o Livro VI, feita segundo a relação entre objetivo/subjetivo e as ilusões decorrentes dessa interação, e já que o todo repousa sobre as mais nobres ilusões e sobre a mais delicada confusão [Verwechslung] do subjetivo e do objetivo, então são próprios a essa parte [Confissões de uma bela alma] mais clima e concentração do que talvez a qualquer outra (Goethe a Schiller, 18.3.1795, HA7, p. 624).

É nítido o tom irônico de Hegel quanto aos anseios e à trajetória do herói moderno. Hegel “pronuncia o lado miserável dessa adequação [do herói ao mundo burguês] com autêntico cinismo ricardiano” (LUKÁCS 1935: 61). Com esse procedimento, ele acaba por analisar Wilhelm Meister sob o aspecto da comicidade, fundamental de Dom Quixote, mas não do herói alemão. Isso não significa desprezar a ironia do narrador de Wilhelm Meister e nem menosprezar o caráter trágico, melancólico e triste da figura de Dom Quixote, tão acentuado pelos críticos românticos do século XIX (cf. OLIVEIRA 2008; VIEIRA 1998: 65). De todo modo, muito da troça hegeliana dirigida ao herói romanesco moderno parece se beneficiar do dominante aspecto cômico de Dom Quixote, que permite não apenas que olhemos com ar superior para o risível herói como possibilita rebaixar seus ideais enquanto sonhos impossíveis e insanos. 9

No caso de Dom Quixote, uma das consequências dentre as inúmeras dessa interpretação da obra é a aproximação irreversível do herói da loucura, pois se ressalta demasiadamente o ideal, o sonho, no caráter do protagonista, que contra os ditames da razão ou a evidência dos sentidos, prossegue em sua vontade 8. No caso de Wilhelm, o peso no autoengano [Selbstbetrug], já que nosso herói absolutamente não perdeu o juízo, favorece observá-lo como alguém que está continuamente alimentando suas ilusões irrealizáveis e faz com que a história se desenrole até seu limite sem que se coloque a descoberto o conflito real, sustentando, e não explicando o que gera o antagonismo fundamental entre o herói e sua realidade 9. Ainda que a relação entre os dois protagonistas tenha sido pouco mencionada na teoria literária mais recente, as consequências dessa aproximação original mantêm-se fortes até a atualidade10.

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Interpretação que se mantém dominante até o século XX. STROSETZKI: Vê-se no romance uma “dualidade constitutiva” entre “espírito e matéria, corpo e alma”, “a idealidade do indivíduo representada com tanta maestria, /.../ “conflito com a realidade da sociedade” (p. 119). Hans-Jörg Neuschäffer dedica um capítulo ao “problema do ideal e da realidade” (p. 44). O renomado cervantista Luis Rosales compartilha da opinião de que em Dom Quixote “se enfrentam e se combinam idealidade e realidade” (p. 428). Voßkamp (apud IGLESIAS: 267) argumenta que Quixote serve como modelo para o desenvolvimento narrativo da relação entre fantasia e realidade no romance posterior: na obra, o homem individual, sua interioridade, em sua dicotomia com a sociedade, são colocados pela primeira vez no centro dos acontecimentos. 9 A tradição interpretativa de WML seguiu esta direção: “O palco simboliza, no primeiro livro, a região da aparência sensível, experienciada como a idealização projetada, da mesma forma, porém, da ilusão, do autoespelhamento e finalmente da estranheza frente aos pressupostos reais” (AMMERLAHN 2003: 50). Kurt May (1957) fala em Theatromanie (p. 30); Kemper (2004) vê em Wilhelm um sonhador. Para Lukács, “A exposição da vida teatral, que constituía todo o conteúdo da primeira versão, não ocupa aqui senão a primeira parte do romance, passando expressamente por confusão do já amadurecido Wilhelm e por desvio de sua meta” (1936: 594). O “salto goethiano” está justamente em considerar o teatro apenas como ponto de transição, pois “a verdadeira descrição da sociedade, a crítica à burguesia e à nobreza, a configuração da exemplar vida humanista só podem na verdade se desenvolver depois de superada a concepção do teatro como caminho para a humanização” (Id., p. 595). 10 Richard Friedenthal diz que Wilhelm pode ser visto também como um herói medieval cavalgando em busca de aventuras (In Goethe – sein Leben und seine Zeit, 1963, citado em Eichner, 1966); para ele, Wilhelm não é simplesmente, ou sobretudo, o herói de um romance de formação, é também um herói de um romance picaresco e o herói de uma fábula realista. Bluhm aproxima-se por essa trilha quando explica o que liga Wilhelm ao grande cavaleiro. Iglesias relaciona os dois romances em seus traços mais gerais, concluindo que o romance goethiano tem tantas semelhanças com o cervantino que este não poderia ter passado desapercebido para Goethe; para ela, é a obra que tem a maior semelhança com Dom Quixote principalmente por causa do “talento inexistente” de Wilhelm para o teatro. O protagonista busca realizar um ideal que também procede da literatura. A autora diz que o caráter do jovem Wilhelm é marcadamente quixotesco, mas não desenvolve essa observação por meio dos atributos da personalidade do herói, apenas pelo tão falado idealismo de Wilhelm, sua insistência em querer realizar algo para que não nasceu, “ficção que ambos os personagens constróem para si mesmos” (p. 337).

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Deve ainda ser mencionado nessa breve cronologia um importante representante da estética do século XIX, Friedrich Theodor Vischer, filósofo e romancista, que com sua Estética ou Ciência do Belo [Ästhetik oder Wissenschaft des Schönen] (1846) faz a última grande síntese do pensamento tradicional (cf. KOOPMANN: 1983). Ainda que os julgamentos de Vischer sigam a mesma direção dos de Hegel, suas apreciações sobre o romance são mais cortantes, elas aprofundam ainda mais a oposição entre o que é individual (“a vida privada”) e social (“a vida pública”). Vischer também viu no protagonista de Os anos de aprendizado o típico herói do romance moderno, citando como exemplo de romance formador de uma tradição de uma “espécie positiva nova” exatamente Dom Quixote11. Apesar de também fortemente baseada em Hegel (e para além de sua estética), a Teoria do Romance (1920), de Lukács, foi a primeira tentativa de estabelecer uma teoria que fosse mais que apenas uma sucessão da teoria da desvalorização do romance levada adiante por Hegel e Vischer (cf. KOOPMANN). Como os antecessores, todavia, o jovem Lukács não escapou da colocação da questão em termos dualistas: (diferente da épica) a tarefa do romance é descrever a nova relação entre “alma e realidade”. Essa relação constitui-se fundada na inadequação: “a alma é mais estreita ou mais ampla que o mundo exterior que lhe é dado como palco e substrato de seus atos” (LUKÁCS: 99) 12. Assim, Dom Quixote representa “a primeira grande batalha da interioridade contra a infâmia prosaica da vida exterior” (Id., p. 107), e de Wilhelm Meister o tema seria “a reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade concreta” (Id., p. 138). A expressão hegeliana do “romance como epopeia burguesa” é mantida por Lukács a partir da década de 1930, pois para o filósofo essa maneira de colocar a questão seria muito mais esclarecedora, em termos estéticos e históricos, do que quando falamos de

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Romance que se “origina da ironia de uma concepção na qual se fruiu a vida ilimitadamente e frente a qual, ao mesmo tempo sob escárnio, é contraposta uma nova concepção. O assim vivido [Ausgelebt] é confiado ao risível como uma ilusão. O herói do romance, porém, sempre inicia com ilusões seu caminho de experiências pela vida, por isso possui uma profunda relação interna que a verdadeira origem do romance e a criação do romance cômico coincidam na base” (apud PLETT, p. 33). 12 Bakhtin, em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, parte desse mesmo pressuposto.

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“romances antigos” ou “épicas modernas”. Contudo, Lukács percebe de modo inovador uma característica estrutural das análises tradicionais: a estética classicamente orientada dos primeiros séculos burgueses teve de colocar de lado desatenciosamente as específicas contradições do romance. Os grandes escritores (Fielding, Scott, Goethe, Balzac) e os estetas alemães clássicos, sobretudo Hegel, já reconhecem todas as determinações estéticas e históricas essenciais. Tal reconhecimento encontra, porém, uma barreira, a mesma que existe para os grandes representantes do romance \...\ não sabe que atrás daquelas oposições do romance, da ‘epopeia burguesa’, nas quais enxerga a essência da vida moderna e em sua forma mais adequada e expressiva, está a oposição entre produção social e apropriação privada. Ele mantém-se na descrição da forma fenomênica dessa contradição, isto é, a oposição de indivíduo e sociedade. Desta forma, o conteúdo do romance é determinado, em contraposição ao epos, como luta na sociedade (LUKÁCS: 1996).

A crítica literária – e até certo ponto os próprios romancistas ao explicarem suas obras – contentou-se em afirmar que o caminho e o modo de proceder do protagonista revelam-se forçosa e necessariamente como falsos, inadequados. Não se tomou a sério o herói porque se fez uma crítica unilateral da realidade – ainda que os romances tenham sido de fato capazes de representar seus muitos lados. Os grandes poetas da burguesia ascendente ambicionaram uma conciliação das tendências conflitantes e buscaram com afinco um herói positivo, o que explica também “porque o desenvolvimento burguês não produziu nenhuma teoria do romance correta” (LUKÁCS 1935: 60). Esse fato não anula, porém, “a dialética da intenção malograda dos grandes escritores, sua grandeza contra vontade, seu sucesso na derrota de suas intenções” (LUKÁCS 1935: 61). Ou seja, ainda que a teoria do romance não tenha conseguido ir além das contradições (não chegando, portanto, à “contradição fundamental” e, nesse movimento, desfazendo-a), o romancista, de alguma forma, assim o fez. As origens do ciclo Meister Goethe fala sobre Meister desde o surgimento do romance até o final de sua vida. Conforme documentam a correspondência, os diários, cadernos anotações de Goethe, o processo de elaboração do romance foi longo até que ele fosse terminado. Em 16.2.1777, ele faz o primeiro registro sobre o romance em seu diário: “No jardim, ditando Wilhelm 12

Meister” (HA7, p. 613). Em 31.10.1777, escreve sobre o livro a Charlotte von Stein: “ontem à noite dei um salto mortal sobre três capítulos fatais de meu romance, os quais eu evitei por muito tempo; agora que eles já ficaram para trás, espero produzir a primeira parte muito em breve” (BAHR: 252). Entretanto, não foi o que aconteceu, como Goethe registra em um de seus cadernos de 1819/20, na seção “até 1780”: “Os inícios de Wilhelm Meister já nessa época deixavam-se avistar, embora apenas cotiledoneamente; os posteriores desenvolvimento e formação arrastaram-se por muitos anos” (HA7, p. 616). E na seção “até 1786”: “Os inícios de Wilhelm Meister ficaram por longo tempo em suspenso” (HA7, p. 616). Assim, iniciada em 1777, a obra somente vem a público em 1795/96, dividida em quatro volumes (cada qual contendo 2 livros), respectivamente publicados em janeiro, maio e novembro de 1795, e o último em novembro de 1796. Por meio de uma carta de 1782 escrita a Knebel, sabemos que o romance deveria chamar-se, originalmente, A missão teatral de Wilhelm Meister [Wilhelm Meisters theatralische Sendung], também referido na literatura por Urmeister; nessa mesma data, os três primeiros livros de Theatralische Sendung já se encontravam quase terminados; três anos mais tarde, o sexto livro encontrava-se pronto e Goethe pretendia prosseguir o romance. Em 1787 (carta a Charlotte von Stein de 20.1), no entanto, Goethe diz não mais querer continuar a narrativa sobre o curso da vida de “um jovem escritor que se torna ator e diretor e que busca no mundo artístico do teatro sua satisfação e vê nisso sua missão de vida”13. Não conheceríamos esse precursor de Os anos de aprendizado se uma amiga de Goethe, Barbara Schulthess, para quem o manuscrito fora enviado, não o tivesse preservado: ela e a filha transcreveram uma cópia do texto que somente em 1910 foi descoberta, sendo impressa pela primeira vez em 1911. As cartas do período (HA7, p. 613615) documentam que a confecção do romance foi lenta entre os anos 1777 até novembro de 1785, quando Goethe chega até o sexto livro – o sétimo livro foi posteriormente também iniciado, mas dele não restou cópia. O enredo de A missão teatral desenvolve-se até o início do quinto livro do futuro Os anos de aprendizado.

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CONRADY (1994), p. 623.

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A viagem para a Itália entre 1786-1788 marca uma nova fase da elaboração do romance. Em 1828/29, Goethe escreve sobre o dia 2 de outubro de 1787: Vocês exigem, meus queridos, que eu escreva sobre mim mesmo, e vejam como eu ajo; quando nos reunirmos novamente, vocês deverão ouvir muitas coisas. Eu tive a oportunidade de refletir muito sobre mim mesmo e sobre os outros, sobre o mundo e a história, sobre os quais eu falarei, a meu modo, muitas coisas boas, embora não novas. Finalmente, está tudo compreendido e abarcado no Wilhelm (HA7, p. 616).

Após a volta da Itália, o trabalho em Wilhelm Meister (à época então com seis livros) é retomado, brevemente, em 1791. Mas é apenas em 1794 que Goethe retornará de fato ao romance para terminá-lo (cf. HA7, p. 616-617). Essa última retomada do trabalho não significou simplesmente uma continuação do fragmento de 1786, mas uma transformação substancial do mesmo. Em carta a Schiller de 12.7.1796 (HA7, p. 648) (antes mesmo do término, portanto, d’Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister), Goethe se diz entusiasmado com a ideia de dar continuidade à história. Demorou mais de vinte anos até que ele concretizasse seu projeto e publicasse, em 1821, Wilhelm Meisters Wanderjahre oder Die Entsagenden (Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister ou Os renunciantes), romance que nos anos subsequentes foi essencialmente modificado, transformando-se na segunda versão, que veio a público em 1829. Realizada paralelamente ao Fausto II, esta é uma obra que pertence à produção tardia de Goethe e foi planejada para constituir uma trilogia cuja origem estaria no conceito de “anos de aprendizado” [Lehrjahre], o qual encerraria os conceitos de “anos de peregrinação” [Wanderjahre] e “anos de maestria” [Meisterjahre]14. Esse plano que não chegou a ser plenamente efetivado é bastante elucidativo do que Goethe tinha em mente ao criar Os anos de aprendizado. Como bem demonstra sua recepção inicial, o conteúdo e o sentido do romance foram analisados tendo em vista seu título – imprimindo, desse modo, uma interpretação sobre o herói.

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Goethe em conversa com Friedrich von Müller de 8 de junho de 1821. É incorreto considerar o Urmeister, portanto, como parte de uma trilogia composta por Wilhelm Meisters teatralische Sendung, Wilhelm Meisters Lehrjahre e Wilhelm Meisters Wanderjahre.

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O aprendiz e o aprendizado (primeira e segunda recepções da obra) A correspondência com Schiller15: a não pronunciação da ideia Em 6.12.1794, Goethe comenta com Schiller a chegada do primeiro livro nos seguintes termos: “Finalmente chegou o primeiro livro de 'Wilhelm Schüler' [aluno], o qual não sei como apanhou o nome 'Meister' [mestre]” (HA7, 6.12.1794, p. 621). Somente na carta de 5.7.1796, após quase dois anos de correspondência sobre o romance, é que Schiller escreverá detidamente a respeito do herói Wilhelm Meister. Depois de ler a história completa, Schiller responde à pergunta implícita no título do romance – o que, afinal, Wilhelm aprende em sua trajetória? – da seguinte maneira: Se eu tivesse de expressar com palavras secas o objetivo o qual Wilhelm, após uma longa série de erros [Verirrung], finalmente atinge, então eu diria: de um ideal vazio e indeterminado, ele entra numa vida ativa determinada, mas sem prejuízo da força idealizante. \...\ Que ele então, sob a bela e alegre orientação da natureza (por meio de Felix), passe do ideal para o real [Reel], de uma vaga aspiração por agir e pelo reconhecimento do efetivo [Wirkliches], porém sem prejuízo daquilo que naquela primeira condição de aspirante era real, que ele alcance determinação sem perder a bela determinabilidade, que ele aprenda a limitar-se, mas que nessa limitação mesma, novamente encontre, por meio da forma, a passagem para o infinito etc. – isso eu denomino a crise da sua vida, o fim dos seus anos de aprendizado, e nisso me parecem unificar-se todas as instituições na obra do modo mais perfeito. A bela relação natural [Naturverhältnis] com seu filho e a ligação com a nobre feminilidade de Natalie garantem esse estado de saúde espiritual, e nós o vemos, nós nos separamos dele num caminho que leva para uma completude sem fim (Schiller a Goethe, 8.7.1796, HA7, p. 642-643).

Em seguida, porém, Schiller passa a reconsiderar sua apreciação. Ele compreende a concepção de Goethe de que somente do interior de Wilhelm poderia vir o que ele busca, erroneamente, fora de si; isso, no entanto, não seria suficiente para fundamentar a relação 15

Em agosto de 1794, Goethe inicia uma correspondência com Schiller na qual propõe que ele discuta e opine sobre o romance. A importância desse intercâmbio foi expressa em diversas ocasiões, dentre elas destacamos as passagens: “A participação de Schiller foi a mais íntima e a mais elevada” (Cadernos diários e anuais, escritos entre 1829-1824, da seção “1795”); “Em suas cartas a mim estão os mais relevantes comentários e opiniões sobre Wilhelm Meister” (Conversas com Eckermann, 18.1.1825, p. 619).

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entre aprendizado e maestria tal como esta se configura no romance. Consequentemente, da forma como se apresenta, essa relação não se mostraria capaz de abarcar a vida de Wilhelm como um todo. O modo, pois, como o senhor explica o conceito de anos de aprendizado e de maestria parece estabelecer entre ambos uma estrita fronteira. O senhor compreende sob o primeiro meramente o erro de procurar fora de si o que o interior do homem mesmo tem de criar; sob o segundo a convicção da erraticidade daquela busca, da necessidade do próprio criar etc. Mas é possível compreender e esgotar a vida inteira de Wilhelm (tal como está diante de nós no romance) real e completamente sob esse conceito? Com essa fórmula tudo se torna compreensível? E ele pode então ser absolvido meramente pelo fato de se expressar nele o coração paterno, como acontece no desfecho do livro sete? O que eu desejaria aqui, portanto, seria que a relação de todos os elos singulares do romance fosse feita de maneira ainda mais clara sob aquele conceito filosófico. Eu gostaria de dizer: a fábula é totalmente verdadeira, também a moral da fábula é totalmente verdadeira, mas a relação de uma com a outra ainda não salta aos olhos de modo nítido o bastante (Schiller a Goethe, 8.7.1796, HA7, p. 642-643).

O amigo de Goethe percebe que Felix e, pode-se acrescentar, Natalie não bastam para dar substância ao aprendizado de Wilhelm. Para a justificação do título (que é o que o público alemão gostará de ver), Schiller tenta fazer com que seu sentido delineie-se melhor sugerindo reiteradamente que o conteúdo filosófico da obra seja enunciado onde for possível, pois, confessa, é meio “forte” que um romance assim, em tempos tão especulativos, tenha um protagonista que seja guiado de maneira tão discreta: Eu confesso que é um pouco forte, em nossos tempos especulativos, escrever um romance desse conteúdo e desse tamanho, em que 'o indivíduo que é necessário' seja conduzido tão silenciosamente – em que se permita que um caráter tão sentimental, como Wilhelm permanece sempre, complete seus anos de aprendizado sem o auxílio daquela digna guia. O pior é que ele, com toda seriedade, realmente os completa, o que não desperta, pois, a melhor opinião sobre a importância daquela guia [a filosofia]. Mas, sério – como o senhor conseguiu educar e tornar um homem pronto sem impeli-lo a necessidades com as quais somente a filosofia pode deparar? Estou convencido que isso se atribui somente à direção estética que o senhor tomou no romance inteiro (Schiller a Goethe, 9.7.1796, HA7, p. 646).

Aproximando-se da ideia original de Goethe – a de que somente o interior de Wilhelm pode trazer o que ele busca – também para Schiller somente o próprio herói poderia satisfazer sua necessidade: A ele não falta um certo pendor filosófico próprio a todas as naturezas

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sentimentais, e portanto ele avançaria um pouco no especulativo, assim, seria desejável, junto a essa falta de um fundamento filosófico, posicionar isso criticamente [bedenklich] em torno dele, pois apenas a filosofia pode fazer o filosofar inofensivo; sem ela segue-se inevitavelmente para o misticismo (Schiller a Goethe, 9.7.1796, HA7, p. 647)16.

Misticismo que acomete a bela alma (Livro VI). Assim, Schiller ressente-se não somente da falta de uma clara orientação filosófica do romance, mas, principalmente, de algo que nunca chega a acontecer: uma consciência filosófica desenvolvida no próprio herói. Pois somente a entronização da filosofia na individualidade de Wilhelm, algo que seria, aliás, próprio à sua natureza (Schiller encontra então uma falha de caracterização), seria capaz de dotar de realismo sua trajetória e, portanto, o romance 17. Assim, prossegue Schiller: Recai então sobre o senhor a exigência (a qual o senhor, ademais, cumpriu por toda parte largamente) de apresentar seu pupilo com plena independência, segurança, liberdade e solidez quase arquitetônica, de modo que ele possa permanecer em pé eternamente sem precisar de um suporte externo; quer-se vêlo, portanto, por meio de um amadurecimento estético, saltar completamente até mesmo sobre a necessidade de uma formação [Bildung] filosófica, a qual ele não ministrou a si. Questiona-se, agora: ele é realista o bastante para nunca considerar necessário deter-se na razão pura? Porém, não o sendo – não deveria

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Muito se discutiu na década de 1780 sobre o “ingênuo”. Dentre os que se trataram desse tema estão Diderot e D’Alambert, Kant, Wieland, Herder, Moritz e o próprio Goethe (v. KOOPMANN, In Schiller-Handbuch, Org. H. Koopmann. Stuttgart: Alfred Kröner, 1998, p. 629). Schiller escreve Sobre poesia ingênua e sentimental (1795-1796) no mesmo período da troca mais intensa de cartas com Goethe a respeito do romance e esse escrito teve imensa influência sobre os contemporâneos, em especial sobre a geração dos primeiros românticos. Na distinção que Schiller empreende entre as poesias antigas e modernas depreende-se claramente que as primeiras estão vinculadas ao mundo sensível, vivo e real; as segundas estão ligadas ao mundo ideal. Daí se extrai que a reflexão sentimental é mais elevada e, acrescenta Friedrich Schlegel diferenciando-a da objetividade dos antigos, é a interessante (Über das Stidium der Griechischen Poesie, 1797). A perda da natureza (a influência de Rousseau é nítida), que traz sentimentos de inferioridade à época moderna, está, porém, ligada ao ganho de uma capacidade [Vermögen] reflexiva, esta que por sua vez pode criar uma autêntica obra poética. Quando Schiller qualifica o caráter de Wilhelm como sentimental, ele tem em vista, portanto, não somente seu idealismo, no sentido da reflexão filosófica, mas também sua inclinação artística, considerando que “desse balanço negativo do moderno resulta um patrimônio poético que somente a pretensão da arte pode preencher de modo legítimo” (KOOPMANN, p. 631). V. também: ZELLE, Carsten. Über naive und sentimentalische Dichtung. Theoretische Scriften. In LUSERKE-JAQUI, Matthias (Org.). Schiller-Handbuch. Leben-Werk- Wirkung. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2005. 17 Em 7.1.1795, porém, Schiller confessava: “Eu não posso expressar-lhe o quanto me é frequentemente penoso o sentimento de observar um produto desse tipo na essência filosófica. Lá é tudo tão alegre, tão vivo, tão harmonicamente resolvido e tão humanamente verdadeiro; aqui é tudo tão severo, tão rígido e abstrato e tão altamente não natural, porque toda natureza é apenas síntese e toda filosofia antítese” (HA7, p. 623).

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estar um pouco mais preocupado com as necessidades do idealista? (Schiller a Goethe, 9.7.1796, HA7, p. 647).

Ele conclui, ademais, que é incongruente com o título do romance que o herói permaneça o mesmo até o final, como bem observa a respeito do comportamento do herói em relação às obras de arte do Salão do Passado: “é para mim ainda muito o velho Wilhelm”, o que significa que ele permanece fixado “quase exclusivamente na mera matéria [Stoff] da obra de arte e, para mim, poetiza demais com isso” (Schiller a Goethe, 9.7.1796, HA7, p. 648)18. Schiller sugere se não seria o caso de mostrá-lo como um observador mais objetivo, já que conhecedor seria mesmo impossível, e assim colocá-lo no rumo de uma “crise mais feliz”. Jarno, lembra ele, foi usado de maneira muito adequada para dizer no livro VII “uma verdade que conduz tanto o herói quanto o leitor a um grande passo adiante”, a saber, que Wilhelm não tem talento para o teatro. Depreende-se dessa observação de Schiller que se não fossem as palavras de Jarno, o leitor ficaria com uma nítida sensação da irrealização de Wilhelm, sensação que é atenuada se se considera que, afinal, Wilhelm não nascera para o ofício. A isso se liga outra dificuldade particular que se coloca na análise do conteúdo da realização do herói ao final do romance, a identificação dos objetivos que Wilhelm coloca para si. Para Schiller, Wilhelm possui objetivos inefáveis. “Seu valor está em seu estado interior [Gemüt]19, não em seus resultados, em sua aspiração, não em sua ação; por isso, sua vida tem de lhe parecer tão vazia de conteúdo tão logo ele queira dar conta disso a alguém” (HA7, 5.7.1796, p. 637), diz Schiller. Em seguida, ele compara Wilhelm com Therese exatamente neste ponto: ela pode documentar seu valor “sempre por meio de um objeto exterior”. Schiller percebe que o problema de Wilhelm está na exteriorização, na

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Diferente do que acontece em relação a outras observações schillerianas, essas passagens da obra citadas por Schiller e referidas aqui são mantidas por Goethe tal como originalmente concebidas – de modo que consideramos que o autor, mesmo tendo lido a censura de Schiller, considerou como necessário mostrar Wilhelm assim, isto é, “internamente” igual, ao final do romance. 19 Gemüt tem um significado primário de interioridade, vida interior, conjunto das disposições psíquicas e espirituais e, por essa via, alma; num segundo nível pode ainda significar sentimento, sensação, sentido. De acordo com o GW, Gemüt tem tanto o significado de razão quanto de sentimentos, unindo assim esferas tão frequentemente separadas no século XVIII.

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objetivação, e não no seu “interior”. Ele vê que Wilhelm não consegue concretizar; isso, entretanto, não é atribuído à impossibilidade de afirmação de suas disposições na atividade pela qual sentia uma decidida inclinação – desse modo, é bastante esclarecedor que Schiller não se refira às condições sociais com as quais herói é defrontado: Aliás, é muito belo que o senhor, com toda a devida atenção por certas formas positivas exteriores, rejeite, tão logo dependa de algo puramente humano, nascimento e estrato social em sua completa nulidade (HA7, 5.7.1796, p. 638).

Ainda que Schiller considere que Wilhelm realmente completa seus anos de aprendizado, ele não consegue encontrar o que, afinal, palpável e concretamente foi aprendido pelo protagonista. Mas, então, o que acontece com Wilhelm se seus objetivos mal são formuláveis, se ele não amadureceu filosófica nem esteticamente? Schiller parece confiar no que a Sociedade da Torre avalia e reserva ao herói, e que só pôde ser formulado por ele de maneira abstrata: “de um ideal vazio e indeterminado, ele entra numa vida ativa determinada”. Com isso, acaba por chamar a atenção para um ponto importante: para Schiller, Wilhelm não poderia, não seria lógico, ter como objetivo a maestria. O título do romance não é dado da perspectiva do herói, pois Wilhelm não tem esse objetivo, mas quem dirige Wilhelm, sim, quer instruí-lo. /.../ em seu livre curso, observam-no, dirigem-no de longe e para um objetivo o qual ele mesmo não fazia ideia, nem podia fazer. Tão suave e escondida é essa influência de fora quanto porém ela está efetivamente lá, e ela foi indispensável para atingir o objetivo poético. Anos de aprendizado são um conceito relacional, eles exigem seu correlato, a maestria, isto é, a ideia desta última tem de esclarecer e fundamentar aquele primeiro. Ora, essa ideia de maestria, a qual é obra apenas da experiência amadurecida e completa, não pode, porém, nortear por si mesma o herói do romance; ela não é capaz e nem lhe é permitido colocarse diante dele como sua finalidade e seu objetivo; pois tão logo ele cogitasse o objetivo, então ele também o teria alcançado eo ipso; ela tem, portanto, de se colocar como guia por detrás dele. Desse modo, o todo encerra uma bela finalidade sem que o herói tivesse um objetivo. O entendimento encontra assim uma tarefa realizada, ao mesmo tempo em que a imaginação afirma inteiramente sua liberdade (Schiller a Goethe, 8.7.1796, HA7, p. 640).

Também neste ponto a ideia fundamental, o conteúdo ideal [Ideeninhalt] que Schiller quer ver melhor pronunciados no romance mostram-se diretamente relacionados ao protagonista: 19

Talvez não fosse supérfluo se ainda no oitavo livro fosse mencionada a ocasião aproximada em que Wilhelm tornou-se em um objeto dos planos pedagógicos do abade. Esses planos receberiam assim uma relação [Bezihung] especial, e o indivíduo Wilhelm apareceria para a Sociedade também mais significativo (Schiller a Goethe, 8.7.1796, HA7, p. 641)20.

De modo geral, os intérpretes da obra seguiram a indicação de seu título e tentaram encontrar os limites do erro e do aprendizado de Wilhelm. Vejamos, primeiramente, o que dizem as cartas de Körner e Humboldt, para em seguida retornarmos aos comentários de Schiller sobre ambas as concepções, os quais recairão, novamente, sobre o protagonista.

A carta de Christian Gottfried Körner: a Bildung de um “homem” Em 5.11.1796, quando todo o romance havia sido publicado, Christian Gottfried Körner escreve a Schiller uma carta detalhada sobre o Meister, logo publicada na revista editada por Schiller, Die Horen. Gille qualifica o ensaio de Körner como “talvez o documento mais rico de consequências na história da interpretação” desse romance (cf. FA, p. 889)21. O conteúdo do livro é explicado colocando em seu centro a figura do herói. Aquilo que o homem não pode receber [empfangen] de fora – espírito e força – está presente em Meister num grau para o qual não se colocam limites à fantasia. Seu intelecto é mais que a habilidade de alcançar um dado objetivo final. Seus objetivos são infinitos, e ele pertence à classe de homens que em seu mundo é chamada a dominar. Na consecução disso que ele pensou com espírito, ele mostra seriedade, amor e perseverança. O sucesso de sua atividade permanece sempre num certo claro-escuro, e por isso é deixada livre margem para a imaginação do leitor. Nós ficamos sabendo apenas de sua boa aceitação no castelo dos condes, sua reputação entre as damas, o aplauso na exibição de Hamlet, mas nenhum de seus produtos poéticos nos é mostrado. Sua alma é pura e inocente. Sem um pensamento sobre dever, por uma espécie de instinto, o mal, o não nobre, são odiados, e ele é atraído pelo excelente. Amor e amizade são para ele necessidade, e é facilmente decepcionável, pois lhe é difícil punir qualquer mal. Ele anseia agradar, mas nunca aos custos de outro. A ele é penoso impingir a outro qualquer sensação desconfortável, e quando ele se alegra, tudo

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Gille chega a afirmar que o centro da crítica de Schiller a WML está na análise da relação entre o mundo da Torre e seu pupilo Wilhelm (1971, p 24). 21 E com razão, pois é ele que teria dado origem à longa tradição crítica da obra como um Bildungsroman.

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que o rodeia deve desfrutar com ele. Sua plasticidade [Bildsamkeit] não tem fraquezas. Coragem e independência ele prova quando liberta Mignon do italiano, em como ele se defende dos ladrões, em como afirma sua independência frente a Jarno e ao abade. A autoridade pessoal do abade, a qual em um círculo de homens excelentes é de tão grande peso, não o arrebata. Philine está lá, ela é amável, muito atraída por ele, mas ele não é dominado por ela. Jarno torna-se odiado por ele, já que ele exige o sacrifício do ancião e de Mignon. – A essas disposições vêm ainda figura receptiva, decoro natural, conformidade da linguagem. Para um tal ser deveria então ser encontrado um mundo do qual se pudesse esperar a Bildung não de um artista, de um homem de estado, de um erudito, de um homem de bom tom – mas de um homem (HA7, p. 653-654).

Körner faz uma descrição geral de Wilhelm, destacando seus melhores atributos, para, primeiramente, desligá-lo de qualquer atividade (ele não nasceu para ser artista, HA7, p. 654), em segundo, mostrá-lo como exemplar de uma “classe de homens que em seu mundo é chamada a dominar”, e por fim, elevá-lo, por meio de belos atributos, a uma universalidade humana que exige uma formação correspondente, esta que, desse modo, torna-se altamente abstrata. Mas enquanto para Schiller o leitor deve se esforçar para encontrar a ideia diretora expressa já no título do romance, Körner, funcionário de justiça [Justizbeamter] artisticamente instruído, não parece ter tido essa dificuldade, ele vê claramente completada a formação do herói: Imagino a unidade do todo com a representação de uma bela natureza humana, a qual se forma [ausbilden] gradualmente por meio da cooperação de suas disposições interiores e de suas relações exteriores. O objetivo dessa formação [Ausbildung] é um completo equilíbrio, harmonia com liberdade... Quanto mais plasticidade na pessoa e quanto mais força moldadora [bildende] no mundo que a rodeia, mais abundante a nutrição do espírito que esse fenômeno [Erscheinung] proporciona” (HA7, p. 653).

Körner considera que a formação de Wilhelm resulta da “cooperação de suas disposições interiores e de suas relações exteriores”, interação que tende ao equilíbrio e à “harmonia com liberdade”. Novamente divergindo de Schiller – sem o saber – Körner diz: “todos esses preparativos não foram suficientes para a formação [Bildung] de Meister. O que a completou foi uma criança – um pensamento amável e altamente verdadeiro” (HA7, p. 656). Em suma, enquanto Körner concorda inteiramente com a visão que a Sociedade da Torre transmite a Wilhelm a respeito de sua trajetória e de seu necessário destino, Schiller 21

questiona Goethe sobre o tratamento de diversos assuntos que poderiam sustentar apenas fragilmente a felicidade do herói (a começar pela não pronunciação da ideia, mas também a insuficiência em atribuir à paternidade de Felix a causa da absolvição do herói). Afora o fato de Körner apossar-se do objeto e falar dele com certa propriedade, não temos uma apreciação de Goethe sobre a interpretação de Körner. O autor grifou somente uma frase na carta de Körner da qual havia gostado especialmente: “Especial arte encontro no entrelaçamento entre os destinos e os caracteres” (p. 653) – por sinal, questão presente no ritual de aprendizado de Wilhelm Meister no Livro VII e mesmo teor de uma frase de Therese a Wilhelm. Entre Schiller, Humboldt e Körner, este último é o único que compreende o romance marcadamente pela sobrelevação do herói. Essa maneira de interpretar advém diretamente da teoria de Blanckernburg, para o quem o tema exemplar do romance consiste no aperfeiçoamento de um caráter22, e todas as circunstâncias agem para seu desdobramento.

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Assim, tanto para Blanckernburg quanto para Körner, nenhum personagem seria passível de desenvolvimento – somente o herói. Após o exemplo de Agathon, Blanckenburg desenvolve a exigência de que o romance deve apresentar o indivíduo efetivo e explicar, sobretudo, o interior do homem. Tal formulação já sugere que o romance não deve apresentar o herói com qualidades imutáveis, ao contrário, deve mostrar um homem completo no processo de “tornar-se” [einen ganzen werdenden Menschen] (JACOBS\KRAUSE: 1989, p. 52). O objetivo do romance seria a formação do caráter: Ausbildung, Formung des Charakters (cf. SELBMANN: 1988). Blanckenburg fala da “história interior” de um herói, e não da representação de uma sequência de ações externas, como “o essencial e próprio de um romance”, estabelecendo assim o fundamento psicológico do romance. Trata-se de conceder perfectibilidade, não perfeição, ao herói do romance. O herói passivo do Bildungsroman, nas palavras de Plett (2002), cujo tornar-se coloca-se não no agir, mas no “deixar agir” [Tun-Lassen], está já modelado em Blanckenburg. Da mesma forma que estão aqui os contornos do herói romanesco “problemático” do século dezenove. Blanckenburg acaba por limitar o romance à história interior, de modo que ele “complementaria” a épica, tradicionalmente fundada em acontecimentos exteriores ligados à história “mundial”. Não haveria, portanto, uma contraposição de ambos neste ponto. Tampouco haveria uma invasão de território quanto à forma: enquanto o romance moderno é narrado em prosa, a épica clássica é versificada [Versepos]. Ao mesmo tempo, afirma-se dessa forma o igual valor de realidade que o mundo “interior” tem frente ao “exterior”. E por ser o caráter do herói tão decisivo no novo romance que surgia, o livro de Blanckenburg, na primeira parte, é mais sobre drama que romance. Quanto ao caráter, a única diferença entre ambos é que o drama mostra apenas caracteres já prontos e formados, enquanto o romance mostra o processo de formação [Bildungsprozess] em seu curso. (Essa definição aparece meses antes do Werther, em 1774, ser publicado.)

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A carta de Wilhelm von Humboldt: a fraqueza do herói (contraposição a Körner) Numa carta de 24.11.1796 a Goethe, Humboldt contrapõe-se frontalmente à interpretação de Körner. Humboldt começa por elogiar (sem, no entanto, explicitar) a perspectiva principal da interpretação de Körner. Em seguida, critica a apreensão do colega do caráter de Meister – porém, a interpretação de Körner apoia-se exatamente aí. Humboldt não concorda com a interpretação otimista feita de Wilhelm Meister. Körner parece encontrar nele um conteúdo com o qual a economia do todo, como eu acredito, não poderia existir, e, ao invés disso, ele não parece ter encontrado suficientemente, como me parece, sua determinabilidade ininterrupta sem quase toda determinação real, seu contínuo aspirar para todos os lados sem decidida força natural para um deles, sua irrefreável inclinação para refletir e sua tepidez, se eu não devo dizer frieza, da sensação, sem a qual seu comportamento após as mortes de Mariane e Mignon não seriam compreensíveis. E, contudo, esses traços são para o romance como um todo da mais alta importância (HA7, p. 659).

Para Humboldt, Meister descreve o mundo e a vida completamente como eles são, inteiramente independentes de uma única individualidade e exatamente por isso abertos para toda individualidade. Inclusive em todas as demais obras primas desse gênero, tudo sustenta o caráter do protagonista por semelhança ou contraste. No Meister, tudo, em vez de todos e, porém, cada indivíduo e o todo são determinados completamente pelo intelecto [Verstand] e pela fantasia. Por isso, todo homem reencontra no Meister seus anos de aprendizado (HA7, p. 659).

E finaliza: É ruim que o título de Os anos de aprendizado não seja suficientemente observado por alguns e, por outros, seja mal compreendido. Os últimos não detêm, por essa razão, a obra por acabada. E, porém, não é isso, se Os anos de aprendizado de Meister devem significar a completa formação [Ausbildung], educação [Erziehung] de Meister. Os verdadeiros anos de aprendizado estão terminados, Meister interiorizou então a arte de viver, ele então entendeu que para se ter algo, um tem de receber e o outro tem de lhe sacrificar (HA7, p. 660).

Humboldt posiciona-se contra Körner e inaugura uma linha de interpretação quase tão forte de WML: a vantagem [Vorzug] do romance consiste na individualidade do protagonista ser deixada quase indeterminada, relativizando desse modo a posição central do herói. Marca-se assim uma despedida da observância poética do romance de 23

Blanckenburg, que mantinha a validade da possibilidade de identificação com o herói como uma categoria central (Wirkungspoetik). Como observa Gille (1971: 44), Humboldt orientase pela épica em sua interpretação do romance, com isso, a fraqueza e a palidez da figura de Wilhelm são ressaltadas. Além disso, para Humboldt não se pode falar em completude da obra se esta significar “uma educação e formação completas” de Meister em seus anos de aprendizado, embora se possa falar de completude na medida em que se pressupõe que “Meister interioriza a arte de viver”. É bastante esclarecedor que um dos mais significativos teóricos da Bildung tenha visto no romance um sentido de formação extremamente vago, na qual esta cede lugar à “arte de viver”. A perspectiva de análise que insere novamente o romance nos quadros da épica, determinando a fraqueza do herói, será posteriormente retomada por Friedrich Schlegel e também por Schelling.

A posição de Schiller frente a Körner e Humboldt: Wilhelm é o mais necessário, mas não o mais importante Em 28.11.1796, Schiller escreve a Goethe comentando as asserções de Humboldt e Körner – evitando sabiamente o ponto em disputa, a saber, o teor do aprendizado, Schiller acaba por concentrar-se no caráter de Meister. Reconhece que o mais característico de WML é não estar ligado ao protagonista. Mas, para ele, ambas as posições são extremas, enquanto Humboldt despreza completamente o protagonismo de Wilhelm, Körner observa demais o caráter do herói como o convencional de um romance, o título da obra e a tradição literária seduziram-no. Na opinião de Schiller, Wilhelm Meister é na verdade a pessoa mais necessária, mas não a mais importante; pertence às peculiaridades de seu romance exatamente isto: que ele não tenha e nem precise de tal pessoa mais importante. Ao lado e em volta dele acontece tudo, mas não propriamente por sua causa; exatamente porque as coisas giram as energias ao seu redor, mas ele representa e expressa a plasticidade, assim, tem de ter um relacionamento completamente diferente com os outros caracteres [Mitcharakter] do que o herói de outros romances têm (HA7, p. 651).

Ele acha Humboldt injusto demais com o caráter de Wilhelm, e não entende 24

exatamente como ele considera que o poeta poderia ter por acabado o romance “se Meister fosse uma criatura indeterminada e sem conteúdo”. E significativamente, prossegue: Se a humanidade, de acordo com todo seu conteúdo, não é realmente evocada no Meister e colocada em jogo, então o romance não está pronto 23, e se Meister não é absolutamente capaz disso, então o senhor não tinha permissão para escolher esse caráter. De fato, para o romance é uma circunstância delicada e complicada que ele não encerre, na pessoa de Meister, nem com uma decidida individualidade nem com uma realizada idealidade, mas com uma coisa intermediária entre ambas. O caráter é individual, mas apenas segundo as limitações e não segundo o conteúdo, e ele é ideal, mas apenas segundo a capacidade [Vermögen]. Ele nos recusa, por conseguinte, a satisfação mais próxima, a qual nós exigimos (a determinação), e promete-nos uma mais alta e a mais alta, a qual nós temos de creditar a ele, porém, num futuro distante. Muito estranho é como tanta disputa no julgamento ainda é possível com um tal produto (HA7, p. 651-652).

Como já havia ficado claro, Schiller percebe o papel central de Wilhelm, já que o herói do romance tem de cumprir uma missão muito especial, a de representar toda a humanidade, porém, ele vê que Wilhelm é um tipo especial de herói romanesco e, por isso, não pode concordar com a unilateralidade de Körner e Humboldt. Quanto à realização do herói, Schiller percebe também que ela conta com a condescendência do leitor, já que ela não é dada nas fronteiras do romance, mas colocada para além dele – e nisso o leitor deve crer, para que possa compreender Wilhelm como realizado.

Os estudos de Friedrich Schlegel: a ironia da arte de viver Temos delineadas até aqui as principais posições que a crítica assumiria frente à obra de Goethe e, especialmente, sobre Wilhelm Meister. Ainda que a interpretação imediatamente subsequente às primeiras represente uma inovação importante nos estudos sobre Wilhelm Meister, no tocante ao herói, Schlegel alinha-se com os seus antecessores,

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Lukács possui uma ideia similar: “\...\ mesmo quando se baseia no mais abstrato e no mais exclusivo dos individualismos, o objeto da literatura é estabelecer uma relação entre o indivíduo e o mundo exterior, com a sociedade presente, e, por outro lado, certa universalização inelutável, tanto do sujeito como do objeto; quer ele queira quer não, o que o escritor escreve diz respeito ao destino de toda a humanidade” (1968: 102).

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especialmente Humboldt. A segunda fase da história da recepção de Wilhelm Meister consiste na crítica dos primeiros românticos [Frühromantik] Friedrich Schlegel (1772-1829) e Novalis (Friedrich von Hardenberg, 1772-1801). O romance goethiano foi tão importante para eles que contribuiu para que desenvolvessem sua própria concepção de poesia (BAHR: 300). Assim é resumido contexto dessa influência: Os anos de aprendizado de Goethe situam-se, em seu aparecimento (1795/96), no meio de um contexto de ruptura literária. Seu efeito sobre os jovens autores foi grande, o romance constituiu um fermento para as discussões políticas, poetológicas e científico-naturais do primeiro romantismo. As consequências foram reações importantes e congeniais, assim a grande recensão de Friedrich Schlegel na Athenäum de 1798, que coroa as primeiras discussões, e a segunda recensão de 1808 nos Heidelbergischen Jahrbücher, que extrai a soma de tal efeito e ao mesmo tempo encerra provisoriamente a discussão em torno do romance /.../ (p. 889, FA).

No fragmento n.216 (1798) da revista romântica Athenäum, Schlegel coloca Wilhelm Meister entre os mais significativos acontecimentos daqueles tempos: “A Revolução Francesa, a doutrina da ciência de Fichte e o Wilhelm Meister de Goethe são as maiores tendências da época”. Num esboço de 1797, desconhecido no período, vemos melhor o que Schlegel entende por “tendência”: “As três maiores tendências de nossa época são a doutrina da ciência, Wilhelm Meister e a Revolução francesa. Mas todas as três são apenas tendências sem realização sólida [gründliche Ausführung]” (BAHR: 301)24. A recensão de 1798 consolidou-se como uma das mais importantes sobre o romance e como a que desenvolveu ao mesmo tempo os princípios mais importantes da poesia romântica. Ela foi a primeira a tratar do romance de modo abrangente (à época, o único empreendimento comparável eram as cartas de Schiller, mas elas foram publicadas somente três décadas mais tarde). Schlegel detém-se na “organização” (HA7, p. 668) interna do romance e no papel do narrador, reconhecendo a influência da ironia (e com isso vislumbramos a importância do livro para a “ironia romântica”); e observa o fato de Goethe

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E ainda: “Todos as poesias (obras) incompletas são tendências, esboços, estudos, fragmentos, ruínas” (Schlegel apud Gille, 1971: 101); “todos os livros preferidos têm algo de falsa tendência \...\ os livros de formação não menos; Meister” (Schlegel: Zur Poesie und Litteratur. II, Nr. 413, ebd. p. 287 apud Birus).

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tomar a poesia como objeto da poesia na discussão sobre Hamlet – outro aspecto central na compreensão romântica da poesia25. Assim como em Humboldt, o tema do romance é interpretado por Schlegel como “os anos de aprendizado da arte de viver”, “nos quais nada mais é aprendido do que a arte de viver”; ao invés da uma educação bem sucedida de um ou outro homem, o romance “deve representar a Bildung mesma em exemplos variados e em fundamentos simples” (HA7, p. 675). Sobre a Bildung de Wilhelm, Schlegel fala da inutilidade de seu aspirar, tanto mais grave porque o herói resume-se a esse contínuo aspirar, mas pior ainda porque ele não apenas não alcança seus desejos, como é usado por outros e zombado por ser como é. Seu completo ser e agir consiste quase apenas no aspirar, querer e sentir, e embora nós prevejamos que ele somente mais tarde ou nunca agirá como homem, então sua plasticidade sem fronteiras promete, todavia, que homens e mulheres façam da educação dele um negócio e um divertimento /.../ (HA7, p. 664)26.

Novalis: crítica à economia e à razão A ideia pedagógica que orienta o romance foi identificada como central também para os românticos que compõem a segunda fase da recepção do romance (GILLE 1971, p. 16). No entanto, a ironia (por sua vez não destituída de ambiguidade) com a qual o narrador

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Apesar da influência que as filosofias idealistas de Kant e sobretudo de Fichte exerceram sobre Friedrich Schlegel, a ênfase delas na crítica de Meister é diversa da de Schiller. “Pois ao invés do conteúdo filosófico, da ação, da natureza e da formação dos protagonistas, Schlegel acentua sobretudo o ‘tipo de representação’ e a ironia” (BIRUS, p. 7). 26 Deixemos Goethe finalizar: “É inegável que Schlegel sabe infinitamente muito, e quase nos assustamos com seus extraordinários conhecimentos e sua grande erudição [Belesenheit]. Mas nada é feito com isso. Toda instrução [Gelehrsamkeit] não é ainda julgamento. Sua crítica é completamente unilateral, de modo que quase em todas as peças teatrais ele vê apenas o esqueleto da fábula e do arranjo [Anordnung] e prova sempre apenas pequenas similaridades com grandes precursores, sem se preocupar minimamente sobre o que o autor nos demonstrou da vida graciosa e da Bildung de uma alma elevada. Mas de que serve todas as artes do talento, se de uma peça teatral não nos vem de encontro uma personalidade amável ou grande do autor, desse único que transita na cultura do povo?” (Goethe a Eckermann, 28.3.1827, p. 525).

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acompanha o herói causam certo incômodo ao leitor que queria ver aquela ideia de formação plena e belamente realizada. Schiller percebe a ironia, Humboldt também, mas Körner, não. Comentando a frase de Körner sobre Wilhelm: “Sua plasticidade [Bildsamkeit] não tem fraquezas”, Gille é direto: “é um exagero grotesco e atesta falta de sentido para a ironia com a qual o narrador trata seu herói” (1971, p. 37). Novalis pertence aos grandes admiradores e opositores de Wilhelm Meister, como testemunham aforismos e fragmentos de 1798-1800. Ele admira a arte de Goethe: “Nele tudo é ato – como em outros tudo é apenas tendência. Ele faz realmente algo, enquanto outros fazem apenas algo possível – ou necessário” (HA7, p. 683), elogia-o como poeta da realidade (cf. HA7, p. 682-683), a ironia do romance é identificada por Novalis como romântica. Mas criticará, sobretudo, o prosaísmo do romance, a economia e a razão. Novalis expressou-se de maneiras opostas sobre essa obra de Goethe; assim: “a filosofia e a moral do romance são românticas. O mais ordinário é visto e representado, com ironia romântica, como o mais importante” (HA7, p. 684). Mas disse também: “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são completamente prosaicos – e modernos. O romântico destrói-se nisso – também a poesia da natureza, o maravilhoso – ele trata meramente de coisas humanas triviais – a natureza e o misticismo são inteiramente esquecidos” (HA7, p. 685). Parece inegável que Meister possua em sua caracterização elementos românticos presentes em seus motivos mais frequentes: a nostalgia e o amor, a ligação entre os humores do protagonista e a natureza27. Ainda que não deem a coloração decisiva do romance, o pessimismo, a religião e a morte são traços também fortemente presentes na história de Wilhelm, e embora não pertençam propriamente ao caráter do protagonista, materializam-se na atmosfera que o rodeia durante a maior parte de sua trajetória. Observando também as estruturas, tal como Schlegel, Novalis chega a um resultado mais convencional no que concerne ao herói do romance.

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Relação nitidamente representada em Werther e também problematizada na Empfindsamkeit: a natureza torna-se uma força primordial de uma estética emocional, deixa de ser somente um refúgio íntimo.

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Um escritor de romance faz um tipo de final rimado [bouts rimé] – que faz de uma dada quantidade de acasos e situações uma linha bem ordenada e consequente – que Um indivíduo oportunamente atravessa por meio de todos esses acasos rumo a Uma finalidade. Ele tem de ser um indivíduo característico [eigentümlich], que determina os acontecimentos e por ele é determinado 28. Esse intercâmbio, ou as mudanças de Um indivíduo – em uma linha contínua perfazem o interessante material do romance. Um escritor de romance pode criar obras de modo diverso – ele pode, por exemplo, imaginar primeiro uma quantidade de acontecimentos [Begebenheit] – e imaginar para a vivificação [Belebung] dessas em indivíduo / uma quantidade de estímulos, e inventar para esses uma constituição especial por eles diversamente mutante e especificadora / ou ele pode se fixar, contrariamente, primeiramente num indivíduo de tipo próprio e, para esse, inventar uma quantidade de acontecimentos... Quanto maior o poeta, menor é a liberdade que ele se permite, mais filosófico ele é. Ele se contenta com a escolha voluntária do primeiro momento e desenvolve depois apenas as disposições [Anlage] desse cerne – até sua resolução. Todo cerne é uma dissonância – um mal-entendido que deve paulatinamente se equilibrar. Esse primeiro momento compreende os elementos de alternância [Wechselglied] em uma relação – que não deve permanecer assim – por exemplo em Meister – aspirar pelo mais elevado e situação de comerciante. Isso não pode ficar assim – um tem de ser senhor do outro – Meister tem de abandonar a posição de comerciante ou a aspiração tem de ser aniquilada – Poder-se-ia melhor dizer – sentido para a bela arte e vida de negócio combatem-se por Meister dentro dele. O primeiro e o segundo – beleza e utilidade são as deusas, as quais aparecem para ele sob diferentes figuras em encruzilhadas – Finalmente chega Natalie – e ambos os caminhos e ambas as figuras convergem em um (HA7, p. 682).

O conceito de individualidade em Goethe Goethe refere-se ao tema da individualidade predominantemente em seus escritos teóricos, cartas, diários e textos aforísticos curtos. Apesar de não haver teorizado sistematicamente a respeito, é possível entrever uma concepção homogênea sobre o assunto: a individualidade constitui-se numa relação dialética de autoconservação e delimitação contra o universal (Gamm), e assim, ela tem de resistir e persistir para viver e delinear sua particularidade. Goethe explica esse comportamento com o conceito

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Compare-se o que diz mais tarde Lukács: “As qualidade individuais significativas consistem exatamente em efetivar o geral-social de modo mais claro e determinado. Elas contêm, portanto, em crescente medida, as características do herói épico”.

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aristotélico de enteléquia: “Os gregos nomearam entelequia uma essencia/ser que sempre est{ em fun}ao” (citado em Rudolph, p. 370). Esse e um conceito central para a compreensao da individualidade na medida em que designa o esfor}o que o ser individual precisa fazer para a afirma}ao, preserva}ao e desdobramento de sua vida em meio ao universal. Platao e Aristoteles foram para Goethe corporifica}oes complementares do espirito grego; tambem na Apologia, de Platao, ele ve expresso em Socrates o pensamento de entelequia. “A obstina}ao do individuo e o fato do homem afastar o que nao lhe e conveniente e para mim uma prova de que algo [como entelequia] existe” (di{logo com Eckermann, 3.3.1830). Leibniz, primeiro teorico sistem{tico da individualidade, foi quem primeiro desenvolveu explicitamente o conceito de entelequia como a caracteristica do ser [Wesen] da individualidade. Seguindo Aristoteles, para Leibniz o principio de conserva}ao [Erhaltung] da vida e o tra}o decisivo da individualidade, e a entelequia e uma for}a geradora que age conservando energia e ao mesmo tempo individualiza (Schelling, contemporaneo de Goethe, assumiu conscientemente esse significado de entelequia de Leibniz). “Aristoteles, Leibniz e Schelling concordam que a entelequia e vista como uniao de um principio imanente – da alma – com as formas fenomenicas materiais da vida, notadamente com os corpos organicos. A respectiva uniao caracteristica [eigentumlich] de corpo e alma gera o diverso na natureza. Visto dessa forma, portanto, o uso do voc{bulo entelequia no sentido da determina}ao da individualidade liga imediatamente a Aristoteles a filosofia moderna de Leibniz, Schelling e Goethe” (Rudolph, p. 525). Distinguindo-se de Leibniz, no entanto, Goethe pondera que tambem conforma}oes [Gebilde] da natureza organica nao humana sao observ{veis como individuos, ainda que a individualidade na natureza extra-humana apare}a manifesta de modo transitorio. Contudo, tendo em vista a historia do homem, o principio de autopreserva}ao e luta com o meio sao os tra}os em comum entre a individualidade natural e humana. A natureza “parece ter assentado [angelegt] tudo em individualidade, e nao se importa com os individuos. Ela constroi sempre e destroi sempre, e sua oficina e inacessivel” (citado em Rudolph, p. 526) 29. A 29

Apesar de discussoes de filosofia natural estarem em curso naquele periodo entre seus contemporaneos, Goethe nao compartilhava inteiramente das posi}oes em voga. Schelling, por exemplo (celebrado por Goethe

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tragicidade da luta da individualidade, portanto, é percebida por Goethe como algo característico tanto nas observações da natureza quanto na história do homem. A limitação, e sua fatalidade, na qual vive o indivíduo, é designada ocasionalmente por Dämon30. O Damon significa aqui a individualidade necess{ria, manifestada imediatamente no nascimento, limitada, da pessoa, o caracteristico por via do qual o singular de cada um se diferencia de outro em meio a ainda tao grande semelhan}a /.../. Nesse sentido, de uma individualidade necessariamente determinada atribuiu-se a cada homem seu Damon, o qual lhe sussurra oportunamente o que, afinal, é realmente para fazer (Urworte. Orphisch).

Ao colocar o Damon como parte importante da defini}ao de individualidade, especialmente em sua fase tardia, Goethe insere-se na tradi}ao grega que remonta a Her{clito: “para o homem, sua peculiaridade e seu destino” [Ethos anthropo daimon] (apud Rudolph, p. 526). Platao nao est{, da mesma forma, longe do pensamento heraclitiano quando liga o principio do autoconhecimento ao conhecimento do proprio Dämon. Esses conceitos estão presentes também em WML, visto que a compreensão goethiana das disposições e inclinações individuais são as manifestações palpáveis da enteléquia e do Dämon agindo para que Wilhelm e alguns outros desdobrem sua individualidade da forma que lhe é determinada, forma por excelência ativa. Tais conceitos permitem intuir o que é a individualidade, mas ela ainda permanece inefável31.

como o genio do vindouro seculo XIX por causa de seus projetos naturais-filosoficos), liga um valor positivo ao que chamou de circula}ao [Kreislauf] da natureza: o individuo tem de aparecer como meio, o genero como objetivo da natureza “O individuo passa, o genero fica, por isso, a natureza nunca para de ser ativa. Somente porque ela tem de apresentar-se nessa infinita atividade por meio de produtos finitos e que ela tem de voltarse a si mesma por meio de uma infinita circula}ao” (Schelling citado em Rudolph, p. 526). Goethe nao fala a favor dessa necessidade maior da absoluta circula}ao da natureza. 30 Conceito que é tematizado sobretudo na fase posterior a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, mas que está presente já neste romance e em outras obras anteriores. 31 Se na epoca do Sturm und Drang a individualidade e discutida e afirmada enfaticamente na esfera estetica (Veja-se Zum Shakespeare Tag) e o conceito de “eu” assume uma fei}ao egocentrada, j{ por volta dos anos oitenta do seculo XVIII (inicio do periodo weimariano de Goethe) o conceito de individualidade e centrado no destino. Com a expressao “o individuo e inef{vel” [Individuum est ineffabile], Goethe ressalta a liga}ao interna entre “eu” e “mundo”, os quais ele tentar{ harmonizar em meio ao seu processo de autocertifica}ao (Kemper, p. 19), ou, ainda, como j{ se estabelece nos tempos do Sturm und Drang, segundo Jacobs e Krause, a convic}ao enf{tica de nao fixar a individualidade conceitualmente, posto se tratar de algo irredutivel e unico, qualidades que irao inspirar o individuo a buscar a realiza}ao de sua natureza individual.

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CAPÍTULO 1 APRESENTAÇÃO

A particularidade do caráter como sinônimo de individualidade e sua pertinência para a teoria literária “Wilhelm é de fato um ‘pobre cão’, mas só assim se deixam mostrar corretamente a interação e as mil diferentes atribuições da vida, não em caracteres sólidos, em si acabados” (Notas de conversas de Friedrich von Müller, 22.1.1821, HA7, p. 619)

Como pretendemos demonstrar por meio de Wilhelm Meister, a individualidade sócio-humana é um complexo de formas de ser em permanente interação. Reduzir esse conjunto a uma de suas categorias torna a conceituação de individualidade inexata e superficial, já que engloba os diferentes âmbitos da individualidade sem os distinguir e coloca-os todos sob o signo de apenas uma de suas constituintes32. Por outro lado, ampliar o significado de caráter a ponto de englobar toda a individualidade não permite compreendêla em seus diferentes e específicos modos de ser. Na teoria literária, o termo caráter designa a especificidade de um personagem individual entendido como um todo. Caráter e caracterização, no sentido literário, referemse a todas as dimensões da constituição individual requeridas na criação de um personagem, tornando recorrente tratar dos diferentes domínios de sua individualidade sob a designação

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Os intérpretes de WML como um Bildungsroman seguiram, em regra, a tendência de sincronizar totalmente personalidade e individualidade – evidentemente sem mencionar a última. Para Dilthey (1906), nesses romances “foi visto um desenvolvimento na vida do indivíduo segundo leis, cada um de seus estágios tem um valor próprio e é ao mesmo tempo uma base para um estágio mais alto. As dissonâncias e conflitos da vida aparecem como necessários pontos de transição do indivíduo em sua estrada para o amadurecimento e para a harmonia. E 'a mais alta felicidade dos homens mortais' é a 'personalidade' como forma unitária e sólida do ser humano” (1988: 121). Até hoje o uso “de individuo e individualidade, sujeito e subjetividade, consciencia do eu ou autoconsciencia, pessoa, personalidade, car{ter, identidade etc. em contextos nao-sistem{ticos e de exemplar imprecisao e cria sempre novos mal-entendidos” (Kartschoke apud Gerok-Reiter, 2006, p. 7).

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de “caráter”. O mesmo acontece em análises literárias e extraliterárias de Goethe e seus contemporâneos. Além disso, outro aspecto que depreendemos das análises dos contemporâneos de Goethe e do próprio autor é que o caráter de Wilhelm pode ser examinado sob duas perspectivas principais: em sua função composicional literária para a satisfação de determinadas exigências formais que possibilitem o curso da ação romanesca; e em seu conteúdo, cuja verossimilhança permite que a história e a individualidade do herói sejam supostas e examinadas como reais (e nesse âmbito, discutidas as implicações filosóficas da obra). No primeiro caso, o caráter é sinônimo de caracterização e refere-se necessariamente à individualidade como um todo; no segundo, ele foi limitado a sinônimo de personalidade ou sensibilidade ou consciência ou, ainda, ampliado a sinônimo de individualidade. É o entrelaçamento dessas duas dimensões (formal, como exigência da obra; e real, como parte efetiva da individualidade) que complexifica e vivifica o “caráter” do herói e causa grandes polêmicas na interpretação do romance, pois essas duas dimensões raramente foram vistas como distintas. Ocorre, porém, que quando se quer analisar o sentido de uma obra, como é o caso exemplar de Lehrjahre, aquilo que é um recurso conceitual válido na teoria da literatura já não se mostra mais eficiente na discussão filosófica. De modo geral, na psicologia, caráter é entendido como um dos aspectos da personalidade, designando a maneira particular com que o indivíduo se expressa ao pensar, sentir e agir. O caráter é geralmente posto em relevo porque ele está imediatamente presente e de certa forma representa a individualidade como um todo, pois é a maneira como ela aparece para o mundo exterior33. Nesse sentido, em Poesia e Verdade, Goethe diz que a personalidade é o que na realidade atrai outro indivíduo34. Sob a denominação de caráter, nosso intuito é primeiramente referir os traços

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E por isso é útil lembrar que o termo personalidade liga-se originalmente à noção de persona – máscara, aparência. 34 “O homem opera [wirken] tudo que ele é capaz sobre os homens por meio de sua personalidade, a juventude o mais fortemente sobre a juventude, e daqui provêm os mais puros efeitos [Wirkung]. Esses são os que animam o mundo e não o deixam extinguir-se nem moral nem fisicamente. Por meu pai me foi transmitido uma certa eloquência instrutiva; pela minha mãe, o dom de expor tudo que a imaginação pode criar, conceber /.../” (p. 489). Essa passagem exemplifica ainda o sentido de personalidade transmutando-se no de

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principais da personalidade de Wilhelm Meister, e, secundariamente, os aspectos que estão diretamente ligados à estrutura formal da caracterização na medida em que se fazem inseparáveis do próprio conteúdo, como é o caso da plasticidade. Por essa razão, e não por causa da prioridade ontológica sobre as outras categorias do complexo da individualidade, apresentaremos nosso herói primeiramente por meio de seu caráter, categoria que tem a particularidade de pertencer, ao mesmo tempo, como explicamos, ao complexo categorial da individualidade, no sentido de personalidade, e à teoria literária, no sentido de traços composicionais da individualidade de um personagem.

Nota sobre os significados de sensibilidade Sinnlichkeit e Empfindsamkeit, o primeiro termo refere-se à sensibilidade enquanto o conjunto de órgãos do sentido e à determinação sensível; o segundo, à sentimentalidade (GW acusa apenas 10 Belege; nur aus den 70er Jahren od mBez darauf). A este último sentido liga-se o termo Empfänglichkeit, também traduzido frequentemente por sensibilidade, mas cuja particularidade está em ressaltar o aspecto da receptividade da sensibilidade, e por isso relaciona-se ao que é despertado ou suscitado: sensação, sentimento – Empfindung (GW Gefühl, Regung, Leidenschaft, Gemütsbewegung od Stimmung). Nosso objetivo é apresentar a configuração da sensibilidade de Wilhelm num painel composto por essas quatro dimensões conceituais da categoria, embora privilegiemos neste momento a recepção (incluindo sentimentalidade e sensação), visto que a "formação dos sentidos", parte essencial do conceito de sensibilidade [Sinnlichkeit], será apresentada e discutida no Capítulo 2: Atividade, que é a via pela qual a sensibilidade realmente se transforma. Com esse procedimento, pretendemos nos aproximar daquilo que Goethe denominou de enteléquia e Dämon, isto é, procuraremos observar para onde se dirige a individualidade do herói por meio dos objetos pelos quais ela é particularmente

sensibilidade.

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atraída e sobre os quais reage. Wilhelm não é exageradamente sentimental de modo a ser um legítimo representante da chamada Empfindsamkeit, mas nele as emoções são afloradas o bastante para que a relação com o movimento literário seja subestimada. Embora Goethe tenha sido um dos que mais intensamente criticou a disposição sensível que tomava conta da época como uma “doença epidêmica” (cf. John: 1998). O herói interage com o mundo levado por seus sentimentos, emoções, paixões. É possível perceber, ainda, que as raízes religiosas da Empfindsamkeit, ligadas a um pietismo secularizado, são remetidas no Livro VI do romance de Goethe que, significativamente narrado em primeira pessoa, se desdobra sobre uma individualidade que interiorizou radicalmente a religião. É certo também que a compaixão religiosamente motivada desse movimento alarga-se para outras sensações, de modo que, paralelamente ao crescente enfoque na vida privada tão característico da Empfindsamkeit e tão próprio a Os anos de aprendizado (como observou criticamente Lukács: 1932), mesmo o amor sensual passa a não ser mais visto como paixão destruidora, o que também se distingue no romance (como comenta Igel: 2007 sobre a secularização do amor). O surgimento da época literária “sensível” tem origem com a filosofia inglesa, especialmente nos escritos de Shaftesbury (1671-1713) em que se conferia ao homem uma disposição natural para a compaixão, o amor e o afeto. Essa maneira de sentir caracteriza muito bem nosso herói. O movimento da Empfindsamkeit, em sua transição do barroco para o classicismo, é, ao lado do Sturm und Drang (ou Geniezeit), um dos aspectos do Iluminismo alemão, e, neste âmbito, o estatuto da arte e a definição de artista assumem primeiro plano. O objetivo dessa literatura era envolver emocionalmente o leitor, por isso o narrador onisciente não está presente realizando a mediação, e o leitor é confidente do protagonista – a tônica não é propriamente a trama, mas o aprofundamento psicológico dos personagens e as diferentes dimensões da sentimentalidade. Wilhelm Meister já não utiliza esses elementos, mas oferece mostras desse tipo de sentimentalidade com as Confissões de uma bela alma (Livro VI).

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Consciência: a concepção de mundo de Wilhelm Trata-se de abordar o conteúdo da consciência de Wilhelm Meister elaborados teoricamente – e não as discussões teóricas apresentadas pelo narrador ou pelos representantes da Sociedade da Torre35. Neste particular, acompanhamos Lukács: Uma caracterização que não compreenda a concepção do mundo própria do personagem não pode ser completa. A concepção do mundo é a mais elevada forma de consciência; por isso, o escritor que a ignora suprime o aspecto mais importante do personagem que pretende criar. A concepção do mundo é uma profunda experiência pessoal do indivíduo singular, uma expressão altamente característica de sua íntima essência, e reflete ao mesmo tempo os problemas gerais da época (1968, p. 167).

Ainda que seja discutível tratar-se do “aspecto mais importante” do personagem, fato é que a fisionomia intelectual é ainda mais importante no personagem épico – porque ele age pouco. Nicolai (1799) considera que Wilhelm é um tolo, e pondera que quando o protagonista se apresenta brilhante, por exemplo em suas elaboradas ideias sobre Shakespeare, ele não passa de um veículo para as ideias do próprio Goethe. Como diversos estudos demonstram, porém, não somente Wilhelm, mas também o abade, o Oheim, e até mesmo Serlo ou Philine portam eventualmente concepções de seu autor. O que deve ser levado em conta neste ponto é que tais ideias encontram-se sempre de acordo com o personagem em questão que as portam, por isso, não se pode desqualificar Wilhelm por essa via, supor que ele é um mero receptáculo é considerar Goethe um autor ingênuo.

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A esse respeito, ver Kemper (2004).

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Caráter [Wilhelm] Ali onde estiveres, ali onde permaneceres, faz o que podes, sê ativo e solícito (VII 8, p. 463) [Therese] \...\ a história de um homem é seu caráter (VII 5, p. 436) Nele [em Wilhelm] reside uma figura pura e moral da humanidade (Schiller a Goethe, 5.7.1796, HA7, p. 637)

Ingenuidade, autoengano, moralidade

Wilhelm tem as qualidades do herói literário positivo e tradicional: bom, amável, bem afeiçoado, corajoso, leal, sincero, inteligente, comprometido. É cavalheiro, generoso, amigo, e embora as mulheres sintam-se atraídas por ele, o herói não é leviano, ele acredita no verdadeiro amor. É na postura ativa, no modo de realizar a atividade que Wilhelm expressa alguns dos atributos principais de seu caráter: a obediência, a dedicação, a criatividade. Seu esforço é visível e reconhecido. A primeira caracterização de Wilhelm é feita de maneira indireta (isto é, não imediatamente por meio de suas falas, ações e pensamentos). Mariane é a primeira personagem no romance a referir-se a Wilhelm. Ela diz que queria pertencer a si mesma, “todo o meu ser eu quero dar a quem me ama e a quem amo”. Ela não quer ouvir falar de Norberg, amante defendido pela anciã Barbara, ao mesmo tempo criada e conselheira da jovem. É da boca da velha que vem a primeira caracterização de nosso herói. Ainda sem nomeá-lo, a “sibila” refere-se a ele como “o meigo e imberbe filho do comerciante” (I 1, p. 10), menor de idade [Unmündig] e desprovido. Não é portanto sob a luz mais vantajosa que nos aparece pela primeira vez o herói, sendo descrito negativamente como fraco e impotente (por um personagem que pouco escrúpulo tem). Em seguida, já no final do capítulo, surge o protagonista, Wilhelm entra impetuosamente no recinto e abraça Mariane com arroubo. 39

Nessa curta cena do capítulo 1 do livro I é possível perceber que: Wilhelm ama e é amado; ele está enredado em circunstâncias enganadoras das quais não tem conhecimento (com o que deduzimos que ele talvez seja pouco perspicaz ou ingênuo, porém, bom); que ele é um jovem burguês que ainda não tem plena posse sobre os bens familiares. O início do romance retrata o herói da maneira que ele se mostrará ao longo dos outros livros. A imagem é de alguém sensível e bom, meigo, espontâneo e não dissimulado – o grande contraste com Bárbara faz ressaltar os traços essenciais do caráter de nosso protagonista. Mariane representa a mediação entre ambos, possui, em determinados aspectos, um pouco dos dois caracteres, ela tem certa inocência, ama verdadeiramente, mas ao mesmo tempo engana aquele que lhe é mais caro e, com isso, temos delineado também a principal característica da primeira amada de Wilhelm: sua impotência diante das circunstâncias, algo que será tematizado ao longo da trajetória do herói e é um dos pontos centrais a serem corrigidos no próprio Wilhelm, segundo as recomendações da Sociedade da Torre. O foco narrativo do livro I está na relação de Wilhelm com a amada Mariane e nos desdobramentos que se seguem daí. É para ela que Wilhelm relata sua experiência com o teatro desde a infância e confessa suas aspirações artísticas – que figuram inicialmente como um tema vinculado à relação com Mariane. Mediante a narrativa da própria vida, o herói nos dá a conhecer sua história pregressa, aqueles aspectos que ele ressalta para delinear a sequência que dá sentido a sua vida, e também, indiretamente, nos dá a conhecer sua personalidade, seu objetivos, suas concepções; enfim, nós conhecemos inicialmente o herói por meio da narrativa que ele faz sobre si mesmo. Uma vez que ao narrar sua trajetória o herói reflete sobre quem foi e como continua a ser ou não ser, explicita-se também qual a espécie de autopercepção que Wilhelm tem sobre si: seguro e confiante, entusiasmado e capaz. Esse procedimento cumpre, portanto, uma função de esclarecimento sobre si e perante si, pois no mesmo movimento de remontar ao passado, Wilhelm reconhece seus anseios, justifica assim quem se tornou, para onde seguirá daquele momento em diante e por quê36. Um outro ponto importante é que história pregressa de Wilhelm, com

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Também Kemper, que analisa principalmente as teorias submersas no livro, argumenta nessa direção (2004,

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esse procedimento, não fica impregnada da ironia do narrador, que sempre perspectiva de outra maneira as ideias e comportamentos do herói. Nos livros finais, Wilhelm perde para os membros da Sociedade da Torre exatamente essa autonomia, isto é, a de interpretar a própria vida. No fim do relato que ele faz a Mariane sobre como o teatro entrara e se estabelecera indelevelmente em sua vida (I 4-9), o narrador retorna e nos informa que ela estava com muito sono, pois se para Wilhelm sua história com o teatro era “muito divertida”, para Mariane não passava de algo extremamente corriqueiro. Mariane não apreende o sentido elevado e mais profundo da inclinação de Wilhelm pelo teatro e nem que, até certo ponto, essa inclinação tinha fortes ligações com o amor que ele sentia por ela. Esse descompasso importante entre os dois é confirmado também da parte de Wilhelm, o comportamento desatento é recíproco: Wilhelm pede para que Mariane conte sobre sua infância, pergunta em que condições ela fora criada e quais as mais vivas impressões das quais ela se recordava, Bárbara intervém prontamente, falsa e aduladora, pede a Wilhelm que continue sua narrativa, já que elas não têm esse mesmo talento nem memória suficiente para discorrer assim sobre suas próprias vidas, evasiva que denota que elas não teriam tido experiências tão agradáveis quanto as dele. Ele insiste, mas a anciã vence, dizendo que depois de mais um pouco das histórias de Wilhelm, era a vez de Mariane. Esta olha pesarosa para a mulher, Wilhelm não se apercebe de nada e continua a narrativa (I 6). Não surge nova ocasião para dar continuidade ao prometido. Wilhelm mal olha para Mariane para certificar-se de estar sendo ouvido e continua falando sobre as experiências infantis com o teatro. Ela dorme e Wilhelm continua a narrativa tendo como ouvinte apenas Barbara, que tampouco estava interessada nas histórias (I 7-8). Wilhelm é representado como crédulo, ingênuo, distraído pelos próprios sentimentos. A mediação de uma terceira

p. 265). Contudo, o autor percebe já aqui traços de ingenuidade e parcialidade no caráter do herói, embora prefira ressaltar a segurança interna com a qual Wilhelm estrutura seu relato. Esse procedimento faria com que o romance se voltasse para um conceito autorreferenciado de individualidade (e por isso parcial) dos anos de Sturm und Drang e Tasso. No fim do romance, ao contrário, a individualidade não seria mais uma qualidade do indivíduo, mas só se efetivaria na interação social. É preciso notar que WML é um produto de transição, a configuração do herói tem vários elementos do modo de composição do romance barroco (Igel: 2007, Lukács: 1936) e de correntes literárias posteriores.

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pessoa na relação de ambos é indício de um amor imaturo, em razão da juventude de ambos, mas, sobretudo, das circunstâncias, se considerarmos as penas de Mariane que a tornam fraca e submissa em contraposição à fria e interesseira Barbara. Na noite fatídica que irá encerrar o livro I, à hora marcada com Mariane Wilhelm sai de casa; na praça, ergue as mãos aos céus, sente-se libertado de tudo (I 17). Pensava em estar com Mariane “no fascinante teatro”. Ela recebe-o no negligé branco (dado pelo amante Norberg). Wilhelm diz a Mariane que o plano é arrumar uma colocação em outro lugar e então ir buscá-la, casando-se com ela. Wilhelm desejava uma resposta, Mariane disfarça dolorosamente, ele não desconfia. Além da ironia, outra maneira do narrador sugerir a ingenuidade do herói é o modo como são intercalados os estranhos “acasos” que se repetem na trajetória de Wilhelm sempre que um membro da Torre aparece (desde o Livro I) e que chegam ao ápice nos dois últimos livros, quando ele integra-se à comunidade. Recém-chegado ao castelo de Lothario, Wilhelm encontra o padre que já havia conhecido justamente quando o herói se dirigia para a propriedade no intuito de repreender Lothario pela postura com sua finada amiga Aurelie. Talvez induzido pelo conselho do abade de que “devemos pensar no mais imediato”, o que naquela ocasião, para Wilhelm, era falar com Lothario, o herói não indaga sobre a relação do abade com Lothario, a casualidade de encontrá-los juntos é imediatamente naturalizada (VII 2), ainda que o abade demonstre estar bastante inteirado da casa de Lothario e de suas relações, haja vista o modo como tratou a jovem Lydie. Jarno, que Wilhelm conhecera no castelo do conde, também está na casa de Lothario, aparentemente, nenhuma dessas presenças casuais levanta suspeitas em Wilhelm. A ingenuidade do herói é relativizada, entretanto, em algumas ocasiões, como as que envolvem o teatro, que já mostrava suas faces ordinárias desde os tempos de Mariane. Wilhelm assombrava-se ao fitar “de soslaio” os móveis e o chão da casa da amada, mesmo que Mariane desvanecesse tudo com sua presença, ela que, “com desembaraçada naturalidade, não procurava esconder aquilo que, senão por outra razão, ao menos por decoro, costuma-se ocultar diante de outra pessoa” (I 15, p. 54). A sujeira e a falta de higiene eram notáveis, “os utensílios para o asseio humano, pentes, sabão e toalhas, nem 42

mesmo ficavam cobertos, deixando à mostra os vestígios de seu uso” (I 15, p. 54), papéis e roupas íntimas, livros e fitas, tudo cheio de pó. Toda essa passagem é muito interessante pela maneira com que o narrador (ironicamente) alterna a descrição do estado do quarto de Mariane e da postura dela, de um lado, e o amor inabalável de Wilhelm, por outro, que por sua vez repara e, portanto, incomoda-se na bagunça e na sujeira, mas releva. O amor de Wilhelm era infinitamente maior que tudo aquilo que com ele não se coadunava; por extensão, a ingenuidade de Wilhelm é uma característica um pouco ambígua, pois é reiteradamente matizada por sua perspicácia. O narrador comenta que Não lhe era tão fácil conciliar suas ideias com o modo de se comportar dos outros atores, que ele costumava encontrar em suas primeiras visitas à casa dela. Ocupados em futilidades, no que menos pareciam pensar era em sua profissão e seus objetivos; nunca ouviu de nenhum deles um único comentário sobre o valor poético de uma peça teatral nem uma crítica qualquer, pertinente ou não; limitavam-se sempre às mesmas perguntas: ‘O que será desta peça? Fará sucesso junto ao público? Quanto tempo ficará em cartaz?37 /.../ Todas essas coisas que, aliás, já haviam proporcionado algumas horas intranquilas a Wilhelm, voltaram-lhe à mente /.../ ganhavam novamente forma as cenas na estrada e no bailiado, as intenções de Melina e tudo quanto havia ocorrido, o que trouxe a seu espírito vivo e perspicaz uma espécie de inquietação pesarosa (I 15, p. 54).

Ora, como pode um espírito vivo e perspicaz ser ao mesmo tempo percebido como ingênuo e puro? Não parece que o narrador esteja sendo irônico a respeito da capacidade de Wilhelm de compreensão da realidade38. Ele sabia diversas línguas, tomara lições de

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“Eu nunca perguntei em minha profissão como escritor: o que quer a grande massa \...\? Ao contrário, eu sempre almejei me fazer mais compreensivo e melhor, elevar o conteúdo de minha própria personalidade e então sempre pronunciar apenas o que eu reconhecia como bom e verdadeiro” (Goethe a Eckermann, 20.10.1830, p. 649). Ao fazer essa analogia não nos preocupamos em ressaltar o aspecto autobiográfico do romance de Goethe, mas procurar confirmar, como argumentaremos ao longo desta tese, a autenticidade da tendência teatral de Wilhelm. 38 O narrador insinua, inclusive, que Wilhelm é “francamente culto”, quando, no início do romance, depois de um longo tempo sem contato com o teatro, Wilhelm vê a representação de uma peça realizada pelos empregados da fábrica (II 3). O narrador expõe as reflexões de Wilhelm, que julgou positivamente acerca de como os atores souberam valorizar e montar todo o conjunto, e arremata: “Estava repleta de ação, mas sem pinturas de verdadeiros caracteres. Agradava e distraía. Tais são os princípios de toda arte teatral. O homem rude se contenta, desde que veja acontecer alguma coisa em cena; o homem culto quer se emocionar; e só ao homem francamente culto agrada a reflexão (II 3, p. 86).

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esgrima com um bom mestre e, apesar de Wilhelm ser considerado insensato por sua família e pelo amigo Werner em razão de sua paixão pelo teatro, era tido também como inteligente e diligente na aprendizagem, Werner inclusive exercitava seu correto raciocínio com Wilhelm, que mais tarde teria um tipo análogo de interação com Serlo, o qual acostumara-se a representar na conversação o sofista, de um modo sutil, meio irônico, meio sarcástico, destruindo assim quase todo diálogo sério. Empregava esse estilo sobretudo com Wilhelm, sempre que este, como não raro ocorria, mostrava intenção de travar uma conversa teórica geral. A despeito disso, gostavam de estar juntos, pois graças a seus distintos modos de pensar a conversa haveria de se tornar forçosamente animada (IV 18, p. 266).

Na convivência com Werner, Wilhelm aprofundava-se “no desenvolvimento caloroso de suas ideias singulares, em face das quais é possível reconhecer-se com facilidade um espírito livre que, em presença de um amigo, encontra paz e satisfação” (I 15, p. 55). Wilhelm é reflexivo e tende à teorização, isso se expressa, narrativamente, sobretudo em diálogos e cartas. A tendência à reflexão, como percebeu Schiller, manifesta-se quase como idiossincrasia, como necessidade íntima de expressão39. A inteligência aliada à essa tendência desfavorece ver no herói uma ingenuidade plena, mas sim, uma de tal espécie que utiliza como recurso para manter-se o seu contrário, o consciente autoengano [Selbstbetrug]. Assim, ele pode continuar ignorando as dificuldades da vida de ator, que se mostram explicitamente aos seus olhos quando o casal Melina chega à localidade em que ele estava (II 10). Eles haviam tentando uma colocação em vários lugarejos, sem sucesso, mas naquele momento o herói parece não apreender essa dimensão da labuta teatral, talvez em razão das condições materiais das quais ele mesmo desfrutava. Quando Wilhelm conheceu Melina, soube que ele era ator e tinha deixado a profissão justamente por ela ser pouco rentável e difícil, mas ele diz ao desiludido que ele “parece destinado pela própria natureza

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Como demonstra, por exemplo, o comentário sobre Serlo e Aurelie: “Pela primeira vez, depois de muito tempo, Wilhelm se via novamente em seu elemento. Até então, no curso de suas conversas, só havia encontrado ouvintes forçosamente atenciosos, mas agora tinha a felicidade de se dirigir a artistas e críticos, que não só o entendiam à perfeição, como também o contestavam com conversas igualmente instrutivas" (IV 13, p. 238).

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a ser feliz na condição que escolheu. Um porte agradável, /.../ um coração sensível” (I 14, p. 48). Salta aos olhos, nessa passagem, o quanto Wilhelm não conhece na prática ou subestima fortemente as agruras da atividade teatral. Contra tudo que reclama Melina, Wilhelm antepõe suas opiniões a respeito do teatro, até mesmo sobre a vida dos atores, dos elevados sentimentos de todos que participam dessa esfera artística. Mais tarde, entretanto, mesmo sabendo que Melina não nutre intenções puramente artísticas pelo teatro, Wilhelm investirá numa companhia que será conduzida por Melina. A desabrida declaração de admiração incondicional da nobreza (feita por Wilhelm em III 2, p.151) nos causa estranheza semelhante, pois o olhar do herói demonstra ser apurado para julgar algumas características, mas não outras, das pessoas às quais ele quer se igualar; por outro lado, ele não se questiona em nenhum momento, naquele mesmo nível crítico, sobre as pessoas (os atores) que o acompanham em sua incursão àquele círculo cortês. Alguns personagens fazem descrições de Wilhelm no decorrer de sua trajetória, parte deles caracteriza-o certamente de acordo com suas próprias perspectivas – inclusive, por vezes, tendo em vista interesses particulares. Por exemplo, Serlo, ator, diretor e empresário teatral, ressalta o entusiasmo de Wilhelm pelo teatro 40. Apesar do interesse de Serlo nos serviços de Wilhelm, sua observação é absolutamente verdadeira: o comprometimento e a diligência de Wilhelm em seu ofício teatral são aspectos centrais do caráter de Wilhelm. Mas é a irmã de Serlo, Aurelie, quando emite um comentário dotado de metáforas bastante eficientes, que especificará a ingenuidade de Wilhelm. Embora elogie sua extrema sensibilidade para a poesia, ela é obrigada a dizer ao protagonista que, na verdade, de fora não lhe chega coisa alguma; raramente tenho encontrado uma pessoa como o senhor, que conhece tão pouco os homens com os quais vive

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Em mais de uma ocasião vemos emitida nesse mesmo sentido a opinião de Serlo sobre Wilhelm. No primeiro desses momentos, o protagonista conta a Mariane que o diretor Serlo “há um ano vem sonhando em incutir a seus atores um pouco de minha vivacidade e da alegria que me proporcionam o teatro” (I 16, p. 59). Em um ponto adiantado da história, em que Wilhelm já havia se juntado à companhia de Serlo, quando eles estavam com falta de atores para representação de Hamlet, Wilhelm vê no ponto o personagem Pirro. Serlo exclama que “é preciso ter muita paixão, como tem o senhor, para tirar proveito de tudo” (V 6, p. 298).

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e tão radicalmente os confunde. Permita-me que lhe diga: ao ouvi-lo explicar Shakespeare, poder-se-ia crer que o senhor acabava de chegar do conselho dos deuses, onde os havia ouvido deliberar sobre o modo de forjar os homens; em compensação, no trato com as pessoas, vejo-o, por assim dizer, como o primeiro menino nascido adulto da criação, que com particular admiração e edificante benevolência fita assombrado leões e macacos, ovelhas e elefantes, e lhes dirige cordialmente a palavra como se fossem seus semelhantes, apenas pelo fato de estarem ali e moverem-se (IV 16, p. 251).

Ao que Wilhelm confessa à amiga: A intuição de minha natureza escolar, cara amiga – replicou Wilhelm – por várias vezes me tem sido difícil de carregar, e eu ficaria grato se me ajudasse a ver com maior clareza o mundo. Desde a infância tenho voltado os olhos de meu espírito mais para o interior que para o exterior, e por isso é muito natural que eu conheça os homens só até um certo grau, sem sequer compreendê-los nem entendê-los (IV 16, p. 251-252).

O herói busca compreender por meio da arte os meandros íntimos dos homens e de sua própria individualidade, ele fecha-se, todavia, para apreendê-los na vida e, portanto, para compreender suas origens sociais – restrição que Wilhelm denominou de “natureza escolar”41. Quando Wilhelm promete ao pai um diário de viagem, o narrador ironiza o fato de ele prometer o que não pode cumprir, não por sua falta de palavra, mas porque, ingenuamente, ele prometeu uma circunstanciada descrição da vida social que não tinha absolutamente condições de fazer, tanto por falta de conhecimento quanto de interesse em adquirir esse olhar. Assim, /.../ ao proceder de fato à sua composição, descobriu que podia discorrer sobre sentimentos e ideias, relatar certas experiências do coração e do espírito, mas infelizmente não sobre assuntos externos aos quais, como constatava agora, não havia dado a mínima atenção (IV 17, p. 260).

O narrador indica como é amplo o alheamento de Wilhelm, abrangendo tudo que poderia ser denominado de “objetividade”, e ressalta, antagonicamente, a exclusiva ocupação do herói com sua vida interior, seus “sentimentos e ideias”, suas “experiências do coração e do espírito”. Uma das consequências dessa maneira de se comportar é a ingenuidade no trato com as pessoas. Aurelie diz até ter pensado que Wilhelm estava gozando dela e do irmão quando eles compararam as cartas de recomendação escritas pelo

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A natureza escolar surge como uma das pistas do que vem a ser a maestria coroando o aprendizado.

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herói com as figuras que as portavam. A observação de Aurelie, por mais verdadeira que fosse e por mais disposto que estivesse nosso amigo a reconhecer esse defeito nele, implicava, no entanto, algo de opressivo e até ofensivo, a ponto de ele ficar calado e controlar-se, em parte para não deixar transparecer sua suscetibilidade, em parte para indagar intimamente a verdade daquela repreensão (IV 16, p. 252).

O incômodo de Wilhelm não advém somente do tom da repreensão crítica de Aurelie, mas principalmente do conteúdo do que ela havia observado, o qual ele sente – contrariado – que é uma fragilidade real sua. Na verdade, a prezada amiga apontou para sua principal limitação, e pela própria natureza do que lhe falta, Wilhelm não é capaz nem ao menos de compreender por completo o significado que tal traço infunde à sua personalidade e acarreta para sua vida. Nesse sentido, está voluntariamente desvencilhado dos rumos sociais, não toma parte deles nem lhe interessa conhecê-los. E por essa razão ele manifestará, do início ao fim de sua trajetória, sua indiferença e insatisfação em relação aos negócios e às atividades burguesas. O herói é alheio às relações movidas pelo interesse material, interesse que fez com que o teatro de Serlo, após ter montado Shakespeare e Lessing, virasse ópera. Na vida do herói o dinheiro está ligado, primeiramente, aos negócios do pai. Como sabemos, Wilhelm é avesso a empreendimentos comerciais e monetários, e somente para obedecer ao pai – e também para distrair-se do sofrimento da perda de Mariane – ele trabalhou por algum tempo no balcão da casa comercial. Ele não é ávido por dinheiro e bens como seu amigo Werner e o próprio pai. Aplicação e empenho no trabalho fazem parte de seu modo de proceder. A indiferença de Wilhelm em relação ao dinheiro pode ser bem examinada quando o barão oferece a recompensa em ouro que o conde pagava a Wilhelm por seus prestimosos esforços artísticos: nosso herói a princípio nega (IV 1, p. 203). Para Wilhelm, esse é o comportamento exigido em relação “a todos os pontos de honra”. Ao mesmo tempo, como burguês, motivos para justificar que seu ganho foi honesto não lhe faltam e assim há algo de cômico no fato de ele, por fim, encontrar boas razões para aceitar os ducados. Certa irresponsabilidade no comportamento de Wilhelm em relação à forma como utiliza o 47

dinheiro (o que é possibilitado justamente porque ele dispõe de recursos) são também visíveis. Quando ele portava a bela quantia ganha com sua atividade teatral em meio aos nobres, “acreditava ter todo o direito de empregá-los com alegria, esquecendo-se com muita facilidade de que, no considerável balanço que enviara a seus familiares, já havia se vangloriado deles” (IV 2, p. 207), afinal, ele devia prestar contas do dinheiro que já havia gasto. Na vida cotidiana, a Wilhelm convêm o conforto e a beleza (suas roupas, seu quarto, suas acomodações e estilo de vida durante suas viagens atestam isso). Ele é pessoalmente avesso somente à atividade geradora de dinheiro, mas não aos bens em si mesmos considerados, que foram, porém, de algum modo obtidos por meio do dinheiro. Nesse sentido, não é contraditório que Wilhelm passe a enxergar, ao final de sua trajetória, o patrimônio (isto é, a soma dos bens) como algo legítimo, até elevado, e que deve, portanto, ser transmitido. Contudo, o romance demonstra que não é possível aceitar o patrimônio sem participar ativamente de sua geração. Wilhelm tem de tomar parte nisso, não lhe é mais permitido manter-se distante em relação à fonte da riqueza, o que, cedo ou tarde, desembocaria no cinismo em relação à realidade. Não é porém a relação entre ingenuidade e interesse que age o tempo inteiro na interação social do herói. A ascendência de Wilhelm sobre a trupe advém certamente do dinheiro que ele possui – usado com benevolência – todavia, sobretudo seu discernimento aliado às suas qualidades artísticas que são reconhecidos pela trupe quando, depois da experiência no castelo, os atores decidem por um tipo de forma democrática de autogoverno, no qual o cargo de diretor seria temporário e rotativo, e Wilhelm é elegido como primeiro diretor nesse sistema. Em meio aos companheiros da trupe de Melina e até mesmo depois, com a companhia Serlo, Wilhelm exerce uma liderança baseada na conciliação, na sensatez, na ponderação e na justiça, e no que se refere à arte, sua seriedade, disciplina e competência são fundamentais para ter o respeito de seus colegas. A ingenuidade do herói constitui-se do alheamento e da autoconfiança que nublam sua visão, ele está demasiadamente concentrado em seus sentimentos, inebriado pelo amor e pelo futuro glorioso. Talvez esta seja uma das maiores contradições de sua 48

individualidade: ao mesmo tempo em que é inundado por um amor sublime e supremo, ele está de tal modo comprometido consigo mesmo que seu comportamento quase beira o egoísmo42. Esse autocentramento impede-o de ter acuidade necessária para compreender o que se passa ao seu redor. “Sua alma é pura e inocente”, disse Körner (HA, p. 653), mas devemos acrescentar: Wilhelm não quer maculá-la. Apoiada num otimismo robusto, a ingenuidade torna-se uma forma de autoengano e uma característica necessária do herói porque assim lhe é permitido ser totalmente sincero quanto ao que é mais caro em sua vida, sem que esteja a todo momento de sobreaviso ante às dificuldades que se apresentam para a efetivação de seus objetivos. A ingenuidade e o autoengano, duas caraterísticas contraditórias, mostram-se, portanto, estreitamente vinculadas no caráter de Wilhelm. É uma forma de migrar da constatação objetiva à sublimação da realidade. O que pode ser considerado como fraqueza de seu caráter manifesta-se, por um lado, na ingenuidade, e por outro, no autoengano. A união dessas duas características permite que ele seja passivo, que sua passividade transforme-se, por vezes, em fuga, e que ele porte uma confiança inabalável. Wilhelm interessa-se pela fama e não tem dúvidas quanto ao próprio talento, tomando-se por artista já relativamente no início de sua trajetória (III 6, p.163). Ele enfrenta situações complicadas de e por outras pessoas, mas sempre que concerniu a si mesmo, tendeu a esquivar-se do conflito. Após saber da suposta traição de Mariane, abandona-a de uma vez por todas sem ouvir suas explicações. Não sem razão, portanto, a velha Barbara chamou-o mais tarde de egoísta frio ao contar a ele todos os padecimentos que ele perpetrou a Mariane (VII 8). Desde a primeira viagem que foi planejada pelo pai e assumida por Wilhelm como de negócios, sendo que isso jamais lhe

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Nesse mesmo sentido, ser o pivô da desventura do destino de outros não o tortura. Wilhelm faz o serviço de afastar Lydie de Lothario pois, segundo Jarno, teria uma recompensa à altura, conhecer Therese, uma verdadeira amazona que poderia envergonhar cem homens. Wilhelm crê ser Therese sua amazona, e antes que pudesse obter qualquer resposta, o pouco delicado Jarno corta bruscamente a conversa e afasta-se. O narrador prossegue: “A nova e eminente esperança de rever aquela venerada e querida figura despertou nele as mais singulares emoções. Passou a considerar a missão que lhe havia sido confiada como uma obra do destino evidente, e o pensamento de que estava a ponto de afastar ardilosamente uma pobre jovem do objeto de seu mais singular e impetuoso amor não lhe aparecia senão de passagem, como uma sombra de um pássaro que levante voo sobre a terra iluminada” (VII 4, p. 432).

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passara pela cabeça e sim ter uma oportunidade para viver com Mariane, até a extensão de sua estadia com poucas e inverídicas notícias à família, da viagem que então se efetivou, Wilhelm, igualmente, esquivou-se de enredar-se em difíceis situações familiares, o que acabou sendo um modo de adiar uma resolução e um esclarecimento a respeito de si mesmo e de seus objetivos43. É a elevada moralidade do herói, contudo, que permitirá elevar seu caráter, não deixando que ele recaia na inocência patética e nem na dissimulação arbitrária. A real ingenuidade de Wilhelm é indisfarçável quando ele não pode preservar seu amor-próprio de ser arranhado ou eximir-se de reações desagradáveis ante situações que lhe surgem como fatos inescondíveis e irrefutáveis. Assim, Wilhelm imaginava-se mais importante para a companhia de Serlo do que era na prática, achava que ela não podia passar sem ele, mas quando retorna e a vê em muito melhor estado do que jamais esteve, com a ópera de Laertes e Horacio (VII, 8), não lhe resta outra coisa a fazer a não ser assumir a verdade. A contragosto é obrigado a admitir para si mesmo que nem ele e nem seu talento eram essenciais à arte teatral (e particularmente ao teatro alemão), nem esta arte é enobrecida como deveria ser na prática teatral ordinária de uma companhia de destaque. A ingenuidade voluntária acarreta um real desconhecimento do mundo, mas evidentemente não é advinda do completo encapsulamento do herói. Mesmo que Wilhelm assuma sua “natureza escolar”, uma prova de que ele esteve atento ao que via acontecer ao seu redor está na ocasião em que ele é finalmente obrigado a reconhecer a verdade, já num momento adiantado da história, depois de ter vivido muitas experiências no meio teatral (VII 3, 426-427). A instintiva rejeição dessa realidade tal como se apresenta é motivada pela

constatação de que na vida prática cotidiana pouco espaço há para atividades artísticas e espirituais cuja sublimidade o teatro, para o herói, tão perfeitamente encarna. E assim a aparente oposição entre a falta de interesse de Wilhelm pelo mundo exterior e sua perspicácia para assuntos espirituais pode ser também explicada, portanto, pelo autoengano. Este tem sua razão de ser no amor de Wilhelm (por Mariane, pelo teatro), que faz com que ele atenha-se somente ao que é eminente e superior, e todas as provas que contradizem essa

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Outros exemplos em: III 10-12, p.182-188, IV 15, p. 246.

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certeza íntima não são mais fortes que essa sua visão da realidade, por isso, tais provas são deliberada e sistematicamente desdenhadas pelo herói, que age como se elas não existissem, ainda que forçosamente as perceba. Por essa via o narrador pode, de maneira sutil, induzir o leitor a ver o herói como extremamente ingênuo, e ao mesmo tempo mostrar como desmedida sua “paixão” pelo teatro. Fato é que ele só pode manifestar em sua individualidade belas qualidades humanas na medida em que ignora as relações sociais – como a canonisa, no Livro VI, evidencia radicalmente. Assim, Wilhelm possui uma ingenuidade autêntica na medida em que é ignorância do que se passa, porém, essa ingenuidade passa a ser relativizada visto que ele, malgrado suas intenções, percebe a realidade, todavia a despreza. Para transitar nos diferentes círculos e viver as mais diversas aventuras, Wilhelm não é esperto como um pícaro, ele situa-se no outro extremo, é ingênuo. A ingenuidade de Wilhelm não é, porém, quixotesca. Para os fins do romance ela tem de ser coadunada com uma inteligência não ardilosa; o resultado dessa mescla é o desprezo mais ou menos consciente de Wilhelm pela realidade tal como se apresenta, regida pelos interesses e pelas carências materiais dos homens, mas sem jamais perder a confiança de que a vida lhe trará as alegrias que ele almeja. Essa combinação resulta também em sérias incertezas para o herói, que acaba não compreendendo o encadeamento e a lógica dos acontecimentos e nem a verdadeira intenção das pessoas a seu respeito. O reconhecimento de Felix como seu filho representa uma passagem que explicita esse problema na prática. Primeiro, Wilhelm duvida da morte de Mariane. Quando quer saber de Barbara o que houve de fato com a antiga amada, fica confuso e não sabe reconhecer a verdade. Wilhelm pensa que o tom indiferente e tranquilo da velha significa que ela mente, que Mariane ainda está viva. Ele implora para vê-la: “/.../ irei cair de joelhos a seus pés, pedir-lhe perdão, felicitá-la por sua luta, por sua vitória sobre ela mesma e sobre ti, levá-la a meu Felix” (VII 8, p. 469). Barbara chora amargamente e diz: “Leve o bom Felix à sua sepultura e diga-lhe: ‘Aqui jaz tua mãe, a quem teu pai condenou sem ouvir’”. Quando madame Melina acha estranho Wilhelm tratar Felix por filho e Wilhelm relata a ela toda a história, ela diz que a velha não é confiável. Wilhelm 51

passa a duvidar de sua paternidade e procura de novo Bárbara, que lhe dá diversas provas 44. Wilhelm continuou cético, e por fim diz a velha: “considere a criança como um estranho e observe-a com muito mais precisão; atente para seus dons, sua natureza, suas capacidades, e se pouco a pouco não se reconhecer nela, é porque tem vista ruim” (VII 8, p. 474). Para se convencer de um fato fundamental de sua própria vida, é preciso que Wilhelm siga o conselho do personagem mais impiedoso, ele não foi capaz de fazer esse exame essencial por si mesmo – e, por isso, ainda asssim ele não consegue ter certeza absoluta. Ao tentar identificar semelhanças entre ele e Felix, quando as encontrou apertou-o fortemente, mas em seguida o soltou, com medo de que pudesse estar enganado e viessem tirá-lo depois que ele já tivesse se apropriado do menino. A certeza absoluta (para Wilhelm, mas não para o leitor) só será adquirida tempos depois, com a confirmação confiável de um membro da Sociedade da Torre45. Esse mesmo distanciamento das relações sociais fará com que Wilhelm não compreenda a necessidade de reorientar sua trajetória, ao final do romance. Ainda asssim, é novamente necessário reconhecer que o narrador é responsável por muitas das ambiguidades que cercam o comportamento do herói, como no caso das dúvidas que suscita sobre a paternidade de Felix, o que torna Wilhelm ainda mais vulnerável. A ironia do narrador, a nosso ver marcada sobretudo pela simpatia pelo herói, mas por si só um ato de distanciamento, dirige-se tanto para aspectos do pejorativamente chamado “idealismo” de Wilhelm, na verdade, suas aspirações mais íntimas, quanto para sua falta de experiência no mundo46. É imperioso ressaltar também que, se Wilhelm por vezes não se dá conta do que

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Ela diz que para aqueles a quem nada falta “é fácil falar de verdade e retidão”; e pega a carta de Norberg para provar como a história que ela havia lhe contado era verdadeira. Werner impediu o acesso a Wilhelm de uma tal maneira que bloqueou qualquer aproximação da velha e de Mariane, as quais chegou a ameaçar de prisão. Após a morte de Mariane, a velha conseguiu ainda arrancar algum dinheiro de Norberg para a criança, mas ela o guardava para si, pois havia convencido Aurelie de que Felix era filho de Lothario (e assim, não só Wilhelm foi enganado pela anciã). 45 Wilhelm pede para fazer uma pergunta, quer saber se Felix é realmente seu filho. O abade responde radiante que sim, e que a finada mãe não era indigna de Wilhelm. De repente, entra Felix, brincando. Finalmente, exclama Wilhelm: “sim, eu o sinto, tu és meu!” (VII 9, p. 483). 46 Para Trunz, “o narrador relata sobre ele com uma mistura de simpatia e distanciamento; simpatia por causa de sua interioridade, de seu idealismo, de sua bondade; repulsa por causa de sua estranheza do mundo, imaturidade, eventual pedanteria” (HA7, p. 712).

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acontece ao seu redor, outras vezes ele não apenas o percebe como faz questão de intervir – especialmente quando alguém precisa de ajuda, demonstrando nessas ocasiões um comportamento conciliador e protetor47. Por essa razão, ele é reconhecido como um grande amigo, e com seu coração aberto e sua sinceridade Wilhelm atrai diversas pessoas para junto de si, desde Mignon e o harpista, que nada falam sobre si mesmos e encontram um lugar seguro e acolhedor ao lado do herói, até Aurelie, cuja história e sofrimentos ela precisa transmitir. Madame Melina reconhece: “bem diferente teria sido nossa situação se não tivéssemos contado com o senhor” (VII 8, p. 477), um homem bom inspira simpatia, atrai confiança, desperta esperanças, continua ela, “sob sua direção, nossas circunstâncias exteriores se restabeleceram afortunadamente” (Id.). Subjaz no caráter do herói um sentido de honra, moral e dever que se manifesta muitas vezes no auxílio ao outro, de modo que, se a circunstância assim o exigir, ele está pronto para mostrar seu heroísmo em atos justiceiros48. Se alguns de seus amigos são pessoas materialmente desinteressadas, que estão com Wilhelm exclusivamente por sua pessoa – do restante da companhia não se pode em geral dizer o mesmo (excetuando Laertes, que se mantém neutro). Após o incidente, os membros atormentavam incessantemente o herói, “Wilhelm não pôde conter o seu desgosto”, e para “fazê-los ver a inconveniência com que molestavam o amigo e guia”, disse-lhes: Perdôo-os em nome da dor que sentem por tudo que perderam, perdôo-os por me dirigirem ofensas num momento em que deveriam lamentar-se por mim, perdôo-os por se oporem a mim e me repudiarem na primeira vez em que poderia esperar sua ajuda. Pelos serviços que lhes prestei, pelos favores que lhes demonstrei, sentia-me até aqui suficientemente recompensado por sua gratidão, por seu trato afável; não me tentem, pois, nem obriguem meu espírito a voltar

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Lembremos de um episódio em que o harpista, que no Livro II também havia sido acolhido por Wilhelm, chega a certa altura para o herói com lágrima nos olhos e diz que irá partir. Wilhelm diz que não deixará ninguém fazer nada contra o velho, que ele o protegerá. “Dissesse o que bem entendesse o ancião, e a Wilhelm não faltava um argumento mais forte, sabendo contornar e dirigir tudo da melhor maneira, sabendo falar com tamanho destemor, afeto e conforto, que o próprio ancião pareceu reviver e renunciar a seus caprichos” (IV 1, p. 207). 48 Nessas ocasiões, Wilhelm apresenta por vezes um caráter quixotizado justamente na medida em que algumas das ações grandiloquentes tornam-se um tanto desmedidas para as situações enfrentadas (como é o caso do salvamento de Mignon ou da responsabilidade que Wilhelm fez questão de assumir após o roubo; cf. Keppler, 2006: 103-104).

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atrás e rememorar tudo que lhes fiz de bom, pois para mim seria uma avaliação dolorosa. O acaso nos uniu, as circunstâncias e uma secreta inclinação mantiveram-me a seu lado. Tomei parte em seus trabalhos, em seus prazeres; pus à disposição de todos meus parcos conhecimentos (IV 7, pp. 226-227).

Ao simplesmente perdoá-los sem esmiuçar suas faltas, poupando-os, portanto, o herói resiste a fazer uma avaliação crítica do próprio grupo, do caráter mesquinho das pessoas as quais se ligou. Ainda assim, somente neste momento extremo é que Wilhelm faz uma recapitulação e nos mostra que tem plena consciência de que apenas se uniu àquelas pessoas por causa de suas próprias motivações íntimas, pois mesmo que as circunstâncias tenham favorecido essa ligação, ele não permaneceu ao lado delas por causa de quaisquer contingências ou obrigações. Os serviços prestados por Wilhelm, o compartilhamento de seus conhecimentos e até certo ponto de seus recursos, tudo isso nos mostra que o herói é consciente de suas próprias atitudes (portanto, a acusação de um autoengano inconsequente – ou em outras palavras, pura ingenuidade – deve ser, novamente, relativizada). Ao mesmo tempo, ele percebe que de certa forma aquelas pessoas de comportamento ingrato em muito se distanciam da nobreza de seu coração e são, portanto, inferiores a ele. Seguro de seus atos e não arrependido de nada do que fez, o protagonista diz que não aceita a culpa que tentam lhe impingir: sua consciência, “com a maior pureza”, diz que ele é inocente no caso infortunado do assalto à companhia, que acabou redundando na perda de quase todas as posses do grupo, num perigoso tiro que o atingiu e na desestruturação da trupe que estava pronta para iniciar uma nova e (segundo a esperança de todos) promissora fase. Ninguém respondia ao que ele falava, apenas choravam suas perdas. Melina era o mais descontrolado e se viu no direito de extravasar ao saber que em meio à confusão sua mulher tinha dado à luz uma criança morta. A avareza, a mesquinhez, a estreiteza de espírito de Melina e sobretudo sua permanente falta de dinheiro que o tornam tão rabugento e intratável parecem ter culminado naquele instante em miséria e morte. É assim que, no momento seguinte, Wilhelm reconsidera suas conclusões anteriores e, culpando-se, é “tomado da mais profunda compaixão” (IV 8) 49, ao lado do “dissabor pela mesquinhez de 49

A conduta de Wilhelm possui tanto traços cristãos (ligando-se também neste ponto a Dom Quixote) quanto seculares. Segundo Koopmann , “a ética de Goethe é a doutrina moral de uma burguesia que se emancipou

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seus sentimentos”; e nesse estado de espírito, ele de súbito sente “reviver toda a força de sua alma”. Diz então que as coisas da companhia ainda não haviam sido pagas por Melina, por isso, quem sofreu o prejuízo foi ele mesmo, Wilhelm, que naquele momento isentava Melina das dívidas. Como era de se esperar, Melina não se mostra agradecido, ao contrário, diz que é fácil presentear desse jeito (e de fato, ao não ser generoso antes, mas somente após a perda das coisas, seus favores e sua bondade tornam-se quase dispensáveis). Ficamos sabendo ainda que o dinheiro de Wilhelm, que estava na mala de madame Melina, também fora roubado. Ele pede para que abram a mala dele, pois irá distribuir tudo para o bem de todos. Philine não permite, dizendo que a mala era dela e ela poderia vender algumas coisas e assim ter algum dinheiro para o restabelecimento de Wilhelm e o que mais ele pudesse precisar numa “terra estranha”. A desprendida Philine torna-se previdente e guarda as coisas do herói, não deixando que Wilhelm as dissipe, mais uma vez, em favor daquelas pessoas ingratas e interesseiras – a bondade, a moralidade, a ingenuidade, o autoengano, com todas as suas ressalvas e discrepâncias tornam-se nítidas em todo esse episódio. Uma generosidade ilimitada acomete o ferido Wilhelm no sentido de tentar amenizar os males materiais – e o impacto emocional – causados pelo roubo dos pertences da companhia, males estes que decretariam o fim da companhia recém-iniciada da qual Wilhelm era o primeiro diretor. O herói tenta atenuar a perda, promete remediá-la, apela para os sentimentos: seria a primeira vez que haveria de compartilhar honradamente das dificuldades com todos aqui? /.../ Só o homem possui muitas coisas com as quais pode socorrer seus amigos, e estas necessariamente não precisam ser moedas sonantes. Tudo o que tenho há de ser empregado para o bem desses infelizes que, uma vez recuperado o juízo, certamente irão arrepender-se de seu atual comportamento. Sim – prosseguiu ele –, sei que estão em dificuldades e farei de tudo o que estiver a meu alcance; concedam-me de novo sua confiança, tranquilizem-se por um momento e aceitem o que lhes prometo! Quem, em nome de todos, irá receber de mim tal promessa? (IV 8, p. 229)

Ninguém respondeu. “Sentiam vergonha, mas não alívio”. Wilhelm tomba na cama

consideravelmente de pensamentos religiosos” (Handbuch: Ethik, p. 282).

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e dorme. Passado algum tempo, a certeza de Wilhelm transforma-se em culpa. O resultado dos tormentos que o afligiram após o incidente do roubo da companhia foi que ele passou a compreender que o seu gesto generoso para com a companhia (suas promessas de restituição dos bens perdidos e ainda mais) não passava de “ligeira formalidade, comparado ao juramento que havia feito seu coração” (IV 8, p. 229). Wilhelm perdoa-os de antemão, embora num movimento de defesa e raiva acuse-os de ingratidão, para em seguida, porém, perdoá-los efetivamente e realizar seu mea culpa. Todos da trupe saem para buscar colocação na companhia de Serlo, pedindo a Wilhelm (ou exigindo “com pedidos mais ou menos grosseiros e descomedidos”) carta de apresentação e dinheiro para a viagem. Wilhelm atendia a todos – contra a vontade de Philine: Ela buscava em vão mostrar a seu amigo que o caçador lhes havia deixado, aos membros da companhia também, uma soma considerável, e que portanto não estavam senão a zombar dele. Seu aviso resultou, porém, numa violenta discussão, com Wilhelm assegurando de uma vez por todas que ela devia juntarse também ao resto da trupe e tentar a sorte junto a Serlo (IV 10, p. 233).

Philine tentou alertar Wilhelm, mas ele não quis aceitar a admoestação. Pensando na melhor forma de ser útil e benevolente, antes de esperar sua completa recuperação, ele vai ao encontro do bem-sucedido diretor e ator de teatro Serlo, seu conhecido já desde os tempos de Mariane, para fortalecer a indicação que fizera dos companheiros da trupe desfeita. Essa opção pela ingenuidade é assim reiterada pelo herói sempre que ele vê sua pureza ameaçada; e suscita intervenções alheias em sua vida50. Quando ele agradece Philine por ela ter cuidado dele em seu período de restabelecimento na casa do eclesiástico e pede que ela se vá (oferece também um relógio de ouro por seus desvelos), ela ri e diz: “És um tolo e nunca será sagaz. Sei melhor que tu o que te convém” (IV 9, p. 230). Adiante, Therese usa palavras bem parecidas referindo-se também a essa mesma face da ingenuidade, a saber, a falta de autoconhecimento (embora esteja elogiando justamente seu “admirável e benevolente procurar”): “conheço meu esposo melhor do que ele mesmo se

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Veja-se a ocasião em que Madame Melina vê-se na obrigação (e Wilhelm lhe deu abertura para tanto) de alertar Wilhelm contra Philine. Ele é dócil, acha que não merece essas repreensões, jura que nada pensou em ter com ela e, por fim, desculpa-se por suas atitudes gentis para com Philine.

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conhece” (VIII 4, p. 519). O que sobressai como motivação interior desses e outros atos é, por um lado, a compaixão, a caridade, por outro, um sentido de justiça orientado fortemente por critérios morais, que faz, inclusive, com que o herói prejulgue os outros a ponto de recair sobre si mesmo as consequências, como ocorre, além da responsabilidade assumida no episódio do assalto como dívida financeira com os outros, na sua separação de Mariane e na intenção de vingar sua amiga Aurelie. Também o contraste entre Philine e Natalie é perspectivado pela moralidade de Wilhelm: a primeira é lasciva demais; a outra é sublimemente pudica. Visualizamos Natalie primeiramente pelo olhar de Wilhelm, que “tinha os olhos fixos nos traços suaves, nobres, calmos e compassivos da recém-chegada e acreditava jamais ter visto algo mais nobre e mais amável” (IV 6, p. 223); em comparação, Philine, frente à condessa, “nunca lhe havia aparecido sob uma luz tão desfavorável. Parecia-lhe inadmissível que ela se aproximasse de uma criatura tão nobre como aquela, e mais ainda, que a tocasse” (IV 6, p. 224). Isso não significava, porém, que Wilhelm fosse imune ou alheio ao erotismo – o herói percebe a bela silhueta da amazona bem como chega a passar uma noite em claro brincando com os sapatos de Philine, cujos braços, certa noite, ele “não pôde recusar”, mesmo sem saber de quem eram. Livre do invólucro da religião (diferentemente da bela alma) Wilhelm está imbuído de um humanismo prático e imediatista, em que prevalece o amor acima de quaisquer outros interesses. A cena do incêndio é emblemática, duas ou três casas queimavam, Wilhelm “estava inquieto por seus amigos e nem tanto por suas coisas”: Wilhelm não pensava em suas roupas nem em nenhuma das outras coisas que podia haver perdido; sentia profundamente o quanto lhe eram caras aquelas duas criaturas que viu escaparem de um perigo tão grande. Estreitou o pequeno [Felix, que mais tarde Wilhelm descobrirá ser seu filho] contra o coração com uma emoção totalmente nova e quis também abraçar Mignon com uma ternura alegre, mas ela se afastou suavemente e, segurando-lhe a mão, o reteve (V 13, p. 325).

O auxílio aos outros é algo visível ao longo da trajetória do herói, mas não prevalece como um puro traço de compaixão de Wilhelm pelos homens. Isso porque o protagonista manifesta certa necessidade misteriosa de preservá-los em sua companhia, a 57

ponto de isso pesar muito em decisões importantes sobre o caminho que irá seguir (por exemplo, se ele iria ou não para o castelo dos condes ou quando da proposta de Serlo para que Wilhelm adentrasse à sua companhia). O fato de ele poder conservar a seu lado Mignon e não ter de despedir o harpista é um aspecto crucial de sua jornada. Ao ajudar o casal Melina, o herói demonstrou seu bom coração também porque projetou-se na situação, imaginou-se com sua Mariane naquela lamentável situação. De todo modo, é por meio do auxílio ao próximo que Wilhelm trava conhecimento com pessoas significativas em sua trajetória ou então faz com que sejam desencadeadas ações igualmente importantes para seu destino. Assim, logo na curta incursão empreendida para buscar o cavalo que o levaria em sua primeira viagem, Wilhelm conhece Melina e sua jovem em uma situação bastante difícil para ambos, presos e humilhados, e eles acabam livres e casados por causa da benéfica intervenção de nosso herói (I 13-14). Tempos depois, já empreendendo o que deveria ser sua viagem comercial, ele reencontra o casal, e Melina (a despeito de seu caráter interesseiro) torna-se um importante impulsionador das decisões de Wilhelm na direção do teatro. Os sentimentos de compaixão e a revolta contra a injustiça surgem também desvinculados de qualquer experiência pessoal do protagonista. Ilustra essa afirmação o salvamento de Mignon – até então somente uma enigmática criatura cuja presença ele havia percebido na estalagem em que seus amigos recentes, Philine e Laertes, hospedavam-se. Num dia em que os três voltavam para a vila depois do almoço num moinho, o dono de uma trupe de saltimbancos batia com o chicote na criança e lhe puxava os cabelos. Wilhelm fica possesso e vai brecá-lo, segura-o pelo peito, grita para que a largue e começa a sufocar o homem. Outros que também haviam se apiedado mas não ousavam intervir vêm então segurar o malfeitor. Wilhelm ameaça procurar a justiça para saber de onde a criança fora roubada, palavras que saem irrefletidamente. O homem subitamente se acalma, diz que Wilhelm poderia ficar com a criança, esta que, no meio da contenda, havia fugido. Em outra ocasião, nosso herói só emerge de seu mergulho em Shakespeare porque soube que um rapaz seria açoitado, ele estava sendo culpado pela surra do pedante, que se tornara o protegido do conde – esse rapaz era Friedrich, e Wilhelm, que tinha um interesse por ele, 58

foi impedir. Falou com o estribeiro e conseguiu, por fim, que livrassem Friedrich do castigo. Wilhelm o acolheu, e ele passou a ser o terceiro membro daquela singular família que Wilhelm, já há algum tempo, considerava como sua. O ancião e Mignon receberam afetuosamente o recém-chegado, e todos se uniram para servir atenciosos seu amigo e protetor e demonstrar-lhe sua satisfação (III 10, p. 181).

A generosidade e o acolhimento de Wilhelm fazem com que ao seu lado se aglomerem os frágeis e os abandonados à própria sorte, que por sua vez mostram-se especialmente gratos ao herói. Wilhelm conquista a afeição deles, e sua amizade encontra reciprocidade e retribuição. Após o ataque dos bandidos, Mignon estancou o sangue do ferimento de Wilhelm usando seus próprios cabelos e permaneceu com Philine no descampado enquanto o ancião foi o único membro da companhia que saiu para buscar socorro (já que os demais deram-no como morto) (IV 5,7). Philine permanece com Wilhelm durante toda sua recuperação, até ser literalmente dispensada por ele, sendo substituída pelo zelo, igual ou maior, de Mignon. O herói não nutre sentimentos rancorosos contra quem quer que seja, como bem demonstram as palavras de Friedrich, que vêm depois das muitas censuras feitas pelos membros da Torre à inclinação de Wilhelm pelo teatro – e por estarem na boca do “pícaro louro” perdem, intencionalmente, sua força, mas não deixam de ser verdadeiras para um remate na caracterização do herói: cuidem muito bem deste herói, deste comandante supremo e filósofo dramático! Quando de nosso primeiro encontro, penteei-o mal, posso mesmo dizer que o penteei com o rastelo, e, no entanto, depois disso ele me livrou de um bom número de pauladas. Ele é magnânimo como Cipião, generoso como Alexandre, eventualmente também apaixonado, mas sem odiar seus rivais. Não pensem que amontoava brasas sobre a cabeça de seus inimigos, que, como se diz, deve ser um dos piores serviços que se pode prestar a alguém; não, nada disso; pelo contrário, ele envia ao encalço dos amigos que lhe raptaram a jovem bons e fiéis criados, para que o pé dela não tropece em nenhuma pedra (VIII 6, p. 540) 51.

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O mesmo tipo de reconhecimento ocorre quando chega o médico acompanhado do harpista, que aparentemente recuperado por completo estende a mão a Wilhelm e pergunta-lhe se este não reconhecia o velho amigo (as marcas da velhice, em seu rosto barbeado, não eram visíveis). “Wilhelm abraçou-o com a mais viva alegria”. O harpista diz que, com a inexperiência de uma criança, se apresentava de novo ao mundo

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depois de longo sofrimento, e que devia a este “bravo homem” poder novamente estar em meio a uma sociedade (VIII 10, p. 574).

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Sensibilidade

Por que as mais belas cores da vida só nos aparecem sobre um fundo sombrio? E por que haveremos de verter lágrimas para nos sentirmos arrebatados? Um dia alegre é como um dia sombrio, se o contemplamos impassíveis, e o que pode comover-nos senão a tácita esperança de que a tendência inata de nosso coração não ficará sem objeto? (VII 1, p. 415)

No complexo categorial da individualidade humana, a sensibilidade possui prioridade ontológica. Se a atividade consciente-sensível é a protoforma do homem, a sensibilidade possibilita o trânsito e o desenvolvimento recíproco, efetivado pela atividade, dos âmbitos objetivo e subjetivo. A conformação da sensibilidade (que só pode existir enquanto atividade sensível) determina a capacidade subjetiva, tornando o indivíduo consciente de si mesmo e dos demais seres objetivos, e possibilitando o desenvolvimento de uma personalidade. Por essa razão, a sensibilidade determina aspectos centrais das outras categorias da individualidade. A sensibilidade de Wilhelm externa-se por meio do caráter brando e amigável, modelar e heróico, determina a formação subjetiva pela disposição para a arte, que o orienta a, e o constitui por meio de uma atividade e fruição específicas (artísticas), conformando nesse processo também sua visão de mundo e de si mesmo. Vê-se no romance que o herói interage consciente e inconscientemente com o mundo por meio do amor e da arte, são essas as predisposições [Veranlagung] (no sentido de inclinação e capacidade) de sua individualidade, elementos que ela está particularmente propensa a captar, elaborar e manifestar. Paralelamente, destoando de como se desdobra na trajetória de Wilhelm a relação entre inclinação e disposição, a natureza aparece no romance evidenciando que objetividade e subjetividade têm uma ligação imediata e pré-consciente na individualidade, o que surge como uma pista dos poderes insondáveis que determinam o ser assim da individualidade do herói.

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Natureza A natureza geográfica é em diferentes momentos configurada na obra em conexão com os movimentos íntimos do protagonista. Geralmente o narrador associa à natureza a disposição de ânimo [Stimmung] de Wilhelm, de modo que a individualidade do herói torna-se assim integrada ao cosmos natural52. A sintonia entre Wilhelm e a natureza indica algo essencial para a compreensão da individualidade do herói: suas inclinações e disposições são manifestações da finalidade que a natureza reservou para ele, isto é, o sentido em que ele deve se desenvolver. A primeira vez que essa sintonia com a natureza acontece no romance é quando Wilhelm topa com músicos ambulantes e pede que toquem na frente da casa de Mariane, ele é embalado pela música que transportava suas emoções, senta-se num banco e,

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“Ø sombra de um poderoso rochedo, Wilhelm sentou-se em um lugar assustador, elevado, onde a ingreme senda da montanha ao redor do topo rapidamente se dirigia para o precipicio. O sol ainda estava alto e iluminava no sope do rochedo os picos dos abetos ate suas bases”. Assim come}am Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister, denotando como o recurso de conectar o protagonista à natureza liga-se também à ideia da viagem, do caminhante. Em WML, Wilhelm faz uma viagem comercial, e suas aventuras acontecem em meio a esse empreendimento, mas isso tem uma função especial: a viagem é tanto um recurso narrativo como parte necessária do desenvolvimento da sensibilidade. O trânsito da viagem ocorre em meio à natureza (e não tanto nos aglomerados populacionais maiores, como cidades; um dos fatores que estabelece a relação de WML com os contos de fadas), isso traz Stimmungen e questões humanas totalmente diversas do que aquelas que se tornaram célebres nos romances do século XIX (a Paris de Lucien ou a São Petersburgo de Raskolnikóv). Este é um recurso já utilizado na literatura da Empfindsamkeit, em que a natureza serve para transmitir ou explicitar os sentimentos dos personagens, contudo, há uma nuance que precisa ser melhor explorada no romance goethiano: a ligação ontológica entre a sensibilidade do homem e a natureza – para a qual a filosofia de Espinosa oferece uma importante chave interpretativa. “Na natureza nada existe de contingente; antes, tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e a agir de modo certo’’ (Espinosa, Ética, prop. XXIII, L I, p.113, grifo meu). A diferença entre natureza naturante (Deus invisível, mas o único que é substantivo) e natureza naturada (tudo que é visível, mas que são apenas modos da existência divina) pouco importa aqui – tanto quanto o lugar de Deus nessa ontologia – já que chamamos a atenção justamente para a interconexão dos chamados modos, ou seja, a relação entre o homem e a natureza (entendida no sentido elementar), ambas oriundas de uma natureza absoluta (Deus), de maneira que tudo é natureza. A sensibilidade é o órgão que faz a mediação entre os seres naturais. O parentesco essencial do homem com todos os seres naturais está no Fausto, por exemplo, na parte inicial de “Caverna e Gruta”, no romance de maturidade Wilhelm Meisters Wanderjahre, em que Makarie é integrada ao movimento celeste, no primeiro romance de Goethe, Werther, em que “o conjunto da natureza, um universo de forças, aparece na representação de Goethe como elemento mediador dos sentimentos, ânimos e reflexões de seu herói”, como elucida Schmidt (1998, p. 762), é característica de todo movimento Tempestade e Ímpeto [Sturm und Drang], como deixa bem claro seu título. É por isso que em WML esse tipo de relação orgânica do protagonista com a natureza, embora sutilmente introduzida por Goethe, traz também reminiscências do período anterior.

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“estendida sob as estrelas celestiais, sua existência parecia-lhe um sonho dourado” (I 17, p. 65). Na partida de Wilhelm rumo a uma viagem que transformará sua vida, o narrador diz: Ele atravessava vagarosamente vales e montanhas com a sensação de prazer supremo. Via pela primeira vez penhascos escarpados, riachos d’água murmurantes, muralhas de vegetação e abismos profundos, e, no entanto, seus mais remotos sonhos de infância já haviam pairado sobre regiões semelhantes. Sentia-se rejuvenescido àquela visão, sua alma estava limpa de todas as dores que havia suportado e, bem disposto, recitava para si mesmo passagens de diversos poemas, sobretudo do Pastor Fido53 que, naquelas paragens solitárias, afluíam aos borbotões à sua memória. Recordava também muitas passagens de seus próprios poemas, que recitava com uma satisfação própria. Animava o mundo que se estendia diante dele com todas as figuras do passado /.../ (II 3, p. 84).

A visão e o contato com a paisagem natural relacionam-se imediatamente às memórias daquelas imagens criadas na infância por Wilhelm na fruição da literatura. Intercalam-se memória, poesia, natureza e estado de espírito. A natureza estimula as lembranças poéticas, desperta e anima sua inclinação para a poesia, recitada por ele em voz alta e, ao ouvir os versos, sente-se novamente inspirado pela natureza. Quando já estava cansado das incumbências comerciais da viagem recém começada, Wilhelm sente-se livre com a visão de uma paisagem: /.../ agradeceu aos céus quando se aproximou da região plana e viu, ao pé da montanha, numa planície bela e fértil, às margens de um manso rio e sob a luz do sol, um alegre povoado rural, onde não tinha nenhum negócio a tratar, mas onde exatamente por isso decidiu passar alguns dias (II 3, p. 87).

Por volta da metade do romance chega um momento em que a história de Wilhelm procederá a uma mudança brusca e quase fatal. É o segundo dia de viagem após a partida do castelo dos condes, os cocheiros propuseram que eles parassem num lugar arborizado e aprazível, por eles conhecido, para que descansassem. Wilhelm seguiu à frente, a pé, cruzando a montanha, e todos com quem topava se surpreendiam com seu aspecto. Avançava com passos lépidos e ligeiros montanha acima, através do bosque, seguido de Laertes, que vinha assobiando (IV 4, p. 218).

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Tragicomédia (1590) do poeta italiano Giovanni Battista Guarini (1538-1612). Esta peça tornou-se muito conhecida na Europa dos séculos XVI e XVII (cf. Trunz, 1981: p. 724) e marca a transição do teatro renascentista italiano para o teatro barroco.

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Logo avistaram o lugar e todos saudaram sua beleza. De acordo com o narrador, “a liberdade do céu e a beleza da região pareciam purificar os espíritos”; se eles se divertiam juntos em um lugar fechado, adquiriram ainda maior ânimo ao ar livre, sentindo-se “todos muito mais próximos uns dos outros”. Invejavam as profissões que podiam desfrutar desse modo de vida junto à natureza, como os lenhadores, os carvoeiros e os caçadores; mas estavam realmente felizes com o fato de eles próprios se parecerem com um bando de ciganos. Wilhelm gozava um prazer como jamais sentira antes. Imaginava ter ali uma colônia de peregrinos, da qual era o chefe. Agindo assim, conversava com todos, cultivando, tanto quanto possível, a ilusão poética do momento (IV 5, p. 219).

Este é um dos momentos ao longo do livro em que o bem-estar de Wilhelm atinge o ápice. Todos sentiam e admitiam que nunca haviam vivido “momentos mais belos”. Outra ocasião extremamente simbólica, em que a natureza parece condizer com a Stimmung dos momentos de transição de Wilhelm, e ao mesmo tempo anunciar seu futuro, é o início do sétimo e penútimo livro, após longa pausa da narrativa da trajetória de Wilhelm, por causa da inserção das Confissões de uma bela alma (Livro VI): a primavera aparecera em todo seu esplendor; uma tempestade prematura, que havia ameaçado todo o dia, abateu-se impetuosamente sobre as montanhas; a chuva dirigiu-se para o campo, o sol reapareceu brilhante sobre o fundo cinza e descortinou-se um magnífico arco-íris. Wilhelm cavalgava em sua direção, enquanto o contemplava melancolicamente (VII 1, p. 415)54.

Os sofrimentos e a morte de Aurelie ainda estavam vivos para ele, que estava a caminho da casa de Lothario, e clamou: Espírito de minha amiga, envolve-me e, se possível, dá-me um sinal de que estás em sossego e reconciliado! Em meio a tais palavras e pensamentos chegou ao alto da montanha e avistou /.../ a residência de Lothario (VII 1, p. 416).

No episódio em que Wilhelm segue temeroso para o encontro com – quem ele pensava ser – a condessa, o narrador conta que era a primeira vez que Felix via o sol se

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Schings vê a entrada no Livro VII como simbólica e contra a regra do romance. A importância dessa passagem é expressa por ele (1985, p. 39) como o momento de se decidir se o mundo é interpretado como “estrangeiro” ou como “lar”, de modo que o “comentário-arco-íris” sentimentalmente colorido não deve esconder a tensão subjacente.

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levantar: seu assombro diante do primeiro raio de fogo, do poder crescente da luz, sua alegria e suas observações singulares animaram o pai, permitindo-lhe lançar um olhar àquele coração diante do qual se erguia e pairava o sol como por sobre um lago puro e tranquilo (VIII 2, p. 500).

Somente nesse instante é que Wilhelm tem uma epifania e faz a feliz descoberta das duas irmãs de Lothario.

Amor /.../ não é a poesia, mas sim a verdade e a vida o que em teus braços encontro; gozemos com toda a consciência esta doce felicidade! (Wilhelm para Mariane, I 8, p.31).

“Amor e amizade são para ele necessidade [Bedürfnis]”, asseverou Körner (p. 65354). Schiller atribuiu a Meister um caráter sentimental. Essas interpretações apontam exatamente para uma predisposição sensível do protagonista, a qual sustenta os principais traços de seu caráter e influencia todos os âmbitos de sua individualidade 55. A afinidade entre Wilhelm e as personagens femininas (profusas no romance) provém dessa disposição sensível. Emocionalmente suscetível, nosso herói está permanentemente em conexão com o fluxo de estímulos sensíveis que lhe chegam aos sentidos mais sutis. O sentimento do amor e a necessidade emocional de ser ativo como forma de concretização de uma inclinação inata resumem o que move Wilhelm em sua jornada. O amor é uma necessidade de Wilhelm, é a forma de sua interação com o mundo, e

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HA VII, p. 616. Como já observamos, até os dias atuais, comentadores identificam muitas qualidades em Wilhelm, reunindo sob a denominação de caráter atributos de significação muito mais abrangente. Ammerlahn (2003), por exemplo, comenta: “Goethe dota Wilhelm de muitas qualidades cativantes. Dota o herói de uma alta inteligência; ele é generoso, magnânimo, solícito, simpático, compassivo, ajustado para agir moralmente”. Todas essas qualidades somadas à sua “ânsia por formação” e ao desejo de reconhecimento “não se apresentam isolados, mas em íntima sintonia com os sentimentos, força e calor de seu coração” (p. 37), e assim o autor, da mesma forma que Schiller e Körner (ou seja, mesmo sem precisar este movimento) acaba por distinguir caráter de sensibilidade.

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nesse sentido, não está somente ligado a Mariane56. Mas é na história de seu primeiro amor e da feliz sorte de Wilhelm que esse fato nos surge claro. O narrador, mostrando compreender e concordar com os sentimentos do protagonista, reflete da seguinte forma: Poucas são as pessoas beneficiadas por esse mérito, pois as primeiras emoções conduzem a maior parte delas a uma dura escala em que, depois de um sofrível gozo, aprendem compulsoriamente a renunciar a seus melhores desejos e a privar-se para sempre do que haviam imaginado como a suprema felicidade (I 3, p.14).

Se Wilhelm alcançou os pináculos da realização dos sentimentos no início de sua trajetória romanesca, ele padecerá de enormes sofrimentos pela frustração desse seu primeiro amor. O amor inflamou e realçou as inclinações de Wilhelm, fazendo com que tudo lhe parecesse novo e melhor. Era jovem e novato no mundo, e o amor cobrava-lhe ânimo para percorrer as distâncias à procura da felicidade e satisfação. Não tinha mais dúvida alguma de que fora destinado para o teatro; parecia-lhe mais próximo o nobre objetivo a que se propusera, contanto que procurasse alcançá-lo ao lado de Mariane, e com pretensiosa modéstia percebia nele o excelente ator, o criador de um futuro teatro nacional, pelo que tanto ouvira as pessoas suspirarem. Tudo o que até então estava adormecido no recôndito mais íntimo de sua alma passou a ganhar ânimo (I 9, p. 32-33).

É o amor por Mariane que desperta a coragem e a confiança necessárias para Wilhelm arriscar-se no teatro, por isso afirmava que seu coração estava com ela “do mesmo modo como meu espírito paira sobre os palcos” (I 16, p. 59). O desejo de Wilhelm erguera-se nas asas da imaginação rumo àquela encantadora jovem; /.../ ele conquistou seu apego e se viu dono de uma criatura a quem, mais que amar, venerava /.../ sua paixão pelos palcos uniu-se a seu primeiro amor por uma mulher (I 3, p. 14).

No entanto, Wilhelm tem relações amorosas com uma mulher somente no início do romance, depois essa forma de amor transforma-se em quimera. À sua jovem amada ele “estava ligado por todos os laços da humanidade. /.../ Era grato, e não havia limites para seu sacrifício” (I 9, p. 31). Depois da dor de perdê-la e ter feito votos de evitar o “sexo traidor”,

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O amor aparece, portanto, como “para além de qualquer convenção, como força elementar da natureza que compreende o homem inteiro” (sentimento que corresponde ao Goethe do poema Mailied, de 1771). (Schmidt: 1998 p. 759).

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como seu coração não sabia viver sem experimentar alguma espécie de emoção, tornou-se-lhe, pois, necessário um compartilhamento afetivo [liebvoll]. Voltava a vagar como se o acompanhasse a primeira névoa da juventude /.../ (II 10, p.118).

Ele amava Mariane e com ela sonhava passar sua vida, por isso, o impacto de sua perda foi arrasador. Mas ele depara com o amor em diferentes mulheres ao longo de sua trajetória. Não se deixa levar pelas seduções de Philine, chegando a ficar até mesmo irritado com ela e consigo mesmo, por às vezes sentir-se atraído. Em sua viagem, Wilhelm permanece aberto para o amor, embora nunca tenha deixado de lembrar o sofrimento pelo qual passou (suas roupas cinzentas usadas desde então – por mais de dois anos, portanto – denotavam isso). Os encantos distintos da condessa também foram capazes de atrair o herói, mas a desonestidade de tratar com uma mulher casada e por fim a culpa que apenas um beijo despertou em ambos anunciava que dali não poderia brotar o puro amor. A decisão por Therese foi, como ela mesma, pragmática: a retidão e solidez de seu caráter, sua postura objetiva diante das adversidades, que a faz prosseguir regularmente em sua atividade, são qualidades que Wilhelm admira e, sobretudo, precisa ter presentes consigo depois de saber que é pai de Felix. À parte a ironia presente no fato de Wilhelm experimentar sucessivas tentativas sem êxito, embora sua seriedade e lirismo nas questões amorosas induzam a pensar que ele queira um amor exclusivo; é na bela amazona que o supremo amor tão almejado por Wilhelm encontra finalmente sua guarida – mas não nos esqueçamos de que Wilhelm, mesmo após a aparição da amazona, clama à velha Barbara que lhe devolva Mariane: “deixe-me estreitá-la novamente em meus braços!” (VII 8, p. 469)57. A importância que o herói atribui ao amor indica mais que a necessidade de

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Mesmo vendo que Wilhelm não é dominado pela paixão (como acontece com Werther), Igel (2007) entende que o amor é o tema central do Meister, não um amor do mesmo tipo daquele do romance barroco, pois o romance goethiano trata principalmente da secularização do amor, já que Wilhelm ama diferentes mulheres ao longo do livro, distanciando-se bastante do puro e antigo ideal do amor; mas Igel não compreende o amor como elemento constitutivo da individualidade do herói. Karl Schlechta (1953), na medida em que considera o exclusivo amor por Mariane como o centro da vida do protagonista e sua perda a ruína de Wilhelm, é capaz de afirmar que: “Todos os outros querem algo; Wilhelm, Mignon e o harpista não querem nada” (p. 106). Somente por não entender o amor como fundamento da arte, e esses como a base da sensibilidade de Wilhelm, é que Schlechta pode concluir incorretamente que Wilhelm não possui um objetivo, e assim se torna bastante característico dessa visão que ele coloque Mignon e o harpista ao lado do protagonista, já que seus objetivos – mover sentimentos – não são legitimados como verdadeira finalidade.

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interação romântica, ela mostra a maneira como Wilhelm é sensivelmente disposto e como o amor influencia decisivamente os principais âmbitos de sua vida. No auge da realização de seus sentimentos, ele é despertado “da primeira embriaguez de alegria” e detém-se para refletir e ponderar “sua vida e sua situação”. Numa reflexão erigida sobre um momento de íntima autoconfiança, ele lança um olhar para sua vida e tudo lhe parece novo: tornam-se “mais sagrados seus deveres, mais vivas suas paixões [Liebhaberei], mais preciosos seus conhecimentos, mais vigoroso seu talento, mais determinados seus propósitos” (I 3, p.14). Porque o amor predomina, a atividade mais adequada ao herói é a que desperta os sentimentos – sua inclinação à determinada atividade objetiva corresponde, portanto, a uma determinada disposição que se manifesta na sua forma de sentir. Esse sublime sentido espiritual e prático, o amor, é um sentimento profundo e benevolente que abarca tudo e todos. Wilhelm diz a Mariane: Toda minha alma se inflama ante a ideia de poder enfim entrar um dia em cena e falar ao coração dos homens aquilo que há muito anseiam por ouvir /.../ espero que algum dia possamos apresentar-nos diante dos homens como um casal de espíritos bondosos, para abrir-lhe os corações, tocar-lhe as almas e reservar-lhes prazeres celestiais (I 16, p.60).

O poema O Jovem na Encruzilhada, criado por Wilhelm na juventude, trata do conflito de duas exigências, uma que provém do âmago de sua própria individualidade e outra que se lhe opõe. A musa da tragédia e a personificação do comércio disputam o herói, vence a musa (I 9, p. 30). A extrema sensibilidade de Wilhelm leva-o à percepção das potencialidades de desenvolvimento individual existentes em si mesmo, ela permite que ele sinta o que é necessário para sua autorrealização, no entanto, não é capaz de mostrar como ela pode se efetivar. Isso, porém, não é uma insuficiência da sensibilidade, mas, sobretudo, uma interposição da própria realidade. Assim, desde o início Wilhelm não pode perceber com clareza o caminho que tem de seguir, todas as ideias de fugir e buscar uma colocação no teatro, que se uniam ao amor por Mariane, formavam “um painel sobre fundo nebuloso, cujas figuras se fundiam naturalmente umas às outras” (I 9, p.33). Com o fim do relacionamento com Mariane, Wilhelm fica desolado. 68

Numa alma tão nova, inteira e amorosa havia muito o que dilacerar, destruir, aniquilar, e a força prontamente recuperadora da juventude trouxe ao domínio da dor um sustento e uma violência novos. O golpe havia ferido na raiz toda sua existência (II 1, p. 76).

Diante de perda tão grande, Wilhelm ansiava pelo sofrimento, recriava-o, intensificava-o. “Desprezava seu próprio coração, ansiando pelo bálsamo da dor e das lágrimas” (Id.), depara com o abismo dentro de si mesmo e lança-se nele. A dor profunda advém do veto da estrada única que levava a dois destinos: sua amada e o teatro. E por isso um abalo de seu sentimento mais intenso significa um abalo de toda sua existência. É bastante relevante para o entendimento da individualidade de Wilhelm que uma crise dessa ordem, que parece ser ao mesmo tempo necessária para dar início à sua trajetória romanesca, aconteça desencadeada pela esfera afetiva. Em nenhum outro momento da história vemos Wilhelm tão fragilizado. /.../ ele se dilacerava a si mesmo, pois a juventude, tão rica em forças latentes, ignora aquilo que desperdiça quando associa à dor que uma perda provoca, sofrimentos tão forçados, como se apenas desta maneira quisesse dar um verdadeiro valor àquilo que perdeu. Ademais, ele estava tão convencido de ser aquela perda a única, a primeira e a última que poderia sentir em sua vida, que abominava qualquer consolo que procurasse apresentar-lhe como finitos esses sofrimentos (II 1, p.77).

Desde a perda de Mariane, Wilhelm veste apenas o melancólico cinza, “o traje das sombras”, e somente às vezes um azul celeste alegrava um pouco suas roupas (II 9). Mas a vida forçosamente se renova, e o amor é uma potência criadora em qualquer momento da vida. Wilhelm não viverá eternamente amargurado e fechado após esse grande baque. O tempo curará suas feridas – ele parte em viagem. Wilhelm não relembrará mais o passado como um período doloroso, que jamais cicatrizará; livre, ele retorna a si mesmo, tal como era, com prazer. As lembranças ruins são deixadas de lado, do passado mantém-se intacto apenas o que antes de tais acontecimentos dolorosos era determinante em sua vida: sua sensibilidade para a arte, especialmente sua inclinação para a literatura e o teatro. No final do romance, Wilhelm vê-se novamente sofrendo por amor. Sozinho, diz a si mesmo para confessar seu amor por Natalie – movimento que ocorre de maneira reflexiva e analítica, retrospectivando todas as figuras femininas que passaram por sua 69

trajetória e lhe despertaram sentimentos profundos e frequentemente contraditórios: tu a amas e de novo sentes o que significa quando o homem pode amar com todas as suas forças. Foi assim que amei Mariane e perdi terrivelmente a confiança nela; amei Philine e acabei por desprezá-la. Estimava Aurelie e não podia amá-la; venerava Therese, e o amor paternal assumia a forma de uma inclinação por ela; e, agora, que em teu coração se reúnem todos os sentimentos que podem fazer um homem feliz, agora és obrigado a fugir! Ah! Por que a estes sentimentos, a estes conhecimentos, deve associar-se o desejo invencível da possessão? E por que, sem possessão, esses sentimentos, essas convicções destroem totalmente toda sorte de felicidade? Gozarei no futuro do sol e do mundo, da sociedade ou de algum outro bem venturoso? Não te dirás sempre: ‘Natalie não está aqui!’ E, por isso mesmo, por infelicidade, Natalie te estará sempre presente. Fecha teus olhos, e ela te aparece; abre-os, e ela estará pairando por sobre todos os objetos, como uma aparição que deixa nos olhos uma imagem ofuscante. Já não lhe esteve antes sempre presente à tua imaginação a figura fugidia da amazona? E só a havias visto, nem a conhecias. Agora que a conheces, que estiveste tão perto dela, que tanto interesse por ti ela demonstrou, agora estão gravadas profundamente em tua alma suas qualidades, como antes sua imagem em teus sentidos. É angustiante viver procurando, mas é muito mais angustiante achar e ter de abandonar. Que devo pedir agora ao mundo? Que devo procurar dentro de mim? Que região, que cidade guarda um tesouro semelhante a este? E devo viajar sempre para encontrar só o inferior? Acaso a vida não é senão uma mera pista de corridas em que se deve retornar rapidamente, uma vez alcançado o ponto extremo? E estará aí o bem, o excelente, como uma meta fixa, inalterável, da qual haverá que se afastar ligeiro com cavalos velozes exatamente quando se acreditava havê-la alcançado? (VIII 7, p. 551)

Por fim, depois de malograda sua tentativa de corresponder ativamente a suas disposições, nada mais resta para Wilhelm procurar dentro de si além da outra face de seu sentimento mais vital: o amor objetivado numa relação concreta com outra pessoa (ainda que este permaneça também uma promessa ao final do romance).

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Arte [Aurelie a Wilhelm:] Com admiração, noto no senhor o olhar profundo e justo com que julga a poesia e, sobretudo, a poesia dramática; os abismos mais profundos da invenção não lhe escapam, e percebe os traços mais sutis da execução. Sem nunca ter avistado esses objetos na natureza, o senhor reconhece a verdade na imagem; é como se existisse dentro de si próprio um pressentimento de todo o universo, despertado e desenvolvido pelo harmonioso contato com a poesia (IV 16, p. 251).

Wilhelm anseia por viver o que sente, é um anseio por algo objetivo, antecipado por ele subjetivamente ao prever em seu futuro “ações importantes e acontecimentos singulares”. E de fato o herói segue, ainda que de maneira não formulada, na direção de seus desejos mais profundos (II 3, p. 85). Diferente do que ocorre com as pinturas e outros objetos de arte, os quais Wilhelm contentava-se apenas em fruir – especialmente o conteúdo –, um dos indícios que comprovam a irresistível inclinação de Wilhelm pelo teatro está no impulso de reproduzi-lo e, em decorrência disso, na concepção artísticoestética que ele desenvolveu sobre o assunto (explícita inclusive em sua preocupação e habilidade para lidar com figurinos, cenários etc. desde tenra idade) e que evoluirá teoricamente na fase adulta58. Já mesmo no domínio da vida doméstica cotidiana Wilhelm tinha prazer especial em criar e personificar imagens, climas, personagens e situações. Assim, o narrador, contando um pouco sobre o herói quando criança, fala da mania do protagonista em criar figurinos diferentes e cita um pelo qual ele possuía predileção. Costumava usar um barrete branco sob a forma de um turbante e havia mandado cortar as mangas de seu roupão, copiando o estilo oriental, com o

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A relação de Wilhelm com os objetivos artísticos foi geralmente analisada como se estes fossem, por um lado, apenas motivos simbólicos pertencentes à vida interior do herói, e por outro, meios de interpretação de mundo e autoencontro (Trunz: 1981, p. 721).

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pretexto de que mangas longas e largas dificultavam-no ao escrever. Quando se via sozinho à noite, sem mais temer presenças alheias, costumava enrolar uma faixa de seda na cintura, prendendo por vezes nela um punhal que havia apanhado de uma antiga sala de armas, e desse modo punha-se a estudar e ensaiar os papéis trágicos que lhe eram atribuídos e, com esse mesmo espírito, fazia suas orações ajoelhado no tapete (I 15, p.53).

O vestuário de Wilhelm compõe-se de referências aos séculos passados, com especial inspiração renascentista59. A observação de que “com o mesmo espírito” orava ajoelhado sobre o tapete é de bastante humor e evidencia o baixo estatuto da religião em sua vida, ele não frequenta igrejas, e o modo de se relacionar com o mundo religioso é na esfera privada misturada ao livre curso da fantasia e do jogo da encenação 60. Para o herói, a vida doméstica do ator era isso que ele recriava em seu quarto, porém de modo potencializado e grandioso61. Com que felicidade, pois, enaltecia ele naqueles tempos o ator que via em posse de tantos trajes, equipamentos e armaduras majestosas, e no exercício contínuo de atitudes nobres, cujo gênio parecia representar um espelho de tudo que o mundo produziu de mais esplendoroso e mais luxuoso no tocante às situações, idéias e paixões! Do mesmo modo imaginava Wilhelm a vida doméstica de um ator: uma sucessão de atos e ocupações nobres, cujo ponto dominante era a aparição em cena /.../ (I 15, p.53).

Seu gosto por ambientes majestosos podia manifestar-se nas suas pequenas vontades de decoração de seu quarto, o que lhe permitia estender suas tendências para outros

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O chaperon (turbante) é um adereço renascentista que foi muito utilizado no século XV e pode ser visto em inúmeros retratos da pintura flamenga. O roupão foi transformado por Wilhelm numa espécie kaftan, túnica oriunda da Pérsia, originalmente usada por homens e geralmente amarrada com uma faixa de seda ou de algodão. Vestido por sultões otomanos e presenteado a guerreiros vitoriosos, o kaftan era ricamente bordado e colorido. Por volta do último terço do século XVII, a “maneira oriental" ou "moda persa" fica em voga em certos lugares da Europa. 60 Em outra ocasião, para poder partir em paz, Wilhelm pede que Mariane dê sua mão na frente de um padre, apenas uma formalidade: “a benção do céu unida à benção da terra”. Ele afirma ter dinheiro suficiente para o começo “e, antes que se nos acabe, o céu nos proverá”, afinal, “o que com tanta alegria começou, só pode acabar mesmo bem” (I 16, p.60). 61 “§ 78 Dagegen ist es eine wichtige Regel für den Schauspieler, daß er sich bemühe, seinem Körper, seinem Betragen, ja allen seinen übrigen Handlungen im gewöhnlichen Leben eine solche Wendung zu geben, daß er dadurch gleichsam wie in einer beständigen Übung erhalten werde. Es wird dieses für jeden Teil der Schauspielkunst von unendlichem Vorteil sein”. “§ 81 Wenn er seine Rolle auswendig lernt, soll er sich immer gegen einen Platz wenden; ja selbst wenn er für sich oder mit seinesgleichen beim Essen zu Tische sitzt, soll er immer suchen, ein Bild zu formieren, alles mit einer gewissen Grâce anfassen, niederstellen etc., als wenn es auf der Bühne geschähe, und so soll er immer malerisch darstellen.” (Goethe, Haltung des Schauspielers im gewöhnlichen Leben, in Regeln für Schauspieler).

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domínios de sua vida cotidiana. /.../ já de pequeno sabia decorar suntuosamente seu quarto, que considerava como seu pequeno reino. As cortinas da cama caíam em grandes refegos, presos por borlas, como é comum ao se representar um trono; havia adquirido um tapete para o centro do quarto e outro, mais fino, para a mesa; dispunha e organizava seus livros quase mecanicamente, de tal modo que um pintor holandês teria podido extrair bons modelos para suas naturezas mortas (I 15, p. 53).

Num momento subsequente de sua trajetória, Wilhelm age segundo suas reminiscências de menino. Quando cheio de esperança parte do castelo do conde com a trupe (IV 2, p. 207), ele analisa seu modo de vestir-se e completa-o com alguns adereços mais apropriados para aquela ocasião. Mantém seu colete, julgado como bastante apropriado para um “viandante”, resolve colocar uma bela faixa de seda na cintura, tira o laço do pescoço, faz pregarem-lhe na camisa uma musselina que ficou parecendo um gorjal antigo; um lenço que ainda guardara de Mariane foi frouxamente atado na musselina e, por fim, o “disfarce” era arrematado com um chapéu redondo adornado com uma fita colorida e uma grande pluma. Acrescente-se ainda que Wilhelm cortara os cabelos para aproximarse ainda mais de seu “modelo natural” – o príncipe Harry, de Shakespeare.

. O filho enfermo do rei Na conversa com o estranho no último capítulo do primeiro livro, Wilhelm recorda a situação em que um homem havia ido avaliar a coleção artística de seu avô, mas não reconheceu no estranho a mesma pessoa. Wilhelm conta como ele e as outras crianças ficaram tristes, sendo mesmo “as primeiras horas” de tristeza de sua vida, quando levaram embora (depois que seu pai vendeu) toda a coleção de arte do avô (I 16, p. 62). O homem diz que havia entre os quadros um preferido de Wilhelm “e do qual não queria se desfazer de forma alguma”. Artisticamente, contudo, nada havia de especial no quadro. Wilhelm lembra-se da obra, dizendo que o tema o agradava, e era isso o que sempre observava num quadro, não propriamente a arte (“Não entendia e ainda não entendo dessas coisas, o que 73

me agrada num quadro é o tema, não a arte”, I 17, 63). O homem diz que “o avô parecia pensar diferente, visto que a maior parte de sua coleção era composta de objetos magníficos, nos quais sempre se podia admirar o mérito de seus mestres, independentemente do tema” (I 17, 63), e que o quadro que tanto agradava Wilhelm não era tão apreciado pelo avô, que o mantinha na antessala. A “impressão indelével” que a pintura imprimiu na criança de 10 anos é explicada por Wilhelm desta maneira: Que compaixão me inspirava, e ainda me inspira, aquele jovem que tem de encerrar em sua alma os doces impulsos, o mais belo patrimônio que a natureza nos legou, e esconder em seu peito o fogo que deveria aquecê-lo e animá-lo, a ele e aos outros, de tal modo que o mais íntimo de seu ser se consome em imensas dores! E como lamento também pela infeliz, obrigada a devotar-se a um outro homem, quando seu coração já havia encontrado o objeto digno de um desejo puro e verdadeiro! (I 17, p. 63)62

Para Wilhelm, o sofrimento do príncipe está não apenas na impossibilidade da posse, mas no sufocamento do amor, este que é compreendido como o encontro do objeto capaz de confirmar a individualidade de seu possuidor, na posse do objeto querido, os anseios se aquietam e se aprazem, bem-estar que é irradiado e beneficia a todos. Essa passagem antecipa um pensamento que valerá, na trajetória de Wilhelm, não apenas para o amor, mas também para a sua autoatividade: entendida pelo herói como uma disposição inata, é triste que ele tenha de desistir dela, é como se tivesse de abandonar a si mesmo. O quadro O filho enfermo do rei remete à história do jovem príncipe enfermo apaixonado pela noiva de seu pai e tem a seguinte moral: o amor é a força que pode salvar

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Como antecipamos, para Schings Wilhelm tem uma concepção sentimental da arte que, desde o filho enfermo até Hamlet, enxerga “apenas a si mesmo e sua inclinação”. (I 17, p. 64). Kant afirma: §13 “Das reine Geschmacksurteil ist von Reiz und Rührung unabhängig”, e isso é usado como prova para deslegitimar as predisposições de Wilhelm. Kurt May (1957) discute a autenticidade da aspiração artística de Wilhelm argumentando que seu egocentrismo [Selbstbezogenheit] só experiencia nas obras de arte aquilo que vai de encontro com sua inclinação; afirmando que também o artista autêntico não cria no ímpeto de seus sentimentos (p. 10). A analogia que May faz é a de que da mesma forma como o artista tem nas mãos uma matéria crua, cada um tem sua própria sorte. Em suma, alinhados a Körner (“ele não tinha vocação [berufen] para ser artista”, HA7, p. 654), Schings e May posicionam-se em sua avaliação do herói da perspectiva da Sociedade da Torre.

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ou destruir o herói63. Esse tema é reconhecido como uma espécie de Leitmotiv da história de Wilhelm, mesmo de maneira alusiva (como ocorre depois do roubo, em que as pessoas agruparam-se em torno do ferido Wilhelm segundo a mesma disposição das figuras na pintura. Schings, 1985: 173). Como vimos, a disposição para o amor, ou melhor, a necessidade de amar é permanente no herói em toda sua trajetória, indica tanto sua predisposição sentimental quanto a centralidade que o amor por uma mulher tem em sua vida. Mas a maneira como esse amor se manifesta tende sempre ao sofrimento e à difícil realização. A perda dolorosa de Mariane e a imagem onírica inalcançável da bela amazona são as formas de representação de um amante infeliz; embora possamos reconhecer essa tendência também na repulsa ao oferecimento de Philine, no amor impossível da condessa, na forçosa desistência de Therese e, no fim do romance, na promessa de realização amorosa com Natalie64. A tela de conteúdo narrativo com uma cena dramática é uma referência evocada, no entanto, sobretudo em relação a Natalie, desde que ela era ainda somente a bela e misteriosa amazona: 63

A versão mais conhecida da história datada de III a.C. foi transmitida por Plutarco em Vidas Paralelas (na biografia de Demétrio I). Seleuco I, rei da Síria, tinha um filho, Antíoco. Este se apaixona pela noiva ou (variando de acordo com a fonte) segunda esposa do pai, chamada Estratonice. Antíoco, diante da impossibilidade de possuí-la, fica gravemente doente, mas nenhum médico sabe qual é a razão de sua doença. Somente um consegue descobrir, e isso acontece quando Estratonice entra no quarto do doente e o coração dele acelera desmedidamente. A história termina com o rei concedendo a noiva ao filho. Essa história tornouse motivo de inúmeras pinturas, e há diversos estudos que investigam a qual destas, exatamente, Goethe tem em vista no romance (por exemplo, a de Antonio Bellucci, 1654-1726, ou de Januarius Zick, 1730-1797). Igel (2007) nota, contudo, que a informação de que o amor do príncipe doente era correspondido é um adendo de Wilhelm que não se encontra em nenhuma das versões disponíveis da história. 64 Enfatizando demasiadamente a dimensão da realização amorosa e sentimental de nosso herói, alguns intérpretes consideram essa tendência de Wilhelm um pathos e a este tentam conferir uma importância desmedida, tentando provar que o protagonista padece de transtornos subjetivos. Schings (1984) é o representante mais destacado dessa tendência. O ponto de partida de suas considerações é a discrepância – hegeliana – entre aventura poética (ilusão teatral) e realidade prosaica (“verdade da pessoa”) (p. 184). O autor tem a intenção de investigar o “surgimento da moderna subjetividade” comparando os romances da tradição do chamado Bildungsroman (de Wieland, Moritz e Goethe). Localiza nos três o perfil de uma crise e de uma história doentia. Partindo da visão do “nascimento do sujeito autônomo”, de um “eu deixado livre”, ele assevera que esse é um processo que se completa por meio de dores, perdas, pesares”, por meio da “patologia de seu mundo interior, das inúteis tensões da sensação, da fantasia, do coração” (p. 44). Esse novo Deus da terra (o mundo interior) é chamado a reger seu próprio destino, poder crescente que não raramente é acompanhado de experiências de impotência e rompimento de visões de mundo. Assim, argumenta Schings, a expressão de F. Schlegel (em sua recensão a respeito de Wilhelm Meister) sobre a “arte de todas as artes, a arte de viver” deve ser entendida em seu significado terapêutico. Este se torna, portanto, o objeto do romance, de modo que não a Bildung, mas a terapia assume significado fundamental.

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Todos os seus sonhos juvenis se ligavam àquela imagem. Acreditava haver visto com os próprios olhos a nobre e heroica Clorinda; imaginava ser o filho enfermo do rei, de cujo leito se aproxima com uma reserva silenciosa a bela e compassiva princesa (IV 9, p.231).

Na casa dela, já no último livro, Wilhelm revê o quadro da coleção do avô e ele lhe parece ainda mais comovente do que em sua infância; não apenas o amor, mas o sofrimento que ele pode trazer consigo enternecem e tocam o herói. Wilhelm adoece em duas ocasiões, em ambas a doença é uma maneira do herói passar fisicamente pelos sofrimentos emocionais sem entrar num colapso psíquico 65. Assim, Wilhelm ficou muito doente e, delirando, imaginava não ter perdido Mariane, esse foi o modo como seu corpo defendeu-se da perda daquela intensa felicidade. Wilhelm adoeceu pois “a natureza, não querendo permitir a ruína de seu favorito, atacou-o com uma enfermidade para desafogá-lo de outro lado” (II 1, p. 76). O mesmo acontece, aparentemente por amor a Natalie, nos últimos capítulos (em que estava premido a decidirse pelo rumo que sua vida tomaria).

. O teatro e os heróis A contemplação da tela e o primeiro contato com o teatro de marionetes ocorrem no mesmo período, quando Wilhelm tinha a idade de 10 anos. Depois da venda do precioso acervo do avô, Wilhelm, órfão da coleção, dedica-se fervorosamente ao teatrinho. A Mariane, Wilhelm conta que depois de assistir pela primeira vez o teatro de marionetes queria “descobrir como tudo aquilo funcionava”, “por que tudo aquilo era tão lindo”, ele “desejava estar ao mesmo tempo entre os encantadores e os encantados, tomar

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Não é o próprio Wilhelm, como Werther, que atenta contra sua vida, mas a natureza, esta que num nível mais elevado e abrangente possibilita sua existência e de tudo faz para mantê-la (é o conatus espinosano agindo em Wilhelm. Conatus é o termo latino para esforço, inclinação, tendência, “desejo de viver”. Na Ética, parte 3, proposição 6, Espinosa assim define conatus: “cada coisa, à medida que existe em si, esforça-se para preservar em seu ser”; na demonstração, o filósofo prossegue: cada coisa “opõe-se a tudo que possa tirar sua existência”).

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parte em segredo naquilo e, como espectador, desfrutar o prazer da ilusão” (I, 4, p. 18). Anos depois, ao rever as marionetes, a sensação de Wilhelm é descrita pelo narrador como se ele tivesse sido “transportado para aquela época em que elas lhe pareciam vivas, quando acreditava animá-las graças à vivacidade de sua voz e ao movimento de suas mãos” (I 2, p. 13). O ponto crucial na própria descoberta do que ele entende ser sua inclinação fundamental está nessa atração e no seu desejo de produzir por esse meio o mesmo fascínio em outras pessoas: “Estava plenamente convencido de que tudo aquilo que contado causava prazer, haveria de produzir muito mais efeito se representado” (I 8, p. 28)66. No fim da infância, quando Wilhelm deixou de manejar os bonecos do teatro de marionetes e passou a representar com os amigos, não apenas ele era propenso a ver-se como herói, mas também seus amigos “acreditavam que podiam interpretar sem dificuldade o papel de heróis” (I 7, p. 27), de modo que essa tendência de Wilhelm ao protagonismo é vista por ele como algo natural, e suscitada pela forma de representação da própria literatura. Assim, todos ficavam muito à vontade nos primeiros ensaios de uma tragédia 67, gênero em que a ação do personagem principal tradicionalmente está no centro dos acontecimentos. Eles prezavam pela excelência dos caracteres, “mediante seriedade e afetação” tinham de se colocar à altura da posição social e aguardavam, ansiosos, as partes exaltadas em que podiam extravasar. Entretanto, enquanto para os amigos o teatro era somente um jogo, Wilhelm, com “o mais vivo interesse”, assumiu perante esta arte, desde o primeiro instante, o papel de seu

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A percepção estética do drama em seus primeiros anos de juventude é rememorada por Wilhelm como algo imaturo. Ele cita os exemplos das narrativas da “História Universal” das quais ele extraía os conteúdos para seus dramas, em que os momentos decisivos eram os que o prendiam: “eu anotava cuidadosamente o modo particular como alguém havia sido apunhalado ou envenenado”, e, para logo chegar ao fim, “minha fantasia descuidava da exposição e da trama e acorria ao interessante quinto ato” (I 8, p. 28); a Wilhelm interessava o destino dos personagens. Depois ele conta que era opinião corrente que a tragédia era mais fácil de escrever e encenar que a comédia; e assim, ele e seus companheiros logo “descaíram” na tragédia, e “só nos sentíamos completamente felizes quando tínhamos que nos por como loucos, batendo os pés e atirando-nos ao chão, tomados pela raiva e pelo desespero” (I 8, p. 29). 67 Para Seitz (1996, P. 126), as três figuras poéticas que exerceram influência sobre Wilhelm (o filho doente do rei, Davi e Golias, e Tancredo e Clorinda) não expõem de forma alguma Wilhelm como trágico, melancólico, autodestrutivo. Para o autor, nos primeiros livros Wilhelm é na verdade convicto de ter a felicidade ao seu lado.

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continuador. “Para mim, aquela foi contudo uma época especial; meu espírito orientava-se de vez para o teatro, e eu não encontrava alegria maior que ler, escrever e representar peças de teatro (I 8, p. 30). Ele buscava sempre o conteúdo dramático nos diversos tipos de personagens literários e históricos: “mesmo o material mais rígido não poderia resistir à minha paixão em levar à cena qualquer romance que eu lesse, qualquer história que me contassem \...\ tudo que ocorria diante de meus olhos, também poderia ocorrer sobre um palco” (I 8, p. 28)68. Por isso, ao longo de sua trajetória, Wilhelm nem sempre representou o papel do “primoroso herói” nas peças em que atuou (na peça em honra ao príncipe, por exemplo, foi convencido pelas senhoras, a condessa e a baronesa, a fazer o papel de galã, III 9, p. 176). Isso não era problema algum para ele, que se julgava completamente capaz de compreender e representar todos os tipos de personagens, e desafiava a si mesmo procurando aqueles que pouco se lhe ajustavam: já que me via atuando em todos os papéis, minha vigorosa fantasia seduzia-me, fazendo-me crer que também representaria todos; daí por que, ao distribuir os papéis, costumava reservar aqueles que de modo algum combinavam comigo, e caso tivessem algo que me dissesse respeito, ainda assim não passariam de uns poucos (I 8, p. 28).

O fascínio de Wilhelm por alguns heróis da história e da literatura é parte importante da narrativa do protagonista sobre seu passado com o teatro, são eles que lhe despertam a predileção por ações e acontecimentos, caracteres, trajetórias e destinos exemplares69, assim se explica que ele assumia todos os papéis e os decorava; mas na maior parte das vezes, colocavame no lugar do protagonista e deixava as demais personagens gravitarem em minha memória como simples figurantes (I 5, p. 20).

As experiências infantis com o teatro que envolvem certos personagens e histórias de épocas passadas parecem ser suporte para ações de Wilhelm e modelos nos quais nosso

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Essa é, aliás, a única referência à escola. Não se mencionam tutores na história de Wilhelm, detalhe significativo que denota como seu desenvolvimento sensível está mais ligado à atividade prática e reflexiva do que à instrução formal. 69 Kemper (2004, p. 266) observa que Wilhelm identifica-se aos heróis do mesmo modo que o jovem Anton Reiser.

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herói se espelha. Por essa razão, da mesma maneira que acontece com o “filho enfermo do rei”, por meio da análise dos heróis que mais atraem Wilhelm é possível desvendar traços compositivos da individualidade do protagonista (comportamentos, predisposição sensível, pensamentos) e, quanto à estrutura do romance, lançar luz sobre o encaminhamento de sua trajetória para certo destino. Davi é o primeiro desses heróis pelos quais Wilhelm sentiu grande admiração 70: “Não me saíam dia e noite do pensamento os discursos grandiosos de Davi desafiando o arrogante Golias” (I 5, p. 20). A história contra o gigante Golias foi a primeira representação do teatro de marionetes que Wilhelm assistiu. Ao lado da atmosfera de solenidade que envolveu a apresentação, da impressão respeitável transmitida pelas vozes estranhas dos primeiros personagens em cena, Samuel e Jônatas, a alegria ficou profundamente gravada na criança de dez anos ao ver Davi, “com seu cajado de pastor, seu surrão e sua funda” dizendo que iria pelejar contra o “poderoso gigante”, e no final da história, “o pequeno vencedor, com a cabeça do gigante nas mãos, recebia por esposa a bela filha do rei” (I 2, p.13). Com o passar do tempo, Wilhelm teve de diversificar o rol de suas peças para satisfazer sua imaginação e anseio criativos, e é mais uma vez o avô a pessoa que nutre seu espírito, desta vez, com o Teatro alemão e óperas italianas e alemãs71; Wilhelm e seus amigos passaram então à encenação. Wilhelm conta que na ópera, “com suas múltiplas reviravoltas e peripécias”, “encontrava mares tempestuosos, deuses que desciam das nuvens

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O parametro de Goethe est{ na Antiguidade, por isso, o universo de pensamento que trouxe as maiores e mais decisivas consequencias para ele foi, alem das obras de Platao e Aristoteles, a biblia. Doutrina crista e espirito grego (cf. HA14, p. 52, Bohme: 1991, pp.149-150). Davi, o personagem biblico do Antigo Testamento, tornou-se alegoria da coragem e da ousadia individuais para superar poderes e forças maiores que ele mesmo (personificados por Golias), lutando, ao mesmo tempo, pelo bem da comunidade. Ele lutava confiando sua vitória ao Deus de Israel – Deus maior, portanto, que o de seus inimigos. O nome Davi significa literalmente amado, querido. Davi foi o segundo e considerado o maior rei de Israel (sucedeu a Saul), a ele é atribuído o Livro dos Salmos, o maior da Bíblia, e foi portador de diversos dons, como o da música e da poesia. Tinha um bonito semblante. Na Florença do Renascimento, o Davi de Michelangelo um símbolo republicano. 71 Der Deutsche Schaubühne é uma coleção de 38 peças editada por Gottsched entre 1741-1745 que se tornou muito popular à época. Os seis volumes são compostos por obras originais alemãs – Gottsched, Quistorp, Uhlich etc. – e por traduções de peças francesas (Corneille, Voltaire, Destouches etc.) e dinamarquesas (Holberg).

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e, o que me deixava particularmente feliz, raios e trovões” (I 6, p.22). Mais tarde, quando Serlo na sua ausência passa a encenar exclusivamente óperas, que rendiam mais que quaisquer outras peças, já não há nem mesmo rastro dessa atração juvenil pela ópera, portanto, Wilhelm não absorve tudo indiscriminadamente, fato que ressalta e valoriza aquilo que é elegido por ele. Posteriormente, o herói passou a apreciar muito a épica renascentista Jerusalém Libertada, que tinha como tema as Cruzadas 72. Um “espírito que começava a se desenvolver”, prossegue Wilhelm, impressionava-se mais com a personagem Clorinda (amada de Tancredo), “sua feminilidade viril e a tranquila plenitude de sua existência”, seus gestos e atitudes, do que com os “afetados encantos” de Armida (I 7, p.25). Wilhelm gravou, embevecido, as belas características, e de acordo com a perspectiva narrativa do romance medieval, ele apoiava a heroína “de todo o coração”. Absorvido pela literatura e em conformidade com sua natureza sensível e dramática, quando chegava a hora da morte de Clorinda, Wilhelm sempre lia a passagem com lágrimas nos olhos. A feminilidade viril de Clorinda é um traço que continuará atraindo Wilhelm, ele reaparecerá em Mariane vestida de oficial, em Mignon, na diligência em assuntos econômicos de Therese, e por fim na bela amazona. Wilhelm as vê pelos olhos de Tancredo, este que é exemplo tanto de amor quanto de heroísmo73.

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La Gerusalemme liberata (1575), de Torquato Tasso, é um poema épico que descreve os reveses dos cristãos na conquista de Jerusalém até o final feliz. As fantasias literárias em que os inimigos tinham de ser combatidos, os perigos enfrentados, as donzelas salvas e a morte perpetrada fascinam Wilhelm na infância tal como a qual Dom Quixote na velhice, mas o espanhol quer literalmente viver as histórias, quer ser o próprio cavaleiro, Wilhelm quer representá-los. Rosales observa que o teatro para si mesmo (evidentemente uma forma de autoengano) é a característica mais importante de Dom Quixote, ele vive como outra pessoa, “A vida de Dom Quixote descansa sobre a vivência da possibilidade ilimitada”, p. 801). Para Dom Quixote, tudo o que ocorria nos romances que lia poderia de fato ser vivido por ele. Este pensamento de liberdade extremamente radical é atenuado em Wilhelm Meister, pois a fantasia do herói é vivida em outro nível da realidade – a artística. Sabe-se também que a cavalaria medieval tornou-se um dos temas preferidos dos românticos. 73 Defendendo sua tese de uma subjetividade patológica, Schings caracteriza os heróis da épica de Tasso – que foram ao encontro do “instinto” de Wilhelm – como sentimentais, e suas aventuras como ricamente românticas (1981, p. 147). A passagem que Wilhelm relembra a história é aquela em que suas sensações têm livre curso, e onde o conteúdo patológico [Pathosgehalt] explicita-se como em nenhum outro ponto. A história de Tancredo é interpretada como modelo trágico que se submete à fórmula do destino: “trágico ditado do destino, nostalgia desesperada, melancolia incurável, cegueira, engano e incompreensão, batalha amorosa

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Como ator, ele imita seus modelos para trazer à vida as histórias e personagens personificados em si próprio. Por isso, Wilhelm enfatiza que a mera recepção não era suficiente para sua assimilação: “a tal ponto se apoderou de minha imaginação essa história que, de tudo quanto havia lido do poema, se me moldou na alma um todo confuso, influenciando-me de tal modo que desejava levá-lo à cena de qualquer maneira” (I 7, p. 26). Wilhelm quer representar a história da cavalaria, quer incorporar os protagonistas, o “sério” Tancredo e o “brilhante” Reinaldo. O entusiasmo com a cavalaria mantém-se posteriormente74, e os cavaleiros servirão de inspiração heróica para grandes atos futuros (como no importante episódio do assalto, IV 5). Se durante a infância e primeira juventude nosso protagonista entra em contato com as histórias bíblicas, a ópera italiana, o teatro de tradição gottschediana e a épica renascentista, ele conhecerá seu homônimo Shakespeare só mais tarde, por intermédio de Jarno, durante a estadia no castelo dos condes (esclarecendo que quando Shakespeare tornou-se conhecido na Alemanha, ele havia se tornado desconhecido para o teatro – ou seja, quando se afastou por causa da perda de Mariane). Uma impressão tão forte e profunda quanto a que lhe causou o teatro de marionetes foi a que sentiu quando leu o dramaturgo inglês. Realmente abalado, “nosso comovido jovem” diz que queria poder revelar tudo o que se passa dentro de mim. Todos os presságios em relação à humanidade e a seu destino, que me acompanhavam desde pequeno, sem mesmo adverti-los, encontro-os realizados e desenvolvidos nas peças de Shakespeare. Temos a impressão de que ele nos decifrou todos os enigmas, sem que possamos entretanto dizer: aqui está a chave que os explica. Seus homens parecem homens

até a morte – com as figuras de Tancredo e Clorinda um potencial sombrio baixa na alma de Wilhelm” (p. 151-152). A afinidade com Tancredo traz à tona uma tendência trágica de Wilhelm – a verdade de Tancredo se efetua em Mariane (“tudo que ele ama tem de destruir”). É interessante, todavia, acompanhar Schings citando outros momentos da história de Wilhelm em que o poema de Tasso se faz presente, como a entrada dele no castelo dos condes, a figura de Mignon que remete a Erminia (segundo a perspectiva de Schings, a “encarnação da interioridade e de uma nostalgia recuada em si mesma” – ambas mantêm a mesma relação com os respectivos heróis) e a de Jarno a Ubaldo. Por fim, Schings afirma que os primeiros 4 livros de Os anos de aprendizado correspondem às histórias preferidas das vivências com Tasso (p. 169). 74 Quando o quarto de Wilhelm na estalagem recebeu o grupo para a leitura, empreendida por ele, de uma obra de cavalaria, “os cavaleiros armados, os velhos burgos, a lealdade, probidade, mas principalmente a independência das personagens em ação, foram recebidos com muitos aplausos” (II 10, p. 119).

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naturais, e, no entanto, não o são. Em suas peças, essas criaturas da natureza, as mais misteriosas e mais complexas, agem diante de nós como se fossem relógios, com seu mostrador e sua caixa feitos de cristal; assinalam, segundo seu destino, o curso das horas e, ao mesmo tempo, podemos distinguir a engrenagem e o mecanismo que as movem. Esses olhares ligeiros que lancei ao mundo de Shakespeare me instigam, mais que qualquer outra coisa, a seguir adiante, a progredir com maior rapidez no mundo real, a misturar-me no fluxo dos destinos que lhes estão reservados, e um dia, havendo logrado êxito, haurir do imenso mar da verdadeira natureza alguns copos e oferecê-los do palco ao sequioso público de minha pátria (III 11, p.185-186).

Wilhelm vê confirmado na arte algo que até então existia nele apenas intuitivamente na subjetividade75. A esse respeito, devemos fazer um pequeno desvio para notar que Wilhelm possui um dom intuitivo que se manifesta também por meio de sonhos. O particular em suas intuições prévias é que elas ficam ancoradas por muito tempo plasticamente [bildhaft] em sua consciência. Entretanto, outros sinais do texto complexificam esse estado de coisas, exemplo disso são as observações e sentimentos que Wilhelm guarda sobre si mesmo – como a maldição de Tancredo (de ele ter de machucar quem ama), ou o anseio pela amazona, aquela que irá curar o filho enfermo do rei. O misticismo de Wilhelm mostra-se por inteiro em seus pensamentos sobre acaso e destino. Há, contudo, também nesse particular, algo que favorece a impressão premonitória de Wilhelm que são seus próprios sonhos que de maneira quase direta indicam o futuro ou algo que ele, desperto, não tem consciência76.

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Observe-se a relação entre: “Sem nunca ter avistado esses objetos na natureza, o senhor reconhece a verdade na imagem” e “Via pela primeira vez penhascos escarpados, riachos d’água murmurantes, muralhas de vegetação e abismos profundos, e, no entanto, seus mais remotos sonhos de infância já haviam pairado sobre regiões semelhantes” (II 3, p. 84). Essas são fortes indicações do narrador de que nosso herói não vive num mundo fantasioso que, por sua irrealidade, deve ser forçosamente abandonado. A imaginação de Wilhelm corresponde à verdade, e o mesmo se pode dizer, portanto, sobre o que ele pensa a respeito de si mesmo e sua inclinação ao teatro. Atestando a força das disposições artísticas de Wilhelm, saberemos mais tarde que ele tornou-se partidário do teatro inglês (V 16, p. 334). 76 Cf. Schings, 1985. Em Sobre poesia épica e dramática [Über epische und dramatische Dichtung] Goethe comenta que epos e drama representam o “mundo das fantasias, intuições, aparições, acasos e destinos”. Ocorre para os modernos uma dificuldade específica, “pois deuses, criaturas maravilhosas, videntes e oráculos da Antiguidade não encontram fácil substituição”. Os sonhos são o meio preferido de previsão [Vordeutung] nos romances do barroco (Aithiopika, Römischen Octavia, cf. Igel, 2007) e também no Meister. Outros meios tradicionais de orientação teleológica como oráculo e profecias ainda usados em Anton Ulrich (lembremos também que a história da romana Otávia era a leitura preferida da bela alma em sua juventude), por exemplo, são tomados como excessivos no final do século XVIII. No Meister, as personagens podem

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Shakespeare teve o poder de imperar sobre todas as impressões desfavoráveis que a prática do teatro, àquela altura (no fim da estadia no castelo), já havia explicitado, reavivando a aspiração por um teatro nacional que Wilhelm havia alimentado no início de sua trajetória. No episódio que se passa um pouco antes do roubo temos uma mostra de como Wilhelm projeta a literatura em sua própria vida: Seu amigo Shakespeare, a quem com grande prazer reconhecia também como seu padrinho, regozijando-se por chamar-se também Wilhelm, dera-lhe a conhecer um príncipe que, durante um certo período, freqüenta uma sociedade mediocre e má, e que, a despeito de sua nobre natureza, deleita-se com a rudeza, falta de decoro e frivolidade de tipos em tudo sensuais. Extremamente oportuno era-lhe o ideal com que podia comparar sua atual situação, o que lhe tornava extraordinariamente fácil o autoengano [Selbstbetrug], para a qual sentia uma inclinação quase invencível (IV 2, p. 207). /.../ e nosso amigo, que em virtude de sua generosidade [Freigebigkeit] adquirira o direito de se relacionar com os outros à maneira do príncipe Harry, logo tomou gosto em indicar e promover alguns desvarios. Esgrimiam, dançavam, imaginavam toda sorte de jogos e, na alegria de seu coração, regalavam-se à saciedade com o sofrível vinho que haviam encontrado /.../ (IV 2, p. 208).

Em geral, Wilhelm glorifica atos louváveis, mas não é de seu feitio criticar voluntariamente a grosseria e a rudeza. Na passagem acima vemos que o protagonista, fazendo uma analogia com o príncipe Harry, considera criticamente o grupo ao qual está vinculado, mostrando, ao mesmo tempo, que ele não se deixa levar por ele. Depois de sairse bem em sua decisiva experiência com o teatro, como ele encarava sua introdução no castelo dos condes, Wilhelm sente-se livre. E esse alívio é festejado num temporário desvario, contrariando o comportamento e gosto ordeiros e comedidos habitualmente mantidos pelo herói. A passagem acima antecipa a crítica de Wilhelm ao grupo logo após o

também eventualmente ser portadoras de um caráter de prognóstico em suas falas – por exemplo, as palavras de Therese a Wilhelm, de que quando ele conhecesse sua amiga (Natalie) começaria uma nova vida; ou quando Natalie diz que somente seria aconselhável casar com alguém que tivesse lembranças de outro se essa pessoa tivesse um caráter puro como o de Therese. Há ainda outra dimensão da plasticidade das previsões [Vorausdeutung] no Meister: são explicações antecipadas cenicamente, acontecimentos reais de efeito simbólico, uma especialidade de Ulrich, que Goethe também usou com predileção. Assim, enquanto o leitor do romance do alto barroco encontra censuras explícitas sobre a recepção da ação interna do acontecimento como indicação prévia boa ou má, Goethe deixa que o próprio leitor produza a ligação e descubra o conteúdo simbólico de uma cena, e assim essas situações do romance como vida futura são configuradas de um modo próprio. “O romance do romantismo levou adiante a incorporação de sonhos \...\ de Goethe” (Trunz, 1981, p. 718).

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assalto, em que ele está ferido e os membros somente pensam em acusá-lo e lamentar a perda de suas próprias coisas. A atmosfera shakespeariana dota o herói de um amparo subjetivo por meio de uma percepção crítica de suas próprias relações pessoais, preparando-o internamente e fortalecendo-o para os graves acontecimentos que se seguiriam. Esse mesmo tipo de antecipação é visível na preparação de Hamlet. Wilhelm relata à trupe: Propusemo-nos a representar a peça, e eu, sem saber o que fazia, encarregueime do papel de príncipe; acreditava estudá-lo, começando por memorizar as passagens mais fortes, os monólogos e aquelas cenas em que ganham livre espaço a força da alma, a elevação do espírito e a vivacidade, e em que o ânimo comovido pode mostrar-se numa expressão sentimental. Acreditava também penetrar verdadeiramente no espírito do papel se assumisse de algum modo o peso da melancolia profunda e, sob tal pressão, procurasse seguir meu modelo através do estranho labirinto de tantos caprichos e singularidades (IV 3, p. 213).

Como continua a explicar mais tarde, ele vê-se levado a considerar de outro modo seu objeto e a empreender seu estudo numa direção nova, diferente do que até então conhecia. Hamlet é uma antecipação, para Wilhelm, da dimensão trágica da não realização da individualidade, em que será obrigado a enxergar e reconhecer a impossibilidade de ser ator, decidir-se a partir, desistir do teatro.

. Mignon e o harpista Mignon e o harpista são especiais por efetivarem a arte movidos principalmente pelos sentimentos que possuem, em outras palavras, suas individualidades são caracterizadas predominantemente pela sensibilidade – e somente pela via da atividade artística é que elas se expressam. É próprio de ambos despertar sentimentos, emoções, sensações – mas somente Wilhelm surge como aquele que capta todas as matizes visíveis e invisíveis, intuições, sentimentos e pressentimentos que essas figuras portam77.

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Segundo Igel, são personagens que trazem a verdade, revelando as mais profundas relações que só mais tarde surgem no enredo – já Anton Ulrich utilizou essa técnica narrativa (cf. Igel: 2007, p. 635). Para

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O amor é o sentimento que move o herói, é por excelência sua forma de sentir e de se expressar. Mas não é o amor cristão que determina a compaixão de Wilhelm por essas figuras de origem italiana, não predomina o ideal de ajuda ao próximo no sentimento que liga Wilhelm a eles (embora Wilhelm efetivamente os ampare). O amor que Wilhelm sente por eles é de natureza artística, intelectual, sensível. Ao amor liga-se a alegria, Wilhelm quer arrancar os sentimentos sombrios de Mignon e do harpista, pois Mignon é dominada pelo poder dos afetos e o harpista por imaginações fantasiosas. Em mais de um momento, o protagonista explicita necessitar dos dois ao seu lado. Eles ficam com Wilhelm não por causa do seu dinheiro, mas sim por causa de sua sensibilidade e personalidade, seus sentimentos puros e sinceros e sua benevolência; ambos são premidos por uma necessidade de conforto emocional proveniente, por sua vez, de uma inesgotável carência afetiva. Nessa relação, Wilhelm mostra-se capaz de apaziguar os sentimentos violentos e arrasadores que essas figuras portam, enquanto sofre a purgação de sua própria confusão sentimental por meio daquelas individualidades encerradas em arte e mistério. A ligação afetiva de Wilhelm com a nova família, cujo núcleo é Mignon e o harpista, em nada se parece com a que o liga à sua família de origem, que pouco é lembrada pelo herói do decorrer de sua jornada.

Schlegel, está representado nessa dupla de personagens o aspecto mais sublime da arte, a “sagrada família da poesia natural”. A relação com Mignon e o harpista está sob o signo romântico na medida em que o que define essas figuras são o lirismo, a tragicidade, o anseio pela morte, a nostalgia permanente, a expressão predominante através dos sentimentos, o mistério, o segredo. Por esta via, o “sujeito moderno” é patologizado (Schings 1984). Sentimental, a doença com que ele é tomado chama-se hipocondria (“moderno, hipocondríaco, subjetivo-lírico”, p. 51), resumindo com ela todas as tensões patológicas da interioridade: “falsa tendência, sentimentalidade patética, sofreguidão infinita, nostalgia infeliz-infinita, aspiração incondicional” (p. 55), apoiadas num “querer [Wollen] que vai para além das forças do indivíduo” (Goethe, Shakespeare und kein Ende). Como mencionamos, na linha das crises patológicas Schings enfileira o próprio Wilhelm, a bela alma e, evidentemente, Mignon e o harpista, cujo estado de alma encontra uma analogia com o entusiasmo de Agathon. (Veja-se também o estudo deValk, Thorsten sobre a melancolia de Werther e Meister.)

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. Mignon Desde quando viu Mignon pela primeira vez, Wilhelm teve os olhos e o coração “irresistivelmente atraídos pela misteriosa condição daquela criatura”. Subindo a escada para o quarto, Wilhelm não sabia tratar-se de uma menina ou um menino, mas logo achou que era menina. Mignon tinha por volta de 12 anos. Em meio ao estridente cortejo de saltimbancos, ela é novamente percebida por Wilhelm. Ele sente uma atração inexplicável por aquela estranha criança, e salvá-la no episódio do espancamento fez com que ela se ligasse a ele indissoluvelmente. A devoção que crescia por Wilhelm ela demonstrava servindo-o com dedicação irrestrita. Em pouco tempo, “Wilhelm se sentia /.../ cada vez mais atraído pela figura e natureza de Mignon. Em tudo que fazia, a criança tinha algo de singular” (II 6, p.105). Ela era estranha e fascinante, Wilhelm não a compreendia completamente. Em mais de um momento, ela surge para distrair Wilhelm de suas penas e dúvidas. Conhecendo-a através de sua arte apenas, já que Mignon não falava nada sobre si, Wilhelm ama-a imediatamente. Mignon possuía habilidades artísticas cuja efetivação não se colocava para ela como objetivo consciente e muito menos profissional, ao contrário, ela buscava esquivar-se, esconder-se do público, e só mostrava suas aptidões quando se sentia acolhida e protegida, para demonstrar satisfação e alegria. Falando um mau alemão, sua linguagem era a do amor e da arte 78. A menina não gostava de representar e nem mesmo de ir ao teatro, mas decorava com muito gosto “odes e canções”, declamando-as de improviso para a admiração de todos. Por ocasião da preparação da peça que Wilhelm fazia em honra ao príncipe no castelo dos condes, Mignon nega-se a dançar a dança dos ovos e pede para que também Wilhelm se afaste dos palcos; ele não presta atenção à advertência e pensa na

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“A oposição de intelecto [Verstand] e coração, ideia [Begriff] e sentimento, que o século XVIII estabelece, é realidade em Mignon” (Schlaffer, Hannelore: 1980, p. 41). Assim, como exemplo de que a razão não pode conviver com o coração, ela interessava-se em aprender, queria que Wilhelm comprasse um livro de atlas geográfico, praticava a escrita; mas ainda que se esforçasse, continuava com as mesmas dificuldades de aprendizado. No próprio Wilhelm, Aurelie vê essa separação entre razão e sentimento, quando diz ao herói para consolá-lo de sua ingenuidade que “a luz do razoável” pode ser sempre alcançada, mas “a plenitude do coração”, não (IV 16, p. 252).

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substituição da cena. A absoluta ojeriza que Mignon tem da profissão artística é algo que não é seriamente considerado por Wilhelm, isto é, no que isso poderia dizer respeito a sua própria relação com o teatro. Ela cantava e dançava seus mais profundos sentimentos, suas experiências íntimas, suas lembranças. Wilhelm percebe isso no dia em que, depois da conversa com o velho em que ficara sabendo de Mariane, Mignon o esperava na estalagem. Iluminando para ele a escada, pediu para lhe oferecer um número artístico. Ele não estava para isso, mas disse sim à “bondosa criatura”. “Wilhelm consentia em tudo”, a criança fez os preparativos, estendeu um tapete, dispôs sobre ele ovos e chamou o homem que servia na casa e tocava violino. Ela dançava com habilidade e rapidez, passos longos e curtos, saltos, sem quebrar nem um ovo. Wilhelm estava completamente arrebatado pelo estranho espetáculo e esquecia suas preocupações seguindo todos os movimentos da amada criatura, maravilhado de ver com que primor se manifestava naquela dança o caráter da menina. Ela se mostrava séria, precisa, seca, violenta, e, nos passos suaves, mais solene que agradável. Súbito, naquele instante, ele tomou consciência do que sentia por Mignon. Almejava incorporar a seu coração, como sua própria filha, aquela criatura abandonada, tomá-la em seus braços e, com o amor de um pai, despertar nela a alegria de viver (II 8, p.111).

Como Natalie conta mais tarde a Wilhelm, o mal de Mignon eram as emoções profundas que a consumiam, sua grande sensibilidade atacava-lhe o coração, que deixava subitamente de bater ou, em outros momentos, “a força da natureza voltava a se manifestar em pulsações violentas” (VIII 2, p. 503). O médico esclareceu que esse “bom ser” [gutes Wesen] sofria de uma profunda nostalgia (e por isso ela gostava quando Wilhelm falava de viagens), que o que a ligava à terra era o desejo por Wilhelm e o de rever a pátria, ambos inacessíveis para essa “alma singular” [einziger Gemüt]. As falas de Mignon demonstram uma profunda maturidade, e na canção que entoou estava a previsão de que o fim de sua vida era próximo (VIII 2, p. 504). Ali ela diz que de mágoa envelheceu antes do tempo. O misticismo de Mignon revela o parentesco espiritual que ela tem com Wilhelm, mesmo sendo Mignon o oposto de Natalie – esta que representa a plenitude – sem calor, paixão, crença ou dor. 87

. Harpista Não apenas no destino trágico existe uma reminiscência grega no harpista, sua música tem clara função catártica em Wilhelm79. O harpista representa o poeta na sua forma original, sua poesia é cantada e acompanhada de um instrumento. Este, antiquíssimo, tradicionalmente usado no acompanhamento do canto, cria uma atmosfera especial 80. Assim, na ode com a qual transmitiu suas primeiras saudações ao grupo de Wilhelm, ele “celebrava a felicidade dos cantores e exortava os homens a honrá-los. Colocava tanta vida e verdade na canção que parecia havê-la composto naquele instante e para aquela ocasião”. Enquanto os outros conversavam em voz baixa discutindo se o homem seria padre ou judeu, “a muito custo Wilhelm se continha para não se lançar a seus braços, e só o temor de provocar ruidosa gargalhada o reteve na cadeira” (II 11, p. 122). O único desejo do harpista era que suas músicas dessem prazer a todos. Interpretava de maneira primorosa canções que ora tratavam de louvar a vida em sociedade, ora deplorar a hostilidade e a discórdia, ora louvar os pacificadores e “a felicidade das almas que se reencontram”. Fez todos alegres e bem-humorados. Mas somente Wilhelm ficou profundamente arrebatado. – Quem quer que sejas tu, que vieste a nós qual um espírito protetor e benfazejo, com uma voz que abençoa e vivifica, recebe meu respeito e minha gratidão! Vê o quanto te admiramos e, se necessitas de algo, confia-o a nós (II 11, p.123).

O harpista, que passara a viver como andarilho para redimir seus pecados entre os homens por meio do amor e da alegria, sente que em Wilhelm realiza seu objetivo, sente-se plenamente compreendido. Depois desse primeiro encontro, Wilhelm foi procurar o ancião,

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De acordo com a Poética de Aristóteles, a catarse purifica afetos ao despertar a compaixão e o pavor – em tradução de Lessing, na Dramaturgia de Hamburgo, respectivamente Mitleid e Furcht – exatamente o que o ancião desperta em Wilhelm em momentos especiais de sua trajetória. 80 Goethe (1829) diz que “a dignidade da arte aparece talvez na música de um modo o mais eminente /.../” (p. 266-67. Escritos sobre Arte). A música, compreendida como forma elevada de arte, não mais como entretenimento agradável, mas como forma de expressar o inexprimível, e nesse sentido quase pertencente à esfera do sagrado, é um dos elementos tipicamente românticos presentes na caracterização de Wilhelm. Para o Oheim, o tio, a música deve ser somente para o ouvido e só o órgão auditivo deve fruí-lo, “uma bela voz é o que se pode pensar de mais genérico, e se o limitado indivíduo que a produz se põe diante de nossos olhos, destrói o puro efeito dessa generalidade” (VIII 5, p. 528).

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para que ele, com sua harpa, afugentasse os “maus espíritos”. O velho harpista estava em uma pousada miserável e cantava o seguinte quando Wilhelm se aproximou do seu quarto: Quem nunca seu pão em lágrimas comeu, / Quem nunca noites aflitas passou / Sentado, aos prantos, em seu leito, / Este não vos conhece, ó poderes celestes. / Vós nos conduzis em plena vida, / Vós deixais pecar o pobre, / Para então o abandonar à dor; / Pois toda culpa se expia neste mundo (II 13, p.130)

Wilhelm, “com a alma numa comoção profunda, desafogava o coração atormentado na tristeza do desconhecido; não resistiu à compaixão e não pôde nem quis conter as lágrimas que o lamento melancólico do ancião fizera por fim saltar de seus olhos” (II 13, p. 130). Ele entra no quarto, o ancião tenta dizer algo, mas Wilhelm impede-o, pois já havia notado que ele não era muito de conversar. Wilhelm diz apenas para que ele continue, que enquanto ele aplacava as mágoas sentindo emoções profundas, fazia feliz um amigo. Sentou-se a seu lado. O ancião continua seus cantos de uma dor intensa. Em outra ocasião, Wilhelm sentia uma “nostalgia onírica”, pensando na bela amazona mesclada à condessa, que ia de encontro a uma canção sobre a nostalgia que Mignon e o harpista, num dueto desigual, cantavam com íntima expressão. Assim, na ligação do mais íntimo de uma individualidade com o mais íntimo de outra, complementando-se mesmo pela via dos sentimentos opostos, a arte se consuma. A nobreza do coração do herói é demonstrada na generosidade e na humildade que o fazem se aproximar do necessitado e miserável ancião para compartilhar de seu modo de ser: “considero-te um afortunado em poder ocupar-te e distrair-te de forma tão aprazível na tua solidão, e, sendo um estranho onde quer que estejas, encontras em teu coração a mais grata amizade”. De certo modo, é o que Wilhelm almeja para si, encontrar consolo e satisfação em sua arte, e portanto, em si mesmo; o herói quer a realização sensível, de seus sentidos práticos e espirituais. A tudo quanto o jovem lhe dizia, respondia o ancião com a mais pura consonância, com acordes que reavivavam todos os sentimentos análogos e abriam um vasto campo à imaginação /.../. E assim edificava o ancião seu hóspede, disseminando nele, com canções e passagens conhecidas e desconhecidas, sentimentos próximos e distantes, emoções atentas e adormecidas, agradáveis e dolorosas, que, no estado atual de nosso amigo, era o que se podia esperar de melhor (II 13, p. 131).

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Quando o harpista aparece à porta do quarto de Wilhelm no momento em que um forte ataque de Mignon acabara de suceder (quando ela se sentiu na iminência de perder o amigo, pai, salvador), começa a tocar docemente uma “oferenda vespertina” ao amigo, que então “gozava a mais pura e a mais indescritível felicidade” (II 14, p. 136). Esta cena configura-se no momento em que Wilhelm, com os sentimentos aflorados e aprofundados pela música do harpista, já percebe que não está no caminho que o conduziria à satisfação íntima, ainda assim ele é capaz de desprender-se de suas aflições e sentir-se feliz através da arte. A separação do velho músico causava profunda mágoa em Wilhelm, e só a esperança de voltar a vê-lo recuperado da loucura que o acometia podia de algum modo torná-la suportável, tão habituado estava a ver a sua volta aquele homem e a ouvir o timbre de sua voz, tão espirituoso e cordial (V 15, p. 329). O médico diz que há muito não via um “espírito” numa situação tão singular, quase não se dava conta de coisa alguma ao seu redor, “fechado em si mesmo, contemplava seu oco e vazio eu, que lhe parecia um abismo insondável” (VII 4, p. 429). O velho dizia que só lhe restava o sentimento da culpa; não lhe aparece “nenhum raio de luz de uma divindade”. O médico descobrira que o harpista tinha o delírio de que um menino inocente seria o responsável por sua morte – desconfiava de Mignon, depois de Felix. O harpista, “a despeito de toda sua miséria, ama infinitamente a vida” (VII 4, p. 430)81. No dia em que ele cantou uma canção sobre seus cabelos brancos, o médico diz que ouvia profundamente comovido e emocionado, assim como todos que se sentaram ao seu redor e choraram – portanto, o harpista é um catalisador de emoções e sentimentos não apenas para Wilhelm; mas que ele se ligue sobretudo a Wilhelm é questão que deve ser respondida inquirindo pela individualidade de nosso herói.

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Por causa desse amor, ele havia serenado desde que encontrara um vidro de ópio e tornara-se possível a qualquer momento dar um fim à própria vida: “a possibilidade de eliminar imediatamente e para sempre as grandes dores deu-me forças para suportar essas dores” (VIII 10, p. 575). O harpista vê-se dono do próprio destino com a possibilidade da determinar vida e morte, mas essa foi uma solução precária, pois nem assim ele livra-se da superstição e continua temendo Felix. Schings (Natalie und die Lehre) nota que o harpista desenvolve um motivo de Werther, o suicídio, este que é completamente contra a doutrina espinosana da alegria e, portanto, da manutenção do conatus.

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Consciência

O protagonismo de Wilhelm, assevera Schiller, apoia-se na importantíssima função central que ele possui de explicitar o sentido do todo. Ele reúne, por assim dizer, o espírito, o sentido, o conteúdo interno de tudo o que sucede em torno dele, transforma cada sentimento obscuro em um conceito e um pensamento, exprime cada singular em uma fórmula geral, aproximandonos o significado de tudo; ao satisfazer [erfüllen] assim seu caráter, ele satisfaz simultaneamente do modo mais completo a finalidade do todo (HA7, p. 637).

Para Schiller, a externalização do pensamento, portanto da consciência de Wilhelm, sustentada pelo traço fundamental do caráter do herói, isto é, sua “tendência para a reflexão” [Hang zum Reflektieren] (HA7, p. 636), é a maneira utilizada pelo autor para que seu protagonista cumpra a função de ser a reunião de tudo o que sucede em torno dele. As ideias elaboradas de acordo com as experiências e expressas pela linguagem são propriamente o conteúdo da consciência.

Destino e acaso82 A visão otimista do destino é sustentada pela sensibilidade do herói, isto é, pelo amor e pelo teatro. A necessidade de efetivação e o telos dessa necessidade de desdobramento são o que Wilhelm intui como seu destino. Assim, “cada passo em direção ao futuro estava repleto para ele de pressentimentos de ações importantes e acontecimentos singulares” (II 3, p. 85), explica o narrador. Para Wilhelm, Mariane é a portadora do “claro sinal do destino” (I 9, p. 32) para ele deixar a casa paterna e todo o modo de vida que ela representa; Wilhelm rogava a ela para que confiasse nele e ficasse tranquila, pedia para ela

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Este tema é importante não apenas para a consciência de Wilhelm, mas também para a Sociedade da Torre e, enfim, para o romance, já que a existência da Torre remete às forças suprapessoais de acaso e destino atuando na trajetória dos indivíduos.

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não lhe perguntar “como”: “Não te preocupes! O destino vela pelo amor, e tão mais certo quanto o amor se satisfaz com pouco” (I 16, p. 59). Quando um desconhecido pergunta-lhe sobre uma hospedaria, Wilhelm oferece-se para levá-lo até ela. No caminho, o homem aos poucos revela ter sido quem intermediou a venda da coleção de arte do avô de Wilhelm, à qual nosso herói tanto se apegara quando criança. Wilhelm diz que ficou triste, mas que, apesar dela lhe fazer falta, assim teve de ser para que nascessem sua paixão e seu talento para o teatro, algo que exerceria em sua vida “uma influência muito maior que aquelas imagens inanimadas”. Assim se resignava por saber que o destino “a todos guia para o melhor”. O homem questiona-o. Wilhelm pergunta com surpresa se ele não cria no destino, isto é, “num poder que nos governe e tudo conduza para o nosso bem” (I 17, p. 64); indaga se os acasos que nos conduzem a agradáveis resultados que não haviam sido previstos não deveriam nos inspirar a crença num poder maior que nos conduz. O emissário da Torre assevera que essa necessidade não existe, e nem há, portanto, qualquer destino predeterminado. Mas isso não se mostrará suficiente para Wilhelm mudar de opinião, como podemos ver bem adiante em sua trajetória: Será possível – costumava dizer a si mesmo em silêncio – que, tal como nos sonhos, também em nossa infância pairem a nossa volta as imagens de nossa futura sorte, pressentidas e visíveis a nossos ingênuos olhos? Já não estariam disseminados pela mão do destino os germes do que há de nos suceder? Acaso não nos seria possível saborear antecipadamente os frutos que esperamos colher um dia? (IV 9, p.231)

Novamente conversando com um desconhecido (igualmente, um emissário da Torre), desta vez sobre como ensinar atores, um assunto que logo desembocou no tema da educação dos homens, Wilhelm apela também ao destino: – É bem possível que seja verdade – disse Wilhelm -, pois todo homem é limitado demais para querer educar [erziehen] o outro à sua própria imagem. Felizes aqueles de quem se encarrega o destino, que a todos educa à sua maneira! (II 9, p. 115)

A percepção de Wilhelm de um fato casual como sendo a mão do destino guiando sua vida é um Leitmotiv do romance. O protagonista enxerga com certo misticismo acontecimentos que vêm de encontro aos seus desejos (como a chegada do teatro de

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marionetes, a despensa aberta, a resolução da viagem, o encontro com a bela amazona etc.)83. Mas quando isso não acontece, isto é, quando os acontecimentos contradizem suas aspirações mais caras, Wilhelm exime-se de uma tal explicação mística – como a perda de Mariane e a consequente (temporária) desistência do teatro. Mais nitidamente a partir do livro V, não são vistas mais exortações de Wilhelm ao destino. Como veremos, o fato de Wilhelm conceber as relações entre classes da forma como concebe, de desconsiderar a historicidade e as relações sociais mais amplas, de conferir um valor absoluto à individualidade é bastante coerente com sua concepção de acaso e de destino. Isto é, o modo de proceder de alguém que confia ilimitadamente nas circunstâncias para atingir seus objetivos só pode estar baseado numa ideia de predeterminação.

Arte e humanismo Na concepção do herói, a arte pode dirigir-se ao homem em maior ou menor grau; é o que se depreende de sua opinião sobre a música. Para ele, o instrumento sempre deveria acompanhar a voz, pois a música sem canto lembra “borboletas ou belos pássaros multicores que pairam à nossa frente e atrás dos quais gostaríamos de correr e capturá-los, enquanto o canto, longe disso, é como um gênio que se eleva ao céu, atraindo nosso melhor eu para acompanhá-lo” (II 11, p. 122); assim se justifica Wilhelm ser completamente enlevado pelo harpista. A música instrumental não tem o conteúdo palpável conferido pela palavra, que fala diretamente do homem e para o homem 84. É a arte do ator, porém, que vivifica a poesia: nos dedicamos a uma arte muito mais delicada que qualquer gênero de música,

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Assim, o excesso de otimismo faz com que as intuições de Wilhelm muitas vezes se provem falsas. Um exemplo nesse sentido é a chegada de Wilhelm ao teatro um pouco mais cedo no dia de um importante ensaio (V 8, p. 305). Sozinho no palco ele tem lembranças maravilhosas, em especial de Mariane. Teve o pressentimento de que voltaria a vê-la; mas o narrador previne que isso não passa de uma farsa. 84

Neste particular, é inevitável não pensar na Teoria dos Afetos, de Claudio Monteverdi (1567-1643), em que se teoriza a valorização da poesia por meio da música.

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já que somos chamados a representar de um modo repleto de bom gosto e deleite as manifestações mais comuns e mais raras da humanidade (IV 2, p. 211-212) .

O teatro remete de maneira grandiosa e profunda ao homem. A primeira apreciação que Wilhelm faz sobre o teatro é a de que nele assistimos “aos assuntos mais diversos, que nos distraem, instruem e engrandecem” (I 2, p.12)85. O pensamento de Wilhelm continua a se desenvolver nessa mesma direção ao longo de sua trajetória teatral, mas assume um contorno mais geral. Exemplo disso está em como ele se expressa quando Narcisse, virtuose dos saltimbancos, chega à hospedagem. Wilhelm elogia o artista, dizendo que ele podia regozijar-se por sua arte. Narcisse disse que tão extraordinário sucesso de nada adiantava, pois o empresário pagava-os e queria ver resultados. Depois da representação dos saltimbancos, “todos pareciam felizes de vê-los e ser merecedores de um olhar” do casal de sucesso Narcisse e Landrinette. Wilhelm reflete: – Que ator, que escritor, ou que homem mesmo, não se consideraria no auge de seus desejos, se com alguma frase nobre ou uma boa ação qualquer produzisse impressão tão unânime? Que sensação deliciosa deve ser a de poder, tão rápido quanto uma descarga elétrica, através de sentimentos bons e nobres, dignos da humanidade, excitar no povo um entusiasmo semelhante, tal como fizeram essas pessoas com auxílio de suas habilidades corporais; se fosse possível transmitir à multidão a simpatia [Mitgefühl] por tudo o que é humano; se fosse possível inflamar, agitar e imprimir um movimento livre, vivo e puro a seu interior paralisado, através da representação da ventura e desventura, da sabedoria e estultice, e mesmo do disparate e da estupidez! (II 4, p.101)

Não apenas o artista tem a função de suscitar sentimentos, toda e qualquer atividade individual é capaz de conduzir uma espécie de simpatia ou compaixão por tudo que é afim ao homem. Assim, o elevado e nobre para Wilhelm situa-se na capacidade que a atividade humana tem de despertar o que é humano nos homens. Wilhelm, por sua vez, tem a aspiração de contagiar o povo com belos sentimentos produzidos mediante sua atividade. Isso é evidente mesmo num comentário marcado por um traço excessivamente piedoso: Toda minha alma se inflama ante a ideia de poder enfim entrar um dia em cena e falar ao coração dos homens aquilo que há muito anseiam por ouvir /.../ espero que algum dia possamos apresentar-nos diante dos homens como um casal de espíritos bondosos, para abrir-lhe os corações, tocar-lhe as almas e reservar-lhes

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Wilhelm alinha-se, com essa opinião, à Frühaufklärung e ao Aufklärung, que defendem a função pedagógica e moralizante do teatro para instrução do povo (Rousseau, por sua vez, era contra o teatro).

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prazeres celestiais (I 16, p.60).

Wilhelm almeja ser alguém que age como um bálsamo e um guia, aquele que desperta e reaviva o interior dos indivíduos. Todavia, quando está em atividade, não há nada que o obrigue a desvirtuar o verdadeiro, este que é sempre necessário – apagando assim qualquer sinal de fraqueza que aquele traço piedoso poderia ter insinuado. Por essa razão, quando Serlo pergunta se Wilhelm quer realmente que Hamlet morra no final, pois o público o quer vivo, ele responde que isso é impossível, pois toda a peça impele Hamlet para a morte, e portanto, ele deveria de fato morrer no final: “sem os quatro cadáveres não posso terminar a peça; ninguém deve sobreviver” (V 4, p. 293). Também nós gostaríamos que pudesse viver por mais algum tempo ainda um homem honrado e útil, que está morrendo de uma doença crônica. A família chora e esconjura o médico, que não pode deter sua morte; e assim como aquele não pôde se opor a uma fatalidade da natureza, tampouco nós podemos reger uma notória fatalidade da arte. É uma falsa condescendência para com as pessoas despertar nelas sensações que desejam ter, e não aquelas que devem ter (V 9, p. 309).

Wilhelm é severo, inflexível e moralista em seu ofício. Serlo, por sua vez, retruca que o dinheiro exige a mercadoria que lhe aprouver. Wilhelm diz que isso é válido só até certo ponto, pois: um grande público merece que o respeitem, que não o tratem como criança, a quem se quer tomar o dinheiro. Tratemos de guiá-lo aos poucos, com o auxílio do que é bom, rumo ao sentimento e ao gosto pelo bom, e desta forma ele despenderá seu dinheiro com duplo prazer, porque sua inteligência, e até mesmo sua razão, nada terão para reprová-lo com essa despesa. Podemos adulá-lo como a uma criança querida, adulá-lo para torná-lo melhor, para ilustrá-lo no futuro, e não como a um homem rico e distinto, para perpetuar um erro que nos é vantajoso (V 9, p. 309) 86.

Serlo aprova. Wilhelm não tem um pensamento imediatista e interesseiro, tão

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O respeito de Wilhelm pelo público contrapõe-se ao interesse de Serlo. Vê-se em Wilhelm a opinião do próprio Goethe sobre o assunto. Béranger (1780-1857, cancionista e poeta parisiense muito popular em sua época e apreciado até hoje), diz Goethe, elogiosamente: “é um homem cuja apresentação [Darstellung] e cujo interior é algo valoroso. Nele se encontra o conteúdo de uma personalidade significativa. Béranger é uma natureza felizmente dotada, firmemente fundada em si mesma, puramente desenvolvida a partir de si mesma e completamente em harmonia consigo mesma. Ele nunca perguntou: O que está na moda? O que causa efeito? O que agrada? E: O que fazem os outros?, para imitá-los. Ele agiu sempre apenas a partir do núcleo de sua própria natureza, sem se preocupar com o que este ou aquele partido esperava” (Conversas com Eckermann, 14.3.1830, p. 629).

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comum no meio teatral para com o público. Visando fins exclusivamente humanistas de melhoramento e esclarecimento da sociedade, Wilhelm prevê que é mais sábio (inclusive financeiramente) fazer seu ofício da forma como ele deve ser feito do que fazê-lo visando agradar terceiros. Desde a primeira conversa com um representante da Torre 87, é evidenciado como deficiência o fato de Wilhelm estar mais atento ao conteúdo, ao tema, sem atrelá-lo à forma, ambas indissolúveis na obra de arte. No “Salão do Passado”, no último livro, Wilhelm apercebe-se desse fato88: – Que é isto – exclamou -, que, independente de toda significação, isento de toda simpatia que nos inspiram acontecimentos e destinos humanos, tem o poder de agir sobre mim de modo tão forte e ao mesmo tempo tão aprazível? Fala-me pelo conjunto, fala-me por todos os elementos, sem que eu possa compreender aquele, sem que eu possa dedicar-me particularmente a estes. Que magia pressinto nestas superfícies, nestas linhas, nestas alturas e amplitudes, nestas massas e cores! Que é isto, que torna tão encantadoras estas figuras, mesmo quando contempladas superficialmente como simples adornos? Sim, sinto que se poderia permanecer aqui, descansar, abarcar tudo com os olhos, descobrir-se feliz e sentir e pensar algo totalmente distinto do que se tem diante do olhar (VIII 5, p. 527). Essa é uma atmosfera que Wilhelm sempre esteve propenso a captar89. – Quanta vida – exclamou ele – neste Salão do Passado! Poder-se-ia muito bem chamá-lo Salão do Presente e do Futuro. Assim foi tudo, e assim tudo será! Nada é efêmero, salvo aquele que goza e contempla. Este quadro aqui, da mãe estreitando o filho contra o peito, sobreviverá a muitas gerações de venturosas

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“Esses sentimentos estão certamente muito distantes das considerações que costuma levar em conta um amante das artes ao apreciar as obras dos grandes mestres; mas é bem provável que, se o gabinete ainda estivesse em poder de sua família, aos poucos se lhe revelasse o sentido daquelas obras, e o senhor acabaria por ver nelas algo mais que a si mesmo e sua inclinação” (I 17, p.64). 88 “Era um mundo, era um céu que rodeava naquele lugar o espectador, e além dos pensamentos que cada uma daquelas imagens plásticas suscitava, além dos sentimentos [Empfindung] que inspirava, parecia estar presente ainda outra coisa pela qual o homem inteiro se sentia assaltado. Também Wilhelm o sentiu, sem poder dar-se conta disso” (VIII 5, p. 528). 89 O narrador diz que ali “a arte e a vida suprimiam toda lembrança de morte e sepulcro /.../ Todo esse esplendor e ornamento apresentavam-se dentro das puras proporções arquitetônicas, e assim qualquer um que ali entrava parecia elevar-se por sobre si mesmo ao aprender pela primeira vez, por meio da arte harmoniosa [zusammentreffend], o que é e o que pode ser o homem (VIII 5, p. 526). Ora, não foi isso, “o que é e o que pode ser o homem”, que Wilhelm sempre vislumbrou na arte, ainda que de modo vago? “Todos os presságios em relação à humanidade e a seu destino, que me acompanhavam desde pequeno, sem mesmo adverti-los, encontro-os realizados e desenvolvidos nas peças de Shakespeare. Temos a impressão de que ele nos decifrou todos os enigmas, sem que possamos entretanto dizer: aqui está a chave que os explica” (III 11, p.185-186).

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mães. Depois de séculos, talvez, um pai venha deleitar-se com esse homem de barba, que põe de lado sua seriedade para brincar com o filho. Através dos tempos a noiva continuará pudicamente sentada e, em meio a tácitos desejos, ainda terá necessidade de que a consolem e a encorajem, enquanto o noivo espera impaciente nos umbrais a permissão para entrar (VIII 5, p. 526-527).

Wilhelm continua atendo-se ao conteúdo, pois é ele, propriamente, que transmite a vida dos homens90. Os quadros concentram-se tematicamente em individualidades. Desde a representação de um indivíduo e seu sentimento íntimo até os indivíduos determinando as relações sociais mais abrangentes. O tempo, no Salão do Passado, torna-se palpável por meio de obras que retratam situações e relações humanas, fazendo com que a arte apareça em seu significado autêntico, universal e transtemporal, ainda que sempre historicamente determinada e delimitada. Tal como nos túmulos dos faraós, em que a colheita e a guerra eram pintadas para compor a representação do caminho que deveria ser percorrerrido para finalmente alcançar Osíris, estão aqueles quadros, não, desta vez, para conduzir à morte, mas para lembrar da vida. Os quadros citados por Wilhelm são de cenas pertencentes à esfera privada, familiar, demonstrando o lugar que elas ocupam na representação burguesa da vida.

O poeta: individualidade autoativa [Wilhelm] O que inquieta os homens, senão a impossibilidade de unirem suas idéias às coisas?

O poeta não sofre dessa inquietação: a relação dele com seu ofício é de total integração. O poeta não “trabalha” como poeta e no tempo restante dedica-se a outras

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Como aludimos anteriormente, Schiller comenta que a ele lhe parece ainda muito “o velho Wilhelm”. Para Schings, no entanto, somente no Salão do Passado Wilhelm passa a não mais apreender a arte de modo meramente subjetivo, sentimental, do velho diletantismo (Schings, p. 76), ele descobre por si mesmo, com a “engenhosidade ingênua que lhe é própria”, as determinações da Crítica da faculdade de julgar: a qualidade desprovida de interesse do julgamento do gosto estético. “As experiências estéticas fazem de Espinosa e Kant aliados”, o espinosismo estético e a crítica estética da faculdade de julgar (Schings, p. 77).

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atividades. O poeta é a poesia e a poesia é o poeta, integralmente. Por essa razão, Wilhelm vê na poesia a plenitude da atividade humana e no poeta o modelo de uma individualidade plena; e assim, ele concebe a individualidade plena ontologicamente sustentada pela autoatividade. Quando o amigo Werner censura Wilhelm por este queimar seus antigos escritos (ele tentava com isso apagar todas as memórias do passado, aquelas ligadas a Mariane e ao teatro), argumentando que não vê necessidade de Wilhelm ser tão radical, afinal, ele poderia dedicar-se à arte como um passatempo. Wilhelm retruca: – Como te enganas, caro amigo, ao crer que uma obra, cuja primeira concepção deve abarcar toda a alma, pode ser criada em horas intermitentes e parcimoniosas! Não, o poeta deve pertencer totalmente a si mesmo, deve subsistir totalmente nos temas que ama. Ele, a quem o céu dotou internamente do mais precioso dom, que guarda em seu peito um tesouro que está sempre a se propagar, deve viver também com seus tesouros, sem ser incomodado pelo exterior, na felicidade serena que uma pessoa rica tenta em vão criar a sua volta com seus bens acumulados. Repara como os homens correm atrás da sorte e do prazer! Seus desejos, seus esforços, seu dinheiro, a isso perseguem sem descanso, e em nome de quê? Em nome daquilo que a natureza concede ao poeta, do gozo do mundo, do compartilhar de seus próprios sentimentos com os outros, da comunhão harmoniosa com muitas coisas freqüentemente inconciliáveis. O que inquieta os homens, senão a impossibilidade de unirem suas idéias às coisas, o prazer que se lhes escapa das mãos, e o que se deseja chega tarde demais, e tudo que conseguem e obtêm não produz no coração o efeito que o desejo nos faz pressentir à distância. Como um deus, por assim dizer, o destino tem colocado o poeta acima de todas essas coisas /.../. Ele simpatiza com a tristeza e a alegria de cada destino humano. Enquanto o homem do mundo arrasta seus dias, consumido pela melancolia de uma grande perda, ou vai ao encontro de seu destino com desenfreada alegria, a alma sensível do poeta avança como o sol que caminha da noite para o dia, e com ligeiras transições afina sua harpa com a alegria e a dor. Nascida no fundo de seu coração, cresce a bela flor da sabedoria e, enquanto os outros sonham acordados, atormentados por monstruosas representações de todos os seus sentidos, ele vive desperto o sonho da vida, e o que ocorre de mais insólito é ao mesmo tempo para ele passado e futuro. E assim o poeta é ao mesmo tempo mestre, profeta, amigo dos deuses e dos homens. Como queres então que ele se rebaixe a um miserável ofício? (II 2, p. 80-81)

Indignado contra a concepção de Werner, o herói defende três pontos fundamentais: primeiro, o poeta deve exercer sua atividade inteiramente, ela não pode ser mutilada; segundo, o poeta não pode separar-se de sua atividade por quaisquer premências exteriores; 98

terceiro, a satisfação da atividade está em sua efetivação mesma e em seu correspondente conteúdo humano, não está em algo que extrapola sua natureza, como o dinheiro. A união entre as “ideias” e as “coisas” é a forma abstrata que assume para Wilhelm a representação da propriedade da autoatividade pelo indivíduo ativo e, ao mesmo tempo, a possibilidade real e efetiva de sua concretização, para que ela não seja apenas subjetiva e nem fracionada. Wilhelm volta a refletir dessa maneira no início do livro VII, momento em que sua trajetória encaminha-se para o fim depois de sofrer um redirecionamento após o teatro ter se provado praticamente impossível: “e o que pode comover-nos senão a tácita esperança de que a tendência inata de nosso coração não ficará sem objeto?” (VII 1, p. 415). Nessa exaltação do poeta, Wilhelm deixa de lado o incômodo vindo do “exterior”; o poeta deve subsistir alegre e completo – entendido como o indivíduo pleno porque integralmente unido à sua atividade, o poeta é absolutizado e separado dos outros homens. A relação abstraída entre o poeta e os demais homens é indício de que Wilhelm percebe uma oposição realmente existente entre a atividade individual e a possibilidade social de seu exercício. Se por um lado o herói aspira pelo objeto que dará corpo à sua subjetividade (em outras palavras, aspira pela autoatividade), por outro, quando aplica essa ideia ao poeta, nem em pensamento ele pode concebê-los unidos. Wilhelm não expõe o problema dessa maneira, ele idealiza o poeta91, coloca-o acima e além das relações humanas, de modo que a arte poética não as reflete propriamente, em vez disso, é o artista quem compartilha “seus próprios sentimentos com os outros”. Ainda asssim, a superioridade do poeta tem de ser fundamentada pela universalidade de sua atividade: “o dom de comunicar aos homens belos sentimentos e imagens magníficas, adaptando a cada objeto palavras e melodias suaves, sempre encantou o mundo e era para os eleitos um rico legado” (II 2, p. 81). Encantar o mundo é um efeito decorrente de um

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Na concepção da supremacia da arte sobre todas as outras atividades, Wilhelm expressa de modo incipiente a teoria do idealismo alemão. No seu Sistema do Idealismo Transcendental, de 1800, Schelling levará a cabo a tarefa inacabada de Kant, e transparecendo a influência dos românticos Novalis, Tieck e dos irmãos Schlegel, eleva inauditamente a arte ao patamar filosófico, a ponto de fazer da filosofia do espírito uma filosofia estética (cf. Frank, M., Videira, p.105). A. Schlegel, em sua Teoria da Arte, diz que ela é responsável por reunificar as “aspirações divididas do espírito humano” (Id., p. 95). (Notamos que Schelling também sofreu forte influência de Espinosa em sua formação, refletida na problemática das representações.)

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movimento que acontece do interior (do indivíduo) para o exterior, e isto é parte essencial da beleza que Wilhelm vê na arte. Tal concepção se deve também à tendência, admitida pelo próprio herói, de não reconhecer nos meandros da vida social aquilo que se passa em seu íntimo. Após o passeio de barco, em que executaram todos a sugestão do jogo de improviso dada por Philine, Wilhelm conversa com o desconhecido que viera a bordo (outro secreto representante da Torre). O homem comenta sobre a vantagem de certos exercícios de improviso entre os atores e até mesmo para grupos de amigos, dizendo que esta “é a melhor maneira de arrancar os homens de si mesmos e trazê-los de volta por um desvio” (II 9, p. 114-115)92, que exercícios assim viriam “em socorro de uma feliz disposição”, tornando-os capazes de rivalizar com os escritores. Surpreso, o herói pergunta: – Ora – replicou Wilhelm –, uma disposição [Naturell93] feliz, na qualidade de princípio e fim, não haveria de conduzir a tão elevado objetivo não só um ator, mas qualquer artista, ou mesmo qualquer ser humano? (II 9, p. 114-115)

Da mesma maneira que Wilhelm crê que o destino guia todos para seu melhor, sem que o indivíduo se esforce para tanto, para ele uma feliz disposição individual é suficiente – ou deveria ser – para que qualquer homem atinja o objetivo elevado de encontrar-se consigo mesmo. A Wilhelm falta a noção de desdobramento da individualidade. Esse modo de pensar de nosso herói confere um valor supremo à individualidade em detrimento das circunstâncias. Wilhelm entende por “disposição” o núcleo da individualidade, aquilo que move o indivíduo numa direção determinada, é portanto um cerne que só se manifesta ativamente, seja no artista ou em qualquer indivíduo. Na concepção do herói, esse núcleo é

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Notamos que o narrador comenta os papéis escolhidos para serem representados por Philine (tiroleza), o velho ranzinza (oficial reformado), Laertes (mestre de armas), o desconhecido (um pároco rural) e assim por diante. Nada é falado, no entanto, sobre qual papel Wilhelm teria escolhido. Do que se depreende que a individualidade do herói deve permanecer envolta em mistério, bastante de acordo com a indeterminação que sua plasticidade lhe confere. 93 A expressão aqui é glückliches Naturell, a tradução que sugerimos é: feliz disposição. O termo Naturell pode significar: “erste und ursprüngliche Einrichtung der Vorstellungs- und Begehrungskräfte eines Menschen. Ein gutes Naturell haben, seinem Gemüthe, ingleichen seinen Vorstellungskräften noch gut geartet seyn” (Adelung); “n. aus lat. naturale, franz. naturel, a inata peculiaridade espiritual, a inclinação natural e a índole de um homem” (Grimm); O Duden oferece os sinônimos: tipo, caráter, característica, característico, natureza, personalidade, temperamento, predisposição, essência, individualidade etc.

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externalizado necessariamente, e por isso ele é tão confiante no seu bom destino (I 17) 94. O desconhecido discorda, é preciso proporcionar ao indivíduo condições para seu desdobramento, mais precisamente, ele precisa ser precocemente educado95. Wilhelm insiste na ideia do gênio, questionando se ele não seria capaz de “curar sozinho as feridas que ele próprio se infligiu” – mostrando considerar que até mesmo os descaminhos oriundos de uma educação mal dirigida seriam de responsabilidade do indivíduo. Já bem adiante, no Livro IV, o herói irá estender-se sobre a peculiaridade da atividade artística. Muitos atores reclamavam que seus talentos não eram reconhecidos, mesmo quando mais se esforçavam, apenas os preferidos caiam nas graças dos senhores, indignava-os tal critério completamente arbitrário da ordem da preferência subjetiva, e não do mérito individual. Wilhelm, que fora justamente um dos artistas agraciados pelos condes, contesta os colegas dizendo que se passa com a arte o que mesmo que com o amor: Como pode o homem do mundo conservar, em meio à vida dispersa que leva, o fervor [Innigkeit] em que deve viver um artista, se pensa produzir algo perfeito, e que não há de ser alheio nem sequer àquele que pretenda mostrar um interesse tal pela obra, assim como o deseja e espera o artista? Creiam-me, meus amigos, ocorre com os talentos o mesmo que com a virtude: deve-se amá-los por si mesmos ou abdicar [aufgeben] inteiramente deles. E, no entanto, só haveremos de reconhecer e recompensar tanto um como outro quando, à maneira de um mistério perigoso, pudermos exercê-los em segredo (IV 2, p. 210).

Wilhelm retorna ao que ele considera ser o traço distintivo do artista: viver entregue

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Compare-se essa ideia de Wilhelm à de Goethe, expressa na última carta que escreveu em sua vida: “Quanto mais cedo torna-se perceptível ao homem que há um ofício, que há uma arte que o leva para a regrada ascensão de suas disposições [Anlage] naturais, mais feliz ele é; o que ele também recebe de fora não prejudica em nada sua individualidade inata. O melhor gênio é aquele que aceita tudo em si, que a tudo sabe dedicar-se sem que isso macule minimamente a determinação fundamental própria daquilo que se chama caráter, pelo contrário, assim eleva-a ainda mais e capacita-a completamente segundo a possibilidade” (Goethe a Wilhelm von Humboldt, 17 de março de 1832). 95 Ao comentar o primeiro diálogo de Wilhelm com um representante da Torre (I 17), Kemper ressalta na fala deste o aspecto do tornar-se: a essência do ser individual está desde sempre pressuposta como disponível, porém não em forma desenvolvida, mas como potencial de desenvolvimento, o que corresponde à ideia de enteléquia.

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num peculiar estado caloroso ausente na vida de um homem “do mundo”. Além disso, o artista, que deve viver à parte dedicando-se à criação de sua obra, não deve pensar em retribuição ou gratidão. Os talentos individuais (Wilhelm generaliza, tornando suas observações muito mais abrangentes) devem “ser amados por si mesmos”, concretizados sem que se conte com o reconhecimento social (e material), sem que se almeje uma finalidade cuja realização condicione o amor pelo próprio talento. Por isso, Wilhelm acredita que exercer a arte em segredo é uma prova não apenas de amor, mas também de autenticidade de atos e inclinações. A renúncia ao talento/inclinação é um tema que retorna (a primeira vez em que ele aparece é na decisão de Wilhelm de queimar seus escritos dizendo que eles deveriam ser perfeitos ou não deveriam existir) agora com um novo matiz: os talentos devem ser simplesmente amados por si mesmos ou então não devem ser levados adiante. Portanto, é um ato de persistência conservar-se firme na realização ativa da própria inclinação.

Hamlet: o dilema entre a autossuficiência e a necessidade das circunstâncias Existe uma relação entre certas concepções estéticas de Wilhelm e sua concepção de individualidade, precisamente no que concerne à ação e à trajetória de um herói. Por exemplo: Deveria conceber-se – atalhou Wilhelm – uma peça improvisada não como as que se compõem sem preparação prévia, mas sim como aquela em que seriam fornecidos, em linhas gerais, o argumento, a ação e a divisão de cenas, ficando a critério dos atores a maneira de representá-la (II 9, p. 115).

Wilhelm está conversando com o desconhecido, que lhe dá plena razão, com a ressalva de que os atores tem de estar em condição de representar tal peça. Com essa opinião Wilhelm alinha-se à concepção defendida pela Torre para o âmbito da vida real, da forma expressa no encontro em I 17, em que o desconhecido fala do controle do indivíduo sobre a própria vida, diminuindo a margem de ação do acaso e não contando com um 102

destino teleologicamente fixado, como acredita o herói. Assim, Wilhelm manifesta opiniões contrárias sobre a ação individual na vida e na arte (com suas ideias sobre gênio e destino): na vida Wilhelm vê-se passivo como um herói romanesco em que a conjunção dos acasos até a culminância num destino ocorrerão de acordo com seus sentimentos; na arte, ele reconhece a necessidade dos atores serem agentes e precipitarem um destino ainda que pré-fixado. Essa opinião, por sua vez, é da mesma natureza daquela que é exposta pelo narrador em V 7 ao julgar as diferenças entre romance e drama96. (A Torre, por seu turno, tenta transformar Wilhelm num herói dramático, ainda que só seja capaz de conduzi-lo tão somente porque ele próprio caracteriza-se como herói romanesco.) Na longa exposição de Wilhelm sobre o caráter de Hamlet (IV 3, p. 213-215) ele defende que o ator deve conhecer a peça, para isso, deve ser “capaz de penetrar no espírito e nas intenções do autor”. Quanto mais estudava o papel de Hamlet, mais achava que “ora os caracteres, ora a expressão” não estavam de acordo. Foi então que ele se propôs a tentar outro caminho: observar o caráter do herói antes dos acontecimentos terríveis que se seguiram, de modo a compreender a continuidade daquele caráter e a especificidade que assume após o assassinato de seu pai – fato que desencadeia a ação de Hamlet. Wilhelm sentiu a necessidade de recuperar o passado, a história do príncipe. Ele conta que sua experiência recente (de estudo do papel de Hamlet, no castelo) fizera-o ver o “equívoco em julgar uma peça a partir de um papel sem relacioná-la com o conjunto”. Seu erro foi não conceber Hamlet no conjunto das circunstâncias, e por mais que tentasse repará-lo enquanto estudava para tornar-se um com seu herói, “quanto mais avançava, mais difícil se

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“No romance devem ser preferencialmente apresentados os sentimentos e fatos; no drama, caracteres e ações. O romance deve evoluir lentamente, e os sentimentos do protagonista, seja da maneira que for, devem retardar o avanço do conjunto até seu desenvolvimento. O drama deve ter pressa, e o caráter do protagonista acelerar-se rumo ao final e não ser senão coibido. É necessário que o herói do romance seja passivo ou, pelo menos, não seja ativo em alto grau; do herói dramático se exige eficácia e ação”. Referindo-se a Hamlet: “O herói, disseram, só tem, na verdade, sentimentos, e é por isso que a peça ganha, em termos de extensão, alguma coisa do romance; mas, uma vez que o destino traçou seu plano, uma vez que o ponto de partida da peça é uma ação terrível, e o herói é sempre impelido para frente, rumo a uma ação terrível, a peça resulta portanto trágica no sentido extremo, e não padece de nenhum outro desenvolvimento senão o trágico” (V 7, p. 303).

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me afigurava representar o conjunto, e me pareceu por fim quase impossível formar uma visão geral” (IV 3, p. 214). Quando torna-se o encarregado pela preparação da peça de Shakespeare na companhia de Serlo, ele impõe uma condição: representar Hamlet sem cortes. Serlo, por sua vez, era seletivo demais. Queria cortar. Wilhelm acusa-o de leviandade e fica a ponto de desesperar-se. Serlo pede que Wilhelm reflita sobre uma possível adaptação. Wilhelm passa alguns dias sozinho, retorna com olhar alegre e põe-se a explicar que ele distinguiu na peça duas vertentes: uma que se refere "às íntimas relações das personagens e dos acontecimentos, aos poderosos efeitos derivados dos caracteres e atos dos protagonistas" (V 4, p. 291), esta vertente não pode ser alterada em nada. A outra vertente, que tampouco pode ser simplesmente omitida, refere-se "às relações exteriores das personagens, pelas quais elas são levadas de um lugar a outro ou ligadas dessa ou daquela maneira por certos acontecimentos fortuitos" (V4, p. 292). Esta segunda vertente, prossegue ele, pode dar amplitude a um romance, mas prejudica a unidade da peça em que o herói não tem um plano. Serlo anima-se. Wilhelm opera aqui um corte precisamente daquilo que ele despreza na vida: as relações sociais e históricas mais amplas que são o pano de fundo e as determinantes mais gerais do comportamento individual. Assim, Wilhelm assevera que os “motivos exteriores, particulares, dispersivos e dispersadores” em Hamlet serão substituídos por um só: as agitações na Noruega. Porém, na análise de Wilhelm, Hamlet é alguém que nascera para ser príncipe, a individualidade do príncipe é a personificação do Estado: ela é indissociável de sua posição na sociedade e é isso que determinará seu destino. Wilhelm descreve os sentimentos elevados do herói shakespeariano oriundos de seu nobre nascimento: A noção de direito e de dignidade principesca, o sentimento do bem e da decência desenvolveram-se nele concomitantemente à consciência da nobreza de sua estirpe. Era um príncipe, um príncipe nato, e não desejava outra coisa senão reinar, para que o homem bom pudesse ser bom, sem nenhum entrave. De aparência agradável, cortês por natureza e bondoso de coração, deveria ser o exemplo da juventude e tornar-se a alegria do mundo. Sem qualquer paixão dominante, seu amor por Ofélia era um plácido pressentimento de doces necessidades; seu zelo pelos exercícios cavalheirescos não era absolutamente original; esse desejo, ao contrário, era aguçado e sustentado por elogios que se

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atribuíam a terceiros; de sentimentos puros, conhecia homens íntegros e sabia avaliar o repouso que desfruta uma alma sincera no peito aberto de um amigo. Havia aprendido, até certo ponto, a reconhecer e apreciar o bom e o belo nas artes e nas ciências; era-lhe repugnante a falta de gosto e, pudesse o ódio germinar em sua alma terna, só o seria na medida necessária para desprezar os falsos e manipuláveis cortesãos e jogar ironicamente com eles. Sereno em sua natureza, simples em sua conduta, nem acomodado na ociosidade nem ávido demais por ocupações. Parecia buscar também na corte um certo vaguear acadêmico. Possuía mais a jovialidade do humor que a do coração; era um bom companheiro, condescendente, modesto, aplicado, capaz de perdoar e esquecer uma ofensa, mas jamais unir-se a alguém que transgredisse os limites do justo, do bom e do decente (IV 3, p. 214-215).

A descrição de Hamlet que nos oferece Wilhelm é em muitos elementos sua própria descrição97, e assim podemos observá-la sob o ângulo daqueles valores morais que no entender de nosso herói são os mais elevados e estariam presentes num nobre de alta posição: dignidade, cortesia, bondade, sentimentos puros, o reconhecimento, “até certo ponto”, do bom e do belo nas artes e nas ciências, enfim, “bom companheiro, condescendente, modesto, aplicado, capaz de perdoar e esquecer uma ofensa, mas jamais unir-se a alguém que transgredisse os limites do justo, do bom e do decente”. Mas Wilhelm não se julga parecido com Hamlet e tem certa razão para pensar assim: não há em Hamlet nenhuma paixão dominante – exatamente isso define o caráter de um soberano. Ironicamente, porém, a despeito do nascimento e da posição social, e excetuada a paixão de Wilhelm, os dois heróis têm o mesmo caráter, denotando que sob esse aspecto Wilhelm é perfeitamente assimilável à classe superior. Wilhelm faz ainda outros comentários interessantes envolvendo o intercâmbio social98; mesmo que na prática considere-o por vezes como supérfluo, já que o herói percebe o móvel das relações sociais apenas na medida em que estão atrelados ao

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Como concordam diversos autores (v. Seitz, p. 132). Lembremos aqui a avaliação de Jarno de que Wilhelm não é um bom ator porque só sabe representar a si mesmo. 98 "Ambição e desejo de poder não são paixões que o animam; de bom grado aceitara ele ser o filho de um rei, mas agora é obrigado a tornar-se mais atento à distância que separa o rei de seus súditos" (IV 13, p. 239), ou quando Serlo propõe juntar dois personagens e Wilhelm replica que seria impossível juntar em um só pessoas tão diferentes que, além do mais, "representam sensivelmente algo na sociedade, são a própria sociedade, e Shakespeare foi modesto e sábio o bastante para colocar em cena apenas dois representantes dela" (V 5, p. 295).

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indivíduo, não visualizando-o em relações sociais que o ultrapassam (mas também o determinam). Mesmo que ele tente considerar a importância das circunstâncias, entendidas como o amplo quadro de relações sociais e históricas, por não conseguir perceber as mediações que ligam o indivíduo à sociedade ele acaba por excluir, sempre que possível, o pólo sociedade, que para ele é o pólo inapreensível. Ao final do livro V, Wilhelm está no caminho para a resolução de deixar para sempre o teatro, no futuro (Livros VII e VIII), esse seu “antigo estado” aparecerá como um vazio, e ele passará a lutar com a sensação de sua nulidade. 'Andam desarticulados os tempos; pobre de mim, que nasci para pô-los novamente no lugar'. Nessas palavras, creio eu, encontra-se a chave de toda a conduta de Hamlet, e parece-me claro o que Shakespeare pretendeu descrever: uma grande ação imposta a uma alma que não está à altura de tal ação. É neste sentido que encontro a peça cuidadosamente trabalhada. /.../ Um ser belo, puro, nobre, extremamente moral, mas sem a força física que faz os heróis, sucumbe sob um fardo que ele não consegue suportar nem tampouco rejeitar; todo dever lhe é sagrado, e este, pesado demais. Pedem-lhe o impossível; não o impossível em si, mas sim o que para ele é impossível. Por mais que se envolva, se vire, se inquiete, avance ou recue, está sempre obrigado a recordar-se e sempre se recorda, e finalmente chega quase a perder de vista seu objetivo, sem nunca mais recuperar sua alegria (IV 13, p. 240-241, grifo meu).

A confiança na individualidade e a confusão interior alternam-se com o distanciamento das relações exteriores e o reconhecimento da necessidade imperativa das mesmas. A Wilhelm também cabe uma grande ação cujo peso não é demasiado apenas para ele mesmo, mas para qualquer indivíduo “moderno”, portador, em sua individualidade, dos anseios de realização daquelas possibilidades humanas que são imanentes à sua época, mas cuja consumação, se houver, está para além de seu tempo. Se compreendermos o trecho por metalinguística, Goethe mostra que é uma missão impossível a que Wilhelm impõe para si. E nosso protagonista, com essa análise de Hamlet, mostra que é capaz de compreender os limites do heroísmo.

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A crítica ao comércio e à propriedade A primeira referência ao assunto surge na conversa com a mãe (I 2), na qual Wilhelm é novamente informado de que o pai anda desgostoso com suas frequentes idas ao teatro, que revida: “por Deus, mãe! Acaso é inútil tudo aquilo que não nos põe de pronto dinheiro nos bolsos?” (I 2, p.11). Wilhelm não vê sentido na utilização que o pai faz dos “seus lucros com comércio”, a saber, constantemente redecorando a casa – a esse respeito, ele indaga à mãe: “não poderíamos contentar-nos com menos?”, dizendo de passagem que não aprecia de maneira alguma o resultado visual desses embelezamentos (I 2, p. 12). O questionamento da finalidade do dinheiro, associado ao fato de Wilhelm não lhe atribuir prioridade; o sentido para a beleza e para as artes que é deformado no pai, como demonstra seu gosto por desenhos de fajutas cestinhas, listras, flores, arabescos e “as figuras que se repetem milhares de vezes” (Id.), são temas que não chegam a ser desdobrados (por meio da explicação teórica, ou mesmo pela continuidade, no enredo, de uma dessas veredas). Mas o terreno do qual parte Wilhelm está desenhado: o status da arte entre os burgueses é baixo, o teatro não é uma atividade rentável, por conseguinte, é visto como prazer, entretenimento ou passatempo que deve ser limitado e não deve ser incentivado, é desencadeador de paixões inúteis e até perigosas; o olhar para fruir a beleza da união entre forma e conteúdo e a atividade que a produz não são privilegiados na sociedade burguesa. Wilhelm descreve a caracterização da alegoria do comércio que fizera aos 14 anos. Não permitindo que a mãe levasse adiante sua crítica ao teatro de marionetes dado por ela mesma na infância do filho, ele diz: Para mim, aquela foi contudo uma época especial; meu espírito orientava-se de vez para o teatro, e eu não encontrava alegria maior que ler, escrever e representar peças de teatro. Prosseguia os estudos com meus professores; haviam-me destinado o comércio e pensavam em me colocar no balcão da casa comercial de nosso vizinho; mas, justamente por aquela época, afastava-se meu espírito com impetuosidade de tudo aquilo que eu considerava como uma ocupação inferior. Queria dedicar ao palco toda a minha atividade, nele encontrar toda a minha felicidade e satisfação. Ainda me recordo de um poema, que deve estar entre meus papéis, no qual a Musa da tragédia e outra figura de mulher, em que eu personificara o Comércio, disputavam renitentemente minha valiosa pessoa. Com que inquietação retratei a velha matrona, com a roca na

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cintura, as chaves a seu lado, os óculos sobre o nariz, sempre atarefada, sempre inquieta, ranzinza e laboriosa, niquenta e intolerável! Quão miseravelmente descrevi a condição daquele que tem de se curvar à vergasta alheia e ganhar com o suor do rosto sua servil jornada! (I 8, p. 30)

A aversão de Wilhelm ao comércio é formulada dirigindo-se ao tipo de ocupação que ele oferece e contra a espécie de personalidade que o comércio conforma, “atarefada, inquieta, ranzinza, laboriosa, niquenta, intolerável”, culminando com a situação deplorável de ter de servi-lo para simplesmente continuar reproduzindo uma “servil jornada”. Wilhelm reconhece na condição do burguês o jugo (curvar-se), a violência (vergasta) e a alienação (alheia), esta última como uma finalidade exterior que o domina. Ao deplorar o fato de alguém ter de se curvar à vergasta alheia, ele demonstra reconhecer e almejar ser o proprietário de sua própria atividade. Ora, Wilhelm identifica essa situação não no trabalhador (por razões históricas da Alemanha, evidentemente), mas no dono do capital – a vergasta alheia é então o dinheiro e suas finalidades que estão para além do homem. Somente no amor pela atriz Mariane ele vê um caminho para “arrancá-lo àquela arrastada e inerte vida burguesa, da qual há muito desejara se libertar” (I 9, p. 32). A peça sobre as alegorias das musas da poesia e do comércio foi intitulada de O Jovem na Encruzilhada, e havia sido um dos únicos trabalhos que Wilhelm, “bem ou mal”, terminara. A reação de Werner denota que o escrito tocou-lhe fundo, pois o amigo de Wilhelm lembrava-se vivamente dele. Segundo sua opinião, ainda que o texto pudesse conter “bons versos”, o argumento não tinha nenhum mérito, e além de causar dissabor a Werner, gerou irritação ao pai de Wilhelm. Segue-se então a exaltação do comércio por Werner, o anátema de Wilhelm que glorifica e defende a envergadura do espírito do verdadeiro comerciante, que não encontraria paralelo; a ordem na qual os negócios são conduzidos “permite-nos abarcar a todo momento o conjunto, sem que tenhamos de nos embaraçar com as minúcias”, permitindo ainda a livre atuação de “muitas faculdades do espírito”. Ao que Wilhelm responde rindo: “começas pela forma, como se ela fosse o fundo; mas, em geral, com todas essas somas e todos esses balanços, as pessoas se esquecem do verdadeiro resultado da vida” (I 11, p. 35). Werner replica dizendo que aí está o erro de Wilhelm, pois forma e fundo são a mesma coisa e que “ordem e clareza acentuam o gosto 108

pela economia e pelo lucro”; de modo que “nada pode ser mais agradável a um bom gestor que extrair diariamente o total de sua crescente fortuna” (I 11, p. 35). Mas é o homem, e não a propriedade, que deve importar ao homem, como Wilhelm expressa claramente respondendo ao comentário de Philine. Ela diz: Não há nada mais insuportável que ouvir alguém enumerando para outros o prazer que desfruta. Quando faz bom tempo, saímos a passear, do mesmo modo que dançamos quando ouvimos música. Mas quem há de pensar por um momento sequer na música ou no bom tempo? Interessa-nos quem dança, não o violino, e faz muito bem para um par de olhos azuis mirar-se num belo par de olhos negros. Que significam, comparadas com isso, fontes e nascentes, ou velhas tíbias apodrecidas? /.../ Tem razão – respondeu ele, um pouco embaraçado. O homem é o mais interessante para o homem99, e talvez deva ser a única coisa que lhe interesse. Tudo mais que nos rodeia é ou mero elemento no qual vivemos, ou instrumento do qual nos servimos. Quanto mais nos detemos, quanto mais observamos e nos interessamos, tanto mais frágil será o sentimento de nosso próprio valor e o sentimento da sociedade. Os homens que conferem grande valor a jardins, edifícios, trajes, adornos ou qualquer outra propriedade, são menos sociáveis e gentis; perdem de vista os homens, que só muito poucos conseguem contentar e reunir (II 4, p. 97).

Wilhelm concorda com Philine e vai além, extraindo do raciocínio dela uma crítica social. Incitado por ela (que precipitadamente chega a contrapor o homem à natureza), Wilhelm, igualmente, não compreende o mundo objetivo como mundo criado pelo homem, uma vez que a relação com a natureza é mediada pelas relações humanas, é um ato humano. Mas seu pensamento não penetra nessas mediações, na sequência da afirmação humanista “O homem é o mais interessante para o homem, e talvez deva ser a única coisa que lhe interesse”; segue-se a constatação de que “Tudo mais que nos rodeia é ou mero elemento no qual vivemos, ou instrumento do qual nos servimos”, as “coisas” não são compreendidas como relações sociais produzidas. Elas são dadas. Assim, vê-se que o humanismo de Philine e Wilhelm reduz-se à relação imediata e elementar homem-homem. Por outro lado, nesse radicalismo que os cega para tudo que é produzido pelo homem e para o homem está

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Breuninger (1986) relaciona essa passagem ao diálogo de Fédro com Sócrates (de Platão, trecho 228-230). De acordo com o autor, essa frase de Wilhelm contém a ideia de natureza na forma de locus amoenus, porém no sentido goethiano: desvalorização de uma glorificação da natureza em favor do interesse no homem. Sobre a mesma passagem, Trunz (2002) fala de uma reminiscência de Pope em Goethe.

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reversamente a crítica ao modo de vida social: o que é produzido e fruído pelo homem não tem a finalidade primária de servir ao homem, mas à propriedade.

Idealismo burguês: Nulidade das classes, realização individual pela autoatividade e conexão social por meio de representações ideais e sentimentais Quando Melina diz que pensa em procurar uma colocação burguesa, Wilhelm assombra-se, definitivamente não estava preparado para essa atitude, “havia imaginado que o ator, tão logo se visse em liberdade ao lado de sua jovem mulher, correria de volta para o teatro. /.../ Nem por um momento tivera qualquer dúvida a respeito” (I 12, p. 48). Nosso herói responde então deste modo a Melina: – É uma estranha decisão, com a qual não posso concordar, pois, sem uma razão especial, não é recomendável alterar o modo de vida que se adotou; ademais, não conheço nenhuma outra profissão que ofereça tantas e tão atraentes perspectivas quanto a de um ator. – Vê-se que o senhor nunca foi um – replicou o outro. Ao que respondeu Wilhelm: – Meu senhor, é raro ver um homem satisfeito com a situação em que se encontra! Vivem sempre a desejar para si próprios a situação do próximo, e este, por sua vez, tem também a intenção de abandonar a sua (I 12, p.48-49).

Para além da discutível opinião de que o modo de vida que se adotou deve ser mantido, o que já nos evidencia certo conservadorismo apoiado em razões abstratas e em última instância moralistas, o que se manifesta aqui é a tentativa de convencer Melina pela via meramente retórica e ao mesmo tempo minimizar (para si mesmo inclusive) o peso daquelas assertivas tão duras, mas sinceras, contra o teatro. Mas Wilhelm é também sincero, ele admira o ator e almeja tornar-se um. O herói tem a convicção de que o sentimento de que “lateja nos homens uma centelha melhor” é que fortalece o ânimo para desempenhar uma atividade “que exige gênio e coragem” – a profissão de ator. Wilhelm tenta abrir os olhos de Melina, clamar ao seu espírito adormecido para que desperte, pois a atividade de ator não é como outra qualquer no mundo burguês: 110

Vês o público como ele mesmo se imagina ser nos dias de trabalho. Pois, para ti, tanto faz estar sentado atrás de uma escrivaninha, debruçado sobre livros quadriculados, registrando contribuições ou usurpando as diferenças./.../ Fazes bem em aspirar aos limites de uma ocupação vulgar, pois como poderias desempenhar com acerto alguma outra que exige gênio e coragem? Transfere teu modo de pensar a um soldado, a um estadista ou a um eclesiástico e, com justíssima razão, também eles poderão queixar-se de sua situação indigente (I 14, p. 50).

O herói é categórico em afirmar que a causa da ventura e da desventura de um indivíduo não está na sua condição social e profissional, mas, primeiramente, nele mesmo. Oh, infeliz Melina! Não está em tua profissão [Stand]100, mas em ti mesmo a desgraça que não consegues dominar! Qual o homem no mundo que, sem vocação [Beruf]101 interior, dedica-se a um ofício, uma arte ou qualquer meio de vida, não achará como tu insuportável sua condição [Zustand]102? (I 14, p.49).

Wilhelm admite a possibilidade de que um homem nasça sem inclinações para tal ou qual atividade. Se antes ele havia colocado o ofício poético acima de qualquer outro, agora ele relativiza sua percepção sobre as diferentes atividades, dizendo que basta que um homem tenha nascido para determinado emprego e nele trabalhe, nele encontrará invariavelmente sua satisfação – o que independe, portanto, do conteúdo da atividade. Se independe, porém, Wilhelm não deveria condenar de antemão nenhuma atividade, inclusive aquela cujo principal objetivo é o dinheiro, algo por natureza destituído de qualquer conteúdo. Essa contradição surge porque o herói exclui a determinação social que recai sobre as direções que podem assumir as atividades individuais; sobre as possibilidades concretas de realização da atividade que estão disponíveis aos indivíduos singularmente considerados; o que determina, por sua vez, as inclinações dos indivíduos. Wilhelm interpreta a realidade como ela se lhe apresenta: é dado ao indivíduo particular e depende exclusivamente dele realizar ou não o ofício que medra em seu íntimo. Essa concepção vem acompanhada da exortação ao esforço individual em perseverar frente à adversidade, o que acaba por aumentar a responsabilidade – e por extensão, a culpa e a frustração – do

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Stand pode significar status, posição, condição social, classe profissional, classe social. A palavra vocação corresponde aos termos Berufung ou Begabung. O termo Beruf traduz-se por profissão, ofício. 102 Zustand é sinônimo de estado, situação, colocação, classe social [Stand], status, condições, pressupostos. 101

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indivíduo por seu fracasso no embate com as circunstâncias. Aquele que nasceu com um talento para algum talento [mit einem Talente zu einem Talente], nele encontra sua mais bela existência! Não existe coisa alguma nesta terra sem dificuldade! Só o impulso interior, o amor e o desejo nos ajudam a superar os obstáculos, a abrir caminhos e a elevar-nos acima do estreito círculo onde outros miseravelmente se debatem! (I 14, p.50)

As armas do herói são o “impulso interior, o amor e o desejo” – elementos que só podem vicejar no homem singularmente considerado. A força de vontade para se fazer prevalecer – baseada nos mais belos sentimentos e intenções – é elencada como o principal requisito e a principal virtude para aquele que tem um talento. Assim, Wilhelm repreende Melina: Não sentes esse todo a arder coeso, que só o espírito descobre, concebe e realiza; não sentes que lateja nos homens uma centelha melhor que, não encontrando alento nem ânimo, é soterrada pelas cinzas das necessidades cotidianas e da indiferença, e, ainda assim, por mais tarde que seja, nunca é abafada. Não sentes em tua alma força alguma para avivá-la, nem em teu coração a riqueza necessária para alimentar aquilo que despertaste. A fome te impele, os transtornos te são adversos e não consegues compreender que em qualquer condição social espreitam esses inimigos, que só a alegria e a serenidade podem vencer (I 14, p. 50)103.

Cabe ao espírito104 individual sentir o que há de maior e melhor na realidade

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Vê-se nessa passagem Wilhelm guiado pelos princípios da filosofia de Espinosa: o amor e a alegria; mas dela faz um uso ingênuo. O emissário da Torre tem uma perspectiva bastante semelhante quanto à desconsideração da determinação de classe sobre os indivíduos: “Cada um tem a felicidade em suas mãos, assim como o artista tem a matéria bruta, com a qual ele há de modelar uma figura” (I 17, p. 65). A diferença entre ele e Wilhelm é que o herói, nesse momento inicial, desconsidera, além das classes, também a importância da educação sobre os indivíduos, especialmente aqueles que, como Wilhelm, sentem pulsar uma forte inclinação para uma atividade, outro pensamento que Wilhelm expressará diferentemente com o passar do tempo (III 2, p. 151). Assim, o emissário diz em I 17: “/.../ ocorre com essa arte [do ator] como com todas: só a capacidade nos é inata; faz necessário, pois, aprendê-la e exercitá-la, cuidadosamente”; mais adiante, referindo-se ao ator, diz que faltam a ele muitas coisas: “quando a educação não faz dele o que ele deveria ser, e, para ser mais preciso, uma educação precoce, porque talvez seja pior para aquele a quem se atribui gênio que a um outro que só possui aptidões corriqueiras” (II 9, p. 115). 104 A palavra espírito [Geist] é uma das que possuem amplo espectro de significados no léxico goethiano (cf. Goethe Wörterbuch, Geist, pp. 1716-1738). As raízes histórico-filosóficas do termo recuam até a Antiguidade, localizando-se tanto na área mitológico-religiosa (spiritus) quanto no pensamento filosófico (intellectus). Entre os muitos matizes que assume no pensamento de Goethe, o sentido de espírito na passagem acima parece relacionar-se àquele de uma confiança elementar em forças mais elevadas e suprapessoais que guiam e orientam o indivíduo (posteriormente Goethe nomeará essas forças de Dämon); estas, contudo, aparecem como órgão de uma percepção mais apurada, de uma intuição ou de um olhar visionário. Nesse sentido, é o espírito individual que “descobre, concebe e realiza” o todo que “arde coeso”. Goethe tenta pensar e formular

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imediata e aparente. Neste nível vicejam os obstáculos ordinários que estão presentes na vida de todo homem, porém, a esfera elevada para a qual nos transportam os sentimentos sublimes é insuprimível, e são eles os capazes de vencer as dificuldades de toda ordem. Wilhelm está falando consigo mesmo sobre Melina, e sua situação de classe é claramente mais favorável que a do ator desempregado em busca de qualquer emprego burguês. Melina é o primeiro personagem a aparecer na história a manifestar claramente, em sua trajetória pregressa e em seu caráter, o mundo burguês despido dos belos ideais de liberdade e sucesso individual. Da perspectiva de sua classe, Wilhelm julga as decisões de Melina, oferece saídas subjetivistas e sublima como pretexto qualquer justificativa fundada em classe social. Numa carta escrita a Mariane pouco depois, o herói mostra-se igualmente confiante e convicto quanto à possibilidade e à maneira de vencer as dificuldades da vida prática: Jamais duvidei de que é possível triunfar no mundo quando se é sério, e me sinto cheio de coragem para conseguir uma remuneração suficiente para dois, ou mesmo para mais. O mundo é ingrato, dizem muitas pessoas, mas ainda não deparei com tal ingratidão, quando se sabe fazer algo por ele da maneira correta (I 16, p.60).

Posteriormente, Wilhelm é novamente confrontado com o argumento (que é para os demais membros da trupe um fato) da necessidade da venda do próprio trabalho para sobreviver. Quando um dos atores que foi ao castelo do conde brada que todos morrerão de fome até que sejam descobertos por um crítico, Wilhelm contesta superficialmente dizendo que isso “não tão depressa” aconteceria, pois ele tem “visto que enquanto alguém vive e se move, sempre encontra algum alimento, mesmo que não seja o mais abundante” (IV 2, p. 211). Mudando de assunto, pergunta se já ocorreu a alguém “fazer alguma coisa para nos exercitar e continuar de algum modo lutando” (IV 2, p. 211). No primeiro instante, Wilhelm elogia o esforço necessário àquele que deseja firmarse no especial ofício de ator e recrimina Melina, “pois, para ti, tanto faz estar sentado atrás de uma escrivaninha, debruçado sobre livros quadriculados, registrando contribuições ou

o espírito como unidade, uma tentativa moderna em contraposição à ideia ainda muito vigente no século XVIII de uma transição do espírito apreendido pessoalmente para o conceito abstrato.

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usurpando as diferenças” (I 14, p. 50). No desenrolar de seu raciocínio, Wilhelm pondera melhor e assevera: “transfere teu modo de pensar a um soldado, a um estadista ou a um eclesiástico e, com justíssima razão, também eles poderão queixar-se de sua situação indigente”. O modo de pensar, de sentir, a postura frente às situações, estas são as causas da ventura e da desventura dos indivíduos em suas profissões. Apesar de sua condição de classe frente a do despossuído Melina estar na base do otimismo de Wilhelm, especialmente no que tange ao fato de nosso herói não precisar trabalhar para viver ou ganhar seu dinheiro, essa maneira de pensar é explicitada sem cinismo, na verdade, é com a maior honestidade que ele acredita ser tudo isso profundamente verdadeiro para sua própria vida. A contradição da concepção de Wilhelm da “nulidade das classes” (como se expressou Schiller a respeito dos casamentos desiguais ao final do romance) advém da convivência de duas tendências contrárias: a ênfase revolucionária e típica da burguesia ascendente na atividade livre, mas que, para ser realizada pelo homem, portanto, na individualidade, dependeria unicamente de um sentimento interior, de um ânimo específico, de um elemento exclusivamente pessoal e não social. Donde deriva subjacente a oposição existente entre os interesses do indivíduo e da sociedade, oposição que ele reconheceu na própria vida (O jovem na encruzilhada), mas que no momento subsequente de sua trajetória, no teatro, não foi reconhecida pelo herói. Da mesma forma que para ele os indivíduos preponderam sobre seu meio, ele concebe abstratamente a sociedade como constituída desses mesmos indivíduos ativos – isto é, realizados em sua atividade. Diz Wilhelm: Sim, e não há também homens que, privados de tal forma do sentimento da vida, chegam a considerar toda a vida e a própria natureza dos mortais um nada, uma existência atormentada, semelhante ao pó? Se se movessem vivamente em tua alma as imagens de homens laboriosos [wirkend], se aquecesse teu peito um fogo compassivo, se se propagasse por todo teu ser esta atmosfera [Stimmung]105 que emana do mais profundo, se fosse agradável ouvir os sons de tua garganta,

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O termo Stimmung possui uma acepção ampla, que vai desde humor, clima, atmosfera, constituição até concordância, afinação; mas não é adequada a associação com Neigung (inclinação, como optou a tradução brasileira), que pode ser traduzida por inclinação, palavra que deve ser exatamente precisada pois é parte central do pensamento goethiano. No trecho acima a palavra Stimmung significa uma atmosfera que abrange os indivíduos, e não uma inclinação ou tendência interior.

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as palavras de teus lábios, se te sentisses forte o bastante em ti mesmo ... certamente procurarias lugar e ocasião de poder sentir-te também nos outros! (I 14, p. 50)

As concepções do herói têm seus problemas realçados exatamente na maneira dele conceber a atividade como meio primordial da realização da individualidade. Parece-lhe claro que o conteúdo do sentimento da vida (que o indivíduo conscientemente opta por ter ou não ter) é a vida social feita de homens atuantes [wirkend]106. Essa imagem leva ao sentimento de irmanação dos homens e à consequente conexão da individualidade com o “todo a arder coeso”, pré-requisito fundamental para que o indivíduo sinta-se internamente forte e persevere em seu querer para, enfim, ser bem sucedido na atividade pela qual tem inclinação. Contudo, o equívoco de Wilhelm consiste em considerar unilateralmente responsável o indivíduo abstraído de qualquer contexto (no que a máxima da Torre de que se deve dominar as circunstâncias não se distancia muito): o problema de Melina é sua falta de conexão sentimental com a essência de todos os ofícios (a atividade), em especial o teatral, e, de modo mais amplo, a ausência de uma percepção do mundo que passa pela sentimentalidade. Para o protagonista, “em qualquer situação social espreitam esses inimigos”; em nenhum momento ele problematiza se tal “sentimento da vida” (ou necessidade interior) tem condições de existência em todas as classes, supondo apenas que basta se deixar envolver profundamente pela atmosfera que as imagens de homens ativos suscitam para ter a força de realizar os desejos mais difíceis e superar até mesmo as necessidades da fome. Assim justificado perante si mesmo, Wilhelm serenou, dormiu “com um sentimento íntimo de bem-estar”, pois sentia em si mesmo tudo aquilo que faltava a Melina. Colocou esses sentimentos no lugar das “coisas indignas que teria de realizar na manhã seguinte” (I 14, p. 50): interceder por Melina junto ao pai da moça para que

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Como veremos, a ideia de atividade é bastante forte e frequente entre os membros da Sociedade da Torre nos dois últimos capítulos do livro. Cabe observar, contudo, que o mundo “pequeno-burguês” de Wilhelm (sua família e seus amigos) confere também bastante valor à ideia de atividade. Assim, ainda que Wilhelm mostre-se, a princípio, contra ambos os núcleos (pois no que concerne a ele, as duas partes querem direcionar sua atividade), ele se movimenta na mesma atmosfera de pensamento.

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aceitasse ambos e concedesse uma ocupação burguesa a Melina. Em nova oportunidade, as ideias de Wilhelm sobre a sociedade são reiteradas: partem todas da perspectiva da equalização das classes pelos indivíduos que as compõem. No moinho com Philine e Laertes, Wilhelm depara com mineiros que entoavam belas canções e que representaram uma curta cena sobre uma contenda entre o mineiro e o lavrador, pois ambos queriam trabalhar a mesma terra. O segundo, não entendendo aquela estranha terminologia do primeiro, arrancava risos da plateia, que se sentia assim mais inteligente; o mineiro convence o segundo de que sua atividade era mais lucrativa para ambos e com isso ele se sai melhor. Finda a cena, Wilhelm faz uma observação sobre a utilidade social do teatro, um efeito que o pequeno espetáculo que acabara de ver despertara. Vejamos como ele se expressa sobre a cena da contenda entre o mineiro e o lavrador: Nesse breve diálogo – disse Wilhelm à mesa –, temos o exemplo mais vivo do quanto poderia ser útil o teatro para todas os estratos [Stand], e quanto proveito poderia tirar o próprio estado, se levasse à cena todas as ações, ocupações e realizações dos homens, apresentadas em seu aspecto bom e louvável, e partindo do ponto de vista de que cabe ao estado mesmo honrá-las e protegê-las. Atualmente só representamos o lado ridículo do ser humano; o comediógrafo passa a ser uma espécie de avaliador malicioso, sempre a lançar seu olhar vigilante sobre os defeitos de seus concidadãos, e que parece deleitar-se quando pode atribuir-lhes algum. Não seria um trabalho agradável e digno de um estadista controlar a influência natural e recíproca de todas as condições sociais e guiar em seu trabalho um poeta que tivesse o humor necessário? Estou convencido de que, por essa via, se poderiam engendrar muitas obras amenas, ao mesmo tempo úteis e divertidas (II 4, p.92).

Wilhelm coloca em primeiro plano, como já havia feito antes, as “ações, ocupações e realizações dos homens”, e somente elas (por meio da representação) poderiam ter um efeito arrebatador sobre o povo. É uma maneira abstrata de pensar as relações entre as classes, na verdade, é um modo de ignorar propriamente as relações, igualando todas as classes pelos aspectos louváveis presentes nas realizações de seus indivíduos. O controle do estado e sua influência benéfica no direcionamento espiritual das classes correspondem, novamente, à perspectiva burguesa de Wilhelm, em que o estado é expressão política do domínio material e ideal exercido sobre a sociedade civil. Extremamente ingênua é a ideia de que o estado pode “controlar a influência natural e recíproca de todas as condições 116

sociais”, posto que ela parte do pressuposto, em geral dominante na consciência do herói, de que o pensamento determina o ser, em outras palavras, que não são as relações entre os indivíduos que geram as concepções, mas que estas determinam as relações, e se é assim, podem ser controladas por uma instância superior (a qual, diga-se de passagem, é para Wilhelm neutra perante às diferentes classes). Dentro desse mesmo espectro temático, Wilhelm demonstra, pouco tempo depois, ter alguma consciência a respeito da divisão social do trabalho e da consequente fruição dos produtos do trabalho. Serlo diz que não vê a hora da apresentação de Hamlet acontecer, Philine também, já que não aguenta mais tantas conversas em torno da peça que o público esquecerá em dois tempos, como as outras. Permita-me empregar sua comparação a meu favor, bela criança – replicou Wilhelm. – Pense no que a natureza e a arte, o comércio, a indústria e as ocupações têm de produzir para que se torne possível a realização de um banquete. Quantos anos o cervo deve passar na floresta, o peixe no rio ou mar, até tornarem-se dignos de ser servidos em nossas mesas, e quanta lide na cozinha tem a dona de casa ou a cozinheira. Com que indiferença engolimos durante a sobremesa a dedicação do vinhateiro, do marinheiro, do adegueiro mais longínquos, como se assim tivesse de ser. E seriam estes motivos bastantes para que todos os homens deixassem de trabalhar, produzir e fazer, para que todo chefe de família não cuidasse de reunir e conservar tudo isso, pois, afinal, o prazer não é senão passageiro? Mas nenhum prazer é passageiro, porque é duradoura a impressão que ele nos deixa, e o que se faz com aplicação e esforço transmite inclusive ao espectador uma força secreta, da qual é impossível saber até onde chegam seus efeitos (V 10, p. 311).

Aqui está diretamente em discussão um universo próprio à economia política: a produção e o consumo; e a divisão do trabalho, especialmente o estatuto do produto (material ou imaterial)107. Wilhelm aborda neste trecho desde a necessidade dos diferentes trabalhos, o tempo para a maturação dos produtos para que se tornem prontos para o consumo, até a equiparação de atividades que historicamente foram separadas como pertencentes ou à esfera material ou à esfera espiritual. Assim, o ator e o vinhateiro são

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Este último ponto é parte da discussão tradicional da economia política clássica; e a divisão do trabalho é um tema especialmente de Adam Smith. Provavelmente, Wilhelm concordaria com a colocação do cunhado de Goethe, Johnann Georg Schlosser (1739-1799), de que “a classe dos artistas, artesãos e comerciantes não é infrutífera; ela produz mercadorias imaginárias para necessidades imaginárias” (Schlosser, 1777, citado em Lottmann, p. 122).

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ambos indivíduos que produzem algo mediante sua autoatividade, e neste fato reside sua igualdade. Que os produtos daí derivados sejam efêmeros e se esgotem no consumo não enfraquece nem anula sua utilidade e necessidade para a sociedade, que aliás é contínua em suas demandas. Que Wilhelm não expresse a contradição entre quem produz e quem possui o produzido (como o faz Narcisse) decorre de sua cegueira específica para tudo que é “negativo” e de sua tendência a retornar ao que é essencial e positivo, o que o obriga a abstrair – neste caso, a louvabilidade das “atividades humanas” consideradas de modo amplo e geral, como produção social. Wilhelm insiste mais uma vez, portanto, na conexão ideal que o indivíduo tem de ter com os outros tanto na efetivação de seu ofício quanto na fruição dos produtos do trabalho alheio. Mesmo quando Wilhelm trata de perspectivas mais amplas, portanto, o faz do ponto de vista individual, realçando o abstração de suas colocações e o apelo à interioridade como formas necessárias para a concepção da integração dos diferentes indivíduos em sociedade.

A consciência de si As primeiras lembranças de Wilhelm remontam a sua relação íntima com os objetos artísticos. É dessa forma que conhecemos o herói nos capítulos iniciais do romance. Pela arte ele percebe as relações humanas e os homens singularmente considerados. As lembranças movidas na narrativa de sua vida explicitam como a subjetividade do narrador, isto é, Wilhelm, foi conformada de acordo com sua sensibilidade. A subjetividade, como a elaboração mais ou menos consciente dos conteúdos sensivelmente recebidos, e a memória enquanto elaboração que a consciência faz do vivido e que é, ao mesmo tempo, um momento importante de manifestação da subjetividade, são formadas na relação de Wilhelm com a arte. Em seu caso, lembrança e narrativa de vida são ainda as formas de identificação e afirmação da inclinação fundamental que o herói buscará efetivar na sua vida. A existência da subjetividade só pode se dar no trânsito com a objetividade. O 118

romance nos dá a conhecer a subjetividade do herói por meio da memória de Wilhelm, pela narrativa que o herói faz de sua própria vida (à mãe, à Mariane) com a intenção de relembrar os momentos marcantes. Sendo Wilhelm um jovem por volta de seus vinte anos, essa narrativa do seu passado concentra-se em sua infância e adolescência (e por isso é natural que sua mãe recupere com ele parte dessas lembranças). A narrativa de Wilhelm sobre sua vida pregressa só ocorre no começo do romance, quando o herói conta de si para sua amada Mariane e quando relembra sua história com sua mãe; em seguida, à medida que o romance avança, não o vemos falar de sua história com ninguém, fato ainda mais significativo se levarmos em conta que diferentes personagens narram sua história para Wilhelm108. Assim, o herói não se mostra disposto ou capaz de fazer a retrospectiva analítica ampla de sua individualidade em sua própria história, ainda que o faça de aspectos específicos109 – a consciência mantém-se, portanto, objetivada na análise da experiência. Por outro lado, as narrativas de vida das outras pessoas são parte importante, senão essencial, do aprendizado de Wilhelm, quando, na metade do romance, elas começam a aparecer na história (com Serlo, Aurelie, Therese e a bela alma – e por esta ficamos sabendo da infância e inclinação de Natalie e de Lothario, da condessa e de Friedrich – e, por fim, das histórias trágicas do harpista e de Mignon 110) é justamente o momento de inflexão da trajetória do herói, quando ele é progressivamente levado a reorientar sua atividade. Denotando uma sólida autoconfiança, a Wilhelm não restava dúvida, em sua autoavaliação como ator na rememoração do teatro infantil, não só de que fora “destinado” ao teatro como tentaria tornar-se, nada menos, do que o “criador de um futuro teatro

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Isso permite manter o mistério em torno da assimilação que Wilhelm faz da própria experiência e, portanto, deixa em aberto os possíveis significados que a mesma pode adquirir de acordo com a perspectiva que se a observa. 109 Particularmente explícito quando o herói faz a retrospectiva das mulheres que amou (VIII 7, p. 551), mas também a respeito do resultado de sua trajetória teatral. 110 Wilhelm passa tanto tempo com Philine e Laertes, mas nada sabemos da origem, do passado deles. De Werner e sua inclinação sabemos um pouco pela convivência com Wilhelm no começo da adolescência com o teatro, e do casal Melina sabemos o essencial, que se resume ao trabalho no teatro porque não havia outra alternativa.

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nacional” (I 9, pp. 32-33). A maior parte dos autores que compõem a longa tradição interpretativa do romance considera que Wilhelm padecia de uma falsa percepção de si mesmo bem como da realidade que o cercava – essa é, aliás, em linhas gerais, a posição do próprio Goethe. Se, por um lado, o alheamento de Wilhelm de seu entorno realmente acontecia em alguma medida, como confessa o próprio herói, por outro lado, a percepção de si mesmo, de sua história, de seus sentimentos e ideias eram-lhe suficientemente claros. Seu maior desafio é levar adiante a atividade teatral, objetivo claramente enunciado no primeiro livro do romance e o qual ele tentará efetivar até o quinto livro. A decidida inclinação que Wilhelm sente pela poesia, especificada na poesia dramática que se concretiza no teatro, é considerada por ele como uma paixão e um talento: Decerto que senti muito a venda do gabinete, e ainda hoje, em meus anos mais maduros, ele me faz falta; mas quando penso que assim teve de acontecer para despertar em mim uma paixão, um talento, que exerceriam em minha vida uma influência muito maior /.../ (I 17, p. 64).

O ator é visto como alguém que tem “um porte agradável, uma voz harmoniosa, um coração sensível!” (I 14, p. 48), é dono de uma alma terna: “por que, sendo dono de uma alma tão delicada, não se tornou um ator?” (V 6, p. 298). Referindo-se ao ponto (aquele que soprava as falas aos atores em cena), que de tão sensível chegava a chorar nas partes poéticas, Wilhelm considerava-o muito apropriado para representar o personagem Pirro (em Hamlet), pois “o homem que declama a morte de Príamo com tanto sentimento causa uma profunda impressão sobre o próprio príncipe; ele aguça a consciência do jovem indeciso” (V 6, p. 299). Essas opiniões de Wilhelm sobre o ator estendem-se, nessa medida, para ele mesmo e seus objetivos nesta arte. Tempos depois da dolorosa separação de Mariane, Wilhelm discorreu longamente sobre a nobreza do poeta com Werner. O herói assume que tais imagens ainda povoam sua mente e preenchem seu íntimo: “quando perscruto meu coração, nele ainda estão cravados todos os meus antigos desejos, mais firmes do que nunca” (II 2, p. 82), mas seus projetos estavam todos ancorados em Mariane. Não se trata somente de inclinação que se manifesta instintiva e involuntariamente na individualidade do herói, mas de um objetivo conscientemente proposto a si mesmo. 120

Wilhelm não dissocia do pensamento a vontade e o querer111. – Cá estou – dizia a si mesmo –, mais uma vez, naquela encruzilhada entre as duas mulheres que me apareceram em minha juventude. Uma parece não tão aflita como então, nem tampouco tão magnífica a outra. Sentes uma espécie de vocação íntima de seguir tanto uma quanto outra, e de ambos os lados são bastante fortes os apelos exteriores; parece-te impossível decidir-te; queres que um sobrepeso exterior qualquer venha determinar tua escolha e, no entanto, quando te perscrutas verdadeiramente, vês que são só as circunstâncias exteriores as que te infundem uma inclinação aos negócios, ao lucro e ao patrimônio, ao passo que tua necessidade mais íntima engendra e nutre o desejo de desenvolver e ampliar sempre mais as disposições que para o bom e o belo podem estar adormecidas dentro de ti, sejam elas físicas ou espirituais (IV 19, p. 268-269).

A estranheza que nos causa uma confissão de que Wilhelm sente uma “vocação íntima” para arte e para os negócios é logo desfeita, pois ele esclarece que uma está ligada à sua necessidade interior, a outra, às premências exteriores. No entanto, Wilhelm intui que o que ele opõe a si como exterior está cravado na sua individualidade tanto quanto suas disposições íntimas. Ele vê dissociadas de sua individualidade as circunstâncias externas, mas sonhava em ser o criador de um futuro teatro nacional – ora, essa aspiração só pode advir do intercâmbio de Wilhelm com seu tempo, em que essa necessidade se fazia sentir. Ele sabe, no fundo, que nasceu para ser algo predeterminado: burguês. Ele percebe que ambas são determinadas por fontes distintas: uma pelos negócios, pelo lucro e pelo patrimônio; a outra, pelas disposições para o bom e para o belo. Sem saber como se decidir, dado que não pode eximir-se do mundo, ele chega a desejar que algo intervenha, algo como um deus ex machina, e decida seu destino. De certo modo, por vias intrincadas, é o que acontece.

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Esse fato essencial da consciência do protagonista remonta à filosofia de Espinosa (Tratado teológicopolítico). Sendo a ação definida como afetos ou sentimentos, ideias ou pensamentos, atitudes ou comportamentos dos quais somos a causa ou os agentes, somos “atos singulares de querer”, de forma que vontade e querer são o ato de pensar sobre uma “imagem segundo as determinações do desejo”, e assim, “querer e pensar são a mesma coisa”. “A alma é, pois, atividade pensante que se realiza como imaginação, querer e reflexão”, a unidade entre os atos do entendimento e os atos da vontade é dada pela alma como atividade pensante (CHAUÍ, p. 62).

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A simbiose aristocrático-burguesa A exaltação ambígua da nobreza Fazia suas considerações sobre o conde, a condessa e o barão, sobre a segurança, o desembaraço e a elegância na maneira como se comportavam, e, ao se ver sozinho, exclamou enlevado: – Três vezes felizes aqueles que, desde o nascimento, colocam-se acima das camadas inferiores da humanidade; que não precisam passar, nem mesmo como hóspede em trânsito, por situações que atormentam em grande parte a vida de tantos homens de bem! De tão alto ponto de vista, seu olhar há de ser geral e preciso, e fácil cada passo de sua vida! Desde o nascimento são, por assim dizer, colocados a bordo de um navio para desfrutar de um vento favorável durante a travessia, que todos haveremos de empreender, e para esperar que cessem os ventos contrários; quanto aos outros, esfalfam-se em nadar, tirando pouco proveito do vento favorável, e soçobram na borrasca, consumidos em todas as suas forças. Que comodidade, que facilidade proporciona uma fortuna herdada, e com que segurança floresce um comércio fundado sobre um bom capital, a ponto de não se ver obrigado a encerrar sua atividade a cada tentativa malograda! Quem pode conhecer melhor o valor e o desvalor das coisas terrenas senão aquele que, desde criança, esteve em condições de fruí-las, e quem pode dirigir mais cedo seu espírito rumo ao necessário, ao útil e ao verdadeiro senão aquele que deve compenetrar-se de tantos erros, numa idade em que ainda não lhe faltam forças para começar vida nova! Assim desejava nosso amigo sorte a todos aqueles que se encontram nas regiões superiores, e também àqueles que podem aproximar-se de um tal círculo e haurir essas fontes, felicitando seu bom gênio que se dispunha a fazê-lo subir esses degraus (III 2, p.151).

Se a Melina e aos outros atores Wilhelm roga pelo esforço individual, desprezando as dificuldades de toda ordem que se apresentam, inclusive as da fome, e passa ao largo do fato de que sua própria segurança não advém puramente de seu talento e disposição pessoais, mas está baseada em sua situação financeira favorável, isto é, de uma vantagem oriunda de sua condição de classe, o que por sua vez deriva da mera contingência do nascimento, sem nenhum fundamento pessoal; o herói vê claramente que o que o separa da aristocracia é justamente sua posição de classe, diferença que repousa exatamente na comparação de nascimento e patrimônio. Dessa perspectiva, Wilhelm torna-se capaz de compreender que muitos “homens de bem” “esfalfam-se em nadar” e “soçobram na borrasca, consumidos em todas as suas forças”. Wilhelm incita e encoraja Melina e os atores a buscarem dentro de si o sentimento 122

de vida que anima a alma, as “imagens de homens laboriosos”; e suas exortações são também para si próprio. No entanto, o herói encontra-se numa posição intermediária, pois se de um lado ele conhece o valor do trabalho, por outro lado seu pai tem um comércio sólido e um patrimônio estável. Wilhelm é ele mesmo um herdeiro da fortuna do pai – isto é, ele não precisou trabalhar para conquistá-la e fruí-la – e as condições em que fora criado proporcionaram-lhe uma formação ao menos razoável; tudo isso o distancia das condições na maior parte das vezes precárias em que os artistas forjavam-se e aproxima-o do grande círculo. Desse modo, o discurso laudatório da nobreza serve também para louvar a burguesia da qual Wilhelm faz parte, já que o próprio herói equipara a fortuna herdada a um comércio fundado sobre um bom capital; e este é mais um motivo que fundamenta o desejo de Wilhelm de se imiscuir, mediante a assimilação das belas maneiras, aos nobres. Outro aspecto importante do pensamento de Wilhelm mesclou-se nesse conjunto sem ter uma relação imediata com ele, trata-se do trecho: “e quem pode dirigir mais cedo seu espírito rumo ao necessário, ao útil e ao verdadeiro senão aquele que deve compenetrarse de tantos erros, numa idade em que ainda não lhe faltam forças para começar vida nova!”. O herói conjectura sobre uma trajetória individual e os erros de percurso, bem como sobre a possibilidade ou não de corrigir o rumo. Para ele, a depender da idade do errante, é possível uma reorientação da vida segundo o que é útil, necessário e verdadeiro112. Neste momento, Wilhelm ressalta a reavaliação do caminho por parte do indivíduo segundo valores (necessário, útil e verdadeiro) que só podem ser precisamente estimados se referenciados socialmente113, mostrando-se, portanto, bastante razoável para

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O narrador já havia expressado anteriormente os pensamentos de Wilhelm nesse sentido, quando ele teve de resignar-se e dedicar-se aos assuntos comerciais, após a perda de suas esperanças no teatro: “E assim, durante um certo tempo, Wilhelm seguiu vivendo laboriosamente, convencido de que o destino lhe havia preparado aquela dura prova para seu próprio bem. Alegrava-se por se ver advertido a tempo quanto ao caminho da vida, ainda que de forma assaz inclemente, enquanto outros expiavam mais tarde e mais arduamente os erros para os quais uma vaidade juvenil os havia encaminhado. Pois, em geral, o homem se recusa, tanto quanto pode, a despedir o néscio que traz dentro do peito, a reconhecer um erro capital e a confessar uma verdade que o leva ao desespero” (II 2, p. 78). 113 Compare-se com as palavras do emissário da Torre: “Só me anima o homem que sabe o que é útil a ele a aos outros” (I 17, 65). É uma polêmica da economia política se o que é mais útil para o indivíduo é necessariamente o mais útil para a sociedade – a economia política admite uma contradição radical entre os interesses de ambas as partes.

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aceitar determinado estado de coisas e para fazer o que se julga socialmente exigido que se faça. Wilhelm põe em confronto as alegorias114 da poesia e do comércio para que a primeira vença e o leve como prêmio, sai de casa e veladamente foge à predeterminação paterna, mas nada disso significa que o herói seja revoltoso contra o dinheiro, contra o capital, contra as grandes fortunas. A Wilhelm parece óbvio que apenas essas condições podem proporcionar a um indivíduo aquela serenidade interior que permite “conhecer melhor o valor e o desvalor das coisas terrenas”115. Visto por outro ângulo, poderia ser contraditório que o protagonista, cujo traço quixotesco confere-lhe gentileza, simpatia e preocupação em proteger os fracos, louve a situação das classes abastadas e deseje-lhes ainda mais sorte, em vez de revoltar-se contra a inumanidade de ver tantos “homens de bem” que, por terem tido a infelicidade de não pertencer àquelas classes, tiram “pouco proveito do vento favorável, e soçobram na borrasca, consumidos em todas as suas forças”. Assim, constatada a superioridade de classe, Wilhelm esforça-se por integrar-se à nobreza. Disseram-lhe que ele deveria elogiar Racine para o príncipe e ele teve essa oportunidade em uma das ocasiões em que a companhia era convidada a comer junto aos senhores. Aproveitando que o príncipe lhe perguntara se ele gostava do teatro francês, ele respondeu um vigoroso sim, e ligeiramente, sem deixar que o príncipe prosseguisse dirigindo-se a outra pessoa, expôs o seguinte pensamento: – Posso imaginar /.../ como as pessoas distintas e seletas devem estimar um poeta que descreve tão bem e com tanta exatidão as circunstâncias de suas mais altas condições. Corneille, se me permite dizer, tem apresentado grandes homens, e Racine, personagens distintas. Quando leio suas peças, posso sempre idear o poeta vivendo numa corte brilhante, tendo ante seus olhos um grande rei, relacionando-se com as melhores pessoas e penetrando nos segredos da humanidade que se ocultam por trás de preciosas tapeçarias. Quando estudo seu Britannicus, sua Bérénice, tenho realmente a impressão de estar na corte, de ser

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É significativo que as alegorias sejam femininas, dado a importância que elas têm na trajetória de Wilhelm. Contudo, é preciso distinguir o que é um motivo tomado à tradição (as personificações e o motivo da encruzilhada são gregos) do que é algo necessário e especificamente novo nesse empréstimo: a fácil interação de Wilhelm com as mulheres está intimamente ligada à sensibilidade do protagonista. 115 Note-se que os emissários da Torre (de I e II) não falaram sobre dinheiro, patrimônio ou classe, mas apenas sobre valores e educação.

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admitido no que há de grande e pequeno nas habitações desses deuses terrestres, e vejo, através dos olhos de um sensível francês, em seu tamanho natural, com todos seus defeitos e sofrimentos, reis que toda uma nação adora, e cortesãos invejados por milhares de pessoas. A anedota segundo a qual Racine morreu de tristeza por haver perdido a estima de Luís XIV, ao fazê-lo sentir seu descontentamento, é para mim a chave de todas as suas obras, e é impossível que um poeta de tão grande talento, cuja vida e morte dependem do olhar de um rei, não tenha escrito peças dignas do aplauso de um rei e de um príncipe (III 8, p. 174).

Não é do feitio do herói criticar deliberadamente quem quer que seja, mas no trecho acima, entremeado de adulações, evidencia-se um olhar atento que sabe censurar e enxergar insuficiências inclusive nos nobres que em mais de uma ocasião ele elogia. Ele tem como certa a existência do “que há de grande e pequeno nas habitações desses deuses terrestres”. Para o herói a arte humaniza ao mostrar “em seu tamanho natural, com todos seus defeitos e sofrimentos, reis que toda uma nação adora, e cortesãos invejados por milhares de pessoas”. Outra maneira de realizar essa aproximação entre os nobres e as pessoas comuns foi incluí-los entre os artistas, que é o que ocorre quando Wilhelm manifesta-se prontamente contra o poema feito para ridicularizar o barão. O herói diz que os alemães mereciam o desprezo das Musas, já que não sabemos apreciar os homens de posição que de algum modo se devotam à nossa literatura. Nascimento, condição social e fortuna não são contraditórios com o gênio e o bom gosto, e isso nos ensinam as nações estrangeiras, que entre seus melhores talentos contam um grande número de nobres. Se até o presente era tido como um milagre que na Alemanha um homem de berço nobre se dedicasse às ciências, e se até o presente poucos foram os nomes célebres que se tornaram mais célebres ainda por sua inclinação à arte e à ciência; se, ao contrário, muitos se destacaram da obscuridade e surgiram qual estrelas desconhecidas no horizonte, isso nem sempre será assim, e se não estou muito enganado, a primeira classe da nação está em via de servirse também de suas vantagens para conquistar no futuro a mais bela coroa das Musas. Daí porque nada me causa maior desagrado que ver não só o burguês zombando amiúde do nobre que sabe apreciar as Musas, mas também pessoas de posição, com um humor leviano e uma alegria insidiosa, com que jamais deveríamos concordar, procurando desviar seus semelhantes de um caminho em que a honra e a satisfação estão à espera de cada um (III 9, p.178).

Ele enaltece os nobres porque eles se dedicam às artes e à ciência – e repreende aqueles, dentre eles, que demonstram sentimentos vis contra essa iniciativa. O teatro é defendido como atividade edificante para a nobreza, e assim Wilhelm justifica e enaltece 125

não apenas sua presença entre os nobres como também seu ofício que, democrático, pode também elevá-lo em sua posição social, pois é “um caminho em que a honra e a satisfação estão à espera de cada um”. Primeiro, Wilhelm eleva sua classe social e sua profissão por meio de uma edificação da nobreza. Junto à trupe, porém, ele poderá falar abertamente das sérias limitações que a nobreza possui. Ainda que o herói o reprovasse, um dos entretenimentos preferidos da companhia era imitar zombeteiramente seus antigos benfeitores. “Wilhelm insurgia-se contra tanta ingratidão”, ao que eles respondiam que o tratamento que deles receberam “não fora dos melhores”. Wilhelm, que estava começando a conhecer na prática as mazelas dos atores, adequou sua fala aos ouvintes: – Quisera – disse Wilhelm a esse respeito – que não transparecessem em suas palavras nem inveja nem egoísmo e que considerassem tais pessoas e suas condições de seu verdadeiro ponto de vista. Estar ocupando um lugar elevado na sociedade humana, em face do próprio nascimento, já é um feito especial. Aquele a quem os bens herdados têm proporcionado uma existência perfeitamente fácil, aquele que desde pequeno se vê ricamente cercado, se assim posso dizer, de todas as coisas suplementares da humanidade, está em geral habituado a considerar esses bens como o primeiro e o maior, e a não distinguir com tanta clareza o valor da humanidade, que a natureza dotou de maneira tão bela. A atitude dos grandes para com os pequenos, e mesmo entre eles, é mensurada pelos privilégios [Vorzug] exteriores; estes permitem a cada um fazer valer não só seus méritos, mas também seu título, sua hierarquia, seus trajes e coches (IV 2, pp. 208-209). A essas palavras irrompeu a companhia em aplausos desmedidos. – Não os censurem por isso – exclamou Wilhelm –, antes compadeçam-se deles. Pois raramente têm eles um sentimento elevado dessa boa ventura que reconhecemos como a suprema, e que emana da riqueza interior da natureza [innern Reichtum der Natur]. Somente a nós, os pobres, que pouco ou nada possuímos, é concedido desfrutar em profusão a boa ventura da amizade. Não podemos enaltecer pela graça, nem promover com favores, nem agraciar com presentes aqueles a quem amamos. Não temos nada senão a nós mesmos. Devemos sacrificar todo este eu e, se há de haver algum valor, assegurar para sempre ao amigo este bem. Que prazer e que felicidade para quem dá e para quem recebe! A que estado venturoso nos transporta a fidelidade! Ela dá à efêmera vida humana uma certeza divina; ela constitui o principal capital de nossa riqueza. /.../ [Mignon o abraça] – Como é fácil para os grandes conquistar os espíritos! Como é fácil apropriar-se dos corações! Um comportamento afável, agradável, só em certo modo humano, produz maravilhas, e quantos meios não possuem eles para reter os espíritos uma vez conquistados! Para nós, tudo nos é mais raro, tudo se nos torna mais difícil. Quantos exemplos tocantes não há de fiéis criados que por seus senhores se

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sacrificaram! Com que beleza os vemos descritos em Shakespeare! casos, a lealdade é o esforço de uma alma nobre para igualar-se aos Sim, virtudes como essas fazem parte apenas das classes inferiores, podem delas prescindir, assentando-lhes muito bem. Sim, creio ser afirmar neste sentido que podem os grandes ter muito bem amigos, podem ser amigos (IV 2, pp.209-210).

Em tais grandes. que não possível mas não

As críticas de Wilhelm aos nobres é essencialmente a mesma que ele dirige a seu pai e a Werner: o demasiado valor que eles dão aos bens materiais; acrescentando-se a incapacidade de perceber os valores humanos como a amizade, a fidelidade, a lealdade. A capacidade de conquistar os “espíritos” e a maneira de portar-se dos nobres são elogios matizados pelo contraste que oferece a visão do esforço dos que não possuem títulos e privilégios “para igualar-se aos grandes”, esforço que Wilhelm defende neste momento como mais autêntico, mais humano e mais precioso que os adereços aristocráticos. Wilhelm dá provas de sua alma nobre quando, contradizendo seu honesto comportamento habitual, em prol de Lothario, afasta Lydie e desiste de Therese. Para o herói, seu humanismo elevao a alturas que estão para além da posição social da nobreza, de modo que está dada a possibilidade de sua inclusão – portanto, a inclusão de sua classe pela via do merecimento pessoal do próprio Wilhelm – nessa classe social tão favorável. Sem perdermos de vista esta grave insuficiência humanista que Wilhelm identificou na nobreza, avaliemos então o que ele diz na famosa carta escrita ao amigo Werner.

Classe social e possibilidade de formação [Ausbildung] individual: a carta de Wilhelm a Werner (V 3) Temos aqui, novamente, uma ampla explanação elogiosa à nobreza, na qual Wilhelm formula expressamente o que havia se tornado seu maior objetivo, seguido de uma fundamentação concernente à diferença entre o nobre e o burguês. Ele confessa que o diário de viagem fora escrito com ajuda de um amigo apenas para satisfazer o pai, que mesmo que ele próprio até conheça os assuntos lá tratados, não os compreende e nem quer se dedicar a eles. Logo nas primeiras linhas, Wilhelm menciona a tendência desmedida para adquirir 127

bens e fruí-los leviana e tacanhamente, “maneira de ser e de pensar” que o herói repudia em Werner. O dinheiro não é, ou não precisa ser, um fim em si mesmo, e nesse sentido, Wilhelm considera que o melhor uso do patrimônio é feito pelos nobres. Tua carta está tão bem escrita e tão sensata e prudentemente pensada que nada mais há para acrescentar. Deves, porém, perdoar-me se digo que é possível pensar, afirmar e fazer justamente o contrário, e ainda também ter razão. Tua maneira de ser e de pensar demonstram propensão para um patrimônio [Besitz] ilimitado e para uma espécie de prazer fácil e alegre de gozá-lo, e nem preciso dizer-te que não posso encontrar nisso algo que me atraia. /.../ De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de escórias? E de que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural, se comigo mesmo me desavim [uneins bin]? Para dizer-te em uma palavra: formar-me a mim mesmo, tal como sou [mich selbst, ganz wie ich da bin, auszubilden 116], tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a juventude [Jugend]117. Ainda conservo esses pensamentos [Gesinnung], com a diferença de que agora vislumbro com mais clareza os meios que me permitirão realizá-la. Tenho visto mais mundo que tu crês, e dele me tenho servido melhor que tu imaginas. Atente, portanto, àquilo que digo, ainda que não vá ao encontro de tuas opiniões. Fosse eu um nobre, e bem depressa estaria suprimida nossa desavença; mas como nada mais sou do que um burguês, devo seguir um caminho próprio, e espero que venhas a me compreender. Ignoro o que se passa nos países estrangeiros, mas sei que na Alemanha só a um nobre é possível uma certa formação [Ausbildung] geral, e pessoal118, se me permites dizer. Um burguês pode adquirir méritos e formar seu espírito para a mais elevada necessidade [und zur höchsten Not seinen Geist ausbilden], mas sua personalidade se perde,

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Os verbos bilden e ausbilden são em muitos sentidos sinônimos, inclusive nos sentidos fundamentais para nossa análise, com alguma simplificação e generalização, pode-se traduzi-los por formar. A opção do tradutor Nicolino Neto por instruir mostra-se também apropriada, nessa passagem, para a tradução de ausbilden, este verbo, porém, tem uma conotação de exercício e prática que no outro, bilden, não predomina. De todo modo, em outras passagens do texto o tradutor opta por traduzir Bildung por cultura, o que é conceitualmente impreciso, inclusive tendo em vista Goethe utilizar a palavra Kultur. Ainda que não seja possível nem correto separar completamente “exterior” e “interior” enquanto dimensões da individualidade, nesta carta Wilhelm enfatiza, como veremos adiante, a dimensão do desempenho exterior, não a de desdobramento interior – e bilden, em seu sentido mais completo, corresponde a uma formação integral da individualidade. Essa carta é a prova fundamental do que se convencionou chamar de Bildungsroman, ainda que os autores divirjam quanto ao peso que se deve dar a ela. Para Wundt (1913), por exemplo, a carta representa apenas uma etapa no processo de desenvolvimento de Wilhelm. 117 Nicolino Neto traduz frequentemente o termo Jugend por infância, o que traz problemas para a interpretação do texto. 118 “Als Grundtendenz seines Lebens bezeichnet er dort die 'Ausbildung' seiner 'Person'. Diesen Begriff versteht Goethe noch nicht im modernen verinnerlichten, sondern im alteuropäischen Sinne: 'persona” ist ursprünglich die Maske des Schauspielers, die Rolle, die er spielt. Im wirklichen Leben heißt “Person' sein demgemäß: sich nach außen hin sinnfällig darstellen, in der Gesellschaft 'Figur' machen.” (Dieter Borschmeyer).

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apresente-se ele como quiser. Enquanto para o nobre, que se relaciona com os mais distintos, é um dever conferir a si mesmo um porte [Anstand] distinto, e esse porte, já que a ele nunca estarão cerradas portas nem portões, transforma-se num porte espontâneo, pois deve pagar com sua figura [Figur], com sua pessoa, seja na corte ou no exército, de modo que tem ele razão em atribuir uma importância a elas e demonstrar que atribui alguma a elas. Uma certa graça majestosa nas coisas corriqueiras, uma espécie de ligeira graciosidade nas coisas sérias e importantes assentam-lhe bem, pois assim deixa ver que onde quer que esteja conserva seu equilíbrio. É uma pessoa pública, e quanto mais requintados seus gestos, mais sonora sua voz e mais comedida e discreta toda sua maneira de ser, mais perfeito ele é. Contanto que se mantenha sempre o mesmo diante de grandes e pequenos, diante de amigos e parentes, então não haverá nada nele para se criticar, nem se poderá desejar-lhe qualquer outra coisa. Que seja frio, mas compreensivo; dissimulado, mas inteligente. Se souber dominar-se exteriormente em qualquer momento de sua vida, ninguém haverá de lhe fazer outras exigências, e tudo o mais que traz em si e a seu redor – capacidade, talento, riqueza –, tudo isso não parecerá senão um acréscimo (V 3, pp. 286287).

Estamos no meio do romance. Essa passagem, que aparentemente é a formulação de um objetivo, na realidade é resultado da história pregressa de Wilhelm no castelo dos condes e sua justificativa para perseverar na atividade teatral. Ele fala de um desejo “obscuro” antigo: formar-se a si mesmo “tal como é”. Mas o que devemos entender por isso, ainda mais seguido da confissão de que este foi seu desejo desde a juventude? Essa é uma afirmação plausível somente se considerarmos que Wilhelm manifesta desde cedo a vontade de ser ator e exercitar-se nessa arte até a perfeição. No entanto, a instrução a que Wilhelm refere-se agora tem outra função: ele quer adquirir o porte, a figura de um nobre, e é nesse sentido, de aparência, que deve ser entendida a palavra personalidade nessa carta. É claro em toda a passagem que se inicia em “Enquanto para o nobre, que se relaciona com os mais distintos, é um dever conferir a si mesmo um porte [Anstand] distinto \...\” e vai até o final, que a personalidade é compreendida como uma camada externa e superficial da individualidade, cuja aparência determinará socialmente o indivíduo. Essa superficialidade é que é almejada neste momento por Wilhelm. Ele considera-se alguém com espírito, mas se queixa de que sua personalidade se perdeu, pois ele é um burguês; ele quer adquirir a personalidade de um nobre. Para tanto, ele terá de “seguir um caminho próprio”. Nessa específica aspiração de formação e no modo como a pensa (enfatizando a 129

figura, a exterioridade) e a efetiva (“servindo-se” da convivência com os nobres: “tenho visto mais mundo que tu crês, e dele tenho me servido melhor que tu imaginas”), Wilhelm está imbuído do mais puro espírito burguês. Opõe espírito a personalidade, e elege a segunda como fundamental. A incongruência entre ambos (formar o primeiro não é erigir a segunda) é exposta como uma cisão própria do modo de vida burguês. Se ele considera-se, como vimos anteriormente (IV 2, p.209-210), como portador dos valores humanos essenciais, justamente esses que aos nobres são inatingíveis, se ele se julga possuidor de um espírito relativamente ilustrado, então só lhe falta aquilo que só é concedido a um nobre desde seu nascimento: instrução que lhe propicie a distinção, o porte, a insuscetibilidade. Ora, esse fim não apenas parece ser muito pouco para as disposições inatas de Wilhelm, como está em franca oposição à sua individualidade, pois no lugar da sinceridade e do entusiasmo, ele prefere agora a dissimulação e a frieza. Depreende-se que Wilhelm vive, portanto, um conflito. Por um lado, ele não se identifica nem se orgulha de sua posição burguesa; por outro lado, ele faz a crítica à sua condição de classe sem se desvencilhar de sua consciência de classe: Wilhelm quer ascender e isso é contrário às legítimas tendências de sua individualidade. As qualidades de nosso herói, por ele desprezadas em função de sua origem de classe e a respectiva repercussão social desta, são evidentemente superiores às daqueles aristocratas cujo porte Wilhelm passa a desejar (lembrando que estamos no quinto livro e que Wilhelm só conhecerá os indivíduos modelares, aristocratas, nos livros sétimo e oitavo, portanto, os nobres que ele tem em vista aqui são os duvidosos condes e barões). Wilhelm não se posiciona do ponto de vista humanista mais geral que o obrigaria a uma posição crítica, que neste caso significaria considerar o indivíduo, ou seja, a si mesmo, da perspectiva do ser social, não da classe. Ser nobre de nascimento dota o indivíduo de uma visível distinção que ao nosso herói é vista como imprescindível ao seu próprio desenvolvimento individual 119. Essa

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Por ocasião dos ensaios para Hamlet, Wilhelm teve a oportunidade de "discorrer amiúde, tanto consigo mesmo quanto com Serlo e Aurelie, sobre a seguinte questão: que diferença existe entre uma conduta nobre e uma conduta distinta, e em que medida aquela deve estar compreendida nesta, e não esta naquela?" (V 16, p. 343-344).

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distinção, um traço social geral e comum a todos os nobres, predominantemente um atributo e não um tipo de personalidade, origina-se de uma formação igualmente geral e pessoal. Wilhelm pretende representar, pela imitação, o traço geral da personalidade nobre no intuito de moldar uma personalidade para si. Só pode ser mimética e superficial tal formação, pois Wilhelm vê a batalha como perdida para o burguês, assim, o que ele pode fazer é ao menos aparentar possuí-la. Se por seu modo de vida e sua posição no mundo o burguês não pode jamais alcançar uma personalidade íntegra, a “distinção” não é dotada de conteúdo pelo herói, ela é fundamentalmente aparência e, portanto, ainda que crucial, uma qualidade apenas formalmente importante. A formulação “formar-me a mim mesmo tal como sou” só não se torna, desta feita, totalmente esvaziada porque o herói pretende desenvolver essa qualidade por meio do ativo desdobramento das faculdades de sua individualidade (ainda que este não seja mais seu objetivo principal). E bem de acordo com elas, fascina o herói o jogo das aparências, ter essas qualidades demonstrando apenas pela presença que se as têm – o nobre é uma pessoa pública, e o teatro de sua conduta que o torna tão respeitado e admirado é o que seduz o protagonista. Como ator, Wilhelm pode mascarar sua verdadeira (limitada) existência (em qualquer outro caso, como ele mesmo reconhece, um burguês tentando aparentar seria digno de escárnio). Adiante, o herói discrimina as diferenças entre o nobre e o burguês, ao mesmo tempo em que deixa mais clara sua noção de personalidade. A carta prossegue: Imagina, agora, um burguês qualquer que pensasse ter uma certa pretensão a essas prerrogativas; haveria de fracassar por completo e seria tanto mais infeliz quanto mais sua natureza lhe tivesse dado capacidade e inclinação [Trieb] para tal. Se na vida corrente, o nobre não conhece limites, se é possível fazer-se dele um rei ou uma figura real, pode portanto apresentar-se onde quer que seja com uma consciência tranquila diante dos seus iguais, pode seguir adiante, para onde quer que seja, ao passo que ao burguês nada se ajusta melhor que o puro e plácido sentimento do limite que lhe está traçado. Não lhe cabe perguntar: 'Que és tu?', e sim: 'Que tens tu? Que juízo, que conhecimento, que aptidão, que fortuna [Vermögen]?' Enquanto o nobre tudo dá só com a apresentação de sua pessoa, o burguês nada dá nem pode dar com sua personalidade. Aquele pode e deve aparentar, este só deve ser e, se pretende aparentar, torna-se ridículo e de mau gosto. Aquele deve fazer [tun] e agir [wirken], este deve realizar [leisten] e criar [schaffen], desenvolver suas diversas faculdades para tornar-se útil, e já se presume que não há em sua natureza nenhuma harmonia, nem poderia haver,

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porque ele, para se fazer útil de um determinado modo, deve descuidar de todo o resto (V 3, pp. 287-288).

Wilhelm percebe que inclinação e capacidade individuais não podem efetivar-se por si mesmas (denotando uma evolução no entendimento que tinha anteriormente sobre essa questão, II 9, pp. 114-115), mais do que isso, elas são suprimidas se não vicejarem em meio social propício. Desse modo, a personalidade está vinculada à personificação de uma posição econômica, tanto para o nobre quanto para o burguês. O que torna o burguês inferior é que ele nada pode aparentar, “só deve ser” – este é seu limite: seu ser é baseado apenas no ter. A formação de diversas faculdades que se exige do burguês para que ele se torne útil é algo que assume conotação negativa porque nesse processo exige-se que ele descuide “de todo o resto”; presume-se que a personalidade atrofia-se quando orientada às premências da vida prática dos homens, à produção e à criação, e que se desdobra quando dedicada ao exercício de si mesma por meio da ação e da atuação. Wilhelm não vê comunicação entre os dois mundos. É evidente ainda que ele não considera as atividades burguesas como uma esfera em que o indivíduo é por excelência ativo, mas sim, mero trabalhador, que se encontra numa posição de servilidade em relação aos verdadeiros objetivos e aspirações ligadas ao aperfeiçoamento individual por meio da atividade (embora enfatizados por Wilhelm demasiadamente em seus aspectos exteriores e comportamentais conferidos pelos privilégios estamentais). Todavia, pela absorção de Wilhelm no círculo nobre e pela própria conduta econômica da Sociedade da Torre, o romance demonstra que ambas as posições são parciais e, dessa perspectiva, precisam complementar-se um ao outro. Como é sabido, Wilhelm manifesta-se inúmeras vezes sobre a pouca atenção que dá aos assuntos exteriores, isto é, de ordem social mais abrangente. Neste caso não é diferente, embora ele saiba muito bem que Por tal diferença culpa-se não a arrogância dos nobres nem a transigência dos burgueses, mas sim a própria constituição da sociedade; se um dia alguma coisa irá modificar-se, e o que se modificará, importa-me bem pouco; em suma, tenho de pensar em mim mesmo tal como estão agora as coisas, e no modo como hei de salvar a mim mesmo e conseguir o que para mim é uma necessidade indispensável (V 3, p. 288).

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Nosso herói reafirma sua posição inicial, a saber, ele não quer tentar explicar ou entender o que se passa no mundo, mas, pressupondo o mundo como se apresenta, quer resolver da melhor forma possível o que à sua individualidade ele entende como imprescindível. Trata-se do mais legítimo e, por sua própria natureza, fracamente fundamentado individualismo burguês: uma espécie de egoísmo que faz Wilhelm declaradamente pouco se importar com o porquê desta constituição da sociedade tampouco com o futuro dela (ideia cuja direção em muito se assemelha ao raciocínio de Werner sobre a propriedade exposto a Lothario, em VIII 1) – ele precisa garantir a si mesmo, e isso é uma necessidade cujo suprimento não é pessoalmente calculado com frieza, dissimulação ou cinismo (como a proximidade do caráter de Dom Quixote torna inconteste, comprova-se pela maioria de seus atos que Wilhelm não é egoísta ou cruel 120). Trata-se de um comportamento legado pela classe – e num sentido mais amplo, pela sociedade burguesa – aos indivíduos que a ela pertencem. Característico dessa visão de mundo é que ela seja desprovida de historicidade – Wilhelm eterniza as relações atuais como desde sempre e para todo sempre existentes. Uma vez que a compreensão das relações sociais só historicamente é dotada de sentido, então a única possibilidade que ele pode vislumbrar é aquela que diz respeito ao seu próprio destino individual Pois bem, tenho justamente uma inclinação irresistível por essa formação [Ausbildung] harmônica de minha natureza, negada a mim por meu nascimento. Desde que parti, tenho ganhado muito graças aos exercícios físicos; tenho perdido muito de meu embaraço habitual e me apresento muito bem. Também tenho exercitado [ausgebilden] minha linguagem e minha voz e posso dizer, sem vaidade, que não me saio mal em sociedade 121. Mas não vou negar-te que a cada

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A ressalva se deu porque seu comportamento com Mariane pode ser classificado como egoísta e cruel, pois, sentindo-se traído, resguardou sua individualidade, afastou-se radicalmente sem nem sequer ouvi-la. Barbara, a criada dissimulada, em duas ocasiões (VII 8) porta palavras significativas a respeito dessa restrita moralidade burguesa: chama Wilhelm de egoísta frio referindo-se ao seu comportamento com Mariane; e depois, defendendo-se dos insultos dele, diz: “Oh!, para os senhores a quem nada falta, é fácil falar de verdade e retidão! Mas como uma pobre criatura, que nada tem para atender as suas mínimas necessidades, que em seus momentos de embaraço se vê sem um amigo, sem um conselho, sem uma ajuda, como há de se impor entre as pessoas egoístas e viver calada na indigência?...” (p. 473). 121 “Fazia suas considerações sobre o conde, a condessa e o barão, sobre a segurança, o desembaraço e a elegância na maneira como se comportavam /.../” (III 2, p. 151). Wilhelm é seduzido pelo mise-en-scène. Esse desvio, suscitado pela atmosfera do poder, tornar-se-á na literatura de Balzac um problema moral do caráter, momento em que o interesse, o egoísmo e o cinismo são já insuprimíveis (e indisfarçáveis) na conduta do

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dia se torna mais irresistível meu impulso de me tornar uma pessoa pública, de agradar e atuar num círculo mais amplo. Some-se a isso minha inclinação pela poesia e por tudo quanto está relacionado com ela, e a necessidade de cultivar meu espírito e meu gosto, para que aos poucos, também no deleite dessas coisas sem as quais não posso passar, eu tome por bom e belo o que é verdadeiramente bom e belo. Já percebes que só no teatro posso encontrar tudo isso e que só nesse elemento posso mover-me e cultivar-me [ausbilden] à vontade. Sobre os palcos, o homem culto [gebildet] aparece tão bem pessoalmente em seu brilho quanto nas classes superiores; espírito e corpo devem a cada esforço marchar a passos juntos, e ali posso ser e parecer tão bem quanto em qualquer outra parte. /.../ Não queiras discutir comigo a esse respeito, pois, antes que me escrevas, já terei dado tal passo. Por conta dos preconceitos dominantes, trocarei meu nome, porque me sinto, ademais, embaraçado em me apresentar como Meister. Adeus! Nossa fortuna está em tão boas mãos que não tenho com que me preocupar; se me surgir ocasião, pedir-te-ei o que precisar; não será muito, pois espero poder sustentar-me com minha arte (V 3, p. 288).

Nesse momento final Wilhelm retorna ao seus verdadeiros objetivos que ao longo da carta, com a predominância temática da personalidade nobre, pareciam ter sido esquecidos: “meu impulso de me tornar uma pessoa pública, de agradar e atuar num círculo mais amplo. Some-se a isso minha inclinação pela poesia e por tudo quanto está relacionado com ela, e a necessidade de cultivar meu espírito e meu gosto, para que aos poucos, também no deleite dessas coisas sem as quais não posso passar, eu tome por bom e belo o que é verdadeiramente bom e belo. Já percebes que só no teatro posso encontrar tudo isso e que só nesse elemento posso mover-me e cultivar-me [ausbilden] à vontade". O mais irônico e desalentador, porém, é que o herói não percebe criticamente, em seu louvor ao “modo de ser” dos aristocratas, tudo o que observou e vivenciou quando esteve em seu círculo, deixando de lado as características negativas (e muito explícitas) dos condes e dos barões, procurando, em contrapartida, ressaltar as qualidades da condessa. Wilhelm não lida bem com contradições, nem com as próprias nem com as alheias. A incongruência entre a origem social e o comportamento é sublimada por ele nos nobres pouco agraciados pelos belos sentimentos e elevados ideais da mesma forma que ele abstrai de suas experiências com a trupe todos aqueles comportamentos indignos, que iam da ingratidão ao descarado

herói (como é exemplar no herói de Ilusões Perdidas, Lucien de Rubempré).

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interesse. Deduzimos que Wilhelm considera que os nobres puderam instruir-se tais como são. A ideia de que o teatro contribui para seu desenvolvimento corporal, tão necessário para os fins de apresentação de sua pessoa, é importante para o herói desde o início de sua trajetória: Embora empreendidos sem discernimento e executados sem direção, não nos eram de todo inúteis aqueles jogos. Exercitávamos nossa memória e adquiríamos maior destreza nas palavras e no porte do que é possível conseguir em tão tenra idade (I 8, p. 29).

Mas isso não bastou para que Wilhelm compusesse sua figura adulta. Tendo de preocupar-se em produzir e criar o que é socialmente útil, a personalidade do burguês não pode ser concomitantemente um objetivo a ser perseguido por ele, e sem ter uma personalidade formada, a harmonia do indivíduo torna-se inatingível. Assim, a harmonia é tornada sinônimo de realização da personalidade; e a utilidade é rebaixada a uma ordem inferior. Pode-se dizer que Wilhelm, pelo contato com a nobreza, foi paulatinamente desvirtuado dos legítimos objetivos de desdobramento de sua atividade artística. Ora, se no início de sua trajetória ele atribuía um valor supremo à arte e ao artista, agora suas disposições artísticas surgem apenas como coadjuvantes de algo maior e somente atingível no teatro: o eldorado da personalidade formada cujo modelo a nobreza representa. Nessa medida, Wilhelm continua ativo, mas o teatro não é mais que uma finalidade secundária. Além do mais, as exigências da distinta aparência de personalidade que recaem também sobre a necessidade de formação ampla, de erudição, fazem com que a transmutação do herói comece então com o distanciamento do apreciador da arte, do connaisseur, e o deleite do bom e do belo toma assim sutilmente o lugar da efetivação da arte, da entrega total de Wilhelm à sua autoatividade, visto que ela, por si mesma, assim como qualquer outra atividade, não pode oferecer-lhe a almejada personalidade; embora o teatro seja a única arte que lhe proporcione o porte, a aparência e a representação viva de uma personalidade 122.

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Lembremos o que diz o narrador sobre a infância do herói, em que cultivou dentro de seus limites o gosto do pai pelo luxo, inclusive no teatro, “no tocante às situações, idéias e paixões” seduzia-se “mais esplendoroso e mais luxuoso” (I 15, p. 53) – isso não se liga de algum modo à aparência de grandeza que Wilhelm buscará anos mais tarde?

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Mas então, é somente um porte nobre que Wilhelm anseia ao espelhar-se nos modos e personalidade corteses? Somente a aparência lhe satisfaz?

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CAPÍTULO 2 Atividade (a arte como autoatividade de Wilhelm) Ainda que as disposições humanas tenham no todo uma direção decidida, será difícil, porém, aos maiores e mais experientes conhecedores, prevê-la com fiabilidade, mas pode-se bem perceber, posteriormente, para o que um futuro apontou (Poesia e Verdade, p. 83, parte 1, livro II). Ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e bem viver que não deseje ao mesmo tempo ser, agir e viver, isto é, existir em ato (Espinosa, Ética, proposição 21)

A atividade é um conceito propagado no romance tanto pelos personagens nobres quanto pelos burgueses. Os primeiros tentam atrelá-lo à formação, ao desenvolvimento, desdobramento e aperfeiçoamento das capacidades, faculdades, disposições e inclinações individuais. Para os segundos, a atividade está ligada principalmente à utilidade social e à consequente vantagem financeira que se pode individualmente tirar dela. O principal objetivo de Wilhelm é ser ator; temos aqui o mote da trajetória do protagonista resumido no exercício de uma atividade, entendida como autoatividade, que corresponde às suas predisposições, e como profissão – no caso de Wilhelm, atividade e ocupação mantêm uma relação indissolúvel123. Assim, partimos da premissa de que o teatro é a autoatividade do herói, isto é, o modo próprio e particular de expressão e desdobramento de sua individualidade, sua confirmação objetiva. Para investigar essa hipótese, tentaremos identificar na trajetória de Wilhelm como se manifestaram suas inclinações [Neigung], disposições [Anlage] e seus talentos. Qual foi a atividade que Wilhelm elegeu para si? Em sua qualidade de ator,

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Mesmo levando-se em conta que é em geral correta a afirmação de que “o homem harmonicamente formado, que se encontra até agora apenas em círculos favorecidos, em que se é ativo sem trabalhar, foi o ideal de cultura humanista que Goethe e Schiller invocaram sem suas obras” (Berghahn: 1980, p. 127, grifo meu).

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exercendo sua inclinação cênica, Wilhelm torna-se especialmente ajustado à análise schilleriana de que ele possui plasticidade ou moldabilidade [Bildsamkeit]. Devemos observar também que ser ator cumpre para Wilhelm a função de aproximá-lo do mundo “exterior”, isto é, das relações e dos homens, por cujo desconhecimento Wilhelm é notória e amavelmente conhecido124. O herói foi concebido essencialmente como alguém que segue uma falsa tendência da individualidade. Os inícios de Wilhelm Meister ficaram por longo tempo em suspenso. Eles resultam de um sombrio pressentimento da grande verdade: que o homem frequentemente gostaria de experimentar algo para o qual a disposição lhe é negada pela natureza (Tag- und Jahreshefte. Geschrieben 1819/20. "Bis 1786", HA7, p. 618).

Goethe jamais coloca a discussão em termos sociais, isto é, da impossibilidade que a sociedade apresenta para que verdadeiras inclinações se desenvolvam no indivíduo – mas sim, se existe uma inadequação da tendência individual às relações sociais, de modo que a origem do problema está na individualidade, que interpretou como verdadeira uma falsa tendência125. Desse modo, uma das problemáticas envolvidas na autoatividade de Wilhelm é

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Friedrich Schlegel considera que o “mundo do espetáculo” é a mais multilateral, versátil [vielseitig] e sociável [gesellig] de todas as artes. Entre outros aspectos, essas qualidades permitem que se toquem “de modo excelente poesia e vida, época e mundo” (Urteile über WML, p. 666). Isso muito difere das oficinas solitárias do artista plástico – “que oferece menos material” – e dos poetas que “vivem apenas em seu interior”. Suaviza-se assim a contradição presente na individualidade do herói, a saber, a de almejar ser ator e poeta sem, no entanto, interessar-se pelo mundo exterior, isto é, social. Para Körner, o teatro seria “a ponte do mundo real para o ideal. Para um jovem homem, o qual não era atraído pelo seu ambiente mais próximo, e não conhecia esfera melhor, isso deveria ter um irresistível encanto. Para ele tornou-se principalmente uma escola da arte” (HA7, p. 654). É ainda mais significativa a escolha dessa atividade para representar a derrocada da autoatividade individual quanto se tem em conta que o fascínio de Wilhelm pelo teatro tem um pouco do deslumbramento pelo teatro vivido no período barroco. Havia uma ânsia pelo dramático, e a profissão de dramaturgo vivenciava um florescimento; os teatros comerciais para o público burguês chegavam às cidades, e os atores tornavam-se famosos e admirados (Erika Fischer-Lichte: Kurze Geschichte des deutschen Theaters. A. Francke Verlag: Tübingen, Basel 1993). Ligando à Revolução Francesa a concepção estética do romance, Witte (1989, p. 116) pondera que após 1794 a estética recebe uma nova função, uma função histórica: a de guardiã da ordem social estabelecida e de responsável pela perfeição da humanidade. Schiller transmitiu essa ideia nas Cartas para a educação estética da humanidade, de 1795, ressaltando que somente a arte pode formar o indivíduo em uma totalidade harmônica. Para Witte, o programa schilleriano naufraga no quinto livro do romance de Goethe, momento em que o teatro é desmascarado, “submetido como qualquer outra mercadoria à lei da oferta e procura e à maximização do lucro” (p. 121). Esse é um ponto central discutido pelos intérpretes e a esmagadora maioria seguiu a indicação de Goethe.

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determinar se ela é uma falsa inclinação, mera paixão ou capricho [Liebhaberei] (como o próprio Wilhelm chega a qualificar, referindo-se à ocupação [Beschäftigung] juvenil, III 8, p. 175), ou se, ao invés disso, trata-se de uma autêntica inclinação com a disposição e o talento correspondentes para ser efetivada. No entanto, o problema que se desdobra no romance parece estar ligado muito mais ao plano social da realidade do que à determinação da verdade ou da falsidade do talento do herói, pois o que se evidencia crescentemente na história é a inadequação de sua inclinação ao seu meio social (artístico ou não, amador ou profissional, nobre ou burguês)126. Há um consenso entre os comentadores do Meister de que a obra encontra-se dividida em duas partes127. Mas verifica-se, no que concerne à inclinação de Wilhelm, que essa cisão não existe, ou ao menos não da mesma forma identificada pela crítica, não apenas porque as decepções de Wilhelm com o teatro vêm desde o Livro V, mas porque até

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Assim, diz expressamente Körner: “ele não tinha vocação para artista. Era uma mera necessidade tornar públicos suas ideias e sentimentos. O jogo de bastidores da representação teatral deveria logo tornar-se adverso para ele. Ele deveria tomar conhecimento também do lado brilhante do mundo real” (Körner, HA7, p. 654). Bluhm (p. 15) vê na aspiração de Wilhelm algo tão sonhador como a cavalaria errante de Dom Quixote. Para May, o narrador não deixa dúvidas sobre a “imaturidade juvenil na motivação dessa aspiração artística”, de modo que o leitor é desde o início preparado para o fato de que “se iniciou ali um desenvolvimento falho” (1957, p. 9). May fala ainda de “virtuosismo monomaníaco”, e jamais de uma necessidade essencial da individualidade; a aspiração pela bela arte torna-se consciente aspiração pela multilateral arte de viver. O ideal estético, prossegue May, não é colocado de lado, mas simplesmente integrado a um ideal de vida mais abrangente (p. 17). Ammerlahn (2003) diz que “sobre essa positiva inclinação vê-se Wilhelm impelido por uma inconquistável predisposição interior e na verdade em tal dimensão que a maior parte de seus atos errados ou bem-sucedidos se deixam explicar a partir disso” (p. 36). Goethe afirma que ele encurta em quase um terço a parte teórico-prática sobre o teatro, do Livro V, após as observações de Schiller (carta de 18.6.1795, HA7, p. 625-626). Diferente do que acontece em Os anos de aprendizado, em que o teatro de marionetes faz parte da lembrança do herói (com o início do romance media in res), em A missão teatral essa experiência é sucessivamente narrada (com o início ab ovo) até terminar com a decisão de Wilhelm pelo teatro. A ideia de Goethe era discorrer muito mais sobre a atividade teatral (como Balzac faz sobre a imprensa em Ilusões Perdidas), porém, com as observações de Schiller de que essa parte parecia muito especializada e dirigida aos atores, ela foi reduzida e reconfigurada (com uma ênfase mais sutil na atividade), mas, ao mesmo tempo, a orientação da história fica mais clara: o teatro efetivamente não importa (ou precisamente porque ele é como é ele precisa ser abandonado, e portanto é inútil entrar em detalhes sobre seu funcionamento), importa é que Wilhelm tem de deixá-lo. A saber, os cinco primeiros formam um bloco, os dois últimos (com a intersecção do Livro VI), outro. Nos primeiros livros, seria apresentada a trajetória errante do Wilhelm, nos últimos, seu necessário reencaminhamento para uma “atividade sólida”. A primeira aventureira, a segunda reflexiva (quebra que seria análoga também aos dois volumes da história de Dom Quixote).

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o fim de sua trajetória ele permanece intimamente ligado à sua inclinação. Wilhelm reconhece-a cedo e procura certificar-se de sua disposição (aptidão) para tal inclinação no decorrer de sua trajetória teatral 128. “Não tinha mais dúvida alguma de que fora destinado para o teatro; parecia-lhe mais próximo o nobre objetivo a que se propusera” (I 10, 33). Wilhelm parte em viagem determinado pelo pai e encontra nisso a oportunidade para realizar suas aspirações numa relação ativa com o mundo 129. Os nobres objetivos do teatro estão sutilmente vinculados à aspiração pela criação de um teatro nacional, atmosfera da época captada pelo herói. Wilhelm, “com pretensiosa modéstia percebia nele o excelente ator, o criador de um futuro teatro nacional, pelo que tanto ouvira as pessoas suspirarem” (I 9, p. 32-33)130.

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Seitz (1996, p. 126) não apenas considera que Wilhelm mostra quando garoto uma disposição natural para a arte e para o teatro como compara essas primícias à autobiografia de Goethe: “nada aponta com mais segurança para a disposição [Anlage] natural de um homem que as espontâneas e prolongadas ocupações na infância” (Poesia e Verdade). Ao citar ainda o poema Urworte. Orphisch, em que Goethe expressa a convicção de que a força inata e a peculiaridade [Eigenheit] determinam o homem mais do que todo o resto, Seitz conclui: “Para Wilhelm, a predisposição [Veranlagung] para artista é a necessidade interior, a lei sob a qual ele se coloca.” O autor defende, portanto, que é preciso levar a sério a exposição sobre as disposições naturais de Wilhelm apresentadas no primeiro livro. Para ele, Wilhelm intui corretamente que ele poderia fazer algo de grande no teatro, porém, sua juventude o impedem de ver que os tempos não possibilitam um “caminho harmônico-ideal” para o teatro. Como mencionamos na Introdução, Goethe concebera uma trilogia com os “anos de aprendizado” [Lehrjahre], o qual encerraria os conceitos de “anos de peregrinação” [Wanderjahre] e “anos de maestria” [Meisterjahre] (Goethe em conversa com Friedrich von Müller de 8 de junho de 1821). Essa relação remonta à baixa Idade Média e segue até o início do período industrial. Refere-se às etapas necessárias para se tornar mestre em um ofício. Após o tempo de aprendizado [Lehrzeit], havia um período de viagens que era um dos pressupostos para que fosse admitido no exame de mestre. Nesse tempo, o aprendiz deveria encontrar novos lugares para trabalhar, conhecer pessoas e lugares, adquirir experiência de vida. A viagem do protagonista é também um motivo presente desde Dom Quixote até os romances de viagens dos séculos XVIII, XIX e XX. Assim, no século XIX, a grande viagem é a da ida da província para a grande cidade (Ilusões Perdidas, Crime e Castigo); no século XX, ocorre o movimento contrário, da cidade para o lugar retirado (A Montanha Mágica). O barroco foi a época que amou o teatro como nenhuma outra. Até por volta de 1770 havia na Alemanha, porém, somente comediantes ambulantes e o teatro de corte. Os primeiros representavam peças populares para o divertimento da população, o teatro cortês voltava-se para a vida da corte e raramente para uma arte séria. O que se desejava, como expressa a palavra teatro nacional [Nationaltheater], era um teatro que não fosse determinado pelo gosto do patrocinador, e sim, por juízos artísticos, além de compreender todas as camadas do povo. Almejava-se, de acordo com o modelo grego, que a Alemanha tivesse um teatro que conduzisse o povo para uma “ética universal, uma afinidade do sentir [Empfinden], uma instrução de como a vida é” (Trunz HA7, p. 716). (Seitz, 1996: 127, completa dizendo que esse sonho é dos jovens Stürmer und Dränger.) Um pensamento mesclado ao otimismo da Aufklärung e às ideias sobre educação próprias ao século XVIII. Dessas esperanças dão testemunhos textos teóricos como o de Schiller: “Was kann eine gute stehende Schaubühne eigentlich wirken?” Depois renomeado: “Die Schaubühne als

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A distinção entre inclinação e disposição é a causadora das maiores incertezas no herói e dará ensejo para as explicações sobre sua experiência malograda. A questão da confirmação de sua disposição é colocada por Wilhelm em termos de reconhecimento social de seu talento. Nesse particular, o narrador tem um papel fundamental na determinação do viés que será dado ao talento de Wilhelm. Não conhecemos o conteúdo das anotações que Wilhelm faz de conversas nem os produtos de seu espírito, o que reforça a “aspiração pelo infinito” (Körner), pelo impossível que jamais se vislumbra na realidade, pelo que é inefável e abstrato, grandioso, mas impalpável.

Inclinação, disposição e talento A primeira referência ao teatro acontece já no primeiro capítulo (as primeiras palavras do romance são “A peça” [Das Schauspiel]131), em que Barbara aguarda o retorno de Mariane da peça em que ela era protagonista. No decorrer das primeiras páginas, percebemos qual a atmosfera do meio teatral ao qual Wilhelm, naquele momento, está ligado por suas lembranças e por seu vivo amor por Mariane. O segundo capítulo reforça a má reputação da arte de representar, ele inicia-se com a mãe de Wilhelm participando-lhe mais uma vez que seu pai estava deveras desgostoso com suas frequentes idas ao teatro, que desperdiçavam tanto o tempo do filho. No entanto, o mau juízo que seu pai sempre fizera do teatro (o que certamente também colocava a atividade sob suspeita, ainda que Wilhelm

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moralische Anstalt betrachtet”. A primeira tentativa de um teatro nacional aconteceu em Hamburgo, em 1767, mas durou pouco (1768), pois seu financiamento era feito por alguns cidadãos da cidade e não pelo estado. Os primeiros grandes dramas alemães somente começavam a ser escritos nessa época e não puderam ser levados à cena nessa ocasião. No entanto, é nesse momento que Lessing escreve Dramaturgia de Hamburgo. A ideia de teatro nacional relaciona-se em Lessing à interação entre teatro e estética, e com a referência às propriedades estilísticas de dramas modernos, tais como os de Shakespeare, que são ao mesmo tempo natureza e arte, e ao seu modo tão perfeitos quanto foram os de Sófocles – mas, em Hamburgo, Shakespeare não chegou a ser encenado. Há algumas décadas o estudo do “início do romance” [Romananfang] tornou-se uma prática cada vez mais recorrente entre os estudiosos de literatura. De acordo com eles, não apenas o tom do romance é estabelecido pelo modo como ele se inicia, mas a maneira de começar daria chaves para a compreensão do romance inteiro (Thüsen: 1969. Ver também Igel: 2007).

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não admirasse a maneira como seu pai conduzia a própria vida) serve de ensejo para Wilhelm rememorar, na companhia da mãe, suas antigas relações com essa arte. A narrativa prosseguirá posteriormente sendo feita a Mariane (entre os capítulos 3 e 8). Nos capítulos 10 e 11 do Livro I, quando somos apresentados a Werner, amigo de infância de Wilhelm, e aos pais dos dois amigos, todos defensores e entusiastas da atividade lucrativa, do comércio e do dinheiro, temos então nitidamente delineado o embate de duas forças que os capítulos anteriores anunciavam – embate do qual Wilhelm, portanto, está bem consciente. Desse modo, sua experiência negativa no que respeita ao teatro, acontecida no primeiro afastamento de casa, no capítulo 13, quando ele faz uma curta viagem para buscar um cavalo que lhe serviria para empreender a jornada maior, não foi de modo algum surpreendente para ele. Ainda assim, Wilhelm mostra-se surpreso quando ouve Melina dizer expressamente que não queria mais exercer a profissão de ator: “/.../ pois havia imaginado que o ator, tão logo se visse em liberdade ao lado de sua jovem mulher, correria de volta para o teatro. O que lhe parecia tão natural e necessário quanto uma rã que procura pela água” (I 14, p. 49). Não é de todo ingênuo esse pensamento do herói: o ator precisa do teatro pois sua disposição para atuar não basta a si mesma, a confirmação de suas disposições depende dos meios de efetivá-la, como ocorre, em geral, com qualquer atividade. Essa surpresa só pode explicar-se de dois modos: ou Wilhelm é um ingênuo enganador de si mesmo [Selbstbetrüger] (o que sua inteligência e vivacidade contradizem) ou ele realmente tende de tal maneira para o teatro que nada do que ele testemunhe contra essa arte o demoverá de defendê-la. De fato, presenciar toda aquela experiência – em que se explicitaram o preconceito das pessoas e a presumida reprovação que Wilhelm sofreria se também ele fugisse com sua amada e passasse a viver do teatro, tal como planejava – conduz o leitor à atmosfera espiritual do herói naquele instante: as possíveis consequências de seu ato não o deixam à vontade com sua decisão. Wilhelm não via naquele acontecimento um sinal do destino (pois, geralmente, só acreditava na boa sorte), mas sim uma censura prévia aos seus próprios intentos. O capítulo 15, que dentre outras coisas refere-se às observações reprobatórias de Wilhelm aos amigos atores de Mariane, os quais pareciam não pensar na profissão e em sua finalidade, mas apenas em quanto determinada 142

peça poderia render e durante quanto tempo, fortalece, no entanto, aquela impressão predominante de que nosso herói sabia e conhecia as condições e relações do meio teatral, e mesmo assim queria tornar-se um homem de teatro. Ele queria materializar através do espetáculo tudo aquilo que há de bom, nobre e grandioso no homem (II 4, p.101). A separação das musas significava a renúncia “à aclamação mais bela e imediata, publicamente demonstrada a nossa pessoa, a nosso comportamento e a nossa voz” (II 2, p. 78). Soma-se ao reconhecimento social de seus talentos seu anseio de afastar-se da "vida burguesa", o que o fez decidir-se sem hesitação a aproveitar a viagem planejada pelo pai para fugir com Mariane em busca de uma colocação no teatro: Tão grande era sua paixão, tão absoluta sua convicção de que agia muito bem em se livrar do peso de sua situação presente e seguir um novo e nobre percurso, que não o remoeu em absoluto sua consciência, nem lhe inspirou cuidados, considerando, isto sim, sagrado seu logro (I 11, p. 39).

Quando, no livro I, o herói relembra sua infância e o início da juventude, ele já manifesta a tendência a exercer a atividade teatral em seu conjunto: ator, poeta dramático, diretor, cenógrafo ou figurinista. Da infância até a vida adulta, Wilhelm assume as diversas funções da atividade teatral nos diferentes tipos de teatro pelos quais passou (marionete, entretenimento, itinerante, comediantes da corte). Ainda assim, mesmo que Wilhelm tenha manifestado interesse pelas diferentes etapas do processo de montagem da peça, sua inclinação recai especificamente sobre a atividade de ator – e foi principalmente o anseio de atuar o estopim de uma aventura teatral que começou irrefletidamente. Apesar disso, ele não será somente um ator, mas uma espécie de diretor artístico das companhias em que atuou – na verdade, o único papel importante que ele nunca desempenha no teatro é o de empresário. O conteúdo da atividade de ator é importante para nos aproximarmos melhor da natureza de Wilhelm e também da sociedade em que ele está inserido. Este conteúdo muda se o indivíduo que exerce a atividade é proprietário de suas condições de vida (infância/adolescência de Wilhelm); se ele é assalariado (Wilhelm com Serlo) ou se ele é capitalista (Serlo). Bem se vê que a trajetória individual de Wilhelm revela uma transição que se revela sócio-histórica no tocante ao processo de trabalho. É na infância e na 143

adolescência que o herói encontra-se ainda unido a sua atividade, aos meios e produtos dela, é o momento em que ele desdobra suas faculdades e disposições individuais e descobre sua principal inclinação. Nas aventuras com a trupe de Melina, nas quais Wilhelm procurava assegurar-se da veracidade de seu talento, o protagonista financia o teatro do qual faz parte com uma única contrapartida a si mesmo inconfessa: que ele próprio pudesse exercitar-se na dileta arte. Com Serlo, Wilhelm se convencerá definitivamente dos limites concretos para o exercício de sua atividade: interesse, egoísmo e concorrência. Após o período de descoberta e exercício do teatro que se estende desde o contato com o teatro de marionetes na infância, Wilhelm aparece explorando seus talentos e desdobrando suas inclinações principalmente em duas ocasiões. A primeira é no castelo, ali ele criou uma peça, desde o texto até o cenário, e atuou. Nas semanas que passou entre os nobres viu-se em muitos momentos desanimado pelo pouco retorno que obtinha do nobre público a despeito do muito que se empenhava; no final desse percurso, porém, ele é o único reconhecido e agraciado pelo conde, o que o faz recuperar o entusiasmo com a profissão. É também no castelo que Wilhelm conhece Shakespeare, esse mundo poético novo e excelente também rejuvenesceu suas forças para prosseguir atuando no teatro. Na companhia capitaneada por Serlo Wilhelm atinge o auge de sua carreira, dedica-se intensamente, ali ele representará Hamlet e Emilia Galotti132. . O teatro de marionetes e seus desdobramentos Nas primeiras páginas do livro, logo depois de conhecermos Mariane, a mãe diz a Wilhelm que seu pai não está satisfeito com suas frequentes idas ao teatro. Dos dois, é a mãe de Wilhelm quem aprecia, moderadamente, a arte dramática. O pai indigna-se porque

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Shakespeare e Lessing são o começo e o fim do barroco, e ambos, nas peças representadas por Wilhelm na companhia de Serlo, concentram-se na tragédia do indivíduo moderno: Hamlet por não ser o que nasceu para ser, e não estar à altura do ato heroico para restituir sua posição, como analisou o próprio Wilhelm; Emília, por não poder unir-se a quem ama – em razão de sua condição burguesa, sua decisão estava entre corromper-se ou morrer. Ambas fazem uma crítica à aristocracia, ao poder dominante que age arbitrariamente e é nocivo aos indivíduos. Essas obras são representadas após a carta escrita a Werner em que Wilhelm afirma querer aparentar ser um nobre.

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não consegue encontrar utilidade no teatro; sua pergunta: “de que serve isso?” (I 2, p. 11) faz coro com a opinião de censura da mãe pela “paixão desenfreada por tal prazer” demonstrada por Wilhelm; ela lhe pede, apenas, moderação. As opiniões dos pais acabam por convergir porque o teatro não é considerado por eles atividade produtiva, mas, no melhor caso, mero divertimento apenas para a fruição, e no pior, como algo até danoso se não ministrado com comedimento. Para ambos, pai e mãe do herói, o teatro é, portanto, algo supérfluo, e não teria maior significado na vida familiar não fossem as constantes reclamações do pai em função do exagero de Wilhelm em sua dedicação e aplicação à arte, e, por conseguinte, os incômodos domésticos causados à mãe, que se colocava como mediadora entre Wilhelm e o pai. A respeito dos assuntos que o tocavam mais fundo, Wilhelm não possuía uma relação direta com seu pai. É o ponto de colisão de ambos: suas respectivas opiniões são inconciliáveis quando se trata do direcionamento e do objetivo da atividade individual. A mãe, por sua vez, apresentou o mundo teatral a Wilhelm, mas chega a arrepender-se do teatro de marionetes dado na infância (I 2, p. 12). O principal assunto da história narrada por Wilhelm no início do romance é a descoberta de seu amor pelo teatro que tem início com o teatro de marionetes. Vivamente impressionado desde que o vira pela primeira vez, o maior desejo do menino Wilhelm era inteirar-se daquele mundo mágico. “Se na primeira vez eu havia desfrutado a alegria da surpresa e do espanto, na segunda vez foi grande o prazer em prestar atenção e investigar” (I 4, p. 18). Wilhelm busca inteirar-se do processo de criação daquela atividade teatral como um todo, sendo justamente essa a origem de seu interesse pelo teatro. Assim, quando ele conseguiu espiar alguma coisa da montagem e da arrumação pós-representação, em que os bonecos eram guardados etc., diz: /.../ fiquei mais tranquilo e mais intranquilo do que antes. Depois daquela experiência tive a impressão de que não sabia absolutamente nada, e com razão, pois me faltava coerência [Zusammenhang], e dela, entretanto, é que tudo depende (I 4, p.18).

Wilhelm ainda não compreendia a relação entre as partes e seu efeito resultante final; e mais que conhecer o nexo das partes e o próprio modus operandi do conjunto daquele pequeno teatro, para compreendê-lo o herói precisava fazer tudo aquilo funcionar. 145

Para colocar em prática seu intento, antes de apossar-se das marionetes, ele astuciosamente conseguiu furtar o pequeno livro (da história de Davi e Golias) da despensa onde a mãe guardara tudo (I 2, p. 13). Desde então, nos momentos solitários, ele exercitava-se lendo a peça diversas vezes até decorá-la, imaginando como seria montá-la e animá-la ele mesmo. No capítulo 4, continuação do relato de Wilhelm, conhecemos as opiniões estreitas e o comportamento do seu pai quanto aos prazeres (só lhes é dado o devido valor quando são raros) e de seu comportamento com as crianças orientado segundo esse princípio. Não fosse, porém, a generosa recompensa que ele dera ao jovem tenente de artilharia que prestara serviços na construção da casa familiar, esse jovem com habilidades mecânicas não teria podido mostrar-se grato ofertando uma segunda apresentação com o teatro de marionetes todo construído e conduzido por ele (e aqui novamente a arte surge como passatempo submetido a uma ocupação principal). E foi assim que seu pai cedeu: “Não lhe foi difícil convencer meu pai, que por gentileza cedera a um amigo aquilo que por convicção a seus filhos recusara” (I 4, p.18). Foi decisiva na vida de Wilhelm a chance que teve de aprender a arte dos bonecos. Ele passa pelo aprendizado prático da atividade artística com um tutor, um tenente de artilharia que ajudou Wilhelm, seus amigos e irmãos a adquirirem os conhecimentos da arte de representar com as marionetes, ainda que estes achassem que entendiam das artes cênicas mais do que o tenente. Então, depois de ter-lhe sido transmitida a arte, Wilhelm, encarregando-se de tudo para a reapresentação da peça, apresenta-se um dia no teatrinho. Ela já tremia de alegria quando, após de uma semana de preparativos, foi finalmente chamado para o ensaio. No dia da apresentação, tudo correu bem, a não ser por um deslize que o fez deixar cair o boneco que manejava, forçando-o a colocar a mão no palco para pegá-lo e fazendo com que se perdesse um pouco da magia – ponto importante lembrado por Wilhelm. Ficou também magoado com as risadas que recebeu dos amigos e irmãos (I 6). Na manhã seguinte, apesar de no dia anterior ter sido “ferido em seu íntimo”, Wilhelm não deixou que essa decepção predominasse. Minimizando-a, ele fica satisfeito consigo mesmo, chegando até mesmo a apagar por completo seu irrisório erro e a considerar-se feliz por “haver atuado com perfeição”. Para reforçar o acerto dessa sua percepção, Wilhelm 146

conta que recebeu elogios dos espectadores, que preferiram suas falas sem afetação e cerimônia, contrastantes com a do tenente133. O primeiro aplauso que Wilhelm recebeu por seus talentos teatrais aconteceu, portanto, após a primeira representação com o teatro de marionetes. O reconhecimento precoce de seu talento foi um detalhe bastante importante e reforçou para Wilhelm o indicativo de que estava no caminho certo. Ainda que mais tarde viesse a confessar sinceramente: infelizmente, meu juízo crítico ainda se deixava seduzir de outro modo. Agradava-me, sobretudo, aquelas obras nas quais eu esperava agradar, e poucas foram as que não lia sob o efeito dessa atraente ilusão (I 8, p.28).

Essa observação denota que Wilhelm, segundo seu próprio entendimento, passou a perceber a verdadeira natureza da arte, mas seu desejo por reconhecimento é explicado pela própria natureza da atividade artística, que se alimenta da recepção e da popularidade do objeto artisticamente criado, e consequentemente, conduz também a uma espécie de egocentrismo do artista – que Wilhelm, condizente com sua personalidade, não desenvolveu. Uma vez de posse do teatrinho, ele logo não se contentaria em apresentar a mesma peça. Queria representar outras grandes obras, mas a vestimenta de seus bonecos afligia-o por ser inadequada para tanto; inspirou-se nas irmãs que confeccionavam roupas para suas bonecas e passou a produzir outras vestes para que seus bonecos pudessem representar diversos personagens134. Habilidoso para trabalhos manuais e manejo do compasso e do recorte, era também capaz de fazer um excelente cenário. Wilhelm conta que lhe ocorreu, contudo, o que costuma ocorrer às crianças: concebem grandes planos, tomam muitas providências e até fazem alguns ensaios, para logo deixar tudo de lado. Deste erro também devo confessar-me. Para mim, o prazer maior estava na invenção e em ter a imaginação ocupada. /.../ Abandonava-me à minha fantasia,

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Mais tarde, em sua vida de ator, Wilhelm continuará defendendo esse modo de representação “realista” ou “naturalista” frente ao velho modelo, empostado. Nessas questões, Wilhelm toma o partido do mais simples e natural. Mas saberemos que o teatro que ele primeiramente conheceu e que o fascinou foi justamente o empolado (por meio do tenente), com seu ar respeitável e grandiloquente (I 6), possivelmente associado ao estilo declamatório da reforma gottschediana. Wilhelm “levava sempre uma pequena vantagem sobre os outros: a de estar à altura de construir com habilidade os acessórios necessários” (I, 7, p.24).

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ensaiava e me preparava constantemente, construindo milhares de castelos no ar, sem me dar conta de haver destruído os alicerces do pequeno edifício (I 6, p. 23).

Pois quando tudo estava pronto e um espetáculo maior poderia ser pensado, nem Davi e Golias, “a primeira grande peça”, podia ser montada devido às constantes trocas de roupas e cenários e as respectivas perdas no processo. Fascinado pelo romance de cavalaria no início da adolescência, Wilhelm queria levá-lo ao palco, e convenceu os amigos com seu entusiasmo. Ele não tinha uma ideia concreta sobre como a peça seria montada; arrumou uma solução para o teatro, mas não sabia de onde viriam os materiais para o espetáculo. Quando chegou o grande momento da apresentação, constataram que não haviam preparado o que deveriam falar e fazer em cena. Wilhelm recitou uma passagem para começar, porém, como nada se seguiu depois disso, teve que se retirar “em meio a gargalhadas dos espectadores, incidente que me feriu no fundo de minha alma” (I 7, p. 27). Não se deixando abater, contudo, Wilhelm entra em cena novamente com a peça de Davi e Golias, a qual alguns meninos da “companhia” conheciam por terem apresentado anteriormente com Wilhelm no teatro de marionetes. Essa experiência foi encarada como lição: “jurei a mim mesmo que, se me livrasse daquele embaraço, nunca mais me arriscaria a representar uma peça sem antes haver refletido muito bem a respeito” (I 7, p. 27). Quando retroage nas lembranças e avalia seu comportamento infantojuvenil com as atividades artísticas, Wilhelm ameniza e generaliza seus defeitos (por exemplo, sobre o fato de não terminar o que começava) e valoriza suas qualidades (como seu talento para construir trajes e acessórios). Essa autopercepção dota o herói de bastante autoconfiança para que ele seja capaz de tentar realizar seus objetivos no teatro, mas também evidencia um protagonista às vezes hesitante e ansioso: ele é capaz de executar as tarefas, percebe a relação entre meios e fins, mas nem sempre age no sentido de concretizar completamente seus objetivos, ele deixa-os de lado no mesmo movimento em que coloca para si novas metas. Tal vacilação talvez fosse decorrente de sua má orientação nessas questões desde que elas tão precocemente se manifestaram (como defende a Torre), de todo modo, ao nosso ver suas desistências não comprometiam seu interesse curioso e sua capacidade 148

inventiva, ao contrário, elas dão provas justamente do vigor implacável de sua inclinação. A força dessa precoce convicção interior fazia com que Wilhelm exercesse naturalmente uma liderança em seu pequeno círculo, de modo a convencer os amigos e os irmãos pelo teatro e dirigi-los135. Essa mesma liderança se manifestará também mais tarde entre os atores desempregados que formaram a primeira trupe em que Wilhelm atuou profissionalmente; o magnetismo de sua persuasão a favor da excelência e dos méritos do teatro aliado às suas condições materiais, que afinal possibilitaram a todos colocar-se em atividade, foram alguns dos principais fatores que levaram adiante a trupe. Depois, Wilhelm – seu fervor e seu talento – foi o responsável pela admissão desses mesmos atores, então desvalidos após o assalto, na companhia de Serlo. Enquanto para seus amigos a experiência do teatro na infância era apenas uma brincadeira de criança, para Wilhelm, sempre o líder daqueles jogos, o teatro tornou-se espontaneamente seu modo de viver e de ver o mundo: ele via a si mesmo somente como ator e poeta, e exercitava-se na arte continuamente, sempre que isso lhe era possibilitado pela família. Passou a escrever peças, sempre partindo do final e nunca chegando ao início (I 8). Quando, arrumando seus papéis e livros para partir, Wilhelm reviu tudo o que produzira, livrou-se das más lembranças e pretendia aprofundar-se nos livros de crítica de arte, convencido que estava dessa necessidade e mesmo que não tivesse “chegado sequer à metade de qualquer uma” de suas leituras (I 10, p. 33). Vendo Wilhelm ocupando-se daqueles seus velhos papéis, Werner dá por conhecido o comportamento do amigo naquela área, dizendo: “aposto que não tens intenção de terminar” qualquer um deles. Wilhelm defende-se, replicando: “não é tarefa do aluno terminar alguma coisa, basta que se exercite” (I 10, p. 33). Não é sua tarefa, responde Werner, mas o aluno termina como pode. Assim, o amigo Werner é introduzido à história justamente observando essa vulnerabilidade de

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Iam formando então um “teatro particular” “e estavam convencidos que todos haveriam de nos tomar por aquilo que passávamos” (I 8, p. 29). Se a princípio só os meninos se interessavam, as meninas logo começaram a participar daquela ocupação que algumas famílias consideravam útil, convidando-os inclusive para serões.

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Wilhelm, tentando fazer com que isso denuncie, aos olhos do mundo, certa falta de obstinação e de firmeza de propósito. Wilhelm retruca: “não se há de ter boa esperança num jovem que, ao ser advertido de que realizou algo inepto, interrompe seu trabalho, evitando deste modo desperdiçar seu esforço e tempo em algo que jamais terá algum valor?” (I 10, p. 34). O que é posto em primeiro lugar não é simplesmente o cumprimento das expectativas sociais baseadas em resultados, mas a dedicação na direção fértil e, portanto, o constante aprimoramento; nessa maneira de pensar, o erro é o pavimento do caminho do autoconhecimento e do desenvolvimento da autoatividade. Por outro lado, Werner aponta para o fato de que não basta que Wilhelm desempenhe e avalie por conta própria sua suficiência, está lembrando ao herói que sua atividade deve um retorno social136. Já Wilhelm enfatiza sua tendência para a interação ativa com seus objetos, quer produzi-los e não apenas fruí-los; desse ponto de vista, o que primeiramente importa é a realização, não o acabamento. Essa perspectiva de Wilhelm poderia apontar, para além da autocomplacência, para algo mais decisivo quanto à sua real inclinação: que um intenso mergulho na atividade artística nem sempre tinha volta para o herói – e produzir algo exterior, objetivar para outras pessoas fruírem é pressuposto essencial da arte. Entretanto, toda a longa narrativa de Wilhelm no início do romance (I 28) trata exatamente do processo de formação artística do herói no final da infância até a adolescência, tentativas, erros e acertos. O que predomina, portanto, é como sua sensibilidade era particularmente receptiva à arte e foi moldada por e para essa atividade. Wilhelm via-se, portanto, como aprendiz, se ele não leu os livros até o fim, praticou escrevendo ensaios e tendo aqueles livros como modelo, e assim também se deu com suas peças teatrais daquela época. Até mesmo Werner chega a compartilhar dessa visão quando tenta impedir Wilhelm de destruir seus antigos escritos, alegando que o fato de eles não serem excelentes não seria motivo para que não fossem guardados – as lembranças de Mariane ainda estavam muito ligadas às suas últimas tentativas teatrais, e ele só pensava em livrar-se do passado. Werner

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Esse comentário que pode ser radicalizado na crítica à interiorização excessiva da formação da bela alma.

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considera a desistência total da poesia e do teatro algo radical demais, Wilhelm poderia muito bem fazer poesia como uma espécie de hobby, pois é inegável que ele possuía uma inclinação para tanto. Relativizando, Werner afirmava não ser razoável desistir [aufgeben] completamente de um talento, para o qual se tem um certo parâmetro de inclinação e habilidade, pela única razão de não poder exercitá-lo jamais em toda a sua perfeição. Há tempo livre de sobra, que se pode preencher dessa maneira e produzir pouco a pouco alguma coisa que proporcionará deleite a nós mesmos e aos outros (II 2, p. 80).

Wilhelm, por seu turno, está nesse momento tentando dolorosamente se convencer de que destruindo tudo o que produzira estaria dando provas de que levava a sério a renúncia a um ofício para o qual não nascera (II 2, p. 79). Para acabar com suas lembranças, ele dá uma justificativa que coloca em relevo seu respeito pela arte, já desqualificando a sugestão de Werner de que ela fosse praticada como passatempo137. A elevada estima de Wilhelm pela arte, entretanto, é uma exceção. Como uma prévia daquelas pessoas com quem Wilhelm mais tarde conviverá, o modo como se comportavam os outros atores era visível já nos tempos de Mariane. Preocupavam-se apenas se fariam sucesso junto ao público, quanto tempo ficariam em cartaz, etc., atacavam o diretor, faziam fofocas, reclamavam que o público não reconhecia um e outro com aplausos. Antes de iniciar sua jornada comercial, Wilhelm conhece Melina, um ator desempregado que se põe a falar de toda sorte de problemas práticos da profissão, e estes vão muito além dos problemas de comportamento e concepção dos atores: Já não é bastante que um diretor tenha de se atirar aos pés de cada um dos conselheiros municipais, só para obter deles a permissão de poder ganhar alguns poucos níqueis durante quatro semanas, nas feiras de uma localidade qualquer? Por vezes me pego deplorando nosso diretor, que aliás é um bom homem, embora em outros tempos tenha dado motivo a muita contrariedade. Bons atores estão sempre a lhe exigir aumento, e dos maus ele não consegue livrar-se; e quando tenta equilibrar de algum modo receita com despesa, o público não lhe

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É de se observar aqui que o ofício de poeta somente começava, à época de Wilhelm, na Alemanha, a tornar-se uma profissão, isto é, uma ocupação exclusiva e rentável, independente de outros ofícios – Johann Christoph Gottsched (1700-1766) e Christian Fürchtegott Gellert (1713-1795) foram, por exemplo, professores universitários. Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803) e Christoph Martin Wieland (17331813) são os primeiros escritores alemães a exercer somente a atividade poética, o primeiro porque foi financiado pelo rei dinamarquês, o segundo porque conseguiu viver como escritor por meio de sua revista Der teutsche Merkur (1773-1789).

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responde, a casa fica vazia e, para não se arruinar de todo, é obrigado a representar com perdas e dissabor. Não, meu senhor! Já que, como diz, pretende interceder por nós, peço-lhe que fale seriamente com os pais de minha amada! Que me arranjem por aqui uma colocação, que me deem um emprego qualquer, de escrevente ou recebedor, e ficarei muito feliz! (I 12, p. 49)

Melina tem medo de voltar ao teatro. Ele prefere qualquer emprego, na burocracia administrativa ou no comércio, que lhe garanta um sustento estável. Melina não fala de arte, do sublime, do belo, seu ponto é a dificuldade para se levar a caso ofício e a retribuição que se recebe por isso. Enfim, as agruras cotidianas da profissão, que para ser realizada depende de muitos fatores cambiantes. Wilhelm discorda completamente, não insistindo mais com Melina, e só irá desabafar quando já está longe. Já no começo da tão planejada viagem (II 3), várias pessoas passam por Wilhelm até que um homem conta-lhe que todos seguiam para ver a representação de uma comédia numa localidade ali perto. Os atores eram os empregados de uma fábrica – “que dá sustento a muita gente” – cujo dono não permitia que eles preenchessem o tempo livre do inverno com ocupações grosseiras como o carteado. O proprietário da fábrica estava sendo homenageado pelos empregados por ocasião de seu aniversário. Como Werner já aludira, vê-se novamente confirmado que o teatro poderia ser uma razoável ocupação de tempo livre, instrutiva e útil, portanto, portadora de algum valor, mas definitivamente não podia ser considerada como atividade principal de nenhum trabalhador. Aficcionado pelo teatro, Wilhelm desenvolveu um olhar crítico, tornou-se capaz de avaliar e julgar as peças que via, percebendo o que faltava aos atores para se tornarem melhores, opinião que expressava de modo espontâneo e entusiasmado, como na ocasião em que “não pôde furtar-se de subir aos bastidores, para ver mais de perto as atrizes, felicitá-las por sua atuação e dar-lhes alguns conselhos para o futuro” (II 3, p. 87). Após essa curta incursão, Wilhelm resolve descansar em uma outra localidade – ocasião em que conhece sua futura trupe, composta por atores desempregados, e reencontra Melina e sua mulher – que também não haviam tido sucesso na busca por colocação no teatro. Nessa mesma localidade conhecemos o casal de saltimbancos de sucesso Narcisse e Landrinette (II 4, p. 101). Narcisse fala com Wilhelm, porém, sobre outro aspecto da dura 152

vida teatral: essa é também uma atividade produtiva (capitalista), na medida em que o ator trabalha para o empresário, que obtém daí seu lucro. A consequência disso é que Narcisse, apesar de toda aclamação pública, não sente prazer e alegria na realização da atividade e nem em seu resultado. . A trupe no castelo dos condes Wilhelm decide seguir a trupe ao castelo dos condes para se aproximar da vida dos nobres, “do grande mundo”, rever a bela condessa e receber a dívida de Melina, todas essas razões são elencadas por Wilhelm (através do narrador) para, afinal, justificar uma decisão que de outro modo ele não teria coragem de tomar. – Tens trabalhado até o momento – dizia-se a si mesmo – para ti em silêncio, só recebendo a aprovação de alguns poucos amigos; durante algum tempo puseste totalmente em dúvida teu talento e continuas ainda preocupado, querendo saber se estás no caminho certo e se tens tanto talento quanto inclinação para o teatro. Aos ouvidos de tão experimentados conhecedores, nos gabinetes onde não há lugar para nenhuma ilusão, a tentativa é muito mais perigosa que em qualquer outra parte, mas tampouco gostaria de ficar para trás, de deixar de vincular este prazer a minhas alegrias anteriores e fazer maior minha esperança no futuro (III 5, p.161).

O monólogo interior mostra que Wilhelm está predisposto a localizar em si mesmo, na sua própria insuficiência, qualquer insucesso que venha a lhe ocorrer. Desde aquelas tentativas infantojuvenis, será a primeira vez que o herói colocar-se-á novamente no papel de ator será no castelo dos condes. Para ele, é chegado o momento mais importante de sua vida quanto à prova de suas habilidades artísticas, a hora de saber se suas inclinações o estão conduzindo para o caminho correto, isto é, se a efetivação de suas inclinações teatrais será de fato a realização de sua individualidade, se ele tem talento, se será reconhecido por isso. Wilhelm desprezará o fato de que aqueles nobres são desqualificados para julgá-lo, para o herói, a aprovação deles será sua consagração. Mesmo assim, antes de qualquer sinal dos nobres, frente ao barão e ao conde, Wilhelm considera-se e posiciona-se como artista; é o que se depreende de quando ele diz que provavelmente o conde não quis a peça exatamente de acordo com as indicações que havia dado, ao contrário, com elas quis 153

mostrar apenas o rumo correto, pois “o aficcionado e conhecedor sugere ao artista o que deseja e deixa então aos cuidados deste a execução da obra” (III 6, p.163). O respeito de Wilhelm pela arte no decorrer de sua vida teatral não é incoerente com seu anseio por popularidade, mas não é esse seu critério. Ao empreender seus projetos, o protagonista não abre mão de suas concepções para agradar um e outro, mesmo que este outro venha a ser um admirado conde. Quando Melina (que como diretor havia sido encarregado pelo conde da “versificação e dos demais arranjos” da peça em honra ao príncipe) vem pedir a ajuda de Wilhelm na montagem da homenagem que, de acordo com as indicações do conde, deveria personificar as qualidades de “grande herói e filantropo” do príncipe (III 6), Wilhelm, tendo em vista sua experiência teatral anterior, declinou por achar que eles fariam algo tosco com essas indicações e sem o material disponível, afirmando que ele não faria parte disso, embora não impedisse ninguém de fazê-lo ou mesmo não tivesse “nada contra” tal intento. Melina desculpou-se e retificou: eles poderiam fazer o que quisessem. Conquistada a autonomia de trabalho, Wilhelm então se animou. Entregou-se com afinco à escrita da peça, já que seria com ela que o herói “faria sua entrada no grande mundo” (III 5, p. 161). Seguindo as convicções artísticas do herói, a trupe alcança sucesso na referida peça. Wilhelm imaginou uma cena campestre com crianças brincando, depois entraria o harpista cantando canções suaves louvando a paz e a alegria, depois Mignon com a dança dos ovos (mas ela se recusou e Wilhelm teve de pensar na substituição da cena). Em seguida, começa a discórdia e a violência com a entrada de uma tropa de soldados que os atacaria. É quando chega o magnânimo chefe militar, que restabelece a paz (III 7), acompanhado da figura de Minerva, da qual o conde fazia questão138.

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Nessa encenação, Wilhelm parece aproximar-se do estilo poético anacreôntico. Amor, amizade, natureza e até uma deusa grega estavam entre os motivos frequentes apreciados em meados do século XVIII alemão e praticado temporariamente por ilustres poetas, Jacobi, Klopstock, Jakob Michael Reinhold Lenz, Lessing, Schiller e o próprio Goethe em seus anos de juventude. Os motivos são relativamente estreitos, reduzem-se ao carpe diem e ao próprio fazer poético. A forma, igualmente, constitui-se de estrofes de versos jâmbicos que tornam o poema fortemente redundante. Cf. Beetz, Manfred; Kertscher HansJoachim (orgs.): Anakreontische Aufklärung. Hallesche Beiträge zur Europäischen Aufklärung Bd.28, Tübingen 2005. Trunz considera que as mudanças de Wilhelm sobre a concepção original do conde foram

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A representação surpresa foi feita, o conde ficou satisfeito com tudo, os atores foram cumprimentados um a um pelo príncipe, e Wilhelm foi distinguido particularmente na qualidade de autor, “recebendo também sua quota de aplausos”. Dentro de pouco tempo, contudo, ninguém mais se lembrava do assunto, exceto Jarno, “o único a falar casualmente a esse respeito com Wilhelm e elogiá-lo com algum senso, embora tivesse acrescentado: – É lamentável que tenha de atuar ao lado de nozes ocas e para nozes ocas!” (III 8, p.171). Falando friamente, Jarno expressa a opinião, que aparece ao longo do romance, de que nem plebe nem nobres sabem o que é o verdadeiro e mais profundo sentido do teatro, algo que é tão vivo em Wilhelm. O herói guardou as palavras de Jarno durante algum tempo na memória “sem saber como interpretá-la nem o que dela colher” (III 8, p. 171). Já há alguns dias, o barão dizia que iria apresentá-lo em particular à condessa, pois há muito falava com ela das peças “sensíveis e espirituosas” de Wilhelm. Ela já estava ansiosa para ouvi-lo ler uma delas. O barão havia prevenido Wilhelm de que ele poderia ser chamado a qualquer hora. Indica ainda o que Wilhelm deveria ler em primeiro lugar para ser “merecedor de particular distinção”. O herói parece acolher seus conselhos. Wilhelm “ansiava recitar à bela condessa algo que lhe despertasse o interesse e com o qual pudesse deleitá-la”. Ele estudou suas peças, preparou-se com leituras em voz alta e dicção fluente e separou uma delas “com a qual acreditava conquistar as mais altas honras” (III 5, p.161). O barão conta ainda que a “admirável dama” sente muito por Wilhelm ter chegado ao castelo naquele momento em que ele estava tão conturbado de hóspedes e, portanto, que ele tenha ficado tão mal alojado139. Porém, a condessa, infelizmente, não parecia ansiar tanto por fruir a arte de Wilhelm. Quando o mandou chamar, estava com a baronesa, algumas criadas e Philine, que entretinha as damas com canções. O cabeleireiro demorava para terminar o penteado da condessa. A baronesa tentava entreter Wilhelm e demonstrar-lhe grande estima, Wilhelm

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no sentido não apenas de deixar a peça mais dramática e refinada, mas também mais moderna (HA7, p. 737). No dia da chegada, ninguém os recebeu. Ensopados da chuva, passaram frio e fome até que alguma ajuda chegasse, e mesmo assim precária – colchões e travesseiros molhados, comida que parecia ser resto.

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“acatou com respeito, ainda que um pouco distraído”. Receberam ainda um vendedor. Wilhelm estava perdendo a paciência, esperou em vão. Foi dispensado aquele dia. Wilhelm continua firme em seu intento de querer aproveitar ao máximo a oportunidade que o acaso lhe trouxera para confirmar a si mesmo o que ele almejava ser seu destino. Mas também no castelo dos condes a condição teatral, mesmo sob seu ângulo mais favorável, não aparece sob a melhor luz. A trupe representava todas as noites; a companhia já se achava o centro das atenções e a causa daquele aglomerado no castelo. Somente Wilhelm, para seu grande desprazer, dava-se conta exatamente do oposto. Pois, ainda que o príncipe, sentado em sua poltrona, tivesse assistido às primeiras apresentações, com a máxima retidão, do início ao fim, aos poucos parecia eximir-se daquilo de um modo discreto. Justamente aqueles que Wilhelm considerava nas conversas os mais compreensivos, começando por Jarno, não passavam senão alguns momentos fugidios na sala de teatro, permanecendo na maior parte das vezes sentados na antessala, jogando ou falando, ao que parece, de negócios. Incomodava demasiadamente a Wilhelm ver seus desvelos contínuos privados de aplausos tão desejados. Na escolha das peças, na transcrição dos papéis, nos frequentes ensaios e no que mais pudesse haver, ele dava com afinco sua ajuda a Melina, que afinal, reconhecendo calado sua própria insuficiência, deixava-o fazer tudo. Wilhelm decorava diligentemente os papéis e declamava-os com calor e vivacidade, e com tanto decoro quanto lhe permitia o pouco de formação [Bildung] que havia adquirido (III 8, p. 171).

O interesse constante do barão dissipava as dúvidas dos outros integrantes. Ele justificava que o príncipe preferia o teatro francês e Jarno, o inglês. As representações iam seguindo, mas o interesse do príncipe, de Jarno e dos outros diminuía. No momento em que estavam todos de partida do castelo, o barão dá a eles algumas lembrancinhas em nome da condessa e do conde, que haviam partido cedo. O conde reconhece o “trabalho poético” de Wilhelm e seus “desvelos para com o teatro” pedindo que o barão lhe entregue uma bolsa cheia de ouro (especialmente tricotada pelas senhoras). Wilhelm recusa-se a aceitá-la; mas o barão insiste para que ele considere a oferta “como uma compensação pelo tempo que o senhor despendeu, como um reconhecimento por seu trabalho, e não uma remuneração por seu talento”, afinal, completa o nobre, “quando este nos acarreta um bom nome e a estima das pessoas, é justo que, através da aplicação e do esforço, conquistemos também os meios de satisfazer nossas necessidades, já que não 156

somos apenas espíritos” (IV 1, p. 202). Pela primeira vez na vida de Wilhelm, sua atividade com o teatro é distinguida e remunerada, e pelos condes. Ouro, todavia, não era o reconhecimento que ele ansiava receber. Ele buscava “descobrir mais a respeito de si mesmo e do mundo”, bem como confirmar ou não seu talento 140. E assim, ele responde ao barão: Perdoe meu embaraço e minha hesitação em aceitar este presente. É que ele destrói, de certo modo, o pouco que fiz e impede o livre jogo de uma feliz recordação. O dinheiro é uma bela coisa, quando se tem algo para liquidar, e eu não desejaria ver completamente liquidadas as lembranças de sua casa (IV 1, p. 202).

Wilhelm despreza o dinheiro. Apesar de – e porque – ele é amparado materialmente pela família, a questão monetária não está posta para ele como problemática pertinente à sua constituição individual. Isso nos permite entrever que o que Wilhelm tem a preencher dentro de si está condenado, naquela sociedade, a permanecer sempre vazio. O barão replica como é estranho que Wilhelm se recuse a receber dinheiro “de amigos e benfeitores”, sendo que, se fosse “qualquer outro presente”, ele os receberia de bom grado (IV 1, p. 203). Ele reconhece os delicados sentimentos de Wilhelm, que como sabemos anseia por fama e reconhecimento de suas qualidades mais nobres e íntimas (ainda inescrutáveis para si mesmo), mas insiste: o conde, “cuja maior ambição é ser atencioso e justo”, considerar-se-á um devedor de Wilhelm se ele não aceitar sua recompensa. Ainda mais porque o conde soube, inclusive, que além do trabalho e do tempo que Wilhelm dedicara ao teatro, ele gastara do próprio dinheiro para “agilizar certas providências”. É então que ficamos sabendo, pelo próprio Wilhelm, que ele, sem enviar notícias a seus familiares, há muito está desgostoso com a situação do dinheiro da família, do qual deveria já ter prestado contas141. Mais uma vez demonstrando seu desapego material e, ao

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Só agora Wilhelm poderia ser capaz de compreender o harpista quando cantou uma canção em que parodiava Wilhelm como um rei que oferece ao excelente cantor uma corrente de ouro como recompensa por seu desempenho (II 11, p.123), pois o mais valioso ao artista não é o bem material (v. Hannelore Schlaffer: 1980). Wilhelm continua seguindo o mesmo comportamento de antes para com sua família: também no passado ele não se sentia culpado em esconder de seus pais o seu amor por Mariane e pelo teatro, ao contrário, na disposição de espírito em que se encontrava justamente por causa do amor, sentia-se totalmente confiante

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mesmo tempo, a necessidade que tem de corresponder ao que lhe foi exigido, ele diz: – Se só pensasse em mim, se só tivesse de seguir meus próprios sentimentos – replicou Wilhelm –, relutaria em aceitar tal presente, a despeito de todas as razões, por mais belo e honroso que seja; mas não posso negar que, ao mesmo tempo em que me constrange, livra-me de um embaraço em que ainda me encontro junto com os meus, e que me tem causado, em silêncio, muitas mágoas. Não administrei da melhor maneira nem o dinheiro nem o tempo, e deles devo prestar contas; agora, graças à generosidade do senhor conde, poderei comunicar a todos os meus familiares, confiadamente, a notícia venturosa, para onde me conduziu este singular atalho. Sacrifico assim a delicadeza que, em tais ocasiões, nos adverte como uma consciência delicada, em nome de um dever maior e, para poder apresentar-me briosamente aos olhos de meu pai, quedo-me envergonhado diante dos seus (IV 1, p. 203).

Embora se alegre com isso, o barão acha estranho os escrúpulos que impedem Wilhelm de aceitar imediatamente o dinheiro. Lembra-se da anedota do poeta que agradara muito um monarca, e quando este pretendia recompensá-lo, quis antes saber se não ofenderia o poeta ao oferecer-lhe dinheiro. O poeta responde que não: como negaria o dinheiro daquele que toma seu dinheiro todos os dias? Essa anedota não deixa de se encaixar ao caso de Wilhelm. Ele é um burguês numa época e num lugar em que a aristocracia era ainda a maior proprietária das riquezas, das terras e do patrimônio espiritual, por assim dizer. Todos os demais estratos pagavam tributos para que ela continuasse existindo, ou seja, de certo modo, pagavam para que continuassem a ser subjugados por ela. É a primeira vez que Wilhelm recebe um bom pagamento pela atividade que elegeu. É um bom pagamento dado espontaneamente em reconhecimento ao seu valor, não é como um e outro trocado que por vezes tenha recebido do diretor Melina por sua atividade na companhia teatral – o que, aliás, nunca ficou claro. Assim, ao mesmo tempo em que Wilhelm não espera por essa recompensa – pois acha sinceramente que não a merece – e depois a despreze, por achar que isso diminuiria seu brio, ele passa a vê-la com orgulho depois que a aceita:

e convicto nessa omissão que tanto protegeria esse amor quanto suas relações familiares.

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Fez suas contas e descobriu que, cumprindo Melina a promessa de lhe pagar em breve a soma que recebera adiantadamente, tinha em caixa tanto ou mais dinheiro que no dia em que Philine lhe mandara pedir o primeiro ramalhete. Com íntima satisfação pensava em seu talento, e com certo orgulho, na sorte que o havia guiado e acompanhado (IV p.204).

Wilhelm não tem como objetivo a recompensa financeira pela atividade que considera ser a mais verdadeira manifestação de sua individualidade. Não foi seu tino para os negócios que o fez chegar a uma feliz situação de sua bolsa. O desapego material de Wilhelm transforma-se, por força das circunstâncias, em edificação do dinheiro 142. Além do montante monetário tê-lo livrado de apuros com seus familiares, por meio do pagamento feito por pessoas socialmente distintas como forma de reconhecimento de seu talento Wilhelm percebe “o valor e a dignidade do ouro”, como expressa o narrador: Assim que o barão deixou os aposentos, Wilhelm correu a contar o dinheiro que tão inesperada e, conforme acreditava, tão imerecidamente viera parar em suas mãos. Ao ver rolar daquela rica bolsa as belas e brilhantes peças de ouro, foi como se pela primeira vez percebesse intuitivamente o valor e a dignidade do ouro, a que só nos tornamos sensíveis anos depois (IV 1, p. 204).

É somente agora, com o valioso ouro sendo a recompensa de seu talento e trabalho, que ele sente-se socialmente reconhecido e passa a alegrar-se consigo mesmo e com sua atividade. Com o dinheiro, Wilhelm vê sua atividade legitimada também para a sociedade. Nesse sentido, a narrativa de sua própria situação para outros aos quais devia explicações e respeito mostra-nos o que é valorizado por eles e também, em certa medida, pelo próprio Wilhelm. Confiante, tomou então da pena para escrever uma carta que serviria para demover prontamente sua família de qualquer embaraço e lançar melhor luz à sua conduta precedente. Evitou fazer um relato minucioso, deixando que imaginassem, através do emprego de expressões significativas e misteriosas, o que podia haver-lhe ocorrido. O próspero estado de sua bolsa, o lucro que devia a seu talento, o favor dos grandes, a inclinação das mulheres, os conhecimentos adquiridos num amplo círculo, o desenvolvimento de suas disposições físicas e espirituais, a esperança no futuro, constituíam uma miragem tão extraordinária que nem mesmo a Fata Morgana em pessoa teria sido capaz de criar de maneira

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Essa mesma lógica repete-se no final do romance, quando o até então materialmente descuidado Wilhelm admite (por força das relações com os membros da Torre) que apenas o patrimônio material é algo sólido para garantir o futuro de seu filho.

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mais estranha e confusa (IV 1, p.204).

Wilhelm não havia ainda mandado notícias à família por não ter como prestar contas, mas não foi só isso. Ele não escreveu não por ter medo de ser recriminado pelo pai porque não esteve ativo no comércio como deveria ter estado; Wilhelm não queria confessar a verdade quanto à atividade teatral e, por isso sim, ser repreendido. No entanto, o dinheiro do conde salvou-o desse impasse. Wilhelm pôde continuar ocultando a verdade, sustentando que cumpria em dia os negócios dos quais fora incumbido e prosseguindo seu caminho a seu modo. Wilhelm vale-se do dinheiro para neutralizar seu deslize moral para com a família. O dinheiro serviu-lhe de muitas maneiras, portanto. Depois de escrever a carta à família, na qual pintava em grandes traços os últimos acontecimentos de sua vida, Wilhelm “continuou nessa venturosa exaltação”, mantendo consigo mesmo um longo solilóquio em que recapitulava o conteúdo do que escrevera e descrevia a si próprio um ativo e digno futuro. Inflamara-se com o exemplo de tantos nobres guerreiros, abrira-lhe um mundo novo a poesia shakespeariana, e dos lábios da condessa havia sugado um fogo inefável. Tudo isso não podia nem devia restar sem efeito (IV 1, p.204).

Entretanto, Wilhelm precisa de um tipo de reconhecimento cujo verdadeiro sinal não é monetário. Por isso, nosso herói continua empenhado. Avesso a uma atitude vaidosa e individualista, ele prepara-se para o futuro exortando os atores para que dessem o melhor de si, estudassem, trabalhassem em equipe, fizessem com que todos tivessem voz no grupo. Não há como deixar de ver – exclamou nosso amigo – quão longe poderemos chegar se persistirmos assim em nossos exercícios, e não nos limitarmos simplesmente por dever de ofício. Tanto mais elogios merecem os músicos, tanto mais se regozijam e acertam, quando praticam em conjunto seus exercícios! Como se empenham em harmonizar seus instrumentos, com que precisão mantêm o compasso, com que delicadeza sabem expressar a força e a debilidade de um som!/.../ Não deveríamos nós também proceder com a mesma precisão e o mesmo espírito /.../ ? Pode haver algo mais horrível que macular os ensaios e fiar-se no capricho e na sorte durante a representação? Deveríamos aplicar nossa felicidade e satisfação maiores em conciliar-nos uns com os outros, para deleite mútuo, e só apreciar o sucesso do público depois de já o havermos garantido de certo modo a nós mesmos. /.../ raramente tenho visto um ator reconhecer e envergonharse de seus desacertos, perdoáveis ou não, que ofendem de maneira tão indigna o ouvido interior. Não desejaria eu outra coisa senão que o teatro fosse tão estreito quanto a maroma de um funâmbulo, para que nenhum inepto ousasse nela subir, ao contrário do que ocorre agora, quando qualquer um se sente apto o bastante para se exibir em público (IV 2, p. 211-212).

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Todos acreditavam “haver aberto uma nova perspectiva para o teatro da pátria” (IV 2, p. 213)143. Ainda que isso fosse um exagero, o otimismo de Wilhelm tem fundamento: na ocasião da chegada dos condes à estalagem, eles estavam totalmente despreparados, nunca haviam ensaiado juntos, e mesmo assim são convidados ao castelo e lá permanecem por um bom tempo. . A companhia de Serlo Serlo, “já homem feito, possuidor de um nome marcante e numa posição muito boa, ainda que não segura" (IV 18, p. 266), convida Wilhelm, o qual conhecia de outros tempos, para integrar sua companhia. Mais do que um ensejo para Wilhelm seguir atuando, a nova companhia era uma excelente oportunidade para o herói, já que os irmãos Serlo e Aurelie conduziam um teatro profissional e bem-sucedido. Assim, se nosso herói pretende transformar em ofício sua inclinação, estes são os melhores indivíduos que ele poderia encontrar no caminho de sua atividade teatral144. Wilhem lembrou-se de Serlo após o assalto sofrido pela trupe – o herói tentaria fazer com que os atores fossem contratados por Serlo. Este, porém, ao vê-los, não os hospedou nem os contratou, negando qualquer intervenção de Wilhelm. Em segredo, porém, avaliava seus talentos, até que um dia fez a inesperada proposta a Wilhelm, que passava horas agradáveis junto aos irmãos, enquanto os outros estavam bravos e carrancudos: se ele ingressasse na companhia, Serlo contrataria todos os outros. Contou a Wilhelm a situação em que se encontrava sua companhia (o galã que provavelmente o deixaria e levaria outros atores consigo); Wilhelm, perplexo, ouviu a proposta “com inquietação” (IV 19, p. 268). Uma obra de arte que apresenta com perspicácia caracteres, ações, destinos etc. tem

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Em IV 2, quando concluíram que um diretor não seria necessário, resolveram pela forma de governo republicana e as mulheres tinham direito a voto: o cargo de diretor seria rotativo. Melina aceitou (pensando em economizar algum dinheiro). O primeiro diretor interino eleito foi Wilhelm. Afinal, Wilhelm alcança um alto posto: “o grupo de teatro de Serlo oferece o melhor que um grupo de teatro alemão por volta de 1770 pode oferecer” (Seitz: 1996, p. 133).

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uma natureza fechada e imóvel que permite a Wilhelm aprofundar-se, apossar-se do objeto; isso é muito diferente da vida, do desconhecido. Nesse sentido, o narrador comenta sobre os pensamentos de Wilhelm após a notícia da pai, fato que lhe parecia exigir uma resolução ainda mais urgente quanto à proposta de Serlo: Seus pensamentos eram nobres, suas intenções sinceras e não pareciam condenáveis seus propósitos. Tudo isso ele próprio podia reconhecer com uma certa confiança: só que tivera ocasiões bastantes de perceber que carecia de experiência, daí por que atribuía convictamente um valor excessivo à experiência alheia e aos resultados dela derivados, o que vinha sempre dar em erro. Aquilo que lhe faltava acreditava adquirir retendo e reunindo tudo o que podia encontrar de notável nos livros e na conversação. Eis por que tomava notas de idéias e opiniões alheias que lhe pareciam interessantes, retendo infelizmente dessa maneira tanto o falso quanto o verdadeiro, fixando-se tempo demais a uma idéia e, poder-se-ia dizer, a uma sentença, perdendo assim sua natural maneira de pensar e de agir ao seguir no mais das vezes luzes estranhas como se fossem estrelas-guias (V 1, p. 281).

Wilhelm precisava adquirir experiência; ele aceita a proposta. A primeira vez em que Wilhelm atuou representando um personagem complexo, cujo estudo demandou um esforço que nosso herói não havia ainda feito, foi em seu papel como Hamlet, sua peça de estreia junto à nova companhia. Esta foi propriamente, como disse Serlo, a estreia de Wilhelm na carreira teatral. Serlo delega as principais decisões a Wilhelm, que dedica-se então integralmente à consecução de Hamlet. Ele não só é personagem principal como também o responsável pela dramaturgia, e apesar de estar feliz com sua ideia, em sua adaptação Wilhelm sentia que não fazia “outra coisa senão corromper a peça” (V 5, p. 294) – a fidelidade ao poeta era seu lema. Quando Serlo discorre animado sobre a montagem dos caracteres de seu personagem Polônio (“Poucas vezes assumi um papel com tanto prazer e tanta malícia”), Aurelie diz que não consegue se reconhecer em tal caráter brando e jovem, ainda que conheça muito bem o sentimento que predomina em Ofélia, Wilhelm, por sua vez, diz para eles se prenderem menos a essas coisas, pois foi seu grande desejo de representar Hamlet que o levou a erros terríveis, mesmo estudando muito o papel. E comenta: “quando me pego a refletir no quanto tudo está exatamente relacionado com esse papel, quase não me sinto seguro de produzir um efeito razoável”, Serlo responde: “Sua estreia na carreira é 162

muito escrupulosa. O ator adapta-se como pode ao papel, e o papel assimila-se a ele como deve”. O comentário de Serlo indica certa leviandade frente ao rigor das considerações de Wilhelm, e esse contraponto ocorrerá em diversas ocasiões. Assim, por exemplo, depois de elogiar a seriedade de Wilhelm junto aos atores, insistindo na importância de se fazer um ensaio de leitura, Serlo comenta: “não há nada mais divertido que ouvir os atores falando de estudos, causa-me a mesma impressão que quando ouço os franco-maçons falando de trabalho”145, e explica: – Descobri – disse Serlo – que, assim como é tão simples pôr em movimento a imaginação dos homens e tão fácil fazê-los contar histórias, é igualmente tão raro encontrar neles alguma sorte de imaginação produtiva. Entre atores, isso é muito marcante. Todos se sentem satisfeitíssimos em assumir um belo, brilhante e louvável papel; mas é raro que algum deles faça mais que se colocar vaidosamente no lugar do herói, sem ao menos se preocupar em saber se alguém poderia tomá-lo por aquele. Mas a poucos é dado compreender vivamente o que o autor pensou ao escrever a peça \...\. Essa íntima força do espírito, que por si só dá a ilusão ao espectador, essa verdade fictícia, que por si só produz todo o efeito e por si só obtém a ilusão, quem de tudo isso faz alguma ideia? Não insista pois demasiadamente conosco para que tenhamos espírito e sentimento! O meio mais seguro é explicar primeiro a nossos amigos, com calma, o sentido da letra e abrir-lhes a inteligência. Quem tem aptidão, logo se dará pressa em encontrar a expressão sensível e engenhosa, e quem não a tem, pelo menos não representará nem declamará de maneira totalmente falsa. Mas não tenho encontrado entre os atores, como de resto em todas as partes, pretensão maior que a de exigir de alguém espírito, enquanto ainda não é clara e familiar a letra (V 7, p. 304).

A admoestação, introduzida com um elogio, feita a Wilhelm por Serlo (ele mesmo possuidor de uma tendência a seguir pelo caminho do menor esforço), indica que o herói dava um passo muito largo pedindo que os atores tivessem sentimento e espírito na interpretação, se eles nem ao menos tinham compreendido o texto. Wilhelm acredita que os atores são capazes não apenas de compreender, mas também de aprender, e tudo isso se reverteria no melhoramento da arte de interpretar. Wilhelm continuava insistindo "no sentido e tom de conjunto", Serlo "elaborava conscientemente as partes distintas". Fato é que “um zelo digno de louvor animava também os atores, por quem o público mostrava um

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Essa parece ser uma ironia de Goethe em relação à sua própria Sociedade da Torre, de inspiração maçônica, e sua maior autoridade, o abade, de origem francesa.

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vivo interesse” (V 16, p. 334), e Serlo dizia que em breve o público estaria também no caminho correto. Por fim, deduz-se que exatamente esse rigor de Wilhelm fez com que os atores representassem melhor e produzissem o melhor resultado. Nota-se, ainda, uma mudança de postura no herói: se quando criança sentia-se habilitado a representar qualquer papel, o desafio, quando adulto, pareceu-lhe bem mais difícil. De fato, Wilhelm começa a estudar o papel de Hamlet com a mesma atitude de quando criança, a saber, concentrando-se nos momentos mais dramáticos e decisivos; mas depois percebe que deveria agir diferente, denotando um paulatino aperfeiçoamento de Wilhelm na arte do ator (IV 3, p. 213-215). Por essa mesma razão, isto é, por Wilhelm primar pela arte, os aficcionados foram tão bem acolhidos por ele e muito úteis ao desempenho dos atores, eles que “eram, em suma, daqueles aficcionados que todo artista deseja em sua profissão” (V 8, p. 306): /.../ no tocante à representação de Hamlet, não concordavam em todos os pontos com Wilhelm; este fazia concessões aqui e acolá, mas em regra mantinha sua opinião e, no geral, essas conversas foram-lhe muito úteis para a formação de seu gosto (V 8, p. 306).

Os atores passaram a observar os movimentos das mãos e dos corpos, a voz alta e clara e outros numerosos aspectos da arte de representar. Os dois sugeriram que todos os homens aprendessem a lutar, já que a peça assim o exigia. Wilhelm e Laertes foram os primeiros a se submeter às aulas com um suboficial. Depois exigiram que todos falassem de maneira audível. Os outros atores reclamavam da exigência, mas Wilhelm treinou e deu o exemplo, de modo que todos fizeram o mesmo. “Ele articulava bem, expressava-se com moderação, subia o tom gradualmente e não gritava nem mesmo nas passagens mais violentas” (V 8, p. 307). Wilhelm não deixou de demonstrar o quanto estimava os aficcionados. Na estreia da grande peça, o narrador comenta sobre a aclamação pública à atuação de Wilhelm, que acertou em determinados momentos mesmo sem querer. É nítido na estreia como as emoções suscetíveis e sinceras que Wilhelm manifesta desde a infância influenciaram sua arte. Wilhelm, que acreditava haver-se saído muito mal no primeiro monólogo,

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devido à distração, inquietude e embaraço, sentia-se realmente muito incomodado, ainda que os aplausos calorosos tivessem acompanhado sua saída em meio àquela pavorosa e dramática noite de inverno. Controlou-se no entanto e pronunciou com a adequada indiferença a passagem tão oportuna sobre os festins e as bebedeiras dos homens do Norte; esqueceu-se, tanto quanto o público, do espectro, e assustou-se de fato quando Horácio exclamou: - Olhai, está chegando! (V 11, p. 316)

Do nada, o espectro apareceu, e Wilhelm ficou petrificado, era a primeira vez que o via146. Expressa de maneira perfeita o terror, o susto e a surpresa de Hamlet; “dirigiu sua fala ao espectro em tom tão aturdido, entrecortado e constrangido que nem mesmo a maior de todas as artes teria podido expressar-se de maneira tão perfeita” (V 11, p. 316). O público, visivelmente, estava muito comovido. Quando o espectro declarou em voz clara, rouca e timbrada que era o espírito de seu pai, Wilhelm, profundamente abalado, pensou ouvir a voz de seu próprio pai (recordemos que a notícia da morte de seu pai havia lhe chegado a pouco, V 1). Essas sensações e reminiscências admiráveis, a curiosidade em descobrir o estranho amigo, a preocupação de não ofendê-lo e a inconveniência de estar muito perto dele, mesmo como ator naquela situação, levaram Wilhelm para o extremo oposto. Durante a longa fala do espectro, ele mudou várias vezes de posição e pareceu tão indeciso e confuso, tão atento e distraído, que sua atuação provocou uma admiração geral, tanto quanto despertava o espectro um terror geral. Este falava com um profundo sentimento de desgosto mais que de desolação, mas de um desgosto espiritual, lento e interminável. Era o desalento de uma grande alma, separada de tudo que é terreno, que, no entanto, padece de tormentos infindáveis (V 11, p. 317).

O espectro desaparece de cena de forma singular, por meio de um alçapão. A peça seguiu seu curso muito bem, com o público satisfeito e os atores atuando com prazer e vibração crescentes. A representação de Hamlet foi um grande sucesso. Ao final, o público aplaudiu calorosamente, todos queriam ver a peça novamente. Mesmo após o incêndio (V 15), as apresentações seguiam seu curso, mas Wilhelm, apesar do incontestável sucesso, raramente ouvia o que queria do público, a cuja opinião era atento. Mais se aborrecia e se perturbava. O narrador dá exemplos, como o fato de confundirem Wilhelm e Laertes ou, se

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O espectro era uma preocupação para Wilhelm, mas ele estava confiante no estranho e secreto amigo que lhe garantira que o espectro apareceria no momento certo, que chegou mesmo a esquecer-se completamente disso até a hora da peça, em que por fim ele é lembrado pela própria aparição.

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elogiavam uma cena em especial de Wilhelm, falavam de algo supérfluo que havia destruído toda ilusão. Enfim, comentários que demonstravam o quanto o público não estava em condições de julgar segundo critérios artísticos e também não estava à altura daqueles belos sentimentos e dos sacrifícios de Wilhelm. Quando Wilhelm, perplexo, vai consultar Serlo sobre a mensagem enigmática do véu que o espectro havia deixado (“Foge, meu jovem, foge!” V 13, p. 322), este não sabia nada explicar sobre isso, mas era certo que não podia concordar com aquelas palavras. Como ele “poderia estar de acordo com alguém que parecia ter a intenção de afastar o melhor ator de sua companhia?” (V 13, p. 323). Essa apreciação, vinda de um renomado ator e diretor, não pode ser subestimada pelo leitor que quer se certificar do real talento do protagonista. Mas em pouco tempo essa sociedade se desintegraria. Infelizmente, ocorre que, em geral, tudo o que há de ser produzido através do contato de vários homens e circunstâncias não pode manter-se perfeito por muito tempo. Quer se trate de uma companhia teatral ou de império, de um círculo de amigos ou de um exército, é comum poder indicar-se o momento em que se encontram no mais alto grau de sua perfeição, harmonia, satisfação e atividade; mas é freqüente alterar-se rapidamente o pessoal, introduzindo-se novos membros, não mais se adaptando as pessoas às circunstâncias, nem as circunstâncias às pessoas; tudo se transforma, e o que estava unido, logo se desfaz. Assim, podia-se dizer que a companhia de Serlo foi durante certo tempo tão perfeita quanto qualquer outra companhia alemã teria podido vangloriar-se de ser. A maior parte dos atores estava muito bem em seu posto; todos tinham muito a fazer. Suas relações pessoais eram satisfatórias, e todos pareciam prometer muito em sua arte, porque todos davam os primeiros passos com ardor e animação. Mas logo se descobriu que uma parte deles não passava de autômatos, que só conseguem alcançar o que é possível atingir sem sentimento, e em pouco tempo neles se imiscuíram as paixões, que de hábito atravancavam o caminho de toda boa instituição e desfazem tudo o que homens razoáveis e de bom julgamento desejam manter unido (V 16, p. 335-336).

Serlo, interesseiro, passou a ficar inquieto, queria ligar Wilhelm a Aurelie. Esperava assim encarregar Wilhelm de toda a parte mecânica da administração do teatro e descobrir nele, como descobrira em seu primeiro cunhado, um fiel e laborioso instrumento. Pouco a pouco, de modo imperceptível, já havia transferido para ele a maior parte de suas incumbências, e como Aurelie cuidava do caixa, Serlo voltou a viver como nos velhos tempos, a seu bel-prazer e passou a atribuir funções de seu antigo cunhado a Wilhelm (V 16, p. 337).

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Os novos atores eram mais aplaudidos que os irmãos, e eles magoavam-se com isso. Mas isso não se devia apenas ao público, que fazia “exigências excessivas” a um e tratava com “a maior condescendência” o outro. Era visível o orgulho de Aurelie, e muitos conheciam seu desprezo pelo público. Serlo, é verdade, adulava um por um em particular, mas suas observações mordazes sobre o conjunto não raro haviam sido ventiladas e repetidas (V 16, p. 337).

Aos “caprichos especiais” de Wilhelm, quando cenários e figurinos eram preparados, Serlo cedia “em parte por convicção”, em parte para, depois de assim conquistar Wilhelm, “dirigi-lo melhor segundo suas intenções”. Quando Wilhelm, tanto por seu talento quanto por seu caráter honesto, assumiu o papel de diretor artístico na companhia de Serlo, os atores passaram a portar-se mal, “em pouco tempo todas as relações, que até então haviam-se mantido efetivamente no nível ideal, tornaram-se tão grosseiras quanto se poderia esperar de qualquer teatro ambulante” (V 16, p. 337). Wilhelm começa então a articular suas críticas ao mundo teatral – isso ocorre já antes da representação de Emilia Galotti147, em que já não temos detalhes sobre a atuação de Wilhelm, que interpretou o príncipe. É o narrador que nos dá a conhecer os pensamentos do protagonista. E infelizmente, no momento em que Wilhelm, graças a seu empenho, esforço e aplicação, havia-se familiarizado com todas as exigências do metier e submetido a elas totalmente sua pessoa e dinamismo [Geschäftigkeit], parecialhe enfim, em suas horas sombrias, que esse ofício [Handwerk] merecia, menos que qualquer outro, um semelhante dispêndio de tempo e de energia. O negócio

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Não é de se desprezar o fato de Wilhelm representar Emilia Galotti, de Lessing (1772), uma vez que essa é uma peça fundamental para a constituição do teatro nacional alemão (deixando de lado o modelo francês) e por ela apresentar, junto com o conflito amoroso, um enfrentamento entre a nobreza obsoleta e a nova dinâmica burguesa. A peça trata de um casamento desigual entre um conde e a burguesa Emília que não pôde ser realizado porque o príncipe, que queria Emília como amante, levou tudo para um trágico desfecho com a morte dos noivos. A peça favorece a concepção do casamento desigual bem como mostra a necessidade de renovação dos valores decadentes da aristocracia. Ambas as posições são configuradas também neste romance de Goethe. Mas é interessante também por outro motivo: trata-se de uma crítica à aristocracia, que em matéria de casamento tinha em vista somente a união de títulos e terras, enquanto a burguesia ascendente casava-se por amor. Isso é uma antecipação do que ocorrerá no fim da trajetória de Wilhelm (ou ao menos uma forte sugestão de interpretação nesse sentido). Na época em que Goethe foi diretor do teatro [Hoftheater] de Weimar, de 1791 a 1817, Emilia Galotti foi apresentada ao todo 24 vezes, somando-se ainda a outras pe}as de Lessing.

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[Geschäft] era pesado e escassa a recompensa. Teria preferido assumir um outro ofício qualquer em que, uma vez terminado, podia-se gozar da paz de espírito, a assumir aquele em que, depois de vencidas as dificuldades materiais, ainda há de aplicar o máximo esforço do espírito e do sentimento para se alcançar o objetivo de tal atividade [Tätigkeit] (V 16, p. 337-338).

Serlo receberá ajuda para acelerar a consumação desse irreversível e desolador estado de coisas. Melina – há muito sem comentário do narrador – fica encarregado do guarda-roupa e leva a cabo seu plano. “Frio e malicioso”, sugeriu contratar atores ruins, para cortar custos e arrecadar mais. Durante os tempos de direção, Wilhelm havia tratado o assunto com uma certa liberdade e liberalidade, zelando sobretudo pelas coisas e, principalmente, adquirindo trajes, decorações e demais acessórios, tudo de mais rico e do melhor; para garantir a boa vontade das pessoas, adulhava-lhes também o egoísmo, já que não podia apelar a elas com motivos mais nobres; e julgava-se, nesse aspecto, estar mais em seu direito quanto mais o próprio Serlo não revelava pretensão nenhuma de ser um bom administrador (V 16, p. 342).

Melina dizia que Serlo, com seu talento e habilidade, faria sozinho um espetáculo inteiro. Lisonjeado, Serlo não fazia objeções. Melina entrevia que a saúde frágil de Aurelie não a faria durar muito tempo – e pensava na verdade o contrário. Serlo, por seu turno, não se opunha a essa suposição terrível. Ambos passaram a arquitetar uma ópera que daria menos custos e mais lucros. Serlo começava a criticar o fato de Wilhelm não ser cantor, dando a entender que em pouco tempo o acharia prescindível. Melina mostrou as contas e economias que deveriam ser feitas, Serlo passou a considerá-lo um substituto muito melhor que seu finado cunhado. Melina e Serlo levavam tudo em segredo, mas aos poucos suas condutas os traíam. Melina começou a opor-se a Wilhelm, e Serlo cada vez mais tratava Aurelie com amargor, enquanto a doença dela, e assim seus “humores instáveis e passionais”, agravavam-se. Com o tempo e o desgaste natural da convivência, Wilhelm tinha de fingir que não entendia as alusões de Serlo e se via obrigado a aguentar as queixas de Aurelie. Melina zombou sem muita sutileza dos ideais pedantes de Wilhelm, de sua arrogante pretensão de educar o público, ao invés de se deixar educar por ele, e assim, verdadeiramente convencidos, os dois reconheceram que não deveriam fazer outra coisa senão ganhar dinheiro, enriquecer ou divertir-se, mal conseguindo ocultar o desejo de se livrar daquelas pessoas que se opusessem a

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seus planos (V 16, p. 343)148.

Melina expressa acima a tensão entre o teatro como atividade lucrativa, em que torna-se imperativo “deixar-se educar” pelo público; e o teatro como atividade humanista, que quer formar o público – mas neste caso tem de se defender da crítica de arrogância. Dentro de algum tempo, as relações do teatro que até certo momento ainda correspondiam relativamente às exigências do herói, deterioraram-se. Logo fica claro que um teatro de alto nível artístico apenas dificilmente poderia se desenvolver num meio pouco amigável à arte. A quem tem verdadeira inclinação artística, o romance mostra as desvantagens dos tempos para se exercer tal atividade; para quem encara a arte como profissão (como Melina, Serlo), ela é vantajosa e se mostra bem adaptável. Fica então evidente que não há lugar para Wilhelm no teatro. O público tornou-se temperamental, dentro da companhia as intrigas contra Wilhelm cresciam – esse era o cotidiano no meio. Malgrado seu empenho, sua seriedade, seu humanismo, seus sentimentos nobres e elevados, todo seu esforço em prol da arte, do público, de suas concepções estéticas, para tudo isso não havia lugar no mundo teatral. Wilhelm não se sente feliz em sua atividade. Ele não sabe dizer por qual razão, e o narrador dá apenas algumas pistas sobre o assunto. Em seus sonhos de juventude, vemos que Wilhelm jamais se colocara a questão das relações de trabalho nas quais se imiscuiria, ele quer simplesmente atuar em sua arte. Tempos depois, quando ele retorna do castelo de Lothario para buscar as crianças que haviam ficado esperando junto à companhia, “quis despedir-se formalmente do teatro, pois sentia que já estava separado e não lhe restava outra coisa senão sair” (VII 8, p. 476), Serlo e Melina foram muito corteses com ele, logo que perceberam que ele não pretendia voltar ao antigo posto. Na companhia, ninguém desejava que ele voltasse a representar, somente madame Melina e uma parte do público. Wilhelm reencontra Laertes, que conta que está ganhando muito bem, pois havia montado uma ópera que estava muito próspera,

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Aqueles (cf. Rudolph) que consideram Serlo o verdadeiro artista têm de se haver com passagens como essa, em que se colocam totalmente a descoberto os reais fins do ator e diretor.

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arrancando “aos espectadores aplausos muito mais vivos do que ele jamais havia podido receber” (VII 8, p. 463). Com isso, é ressaltada a volubilidade do público que por vezes não corresponde às perspectivas dos artistas que para eles produzem, e por outras o fazem tarde demais. Laertes o leva a um café, onde se reuniram em torno do herói várias pessoas, elogiando-o em seu desempenho e lamentando que ele quisesse deixar os palcos, como ouviram dizer. E assim, ironicamente, num momento em que tais elogios de pouco serviriam ao nosso herói, falaram de um modo tão categórico e razoável dele e de sua peça, do grau de seu talento, de suas esperanças, que Wilhelm por fim exclamou, não sem uma certa emoção: – Oh, quanto me teria sido infinitamente caro esse interesse há uns meses! O quanto teria sido instrutivo e prazeroso! Jamais teria afastado meu espírito tão completamente dos palcos e jamais teria chegado tão longe, a ponto de desesperar o público (VII 8, p. 471).

Um senhor intervém e diz que o mais valioso aos atores são os aplausos condicionais, pois “o público é grande; o verdadeiro talento e o verdadeiro sentimento não são tão raros quanto se crê”. E prossegue: Sei bem que tanto na vida quanto na arte devemos consultar a nós mesmos quando temos algo para fazer e produzir; mas, uma vez feito e encerrado, devemos ouvir com atenção muitas pessoas e, com um pouco de prática, logo podemos deduzir dessas muitas vozes um juízo completo, pois aqueles que poderiam poupar-nos desse esforço, em geral se mantêm calados. – Pois é justamente isso que não deveriam fazer – disse Wilhelm. – Ouço com muita frequência que mesmo as pessoas que se calam a respeito de boas obras, queixam-se e lamentam-se de que outros tenham guardado silêncio (VII 8, p. 471).

Crise e renúncia A Wilhelm não falta talento, mas bom senso e coragem para se colocar frente às relações exteriores desvantajosas (Körner).

Essa colocação de Körner não localizaria em Wilhelm um problema oriundo das relações sociais desfavoráveis? Aos poucos vamos conhecendo a sociedade à qual nosso

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herói se associara149: a licenciosidade de Philine – apesar de suas boas e (nessa sociedade) raras qualidades, como o desprendimento e o altruísmo; o comportamento interesseiro e falso de Melina; a ingratidão dos companheiros de teatro na ocasião da pressão de Melina para a compra dos apetrechos; o comportamento deles e o tratamento recebido na estadia no castelo dos condes, a reação do grupo após o roubo na floresta, a cobrança para que fossem admitidos na companhia de Serlo. Depois a manipulação de Serlo em função de seus interesses pessoais e todas as intrigas e problemas do meio teatral. Aurelie revelara que também ela havia tido esperanças quanto à estatura da nação e a projeção de sua arte para o engrandecimento daquela. Ela avisou Wilhelm: Se seu destino é de fato ser artista, não haverá de conservar por muito tempo essa obscuridade e inocência, que nada mais são que o belo envoltório a cobrir o recém-desabrochado botão; o infortúnio só se dá quando rompemos cedo demais esse casulo. Sem dúvida, é bom que nem sempre conheçamos aqueles para quem trabalhamos [o público]. Oh, também eu já me vi em outra época nesse feliz estado, quando subi à cena com o mais elevado conceito de mim mesma e de minha nação. Que não eram, que não podiam ser os alemães, de acordo com minha imaginação! (IV 16, p. 251-252)

Também Aurelie chegou, como Wilhelm, a encarar sua arte como uma atividade assentada num patamar humanamente elevado e nobre. Sua decepção com a realidade é interpretada como causada por essa sua ilusão – e é assim que ela vê o herói, presa de suas esperanças de iniciante. Desde a infância e durante toda sua subsequente jornada teatral, Wilhelm é diligente e esforçado. O ânimo com que traduziu e adaptou Hamlet e antes disso escreveu, produziu e atuou em honra ao príncipe, no castelo do conde (III 4-6); as notas que tomava de conversas sobre arte travadas com Serlo (V 6, p. 300); as contínuas e infatigáveis tentativas de fazer com que os atores se aperfeiçoassem na arte com exercícios contínuos, o zelo sincero e aplicado do herói, são todos provas de sua dedicação ilimitada (V 3, p. 323). Os indícios contrários a uma atividade desinteressada do herói surgirão somente quando ele já não vê possibilidade de desenvolvimento integral por meio do teatro ou de qualquer

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Sociedade que ensejou a crítica moralista de contemporâneos da obra, como Herder (cf. Gille: 1971, pp. 55-56).

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atividade, o teatro tornar-se-á então exclusiva e explicitamente um meio para que Wilhelm aproxime-se do mundo rico e distinto. Mas, mesmo nesse momento, o empenho do protagonista para afirmar-se em sua atividade demonstra que para ele o teatro não era apenas uma ocupação qualquer, mas, sobretudo, uma atividade que requisitava sua individualidade inteira. Dada essa forte ligação de Wilhelm com a arte, os momentos de crise do protagonista estão associados à não efetivação ativa de sua individualidade. Foi por causa da intensa dor pela perda de Mariane que Wilhelm passou a desprezar o teatro. Queimou emocionado as lembranças dela que ainda guardava consigo. Depois seus escritos, que lhe pareciam sem criatividade, rígidos, com ideias e sentimentos vulgares. O lado dramático de Wilhelm intensifica-se nas crises. Martirizando-se, censurava então aquilo que, “depois do amor e com o amor” (II 2, p. 77, grifo meu), dava-lhe as maiores alegrias e esperanças, seu talento de poeta e de ator: "recriminava-se por não haver descoberto antes a vaidade que servira de base para sua pretensão" (II 2, p. 77). Analisava desfavoravelmente os próprios gestos, sua estatura, sua declamação etc., recusava seus méritos, e dessa forma agravava seus desesperos. O reino dos sentimentos, em que toma corpo a realização máxima do herói, é também o palco de seus sofrimentos mais intensos. Ele dilacera-se voluntariamente desprezando a si mesmo e se autocriticando implacavelmente. A separação das Musas é para ele tão dolorosa quanto a de uma mulher amada, assim, diz o narrador: Por mais determinado que estivesse a renunciar [entsagen] a suas mais caras ideias, foi necessário contudo algum tempo para se convencer plenamente de seu infortúnio, até que, por fim, ele havia aniquilado em si mesmo toda esperança do amor, da criação poética e da exibição pessoal, com razões tão certeiras, que cobrou ânimo para apagar de vez todos os traços de sua loucura, tudo quanto ainda a pudesse evocar de alguma maneira (II 2, p. 78).

A perda ou o despojamento de algo que lhe era intrínseco é um estado com o qual Wilhelm teve de ser confrontado desde a infância, primeiramente com a coleção do avô, depois com o teatro de marionetes. Wilhelm não pode manter consigo o que para ele são extensões de si mesmo, e assim perde, gradual e continuamente, o que dá substância à sua própria individualidade. A necessidade de ter de abandonar o que lhe é caro, e o reconhecimento dessa inevitabilidade, é algo extremamente doloroso. 172

um poema ou deve ser excelente ou não existir; porque todo aquele que não tem aptidão para realizar o melhor deveria abster-se da arte e precaver-se seriamente contra toda tentação. Porque, com certeza, em todos os homens move-se um certo desejo vago de imitar aquilo que vê; mas esse desejo não prova de modo algum que resida também em nós a força capaz de levar a bom termo aquilo que empreendemos. /.../ Quantos se equivocam assim de caminho! Feliz aquele que percebe a tempo o paralogismo resultante de seus desejos e suas capacidades! (II 1, p. 79-80)

Apesar de surgirem num momento conflituoso, com essas palavras Wilhelm demonstra estar plenamente cônscio sobre a necessidade de identificar e seguir as inclinações íntimas, e que tais inclinações às vezes são meramente influenciadas por razões externas que despertam desejos incondizentes com as reais capacidades de levá-los à realização. Mesmo que isso venha à tona somente no momento de crise, ele sabe que deve renunciar àquelas suas tendências que não são verdadeiras. Nessa ocasião, Wilhelm o faz sem convicção, ainda que esteja tentando persuadir-se. O herói expressa-se assim ao rememorar a perda de Mariane e dos mais caros sonhos de realização ativa de sua individualidade que via associados à amada. Ao abrir-se novamente para a vida e para o amor, renasce em Wilhelm a esperança de tornar-se um artista. Afinal, se ter se equivocado sobre suas verdadeiras inclinações fosse o real problema do protagonista, essa constatação do herói a respeito de seus próprios poemas, os quais eram jogados por ele ao fogo logo no início do romance, já seria suficiente para que ele desistisse do teatro, por não se ver como autêntico artista antes mesmo de começar sua aventura teatral. A falta de sentido do que acontece consigo (ou a falta de compreensão do sentido existente), é um dos principais elementos da crise espiritual do herói, mas isso jamais assume uma feição nítida à medida que avança sua história. Essa nitidez só poderia ser alcançada com o ápice da crise, e este é habilmente evitado pelo autor. Sua realização ele sente que está, desde o início de sua trajetória, no desdobramento de sua inclinação teatral, por isso, parece realmente inexplicável por que então ele não se sente, afinal, satisfeito no ponto culminante desse seu percurso, quando Serlo lhe faz a proposta de ingressar na companhia. Não me parece haver nada mais familiar ao homem que as ilusões e esperanças que há tanto tempo ele nutre e guarda em seu coração, e no entanto, quando

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finalmente elas se realizam, quando elas, por assim dizer, se impõem a ele, não as reconhece e recua ante elas. \...\ Era, pois, somente o amor por Mariane que me ligava ao teatro? Ou era o amor pela arte que me prendia à jovem? Aquela perspectiva, aquele pendor para os palcos estavam simplesmente adequados a um ser inquieto e desordenado, que desejaria seguir uma vida que as condições do mundo burguês não lhe permitem, ou seria algo completamente distinto, mais puro, mais digno? E o que poderia induzir-te a alterar tuas intenções de então? Não vens, pelo contrário, seguindo até aqui teu plano, sem o saber? (IV 19, p. 268-269)

Na realidade, para Wilhelm tudo se realizava de acordo com o que ele almejava, ele era ator e seu talento estava sendo reconhecido. Ele percebe, entretanto, que aquilo de “puro e digno” que ele buscava no teatro dificilmente se realizaria, mesmo que ele estivesse na posição mais vantajosa. Como ele não sabe identificar o real problema, mas intui-lo, vêse quase obrigado a ser passivo diante das circunstâncias, isto é, a continuar como está, pois ao invés de identificar as causas dessa situação no teatro, ele tenta atribuí-las a si mesmo e à sua confusão interna. Wilhelm não consegue distinguir o que é a necessidade de realização íntima de suas disposições e o anseio pelo amor de uma mulher porque ambas estão ancoradas nas sensações, sentimentos, emoções, no encontro consigo mesmo. O amor pela arte é evidência de que a confirmação da atividade está intimamente ligada à sensibilidade do herói. Mas Wilhelm não consegue encontrar essa certeza somente dentro de si. Quando ele vai atrás de Lothario para entregar-lhe a carta de Aurelie, e um homem com quem Wilhelm já havia encontrado aproxima-se e pergunta o que foi feito da companhia, se ele passou muito tempo com ela, o protagonista responde: – Mais que o razoável; infelizmente, quando penso no tempo em que passei com ela, creio ver um vazio sem fim; não me restou nada de tudo aquilo (VII 1, p. 416).

Wilhelm arrepende-se de sua experiência no teatro. Essa avaliação decidida a respeito do resultado de seu empreendimento teatral não havia sido anunciada sequer em pensamentos anteriormente, ainda que, como vimos acima, Wilhelm já encarasse com certo desalento a atividade. De todo modo, quando ele partiu após a morte de Aurelie, nada tinha sido enunciado de uma decisão definitiva de desistência da companhia. O representante da Sociedade da Torre é um dos poucos que nestas paragens conhece Wilhelm e pode, portanto, fazer uma pergunta de escopo geral sobre sua vida, precipitando uma formulação 174

do herói sobre algo que talvez, até aquele momento, não estava completamente decidido (corrobora essa apreciação o fato de Wilhelm deixar as crianças aos cuidados de madame Melina e, portanto, ele voltaria para buscá-las). Já há alguns dias na companhia de Lothario e seus amigos, a primeira vez, depois de alguns dias da chegada de Wilhelm ao castelo, que o narrador nos relata uma fala significativa de nosso protagonista é justamente a respeito de sua vida pregressa. Wilhelm desabafa, indo finalmente ao cerne de seus problemas. Jarno pergunta: /.../ mas diga-me, o que lhe sucedeu? Eu vejo, eu sinto que o senhor também mudou. Como anda sua antiga mania [Grille] de criar algo belo e bom com uma companhia de ciganos? – Estou sendo punido demais! – exclamou Wilhelm. – Não me recorde de onde venho nem para onde vou. Fala-se muito do teatro, mas quem não esteve nele não pode fazer a menor ideia do que é. O quanto ignoram completamente a si mesmos esses homens, de que modo exercem sem qualquer discernimento suas atividades e quão limitadas são suas pretensões, disso ninguém tem a menor noção. Não só cada um quer ser o primeiro, como também o único; todos excluiriam, com prazer, os demais, sem ver que, mesmo com todos juntos, mal poderiam realizar alguma coisa; todos se imaginam maravilhosamente originais e, no entanto, são incapazes de descobrir no que quer que seja algo que esteja fora da rotina, o que os leva a sentir um eterno desassossego por algo de novo. Com que violência agem uns contra os outros! E só o mais mesquinho amor próprio, o mais tacanho egoísmo fazem unir-se um ao outro. Não há que se falar de um comportamento recíproco; perfídias secretas e palavras infames sustêm uma eterna desconfiança; quem não vive licenciosamente, vive como um imbecil. Todos reclamam a mais incondicional estima, e todos são sensíveis à menor crítica. Há muito que se sabe disso, melhor que ninguém! E por que, então, faz sempre o contrário? Sempre necessitado e sempre desconfiado, parece não temer nada senão a razão e o bom gosto, nem procura ater-se a outra coisa que não o direito majestoso de seu capricho pessoal. Wilhelm tomou fôlego para prosseguir sua litania, quando uma risada desmedida de Jarno o interrompeu. – Pobres atores! /.../ o que me descreveu não foi o teatro, mas o mundo, /.../ eu poderia encontrar em todas as classes [Stand] personagens e ações suficientes para suas duras pinceladas (VII 3, p. 427).

Já não resta dúvida de que Wilhelm está insatisfeito com sua trajetória teatral, mas, apesar disso, ainda pretendia manter-se no teatro, pois sua primeira frase é: “Não me recorde de onde venho nem para onde vou”. Acertadamente, a crítica de Wilhelm é dirigida ao teatro na prática, mais especialmente aos homens de teatro, não à arte teatral ou ao seu próprio desempenho como ator. Ora, no que tange à sua constituição individual, sua história 175

de vida, sua sensibilidade, seus pensamentos e ideais mais elevados, seu caráter, Wilhelm realmente não pertence ao círculo do teatro. O teatro é mostrado até o fim do romance como uma atividade suspeita, mesmo quando Wilhelm já estava distante, vemos essa atividade servindo a uma mulher de caráter bem duvidoso, a esposa do pai de Therese 150, como distração diletante a serviço de paixões desordenadas. Mas Jarno também está certo em seu comentário, como se demonstra ao longo do romance, esses indivíduos descritos por Wilhelm são os indivíduos da sociedade presente, estes que por sua vez compõem o teatro, e assim, trata-se de um problema do mundo e que é onipresente, inevitavelmente, também no teatro. No retorno para buscar as crianças que haviam ficado sob os cuidados da companhia, enquanto ele ia cumprir sua missão no castelo de Lothario, Wilhelm tem a oportunidade de “constatar que, segundo o espírito e o senso da companhia, há muito que ele já se havia despedido efetivamente dela” (VII 8, p. 463), e no momento seguinte chateia-se com Jarno por ele falar de sua falta de talento. Ele estava tentando construir sua vida no teatro, não conseguiu, mas isso jamais se relaciona à arte e ao seu próprio talento; ele decepciona-se, isto sim, com as pessoas do teatro que tornam ainda mais difícil um ofício que demanda tanto empenho. O herói faz, portanto, um reconhecimento ambíguo do fracasso de sua tentativa de desenvolvimento individual no teatro: o erro estaria apenas na insistência em transformar a inclinação em profissão (para isso não havia nele disposição), isto é: para ele a tendência/inclinação [Hang/Neigung] continua sendo legítima, embora impraticável. Mas essa formulação não vem à consciência do herói; para ele, o sentido existencial de sua inclinação permanecerá um enigma. Jarno pretende ressaltar a ingenuidade de Wilhelm em não perceber em suas experiências, em seus julgamentos e avaliações sobre os homens um traço social comum e

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A mulher passou a dedicar-se ao teatro, contracenando com muitos homens. Lydie, jovem simpática que fora criada com ela, ficava com os papéis secundários (pois faltavam mulheres), e uma camareira idosa com outros. A mãe de Therese era heroína e pastora de todas as espécies. Therese desabafa: “Não posso explicar-lhe o quanto me pareciam ridículas aquelas pessoas que conhecia tão bem, quando, vestidas daquela maneira, subiam à cena, pretendendo-se fazer passar por algo distinto do que eram” (VII 6, p. 440). Therese, além de não participar, quase nunca era espectadora, ao invés disso, arrumava o guardaroupa, limpava as luzes, providenciava a comida.

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abrangente. Ele abre os olhos de Wilhelm, mas o herói sente-se pessoalmente atingido com a franqueza bruta do amigo. Wilhelm magoa-se com seu riso desabrido, e chama-o de misantropo por afirmar que esses defeitos, identificados por ele nos atores, são gerais. Com esse comentário, emerge a perspectiva do herói em contraponto à de Jarno: Wilhelm considera homens e grupos singularmente, não generaliza para o todo o conhecimento que teve de alguns. Jarno prosseguiu: – O que vem comprovar seu desconhecimento do mundo, ao atribuir exclusivamente ao teatro manifestações tão elevadas. Na verdade, perdoo ao ator todos os defeitos que têm origem em seu autoengano [Selbstbetrug] e em seu desejo de agradar, pois, não parecendo nada a seus próprios olhos e aos olhos dos demais, ele nada é. Seu destino é parecer; sente-se obrigado a atribuir um alto valor ao aplauso momentâneo, pois nenhuma outra recompensa recebe em troca; deve procurar brilhar, pois para isso é que ali está. – Permita-me – replicou Wilhelm – que seja agora minha vez de ao menos sorrir, jamais o teria acreditado tão adequado [billig], tão indulgente. – Não, por Deus! É sério demais e muito bem refletido o que digo. Perdoo ao ator todos os defeitos do homem, mas não perdoo ao homem os defeitos do ator. Não me faça entoar a esse propósito minhas lamentações; elas soariam mais veementes que as suas (VII 3, p. 427-428).

Aqueles atributos do caráter do herói que deviam mudar são reforçados por Jarno: o autoengano e o desejo de agradar. Nesse momento, Jarno assumiu que a natureza de Wilhelm é a de um ator. Pouco tempo depois, com Therese, nosso protagonista é obrigado a refletir novamente sobre sua história: Infelizmente só posso falar de erros sobre erros, deslizes sobre deslizes, e não conheço ninguém a quem mais desejaria ocultar tais confusões em que me encontrei e ainda me encontro. Seu olhar e tudo que a rodeia, todo seu ser e sua conduta me revelam que pode regozijar-se de sua vida pregressa, que por um belo e límpido caminho chegou a uma conclusão segura, que não perdeu seu tempo e que nada tem para se reprovar (VII 6, p. 438).

A resposta de Wilhelm denota um incontestável arrependimento de seus atos passados, tudo que fizera pelo teatro não havia resultado em nada, ele não erigira nada, usou mal seu tempo. A decepção pela constatação inequívoca da inviabilidade do teatro uniu-se ao desolamento por tanto tempo decorrido nessa tentativa. A individualidade se confirma na atividade, mas embora Wilhelm tenha sido 177

publicamente reconhecido quando esteve ativo, jamais se realiza como ator. Não foi um problema de falta de reconhecimento de suas habilidades o que o fez desistir de seu sonho: foi a efetivação daquela atividade naquela sociedade. A trajetória de Wilhelm como artista é de sucesso, porém não é de autorrealização. Como ele poderia realizar-se, como ele poderia exercer a arte em meio àquelas pessoas? Haveria talvez uma atividade que, levando em conta as circunstâncias, melhor se assentasse à sua individualidade? O comentário de Jarno sobre os defeitos do teatro serem gerais responde que não. Quando o herói já se encontrava junto à Torre, ele não podia dar livre curso às “questões interiores” se as exteriores não estivessem resolvidas – depois de escrever a Werner (VIII 7, p. 552) pedindo-lhe dinheiro, estas já não eram mais obstáculo. Wilhelm, porém, não encontrava repouso físico nem espiritual, ele abarcava com o olhar todo o círculo de sua vida, mas este infelizmente jazia quebrado à sua frente e parecia não querer fechar-se nunca mais. Essas obras de arte que seu pai havia vendido pareciam-lhe um símbolo do qual ele também estava excluído, em parte de uma posse tranquila e sólida das coisas desejáveis do mundo, em parte despojado por culpa própria ou alheia. Perdia-se a tal ponto nessas singulares e tristes divagações que muitas vezes se sentia como um fantasma, e mesmo quando sentia ou apalpava as coisas exteriores, mal podia precaver-se contra a dúvida de estar realmente vivo e se encontrar ali. Só a viva dor que às vezes o atacava de ter que abandonar de um modo tão afrontoso e, no entanto, tão necessário tudo o que havia encontrado e recuperado, só suas lágrimas lhe restituíam o sentimento de sua existência. Em vão evocava o estado feliz em que, na verdade, se encontrava. ‘Tudo não é senão nada’, exclamou ele, ‘quando falta a única coisa que para o homem tem o valor de todas as demais (VIII 7, p. 553).

Desolado, já não lhe importará mais se sua desventura se deve a si mesmo ou aos outros. Wilhelm estava triste pois constatava que seu anseio, de manter-se unido consigo mesmo pela interação ativa com objetos e pessoas portadores do que lhe era mais caro, não havia sido satisfeito no decorrer de sua trajetória. Agora via-se ali, em meio a pessoas excelentes entre as quais podia ao menos evocar suas antigas aspirações em torno do belo e do digno. Ele tinha de reconhecer-se numa situação feliz.

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Correção do intelecto e controle da sensibilidade “\...\ a questão aqui é saber qual o melhor modo de representação para nós"

As embaixadas da Torre têm uma finalidade clara: Wilhelm deve reorientar sua atividade. Ainda que eles reconheçam (ou justamente porque reconhecem) a verdadeira inclinação de Wilhelm. O primeiro emissário da Torre que aparece na história lembrava que Wilhelm era “uma criança muito viva, costumava andar à minha volta; esclarecia-me quanto aos assuntos de que tratavam os quadros e sabia aliás interpretar muito bem o gabinete” (I 17, p. 63)151. Posteriormente, no entanto, os emissários da Torre deverão atacar exatamente a autenticidade dessa inclinação. A argumentação seguida por eles é articulada paulatinamente no decorrer da trajetória do herói, novos temas e assuntos são aos poucos inseridos, até que se forme um quadro geral da visão de mundo que deveria ser assimilada por Wilhelm, e que, por sua vez, deveria bastar para que ele se convencesse de que não nascera para o teatro. À pergunta surpresa de Wilhelm sobre se o desconhecido não crê em destino, o homem responde que Não se trata aqui do que creio, nem este é o lugar para lhe explicar como procuro tornar de certo modo concebíveis coisas que fogem à compreensão de todos nós; a questão aqui é saber qual o melhor modo de representação [Vorstellungsart] para nós. A trama deste mundo é tecida pela necessidade e pelo acaso; a razão do homem se situa entre os dois e sabe dominá-las; ela trata o necessário como a base de sua existência; sabe desviar, conduzir e aproveitar o acaso, e só enquanto se mantém firme e inquebrantável é que o homem merece ser chamado um deus na Terra. Infeliz aquele que, desde sua juventude, habituase a querer encontrar no necessário alguma coisa de arbitrário, a querer atribuir ao acaso uma espécie de razão, tornando-se mesmo uma religião segui-lo! Que seria isso senão renunciar [entsagen] à própria razão e dar ampla margem a suas inclinações? Imaginamo-nos piedosos, enquanto avançamos, vagando sem refletir, deixando-nos determinar por contingências agradáveis, e acabamos por dar ao resultado de uma tal vida vacilante o nome de uma direção divina (I 17,

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Não fica esclarecido se a Sociedade da Torre começa a supervisionar Wilhelm a partir dessa época ou antes disso.

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p.64, grifos meus).

Qual acaso Wilhelm deveria atacar como algo que determinaria de antemão seu destino? Não seria, por exemplo, o fato de ter nascido um burguês, mas sim, sua inclinação e disposição para o teatro. O necessário é sua posição social; o arbitrário, sua inclinação. O representante da Torre (como saberemos futuramente) apresenta aqui a súmula da teoria que fundamenta o comportamento do círculo da Torre – e tentará prevalecer como a moral da história de Wilhelm. Essa concepção baseia-se na ideia de que a individualidade tem de saber adaptar-se ao meio (aceitar o necessário) tanto quanto saber adaptar as circunstâncias a si mesma – já que não se anula completamente o fato de ser ela mesma portadora de inclinações que anseiam por desdobramento objetivo. Nesse pensamento, o necessário [Notwendige] é racional, não arbitrário. Ora, essa afirmação seria ambígua (já que se pode entender como algo necessário tanto a inclinação quanto a desistência da mesma) se o representante da Torre não opusesse razão e inclinação. Como ambas estão em lados opostos e é a primeira que deve governar a segunda, conclui-se que a razão limita o arbitrário, e a inclinação multiplica-o. Seguir somente a inclinação é agir irrefletidamente, por extensão, é estar sujeito ao acaso e às circunstâncias 152. Não são a individualidade e o desenvolvimento das inclinações que lhe são próprias o centro da preocupação daquele desconhecido que se apresenta para Wilhelm no fechamento do primeiro livro, em que somos participados da grande inclinação de Wilhelm pelo teatro. O desconhecido é muito direto quanto ao que o homem deve ter como objetivo: /.../ só me anima o homem que sabe o que é útil a ele e aos outros e trabalha para limitar o arbitrário. Cada um tem a felicidade em suas mãos, assim como o artista tem a matéria bruta, com a qual ele há de modelar uma figura. Mas ocorre com essa arte como com todas: só a capacidade nos é inata; faz-se necessário, pois, aprendê-la e exercitá-la cuidadosamente (I 17, p. 65).

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De uma ótica espinosana, poderíamos examinar a relação entre inclinação e paixão, e a relação destas com o intelecto [Verstand]. Aos poucos, tenta-se incutir no protagonista “ideias adequadas” para ele pensar sobre sua paixão. A exigência da lei contra o acaso liga-se ainda à doutrina metafísica da necessidade, da legalidade de Deus-Substância-Natureza e suas consequências éticas. Nesse encontro, o estranho resume as proposições 20-35 da parte 4 da Ética de Espinosa (tendo Herder um papel mediador) (Schings: 1985, p. 78).

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Para o representante da Torre, a utilidade social deve estar em primeiro plano na autodeterminação individual. Saber identificar o socialmente útil é o mesmo que reconhecer o necessário, operação que acaba por limitar o arbitrário, ao qual pertence, por sua vez, a insondável gama de inclinações individuais. Observe-se ainda que aqui se fala da necessidade do constante exercício na arte de limitar o arbitrário. No próximo encontro (II 9), o emissário da Torre surgiu pedindo uma carona para o barco em que Wilhelm estava com seus companheiros de teatro. Descendo do barco, o eclesiástico (o narrador passa a chamá-lo assim pelo papel de pároco na improvisação da qual ele também participou) e Wilhelm começaram a conversar – gosto que Wilhelm não transforma em hábito porque raramente encontra oportunidades de interação nesse sentido. Philine é a primeira a se afastar dos dois, e paulatinamente os outros do grupo fazem o mesmo. O homem considera o exercício da improvisação muito útil não só aos atores, mas também aos grupos de amigos: "é a melhor forma de arrancar os homens de si mesmos e trazê-los de volta por um desvio" (II 9, p.114). E que seria muito útil se os atores fizessem uma representação de uma peça não escrita, preparada ao longo de vários ensaios pelos atores. Wilhelm aperfeiçoa a ideia: – Deveria conceber-se – atalhou Wilhelm – uma peça improvisada não como as que se compõem sem preparação prévia, mas sim como aquela em que seriam fornecidos, em linhas gerais, o argumento, a ação e a divisão de cenas, ficando a critério dos atores a maneira de representá-la (II 9, p. 114).

O desconhecido enfatiza o encontro consigo mesmo. Wilhelm fala da perspectiva do herói romanesco – portanto, de si mesmo e do experimento pedagógico da Torre: ela fornece o argumento, a ação, a divisão das cenas; ao herói resta a maneira de representar o predeterminado. Assim, não há como o herói encontrar a si mesmo no mundo epopéico dado – ele apenas representa o que está escrito. O homem concordou com Wilhelm, acrescentando ainda que a representação deveria ser feita por gestos, mímicas e outros artifícios que não palavras, ou então à meia voz; enfim, de um modo que o corpo soubesse exprimir os sentimentos e pensamentos melhor do que se tem visto na Alemanha da época. Assim, com sinais, hesitações, silêncios, preparando com o corpo a fala, ligando as pausas do diálogo ao conjunto, tudo isso seriam 181

exercícios que poderiam ensinar “a rivalizar com o escritor" (II 9, p.115), ajudando a concretizar da melhor maneira uma “índole feliz”. O eclesiástico volta ao ponto, eles estavam falando do ator, e nesse quesito, uma formação precoce é absolutamente necessária ainda mais àqueles cujas predisposições [Veranlagung] estão acima da média. O diálogo prossegue: – Poderia ser e continuar sendo o princípio e o fim, o primeiro e o último; mas entre um e outro ficam faltando ao ator muitas coisas, quando a formação [Bildung] não faz dele o que ele deveria ser, e, para ser mais preciso, uma formação [Bildung] precoce, porque talvez seja pior para aquele a quem se atribui gênio que a um outro que só possui aptidões corriqueiras, pois aquele pode degenerar-se mais facilmente e ser impelido para o mau caminho com mais impetuosidade que este. – Mas o gênio – replicou Wilhelm – não há de se salvar por si mesmo, não há de curar sozinho as feridas que ele próprio se infligiu? – De jeito nenhum – respondeu o outro – ou, quando muito, de maneira insuficiente, pois que ninguém creia poder sobrepujar as primeiras impressões da juventude. Se cresceu numa liberdade digna de louvor, cercado de belos e nobres objetos, convivendo com homens bons: se seus mestres lhe ensinaram o que primeiro devia saber, para compreender mais facilmente o resto: se aprendeu aquilo que nunca precisará desaprender e se seus primeiros atos foram dirigidos de modo a poder no futuro praticar mais fácil e comodamente o bem, sem ser obrigado a desacostumar-se do que quer que seja, então esse homem haverá de levar uma vida mais pura, mais perfeita e mais feliz que um outro que houvesse dissipado na resistência e no erro suas primeiras forças da juventude. Fala-se e escreve-se muito sobre educação, mas não vejo senão uma pequena parcela de homens capaz de compreender e levar a cabo o simples porém grande conceito que encerra em si todos os demais (II 9, p. 115).

A Torre insinua que o problema de Wilhelm é advindo de seu meio, que não lhe possibilitou formação precoce. Wilhelm insiste no poder da individualidade; o emissário, na formação a ela propiciada ou a ela privada. De acordo com o que se ouve do desconhecido, a infância é o período crítico do aprendizado, e dependendo de como foi dirigida, suas consequências para a vida futura são definitivas. Se comparamos à percepção do eclesiástico a experiência de Wilhelm, depreende-se daí que ela não poderia servir como modelo de uma Bildung exemplar ou bem sucedida. Mas apesar desse desvio na Bildung do herói (um “desvio” que se mostrará crucial para ele), o desconhecido considera que o protagonista está na idade de “submeter suas vivas inclinações à vontade de superiores” (I 17, p. 64), portanto, ainda está em tempo de Wilhelm aceitar que lhe encaminhem 182

adequadamente suas inclinações. – O destino – replicou o outro, sorrindo – é um preceptor excelente, mas oneroso. Eu preferiria ater-me ao julgamento de um mestre humano. O destino, a cuja sabedoria rendo total respeito, tem no acaso, por meio do qual age, um órgão muito canhestro. Pois raras são as vezes em que este parece realizar com acerto e precisão o que aquele havia determinado. – Este me parece um pensamento muito singular – replicou Wilhelm. – De maneira alguma! A maior parte das coisas que ocorrem no mundo justifica minha opinião. Não é fato que muitos acontecimentos mostram a princípio um grande sentido e acabam sempre por resultar em algo insignificante? – O senhor está caçoando (II 9, p. 116).

É indiscutível que para o homem toda superstição deve ser banida. Mas, por que o teatro não é uma atividade que condiz com esses pensamentos racionalmente orientados? Se conhecemos o pensamento de Wilhelm sobre sua predestinação para o teatro, não é nenhuma especulação inócua supor que o destino ao qual o emissário se refere pode ser entendido como a inclinação inata que deve ser racionalmente controlada e quiçá suprimida. No entanto, ironicamente, Wilhelm poderia entender exatamente o oposto se enfatizasse a ideia de inclinação: esta deve ser conduzida – por meio da manipulação do acaso – para prevalecer (que é o que Wilhelm faz durante sua viagem de finalidade comercial). Entretanto, na fala seguinte, vê-se que a perspectiva da Torre é a de que a trajetória de Wilhelm foi desde muito cedo desvirtuada, pois seu meio não conduziu adequadamente sua inclinação, entendida como uma escolha do destino (nos termos de Wilhelm) e, portanto, mais uma vez considerada de forma irônica, já que o órgão canhestro do acaso (nos termos da Torre) não deixou que o destino cumprisse sua determinação. Suponha que o destino tivesse escolhido alguém para se tornar um bom ator (e por que não haveria ele de nos prover também de bons atores?); digamos que, por um infortúnio qualquer, o acaso conduzisse nosso jovem homem a um teatro de marionetes, onde não poderia deixar de tomar parte em algo insípido, de achar suportável e até mesmo interessante algo disparatado, de receber assim, sob um aspecto errôneo, aquelas impressões juvenis [jugendlich] que nunca se esvaem e pelas quais nunca deixamos de sentir um certo apego. – Mas, o que o fez chegar a um teatro de marionetes? – interrompeu-o Wilhelm, um pouco sobressaltado. – Foi um mero exemplo; se não lhe agrada, tomemos um outro. Suponha que o destino tivesse escolhido alguém para se tornar um grande pintor, e que pela vontade do acaso passasse ele sua própria infância em sujas choupanas, estábulos e celeiros; acredita mesmo que um tal homem poderá alguma vez

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elevar-se até a pureza, a nobreza e a liberdade da alma? Quanto mais vivos os sentidos com os quais pôde ele perceber em sua infância a impureza e a seu modo enobrecê-la, tanto mais poderosamente irá vingar-se dela no curso ulterior de sua vida, e no entanto, ainda que busque sobrepujá-la, estará mais intimamente unido a ela. Quem cedo viveu entre pessoas más e insignificantes, ainda que mais tarde possa haver compartilhado de melhores companhias, terá sempre saudade daquelas cuja impressão permanece com ele ao lado da lembrança das alegrias juvenis [jugendlich], que só raramente se repetem (II 9, p. 116).

É intrigante que o membro da Torre não se refira a outra influência determinante na infância Wilhelm, a preciosa coleção do avô, e nem à possibilidade do avô, culturalmente formado, instruir sobre as artes plásticas e escultóricas o(s) neto(s), ou mesmo o próprio filho, pai do herói. Segundo o pensamento do desconhecido, a mediocridade do teatro de marionetes determinou de tal modo os sentidos de Wilhelm que tudo que ele fizesse artisticamente em sua vida estaria de algum modo ligado a esses inícios. O emissário da Torre, desta vez, argumenta colocando a ênfase nas impressões [Ausdruck] juvenis – não nas inclinações individuais. Desse ponto de vista, ressalta-se como de fundamental importância, para a individualidade que começa a se desenvolver, a maneira como se estimula a sensibilidade. No entanto, ao se deslocar da inclinação para as impressões, aquilo que parecia uma autêntica tendência da individualidade passa a ser compreendido, simplesmente, como um produto resultante daqueles estímulos aos quais ela foi exposta. Nos dois exemplos, ele pressuporá a inclinação inata; em seu primeiro exemplo, o emissário não fala de inclinação específica da individualidade para tal ou qual atividade, sua intenção é criticar o teatro de marionetes como uma influência perniciosa, como uma maneira errada (isto é, sob um aspecto falso [falsche Seite]) de receber as impressões comuns a todo jovem; em seu segundo exemplo, ele reforça que, por si mesma, a inclinação não é capaz de prevalecer sobre um meio hostil que não permita um fértil e belo desenvolvimento da sensibilidade. O membro daquela Sociedade que o vigiava em segredo conversa com Wilhelm sobre destino, acaso, necessidade, inclinação, razão, formação; assuntos que dizem diretamente respeito à determinação da individualidade do herói. A conclusão a que se chega (ainda que ela não seja o exato somatório das partes) é a de que Wilhelm deve 184

encarar sua inclinação como erro, já que ele não pode mudar o passado (e se se trata, para o emissário anterior, de direcionar as circunstâncias, esse erro se iniciou sem que Wilhelm pudesse ter qualquer controle ou tivesse qualquer culpa). Se o meio não é favorável, a inclinação sucumbe, fatalmente. Por isso, Wilhelm tem de reconhecer que ele não foi bem educado para que as disposições que acompanham aquela inclinação vicejassem. A Wilhelm é familiar a concepção da Torre, pois já no Livro I, antes do encontro com o emissário, ele falava de corrigir a tempo seu erro (quando tentava se convencer de sua falta de talento após perder Mariane). No Livro III, ele dirá algo similar ao exaltar os nobres e as “fortunas herdadas”: Quem pode conhecer melhor o valor e o desvalor das coisas terrenas senão aquele que, desde jovem [Jugend], esteve em condições de fruí-las, e quem pode dirigir mais cedo seu espírito rumo ao necessário [Notwendige], ao útil e ao verdadeiro senão aquele que deve compenetrar-se de tantos erros, numa idade em que ainda não lhe faltam forças para começar vida nova! (III 2, p.151)

Com a direção do espírito “ao necessário, ao útil e ao verdadeiro”, Wilhelm elenca princípios que devem orientar toda atividade individual. O erro e a possibilidade de correção da trajetória, o que por sua vez está relacionado à idade do errante – pois apenas os jovens têm essa prerrogativa e devem se aproveitar dela tão logo se apercebam de seus erros –, sugere, quando olhamos retrospectivamente, que Wilhelm errou por tentar seguir um caminho que não era o seu, tentando ser ativo em algo que socialmente não se tinha por “necessário, útil e verdadeiro”, mas, no fim do romance, ele ainda está em tempo de corrigir sua rota. O próximo representante da Torre a interagir com Wilhelm é Jarno. É ele quem apresenta Shakespeare ao nosso herói. Ao invés de agir com sarcasmo, como é do feitio de Jarno, ele saúda a disposição de espírito suscitada em Wilhelm pela leitura de Shakespeare, mas faz um complemento importante, resumindo numa determinação sucinta e direta aqueles argumentos que já vinham se desenvolvendo pelos emissários: – Não permita esmorecer seu propósito de voltar-se para uma vida ativa, e dê-se pressa em aproveitar bravamente os bons anos que lhe são concedidos. Se puder ser-lhe útil, eu o farei de todo o coração (III 11, p.186).

O tempo que Wilhelm passou na atividade teatral não é considerado por eles, 185

portanto, como de uma vida ativa. Isso se relaciona ao fato da inclinação como fundamento da autoatividade ser um elemento secundário na concepção da Torre, como se depreende também na visão que ela tem do harpista. Quando por causa de um luto público o teatro fecha por algumas semanas, Wilhelm tem ocasião de visitar o harpista, que após o episódio do incêndio havia sido enviado para um tratamento. Wilhelm encontra-o muito bem, e o ancião fica feliz ao vê-lo. O eclesiástico (protestante, pois tem um filho) tem esperança no completo restabelecimento do protegido de Wilhelm. Para ele, a autoatividade [Selbsttätigkeit] é o meio [Mittel] para curar a loucura e também para evitá-la. Esta, por sua vez, é caracterizada como a predominância de sentimentos extremos que remetem o indivíduo para além do que é comum e cotidiano, coloca-o permanentemente em estado de alerta, esperando pela manifestação de algo extraordinário. Pensada desta maneira, o limiar da loucura poderia ameaçar até mesmo nosso herói, caso ele já não estivesse àquela altura fazendo suas avaliações críticas a respeito do ofício teatral. Diz o eclesiástico: Considero muito simples os métodos de curar os dementes. São exatamente os mesmos que empregamos para impedir as pessoas sãs de enlouquecer. Procuramos estimular-lhes a autoatividade, habituá-los à ordem, fazê-los compreender que sua existência e seu destino são iguais a tantos outros, que o talento extraordinário, a felicidade máxima e a infelicidade suprema não passam de pequenas variantes do dia-a-dia; deste modo, não haverá de se insinuar nenhuma loucura ou, caso isto venha a ocorrer, teremos como eliminá-la paulatinamente. Distribuí as horas do velho homem; ele ensina harpa a algumas crianças, ajuda nos serviços da horta e já está muito mais disposto /.../. Como eclesiástico, procuro falar-lhe pouco de seus estranhos escrúpulos, mas uma vida ativa leva a tantos acontecimentos que em breve ele haverá de sentir que não é possível senão através da atividade [Wirksamkeit] eliminar-se toda sorte de dúvidas. /.../ não há nada que nos aproxime mais da loucura que nos distinguirmos dos outros, nem há nada que conserve mais a inteligência habitual que viver no senso comum com muitos homens. Quantas coisas, infelizmente, há em nossa educação e em nossas instituições burguesas que nos predispõem, a nós e a nossos filhos, à loucura! (V 16, p. 338-339)

Essa passagem traz aspectos importantes da visão de mundo do círculo da Sociedade da Torre. Primeiramente, segundo a concepção do eclesiástico, a atividade do harpista (tocar sua harpa e cantar) não é tida como autoatividade – esta seria representada simplesmente por diversas ocupações diárias de diferentes tipos, como ensinar, plantar etc., 186

segundo uma disciplina. A autoatividade não é vista como determinada segundo as inclinações e disposições do indivíduo singular. As noções de autoatividade e de inclinação estão completamente dissociadas, sendo que a autoatividade só tem valor se socialmente integrada e individualmente salutar. A atividade individual regular, ao mesmo tempo em que faz a vida diária caminhar produzindo inúmeros acontecimentos nos quais o indivíduo ativo é levado a embrenhar-se, ajuda a mantê-lo concentrado nas dimensões de sua individualidade, impedindo que ela se perca no que é ilusório, inalcançável, inapreensível ou transcendental. Mas nem todas as ideias expostas pelo eclesiástico aplicam-se à vida e aos sentimentos do harpista. É verdade o que é dito sobre seus estranhos escrúpulos e a insistência dele em se distinguir dos outros homens pela sua infelicidade suprema, mas ser fixado na busca pelo “talento extraordinário” não é de modo algum um comportamento presente no ancião. Na verdade, isso está mais próximo do anseio originalmente presente em Wilhelm, que, acreditando na autenticidade de sua inclinação e também na sua índole feliz, queria tornar público seu próprio talento; objetivo que foi conscientemente colocado em segundo plano pelo próprio herói quando ele passou a considerar o teatro um meio artificial para elevar-se ao patamar social cujo acesso lhe era negado. A fama e o reconhecimento eventualmente oriundos da própria natureza da atividade artístico-teatral passam a ser ambicionados por Wilhelm como uma confirmação de que a representação da “personalidade” foi bem-sucedida (cf. V 3). Reforçando por outro viés a ideia de que principalmente o gênio precisa ser bem orientado em sua juventude, o eclesiástico vem criticar justamente a busca individual pelo destaque social – que faz com que o indivíduo esforce-se por descobrir no que ele é especial, em que tipo de ocupação torna-se não apenas diferente e relevante entre os demais, mas o mais importante em meio a tantos indivíduos. É assim, também, uma crítica ao egoísmo e à concorrência da sociedade burguesa; de fato, para o religioso as instituições burguesas são responsáveis por esse comportamento que pode facilmente conduzir à loucura. Por isso, da mesma forma que a concepção de destino de Wilhelm é criticada, o é também a ideia do talento extraordinário, que além de irreal tem em vista apenas a satisfação egoísta das medíocres ambições de grandeza do indivíduo 187

particular. Wilhelm ficou ali por alguns dias, na companhia daquele “homem sensato”, conheceu diversas histórias de loucos, bem como de pessoas prudentes e sábias, “cujas peculiaridades [Eigentümlichkeit] estão próximas dos limites da loucura”. A conversa fica mais animada quando chega o velho médico amigo do eclesiástico que o ajuda em seu trabalho filantrópico. Sociável e ativo, ele gostava de incentivar as ocupações úteis, e aos indecisos “procurava incutir-lhes algum hobby [Liebhaberei]” – admite-se a paixão (que sem dúvida impregna uma inclinação), portanto, como um bom impulso à atividade, embora jamais como determinante da mesma. O médico dizia que ao homem só podia acontecer uma desventura: “a de se fixar numa ideia qualquer que não tivesse nenhuma influência na vida prática, ou que lhe afastasse por completo dessa forma de vida” (V 16, p. 340)153. Neste ínterim, Wilhelm já está desanimado com a vida teatral e ela já está chegando, sem que o herói o saiba, ao fim. No Livro VIII, Natalie falará com Wilhelm um pouco sobre o abade, especialmente sobre a influência que teve sobre a educação dela e de seus irmãos: Durante algum tempo esteve convencido de que a educação [Erziehung] não devia senão adaptar-se às inclinações [Neigung]; não posso dizer como pensa agora. Afirmava que a primeira e a última coisa no homem era a atividade e que nada poderia ser feito sem haver disposição [Anlage] ou instinto [Instinkt] que a isso nos impulsione. Admite-se, costumava dizer, que se nasça poeta, e o mesmo se admite para todas as artes, porque é preciso que assim o seja e porque tais efeitos da natureza humana mal podem ser arremedados; mas, examinando-os atentamente, veremos que toda capacidade, mesmo a íntima, nos é inata, e que não existe capacidade indeterminada. Só nossa educação equívoca, dispersa, torna indecisos os homens, desperta desejos ao invés de animar impulsos [Trieb], e ao invés de beneficiar as verdadeiras disposições dirige seus esforços a objetos que, com muita frequência, não se afinam com a natureza que por eles se esforça. Prefiro uma criança, um jovem, que se perde seguindo sua própria estrada, àqueles outros que caminham direito por uma estrada alheia. Quando os primeiros encontram, não importa se por si mesmos ou por uma outra direção, seu verdadeiro caminho, ou seja, quando estão em harmonia com sua natureza, não o deixarão jamais, enquanto os outros correm a todo instante o perigo de se livrar do jogo alheio e entregar-se a uma liberdade incondicional. – É estranho – disse Wilhelm – que esse homem notável tenha-se interessado

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Como é o caso da canonisa, cuja narrativa autobiográfica iniciará em seguida.

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também por mim, e, segundo me parece, tenha-me a seu modo, senão dirigido, pelo menos corroborado durante um certo tempo em meus erros. Devo, pois, esperar pacientemente que tipo de justificativa me dará por haver de certo modo zombado de mim, ele e tantos outros (VIII 3, p. 509).

É ambíguo que o abade afirme a disposição como fundamento da atividade e prime igualmente pela inclinação (deixando Wilhelm errar porque ele o faz segundo a própria inclinação artística), mas, ao mesmo tempo, as sentenças da carta de aprendizado do herói apontem para o contrário, asseverando que Wilhelm não tinha disposição para a arte (VII 9, p. 482-483). De todo modo, reforça-se a ideia de que a educação – e com isso voltamos ao assunto introduzido em II 9 (p. 114-116) pelo representante da Torre – determinará de uma vez por todas a futura determinação das inclinações. Observado em sua posição de classe, Wilhelm não nascera para ser artista de teatro naquela sociedade; mas isso não é o mesmo que dizer que ele não possuía disposição para tanto. Wilhelm não parece considerar atentamente as palavras de Natalie sobre o abade, pois ela dizia que o abade prefere aqueles jovens que encontram seu “verdadeiro caminho”, que se colocam em “harmonia com sua natureza”, e aqui é significativo que ela diga “não importa se por si mesmos ou por outra direção”. É exatamente o que ocorre com nosso herói, “outra direção” o conduz ao seu caminho necessário. Mas o que é mais importante aqui é a confirmação do que vinha sendo argumentado em diversos momentos anteriores no sentido de justificar porque Wilhelm não se transformou num artista. A explicação do abade (segundo Natalie) para a aparente contradição está na educação. Se considerarmos que nosso herói tinha uma inclinação inata e que ele mostrara em diversas ocasiões uma aptidão que se assemelhava à artística, sua educação não foi capaz de cultivar suas disposições. Segundo a teoria do abade, a inclinação de Wilhelm não foi bem orientada, tendo sido inclusive reprimida, o que levou Wilhelm ao cultivo de desejos ao invés de impulsos. O mérito de nosso protagonista está em ter seguido, malgrado sua infância e juventude adversas às suas disposições inatas, seu próprio caminho. Mas, agora, a parte final de seu aprendizado é renunciar a elas, reconhecendo que se equivocou ao querer levar a cabo de qualquer maneira sua inclinação mal orientada. Aquelas disposições interiores, inclinações práticas, legítimas, não há mais tempo para que se 189

desenvolvam, elas tem de ser sufocadas, e Wilhelm deve encontrar outra determinação para sua atividade. Wilhelm admite então que o teatro é impossível, mas tampouco a atividade comercial passa a lhe apetecer. Os elogios à atividade, feitos antes por Werner em relação ao comércio, passam a ter outra conotação com os representantes da Torre, cuja perspectiva assume sua forma exemplar resumida no que Wilhelm denominou, numa carta a Therese, como “atividade eficaz [zweckmäßige Tätigkeit]154” (VIII 1, p. 495). Therese tem em vista o progresso e o melhor aproveitamento da produção e das condições de vida ligadas à terra, ao latifúndio; frente às grandes virtudes dela, o que oferecia Wilhelm? E assim, aliada às lições que havia tirado de sua experiência no teatro, a teoria da Torre sobre a atividade foi logo internalizada por Wilhelm na curta convivência com Lothario, o abade, Therese e Natalie.

Atividade comercial Um contraponto essencial ao teatro é a atividade cujo fim é gerar dinheiro, e que Wilhelm sempre se vê obrigado a realizar, seja porque comprometeu-se com seu pai, e sabemos que Wilhelm, ainda que a contragosto, é um filho obediente, seja porque não há mais saída para ele, ao final da trajetória narrada, e ele tem de associar-se ao grande capital. A primeira vez que vemos Wilhelm ativo no ramo é atrás do balcão da casa comercial do pai: para curar-se das lembranças do passado recente em que junto com o fim da relação com Mariane desmoronaram também seus mais caros sonhos teatrais. Wilhelm trabalha sem paixão, mas com afinco. Ele tinha as qualidades necessárias para a área, ajudavam bastante para o êxito das transações “suas boas maneiras diante de estranhos, sua facilidade para redigir a correspondência em quase todas as línguas vivas” (II 3, p. 84).

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O adjetivo zweckmäßig tem tantos sinônimos fundamentais para qualificar a atividade que, excluídos por nosso herói de sua própria, nada mais resta dela: útil, fértil, apropriada, prática, exequível, racional, razoável, sensata, aconselhável, instrutiva, construtiva, adequada, oportuna, compensadora, eficiente, conveniente, proveitosa, vantajosa, valiosa, válida, benéfica, saudável, próspera, relevante, habilidosa etc. (cf. Duden; note-se que Adelung e Grimm não registram esse verbete).

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Se na casa do pai o controle sobre sua vida era estrito, à distância os laços se afrouxaram – Wilhelm estava relativamente livre para tentar viver sua vida da maneira que lhe aprouvesse. Ele consegue despistar o pai e inicia, junto com a viagem comercial, suas aventuras com o teatro. Mantém-se distante dos negócios, gastando o dinheiro do qual devia prestar contas e, por fim, chega à situação de aceitar a oferta do conde por seus serviços artísticos, o que não ia de encontro com suas convicções, mas vinha a calhar para suas necessidades de liquidar aquele seu problema financeiro com a família. Desse modo, durante a viagem, Wilhelm, se evitou escrever à família e não seguiu exatamente o roteiro de viagem previsto, também não se descuidou completamente dos negócios em nenhum momento de sua trajetória, o que se coaduna perfeitamente com sua postura moral. Assim, após o assalto à companhia, em que ele ficou gravemente ferido, e o sucessivo período de recuperação, os planos do herói eram agradecer a seus benfeitores e recomendar a companhia a seu amigo e diretor Serlo, aproveitando também para visitar alguns comerciantes “e assim livrar-se dos negócios pendentes”, dos quais estava encarregado, mas não só isso: era a forma mais rápida e certeira de conseguir algum dinheiro. Tinha esperança de que a sorte [Glück] iria agora favorecê-lo no futuro tanto quanto no passado, proporcionando-lhe ocasião de recuperar as perdas e encher mais uma vez o vazio de sua bolsa mediante uma afortunada especulação (IV 11, p. 234).

Wilhelm vê-se ligado às obrigações da casa paterna. Ele sabe que encontraria na casa comercial cartas de seus familiares e temia suas censuras, e frente aos parceiros, “depois de tantas aventuras cavalheirescas, tinha medo da aparência escolar com que haveria de aparecer e decidiu assumir então um ar altivo, para desse modo dissimular seu embaraço” (IV 17, p. 259). Ora, o receio advém do fato de que, aos olhos da sociedade (e, portanto, em certa medida, aos olhos do próprio herói, que se constrange a comportar-se adequadamente ao que se espera dele), a seriedade e a solidez do mundo comercial não estão presentes no ofício artístico. Portanto, verifica-se ao longo da trajetória do herói que, embora lhe fosse um pouco penoso, ele mantém o compromisso com o pai, e para tanto não tem pudores quanto a usar 191

de seus meios tipicamente burgueses para suprir suas necessidades – ou seja, isso não está em contradição com o fato de ele não querer eleger essa atividade como sua atividade por excelência155. Além do mais, o permanente conflito do herói quanto ao rumo que precisa dar à sua vida não está simplesmente ligado à obrigação moral com seu pai, tanto que, quando este morre, o narrador expõe os pensamentos do herói: “Wilhelm se via livre num momento em que ainda não havia acabado de se pôr em harmonia consigo mesmo” (V 1, p. 281). Ora, Wilhelm não estava conseguindo chegar ao lugar que ele havia almejado, por isso, da mesma maneira que ele, em seu momento de crise pós-Mariane, lança-se aos negócios, na crise pós-teatro do fim do romance ele faz o mesmo: serão novamente os negócios burgueses sua tábua de salvação. Mais tarde, por ocasião de uma carta de Wilhelm a Werner, após um longo tempo sem se corresponderem, o narrador formulará a mudança de concepção do herói da seguinte maneira: Agora Wilhelm voltava a se aproximar do amigo, estava a ponto de fazer o que o outro tanto desejava e podia dizer ‘deixo o teatro e me junto aos homens, cujo contato haverá de me conduzir, em todos os sentidos, a uma pura e sólida atividade’. Perguntou-lhe por sua fortuna e parecia-lhe agora estranho não haver-se preocupado com isso ao longo do tempo. Ignorava que é do feitio de todas as pessoas que dão grande importância à sua formação interior negligenciar por completo suas condições exteriores. Wilhelm encontrava-se nesse caso; pela primeira vez parecia inteirar-se agora de que necessitava de meios exteriores para agir de maneira estável. Partia com o espírito totalmente outro que o da primeira vez; as perspectivas que tinha à sua frente eram fascinantes, e ele almejava experimentar em seu caminho alguma coisa alegre (VII 8, p. 477).

Wilhelm constata que estava apartado dos rumos sociais e que somente esse contato poderia levá-lo à “pura e sólida atividade” porque não havia mais alternativa para sua vida. Ele toma a decisão de privilegiar as circunstâncias por força dessas mesmas circunstâncias. Conclui-se, assim, que a não aceitação da atividade burguesa para si não passa por fortes convicções interiores quanto à natureza dessa atividade, serve muito mais para pontuar uma oposição em relação a suas reais inclinações. O poema O jovem na

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E é bastante significativa, neste contexto, a íntima relação que Wilhelm faz entre especulação e sorte – sorte que influi nos negócios e também na vida como um todo.

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encruzilhada e as críticas que o protagonista faz ao comércio são parte importante da consciência de Wilhelm, mas não são transportadas para a prática, se olharmos objetivamente para suas ações no decorrer de sua história. Isso é assim porque evidentemente não se trata de uma questão de consciência, isto é, não se trata de algo ideal, mas da impetuosidade objetiva das circunstâncias. Entretanto, o lugar secundário que a atividade burguesa efetivamente realizada por Wilhelm tem no romance direciona nosso olhar para a problemática central da história narrada: as reais possibilidades de desenvolvimento da individualidade de Wilhelm também não estão nesse âmbito.

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CAPÍTULO 3 Sociabilidade e circunstâncias

A posição e a condição exterior das quais o senhor o escolheu fazem-no especialmente apropriado. Um certo mundo é para ele agora totalmente novo e ele vai se admirar [frappieren] vivamente dele, e enquanto ele ocupa-se em assimila-lo, nos conduz também ao seu interior e nos mostra o que ali está contido de real para o homem (5.7.1796 Schiller a Goethe, HA7, p. 637)

Humboldt discorda da interpretação que Körner faz do romance. Em carta a Goethe (24.11.1796), Humboldt escreve que, para ele, o grande serviço prestado pela obra é que ela descreve “a vida completamente como ela é, inteiramente independente de uma única individualidade e exatamente por isso aberta para toda individualidade”156, mas, continua ele, “tudo sustenta o caráter do protagonista por meio de semelhança ou contraste” (HA7, p. 659). A vida é independente de uma individualidade, mas essa história move-se assim por causa de Wilhelm Meister. É o que pensa Schiller quando diz que Wilhelm é a pessoa mais necessária (ainda que não a mais importante), pois os núcleos de personagens se movimentam de acordo com sua individualidade (tanto é assim que o impasse do herói no Livro VIII paralisa todos os personagens ao seu redor), mais do que isso: “Nenhum outro teria se conformado tão bem como o portador das circunstâncias” (Schiller a Goethe, 5.7.1796, HA7, p. 636). Em Wilhelm está representada a individualidade sóciohistoricamente significativa, isso explica as palavras de Humboldt: “todo homem reencontra em Meister seus anos de aprendizado”, e nesse sentido seu papel como

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No sentido humboldtiano, talvez esta afirmação possa ser melhor entendida: “Não as pessoas mesmas, mas suas circunstâncias e contextos situacionais formam o ponto de partida” (KALLWEIT, p. 389), ideia da qual, porém, tendemos a discordar. Como procuraremos demonstrar neste capítulo, são as pessoas que trazem as circunstâncias e contextos da vida de Wilhelm.

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protagonista não deve ser subestimado. E exatamente porque ele deve sofrer a influência de seu meio, concordamos com a apreciação de Humboldt de que traços do romance como as mortes de Mariane e Mignon são de grande importância para o conjunto. Wilhelm não faz somente a ligação entre nobres e burgueses, sua individualidade é a conexão entre o mundo religioso e supersticioso (harpista, Mignon, canonisa) e “racional” moderno (Torre). Mas nenhum integrante da Torre pode ser imune ao amor – e a razão não encontra lugar em quem só tem coração. A ascendência do protagonista sobre seu meio é indiscutível, ele reúne em torno de si pessoas as quais protege, provê ou, simplesmente, pessoas que têm pelo destino dele especial interesse. Além disso, podemos dizer que o herói tem clara função social intermediária: seus protegidos são também seus servidores (Mignon e o harpista), seus protetores são da classe superior e o meio teatral é plebeu. A trajetória de Wilhelm foi determinada por seu nascimento. Ele é filho de um proprietário de capitais, e também este, o velho Meister, teve sua individualidade conformada segundo as circunstâncias das esferas materiais: seu pai, avô de Wilhelm, era também alguém de posses, já que sua coleção de arte era bastante valiosa. Wilhelm não precisa se preocupar com dinheiro157. Apenas alguns nobres compreendem e aceitam um burguês em seu círculo. A relação com Wilhelm, e o fato de ele ser especial para a Sociedade da Torre devem ser muito relativizados, pois ambas as famílias (de Wilhelm e do círculo da Torre) já se conheciam desde o avô de Wilhelm e o tio dos irmãos nobres (e o abade faz a ligação entre Wilhelm e essa geração anterior). É, também nesse sentido, um processo histórico de aproximação de classes realizada entre indivíduos, ou melhor, pela via das relações

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Em romances emblemáticos do século XIX, o dinheiro conforma a individualidade dos protagonistas de maneira totalmente negativa. “Aquilo que o homem não pode receber de fora – espírito e força – está em Meister disponível em um alto grau, para o qual à fantasia não são assentadas fronteiras. /.../ Suas finalidades são infinitas, e ele pertence à classe de homens a qual no seu mundo é chamada a dominar” (Körner, p. 653). Apesar de discordarmos da interpretação de Körner que esfumaça os claros objetivos do protagonista, o comentário acima é interessante por relacionar o que ele considera o vigor da fantasia de Wilhelm à posição de classe do protagonista, ambas circunstanciais. As “finalidade infinitas” (ou, para esta tese, o vislumbre da possibilidade de autodesdobramento da individualidade) transformam-se, cada vez mais, em algo rarefeito nos protagonistas dos romances burgueses que representam o domínio daquela classe em ascensão (os romances do século XVIII) e, depois, já estabelecida (os romances dos séculos XIX e XX).

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pessoais. Sobre a determinação de classe na caracterização dos personagens, cabe fazer algumas observações iniciais. Caricaturas desabonadoras dos burgueses estão presentes em Werner, em seu pai e no pai de Wilhelm, elas mostram em matizes variadas a estima demasiada pelos negócios e pelo dinheiro. Se os burgueses são distorcidos porque se movem predominantemente na atmosfera de interesses materiais, alguns nobres têm certa frivolidade que provém, por um lado, de uma espécie de desprezo por questões materiais “menores” e “mesquinhas” (exatamente por viverem sem se preocupar com questões tais como ganhar dinheiro), e, por outro lado, do excesso material, que eles igualmente não questionam porque vivem no luxo e na abundância que pressupõem como um dado: são os donos da propriedade. Friedrich, de ascendência nobre, tem uma personalidade tão frívola quanto a da plebeia Philine, e segue para uma irreversível picarização. O conde é representado como gracejador, pedante, autoritário (p. 189-190), a condessa é vítima da própria vaidade, o vaidoso barão e a leviana baronesa etc. Até mesmo a excessiva interiorização da bela alma pode ser vista como caricatura de um processo extremo. Em suma, vemos burgueses e aristocratas caracterizados de modo a configurarem as distorções da individualidade determinadas por sua posição social. Seria muito insuficiente afirmar que Wilhelm precisa encontrar nas outras pessoas o que falta em si mesmo, que cada uma representa uma característica que falta para que ele se realize. Por outro lado, é preciso que Wilhelm seja um personagem receptivo para que possa apreender traços de outros indivíduos, aprender com eles, modificar-se, inspirar-se. É também continuamente insinuado no romance que muitos personagens parecem ser um retrato ou um espelho de uma característica de Wilhelm e ele é capaz de se aperceber disso e aprimorar-se158. Por exemplo, as “nobres criaturas femininas que conhecia e das quais

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Como Schlegel já havia analisado, a técnica do espelho é constantemente utilizada (ver também: Ammerlahn, 2003, p. 67-68). Körner analisou a sociabilidade enquanto Bildung de Wilhelm, para o autor, os personagens e as relações (teatro, Sociedade da Torre) agem sobre Wilhelm, que os recebe passivo. Ele ressalta certos personagens que detêm paz interior: a bela alma (por meio da separação do mundo sensível), Therese (por meio de atividade exterior contínua, mas sem amor e sem fantasia), Natalie (a mesma clareza da razão, a mesma atividade, porém envolvida por amor) (cf. p. 655), mas conclui: tudo isso “não foi suficiente

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ouvia falar; seus estranhos destinos, que tão poucas alegrias comportavam, estavam dolorosamente presentes nele” (VII 8, p. 460). Wilhelm afeiçoa-se a Mignon e ao harpista porque eles avivam certos aspectos de sua individualidade 159, passa a não gostar, a certa altura, de Philine – seu desprendimento, sua leviandade e livre sexualidade afetam moralmente o herói. Em Lothario reconhece o poder público e a personalidade que sempre o atraíram. O episódio em que Wilhelm, de repente, começa a ouvir barulhos, choros, etc. de Friedrich, “essa mescla de criança e moço”, com ciúmes de Philine e totalmente descontrolado e infantil em sua ira, mostra-nos como Wilhelm está constantemente atento para aqueles aspectos exteriores que se relacionam com sua própria individualidade. Friedrich tinha levado umas bofetadas do estribeiro depois que derrubou de propósito uma travessa de guisado no chão, pois estava desgostoso servindo a mesa a mando de Philine. Wilhelm quedava absorto e envergonhado diante de tal cena. Reconhecia nela a parte mais íntima de seu próprio ser, reproduzida com traços fortes e exagerados; também ele estava inflamado de um ciúme indomável; também ele, se não o houvessem contido as boas maneiras, teria de bom grado satisfeito seu humor selvagem, maltratado com perversa alegria o objeto de seu amor e desafiado seu rival; teria desejado destruir as pessoas que só pareciam estar ali para seu dissabor (II 14, p.133).

Assim, após ter vacilado tanto em relação a Philine, Wilhelm, depois de presenciar o inofensivo duelo entre Friedrich e o estribeiro, "pôs fim à representação de seus próprios sentimentos", não dirigiu mais nenhum olhar a Philine (que assisitiu ao combate tricotando) e logo que o duelo acabou, ele foi para seu quarto, onde o acompanharam pensamentos desagradáveis. A comparação com Lothario lhe é desvantajosa e sumamente desagradável, desencadeando ainda mais insegurança no herói, aquele: “tinha a aparência de um homem que sabe o que deve fazer e a quem nada há de estorvar-lhe o caminho quanto àquilo que pretende fazer” (VIII 2, p. 496). Quando cumprimentou todos afavelmente, “Wilhelm não

para a Bildung de Wilhelm, o que a completou foi uma criança” (p. 656). 159 “Quando Meister está cansado das relações exteriores, a visão desses seres dá a ele novo impulso”, (Körner, HA7, p. 655).

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podia retribuir-lhe sua saudação cordial. –‘Aí está, Wilhelm teve de dizer a si mesmo, ‘o amigo, o amado, o noivo de Therese, cujo lugar pensas ocupar. Crês mesmo conseguir apagar semelhante impressão?” (VIII 2, p. 496). O modo de ser de outros impele Wilhelm, portanto, à autorreflexão. “Caracteres como Wilhelm, como Lothario, podem ser felizes apenas por meio de uma ligação com um ser harmonizador” (Schiller a Goethe, 3.7.1796, HA7, p. 635). Todos os pares se correspondem: conde e condessa, barão e baronesa – diferentes tipos de vaidade e frivolidade. Philine e Friedrich, burlescos e levianos; Lothario e Therese, como diria Novalis, o masculino e feminino de um mesmo caráter; Wilhelm e Natalie – sentimentos e ausência de sentimentos, ausência de atividade e atividade inata, crise e harmonia: o único casal que é a complementação dos contrários, a resolução dos antagonismos.

Época, lugar, duração da história, idade e aparência física de Wilhelm Sobre o local de origem de Wilhelm, bem como sobre onde se desenrola o enredo do romance, não temos indicações precisas160. A falta de informações nesse sentido ajuda a alçar Wilhelm a um grau de generalidade humana que talvez fosse mais difícil alcançar se informações geográficas e temporais fossem dadas explicitamente. Algumas indicações permitem supor, contudo, que a história se passa na Alemanha em meados do século dezoito161. Wilhelm mora numa povoação com casas comerciais (a do próprio pai), teatro, tabernas (uma delas, italiana). Da mesma forma, o autor deixa poucas pistas a respeito da idade de Wilhelm e do período de tempo em que se desenvolve a história. Quando ela se inicia, é provável que

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Essa é uma das principais particularidades que aproxima esse romance do conto de fadas (cf. Baioni). Especialmente a referência à Emília Galotti, de 1772, representada por Wilhelm na companhia de Serlo, e pela Guerra de Independência dos Estados Unidos, de 1775-1781, cujo período revolucionário contra o domínio britânico começa na década de 1760 e estende-se até meados de 1770, Lothario participou dessas lutas. Há ainda uma possível alusão à Guerra dos Sete Anos (1756-1763), quando, durante a estadia da trupe no castelo, é mencionada a movimentação dos exércitos, sendo o próprio príncipe um chefe militar. 161

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Wilhelm tenha 22 anos, e supomos que a história abarque ao menos os 5 anos seguintes162. Quanto à aparência física de Wilhelm, algo que, inicialmente, é tão circunstancial quanto suas origens, há também poucas indicações. No decorrer de sua trajetória percebemos que ele é belo e naturalmente sedutor. Philine, a condessa e madame Melina são algumas das mulheres atraídas por Wilhelm. É o próprio Wilhelm que nos dá a conhecer, uma única vez em todo o romance, qual é seu aspecto. Quando ele não se convence com o sucinto comentário de Serlo e continua dizendo que não possui nenhuma semelhança física com Hamlet, acaba por nos oferecer sua única descrição: Quanto mais estudo o papel, mais vejo que não há em minha aparência nenhum traço fisionômico com que Shakespeare compôs seu Hamlet. /.../ Para começar, Hamlet é louro /.../ e a rainha diz: ‘Está gordo, deixem-no retomar o fôlego’. Ora, de que outro modo é possível representá-lo senão louro e corpulento? /.../ Acaso sua instável melancolia, sua branda tristeza, sua ativa indecisão não convêm melhor a esse tipo de figura do que se o senhor imaginar um jovem esguio e de cachos morenos, de quem se espera mais decisão e agilidade? (V 6, p. 301)

Portanto, o herói tem cabelos e olhos escuros, e é esguio (e como sabemos pela carta a Werner, ele orgulha-se de seu tipo físico)163. Mas aqui explicitam-se também características de outra ordem, referentes, sobretudo, à disposição para a vida – nesse quesito, Wilhelm parece não identificar em si próprio a “instável melancolia”, a “branda tristeza” e a “ativa indecisão” de Hamlet.

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Esse cálculo é feito por indícios deixados ao longo da história. Primeiro, o comentário da mãe de Wilhelm sobre o Natal de 12 anos atrás (I 2, p. 12), no qual ela presenteou as crianças com um teatro de marionetes. Em seguida, quando Wilhelm conversa com o desconhecido e fala que na época da venda do gabinete do avô, no mesmo ano do teatro de marionetes, ele tinha 10 anos, e que as transações da sociedade de seu pai com o pai de Werner foram desde então muito bem-sucedidas: “nos últimos doze anos eles aumentaram muito suas fortunas” (I 17, p. 62-63). Daí concluímos a idade de 22 anos. Há um hiato temporal entre o término do Livro I e o início do Livro II. Somente quando surge Felix com mais ou menos 3 anos de idade, nos idos do Livro IV (15), é que calculamos que Wilhelm tem então por volta de 25 anos. A carta de Werner em V 2 comunica que este irá se casar com a irmã de Wilhelm; no reencontro de Wilhelm com Werner, em VIII 1, este já tem mais de um filho, assim, supomos que o percurso de Wilhelm durou pelo menos dois anos desde aquela carta. De modo que a trajetória de viagens (II-VIII) do herói desenrola-se, portanto, entre seus 24 /25 e 27/28 anos de idade. 163 A fisionomia de Wilhelm, seu físico como um todo, corresponde até certo ponto ao seu espírito. Nesse particular, afora a beleza interior e exterior da qual o herói poético tradicionalmente era possuidor, pode ser analisada a influência de Lavater (1741-1801) sobre Goethe, visível também na caracterização de outros personagens.

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Família burguesa e o baixo estatuto da arte

Já no capítulo 2, criticando os gostos do pai à mãe, sabemos que Wilhelm pertence à classe burguesa. A infância de Wilhelm se deu em meio aos belos objetos da coleção do avô – este e a mãe, que nutria também certo gosto pelo teatro, oferecem um contrapeso ao pai e ao amigo Werner, que não tinham nada mais em vista do que a multiplicação do próprio dinheiro. A educação escolar parece ter sido também conforme os padrões vigentes para um jovem da burguesia comercial bem sucedida, não acima ou abaixo deles. Tendo sempre se mostrado inteligente e talentoso, o que Wilhelm recebeu de seu entorno – considerável conhecimento em diversas áreas (línguas, esgrima, artes, história, familiaridade com as lides do comércio) – nas duas primeiras décadas de vida bastou para que suas qualidades florescessem e para que se definisse, em meio a tantos objetos, aquele especial para o qual sua afeição voltou-se desde a infância: o teatro. Na história pregressa do herói contada nos capítulos iniciais de primeiro livro (I 28), Wilhelm comenta de passagem sobre a casa em que cresceu como sendo um lar bem montado e ordenado (I 5); alguns capítulos adiante, o narrador retorna ao assunto com mais detalhes, informando que o protagonista fora “educado numa elegante casa burguesa, a ordem e o asseio eram o elemento no qual respirava”, e nesse contexto, ele herdara “em parte o amor de seu pai pelo luxo” (I 15, p. 53). Wilhelm é representado como metódico e organizado, tal como era bem montada e ordenada a “elegante casa burguesa” de sua família (I 15, p. 53)164. Nada é narrado sobre uma relação mais íntima, na tenra infância, nem com irmãos (pois ele tem irmãos e irmãs) nem com amigos. É uma criança solitária, mas feliz. Já um pouco mais crescido é mais sociabilizado, era ele que reunia os amigos e irmãos para brincar de teatro (I 7, p.25)165.

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Evidente já na maneira como arrumava seu quarto na infância (I 15, p. 53). Esse é um traço que é destacado discretamente no decorrer do romance, como provam seu olhar atento e admirado sobre a desordem na casa de Mariane, a ordem da casa de Therese (VII 5, p. 437), a disciplina das meninas de Natalie servindo a mesa do desjejum (VIII 3, p. 506). 165 Esse distanciamento afetivo da família e dos amigos de infância (excetuando um pouco Werner) prevalece no romance. Um exemplo significativo a esse respeito é quando Wilhelm pergunta a Werner sobre a família,

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Ao comentar o amor desenvolvido por Wilhelm pelo teatro de marionetes, a mãe diz que cedeu as marionetes por alegria maternal de ver a boa memória do filho (mas soube mais tarde que ele pouco antes lhe furtara o livrinho e por isso pôde um dia apresentar de cor toda a peça a ela) – ela se mostra condescendente com Wilhelm, indício de que via nele não apenas inclinação mas disposição e talento para o teatro. Ao perguntar à mãe o que foi feito das marionetes, essa “brincadeira infantil”, o filho dá ocasião para ela continuar a história iniciada por ele a Mariane e contar um pouco sobre o que aconteceu depois da primeira apresentação vista pelo protagonista. O pai de Wilhelm é representado como alguém que valoriza sobremaneira a aparência de riqueza nas relações sociais. Isso não implica, porém, uma caracterização unilateral, o merceeiro que insiste em “abrigar por uma noite sob seu teto o filho de uma família a quem tanto devia” (I 13, p. 43), tenta ligar a burguesia a valores não exclusivamente associados aos atributos inferiores do interesse pelo dinheiro – ainda que estes a determinem. Com o tempo, Wilhelm passou a recitar aqui e acolá trechos da peça. As vezes que seu pai apanhava alguns desses momentos “elogiava a si mesmo a boa memória de seu filho”, que se tornava mais e mais ousado. Um dia Wilhelm recita boa parte da peça à mãe, e com a insistência dela, ele confessa o furto do livrinho. Wilhelm quer mostrar aos pais suas habilidades, bem como quer ser reconhecido por elas mediante o efeito que causam neles. A mãe reconhece o “talento inesperado” do filho, é ela quem coloca a par disso o jovem tenente que, feliz e casualmente, ofereceu-se por aqueles tempos para “iniciar” Wilhelm “naqueles mistérios” (I 5). Meu pai permitiu que o amigo se ocupasse de tudo, e parecia mesmo fazer vista grossa aos preparativos, seguindo decerto seu princípio de que não se devia demonstrar aos pequenos o quanto eles eram amados, pois eles sempre se descomediriam; era ele da opinião de que se deve parecer sério diante das alegrias infantis e por vezes até mesmo estragá-las, para que a felicidade não os torne abusivos e arrogantes (I 5, p.21).

os amigos da juventude e a cidade natal somente no último livro (VIII 1); depois de muito tempo, Wilhelm só se interessa por eles quando um deles lhe surge na frente; fora isso, preocupa-se por ter de prestar contas.

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Finda a apresentação, seu pai não elogiou. /.../ não deixou transparecer no dia sua alegria por ter um filho tão competente, mas, encerrada a peça, agarrou-se aos defeitos, dizendo que tudo estaria muito bem, se uma ou outra coisa não tivesse falhado (I 6).

Sua mãe, porém, “elogiou sobretudo a expressão decidida com que eu desafiara Golias e apresentara ao rei o modesto vencedor” (I 6, p.22), enfatizando ainda que simplicidade e naturalidade não eram sinônimos de falta de expressividade. A mãe reconhece o talento de Wilhelm, o que provavelmente o encoraja a mergulhar em suas inclinações. O amor-próprio do herói insinua-se bastante sólido, ele não se deixa abater pelos laivos de desprezo do pai – embora isso o incomode, pois Wilhelm sempre encaixa alguma observação a respeito, principalmente no começo do livro, quando remonta à infância. Wilhelm agarra-se, todavia, aos elogios da mãe. O narrador apresenta os pais dos dois amigos. Eles têm mentalidades distintas, mas opinião comum sobre o comércio. O pai de Wilhelm “transformara em dinheiro” a valiosa coleção de arte do avô herdada após sua morte – coleção sobre a qual saberemos melhor, inclusive da sua importância para Wilhelm, no fim do primeiro livro. Meister construiu uma casa e a mobiliou “segundo o gosto mais moderno”, tinha predileção por mobílias “sólidas e maciças”, ostentatórias (“uma inclinação particular para o luxo”). Era pouco hospitaleiro, pois não recebia ninguém se não fosse com fausto. O pai de Wilhelm alavancou sua fortuna por meio da venda da coleção de arte e aplicou-a no negócio do amigo. Este seu sócio, o pai de Werner, era um comerciante nato, ativo e bem-sucedido, e lidava com o dinheiro de modo oposto. Ele não esbanjava na opulência; em casa, nada empregava em mobiliário e decorações. Tudo era muito velho em sua “obscura e sombria” casa. Usava seu dinheiro para comer e beber bem, e gostava de compartilhar esse momento com as pessoas de fora de sua casa. Seu filho Werner desde sempre teve prazer na atividade de fazer dinheiro por meio da compra e da venda, muito diferente de Wilhelm, cujo pai participava dos negócios da sociedade passivamente e apenas recebia sua parte nos lucros. As qualidades de um bom negociante faltam-lhe tanto quanto são ausentes em Wilhelm o prazer e a inclinação para tal atividade. O narrador afirma explicitamente que o pai gostaria de incutir em Wilhelm qualidades que ele mesmo 203

não tinha. Wilhelm fica a meio caminho, portanto, entre o pai e o avô: não tendo sido propriamente criado para ser comerciante, sente-se em seu elemento somente no impossível mundo artístico do avô. A necessidade do ofício lhe foi artificialmente incutida por seu pai no momento em que, com a venda da coleção, baniu da família a herança humanista do avô. No pai do herói e em seu meio (especialmente Werner e seu pai) estão caracterizados os traços inferiores da burguesia ascendente, o interesse que beira a insensatez, orientado pelo egoísmo e pela especulação com a finalidade exclusiva do lucro. A relação orgânica entre suas atividades, seus modos de vida e suas individualidade, em suma, o transbordamento para todas as esferas da vida e a impregnação de um modo de ser são sumariamente representados por indivíduos nos quais o atributo humano está completamente distorcido, guiado por valores e interesses orientados pelo modus operandi das relações materiais burguesas. No pai de Wilhelm é representada a avareza com ares de magnificência pomposa daquele indivíduo que acumula, mas pouco compartilha e, portanto, pouco usufrui, o gosto pelo luxo que denota a importância que se dá às aparências sociais da riqueza. Essa apreciação evidentemente não contradiz o fato dele ser reconhecido pelos seus parceiros comerciais como homem honrado e até generoso: ele é um bom burguês num mundo em que as relações sociais são regidas segundo as regras burguesas. Outra face do egoísmo material oferece o pai de Werner em sua vida pessoal, ele revela traços da ignorância na sua má vontade ou incapacidade de dirigir seus recursos para colocar em atividade uma vida doméstica condizente com sua fortuna, de modo que abre também uma distorção entre os bens que tem e a maneira de usá-los. Sua generosidade em receber bem seus convivas é minorada como uma maneira pífia e limitada frente à possibilidade de multiplicar os frutos de seu trabalho numa ampla e sólida atividade social. Assim, por meio da representação de caracteres e modos de vida extremos, fica estabelecido desde o início da história do herói um desequilíbrio do mundo burguês entre patrimônio e fruição. Wilhelm, de algum modo, percebe esse desequilíbrio; por ocasião da morte do pai, o narrador comenta: Essa imprevista notícia atingiu Wilhelm no mais íntimo de seu ser. Sentiu

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profundamente o quanto costumamos descuidar com indiferença de amigos e parentes enquanto desfrutam conosco a estada aqui na Terra, e só nos arrependemos de tal falta quando uma ligação assim tão bela vem a se romper. Tampouco podiam aplacar-lhe a dor pela morte desse bravo homem numa idade avançada o sentimento do pouco que ele havia amado no mundo e a convicção do pouco que dele gozara (V 1, p. 281).

Os sócios resolveram enviar Wilhelm para uma missão comercial; de acordo com seu pai: “não se pode conceder a um jovem benefício maior que iniciá-lo a tempo naquilo que há de ser o destino de sua vida” (I 11, p. 38). Ele comenta que Werner já fizera uma viagem assim e fora muito bem-sucedido. O narrador diz que o pai de Wilhelm “tinha em grande conceito seu filho e suas capacidades”, considerando-o portador de “excelentes dons”. Já o velho Werner, “nas coisas práticas” só confiava em alguém quando tivesse provas, e ele profere as instruções que Wilhelm deverá obedecer, terá de cobrar várias dívidas, renovar antigas relações e estabelecer outras novas. Também poderá contribuir para apressar a especulação de que há pouco falamos, pois sem informações exatas, colhidas no próprio local, não se pode fazer grande coisa (I 11, p. 39).

Essa viagem tem uma primeira tentativa malograda (Wilhelm cai doente) e a segunda tentativa, no Livro II, é a que dará início à trajetória teatral. No primeiro momento, sua esperança era contentar o pai quando sua grande paixão, o teatro, gerasse os frutos esperados. Importava a Wilhelm agradar seu pai, embora o herói tivesse “absoluta convicção de que agia muito bem em se livrar do peso de sua vida presente e seguir um novo e nobre percurso” (I 11, p. 39). Assim, ele pensa em usar da ocasião da viagem (e o dinheiro que será disponibilizado) para realizar secretamente seus desígnios.

O amigo Werner: a vitória do dinheiro Werner, que tem uma inclinação apaixonada para os negócios e configura um contraste marcante com Wilhelm, surge, por isso mesmo, logo nos primeiros capítulos após a narrativa de Wilhelm sobre sua própria inclinação. Ele continuará presente no início do segundo livro, quando Wilhelm parte em viagem, e só reaparecerá no último livro, tendo escrito antes a Wilhelm no quinto livro informando a morte de seu pai. 205

Na mesma época que Wilhelm era o diretor de seu teatro de marionetes, seu amigo de infância Werner já manifestava sua predileção pelos negócios e explorava bem as oportunidades de lucro: sabia “inflamar o capricho” de Wilhelm e valia-se dele para venderlhe tecido para vestir os bonecos. Com satisfação, Werner relembra que tirava proveito das campanhas teatrais “como os fornecedores o tiram da guerra /.../ Não acho que exista nada mais sensato no mundo que tirar proveito da loucura alheia” (I 10, p. 34). Wilhelm diz que satisfação mais nobre está, pelo contrário, em curar o homem de suas loucuras166. Werner, inescrupulosamente, retruca que curar seria demais, pois já é difícil que “um só indivíduo seja sagaz e enriqueça, na maior parte das vezes, à custa dos outros” (I 10, p.34). Mostrando-se aberto, Wilhelm chega mesmo a dizer que a viagem que pretendia fazer talvez modificasse seu pensamento. Werner entusiasma-se: – Oh, sem dúvida! Creia-me: não te falta senão o espetáculo de uma grande atividade para que venhas juntar-te definitivamente a nós; e quando voltares, de muito bom grado irás associar-te àqueles que, por toda sorte de expedientes e especulações, sabem apoderar-se de uma parte do dinheiro e bem-estar que realizam no mundo seu curso necessário. Dá uma olhada nos produtos naturais e artificiais de todas as partes do mundo, observa como cada um deles é por sua vez necessário. Que ocupação agradável e engenhosa é esta, a de conhecer tudo aquilo que de momento mais se procura e que, entretanto, ou está em falta ou é de difícil aquisição; saber rápida e prontamente o que todos desejam, abastecerse previdentemente e tirar proveito de cada instante desta vasta circulação. Eis aí, segundo penso, o que pode proporcionar grandes alegrias a todo homem com cabeça. (I 10, p.35-36).

Nessa fala, Werner deixa claro a qual burguesia eles pertencem: à da esfera da circulação, isto é, trata-se especificamente da burguesia comercial. Ele sugere que Wilhelm visite algumas cidades mercantis, portos, assim verá quantos homens trabalham, a fascinação da circulação, onde cada mercadoria se relaciona pelo comércio com todas as outras, e como, enfim, a vida humana tira o sustento desse processo. Werner, que “exercitava seu correto raciocínio no trato com Wilhelm”, tentava convencer o amigo, que

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Opinião que pode ser discutida à luz da história do romance moderno e dos seus protagonistas. Sob essa perspectiva, pode-se encarar essa resposta de Wilhelm de duas formas: que ele considera sua inclinação, por vezes dita paixão, uma loucura que como tal deve ser tratada; ou que mais tarde será essa a visão dos representantes da Torre sobre sua inclinação, e Wilhelm, já reconhecendo de antemão esse traço como sua principal fraqueza, pode mais facilmente percebê-lo como erro que deve ser emendado.

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antes era tão sensato e que agora punha “todo o peso de sua alma no que havia de mais irreal no mundo”, a seguir o bom caminho. E para ti – exclamou Werner –, que tão cordialmente te interessas pelas coisas humanas, que espetáculo será para ti ver com os próprios olhos conferida aos homens a felicidade que acompanha os intrépidos empreendimentos! /.../ Não só em cifras, meu amigo, se nos aparecem os lucros; a fortuna [Glück] é a deusa dos homens vivos, e para experimentar de verdade seus favores é preciso viver e ver os homens que labutam intensamente e sensualmente gozam (I 10, p.37).

Werner é o portador, no início da história, do entusiasmo e da defesa persuasiva da atividade burguesa em seus diversos níveis. Mas já na primeira apreciação mais geral do carácter do “metódico e pensativo” Werner, certos traços negativos são marcados: "era daquelas pessoas experientes, determinadas na vida, as quais costumamos chamar de frias, porque, apresentada a ocasião, não se inflamam rápida nem visivelmente" (I 15, p.55). Se ambos exercitavam mutuamente seus modos de ser contrastantes, fica explícito mais uma vez por comparação qual o caráter de nosso herói: emotivo, aberto a novas experiências e cujo objetivo, o teatro, ele coloca em seu futuro como uma espécie de meca para a qual ele segue irresistivelmente. Mas, no fundo, os dois, que eram boas pessoas, caminhavam lado a lado, rumo a um [único167] objetivo, e jamais puderam compreender por que afinal nenhum deles era capaz de reduzir o outro a seu próprio modo de pensar (I 15, p. 55).

Werner percebia que Wilhelm não mais o visitava amiúde, e quando o fazia, não era mais o mesmo. Pensou que pudesse ter a ver consigo, mas depois soube por rumores que Wilhelm visitava uma atriz sedutora que “deixava-se sustentar” por um amante indigno. Werner propôs-se “investir contra” o amigo. Contou tudo a Wilhelm, “fazendo o amigo provar todas as amarguras que as pessoas serenas, tão generosamente e com uma eficaz alegria maldosa, costumam dispensar aos enamorados” (I 15, p. 55). Wilhelm acabava de chegar “descontente e mal-humorado” da curta viagem para buscar o cavalo e pouco se abateu com o que Werner lhe contava, disse simplesmente que Werner não conhecia a moça para falar dela daquele modo. Mas, infelizmente, a essa primeira tentativa malograda juntou-se outro forte indício

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Essa palavra foi introduzida pela tradução brasileira e confunde sobremaneira o leitor.

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que serviria como uma prova cabal da infidelidade de Mariane. Nosso herói não precisava mais ser convencido de nada, seu sofrimento era avassalador; mesmo assim, Werner prosseguiu “avançando passo a passo, com violência e crueldade, sem deixar ao amigo o bálsamo do menor equívoco momentâneo, destruindo-lhe todos os refúgios os quais poderia abrigar-se contra o desespero” (II 1, p. 76). No que respeita a Mariane, Werner agiu de modo cruel e não deixou a Wilhelm nenhuma esperança, mas depois reconheceria (II 2), referindo-se ao teatro abandonado pelo herói junto com seu amor, que Wilhelm deveria ceder a si mesmo e não viver em contradição, lamentando sinceramente o esforço de Wilhelm em deixar de lado o que “vivamente sente”. A tensão existente entre os amigos por causa das suas concepções discordantes é notória e quase inofensiva, mas percebe-se que Werner, apesar de nutrir uma amizade sincera, tem uma tendência de acirramento ausente em Wilhelm, ele quer competir com o amigo e provar-lhe, à custa de seu sofrimento se preciso for, que sua própria posição na vida é a acertada. Para isso, ele não poupou esforços, quando se apresentou a oportunidade, para trabalhar na destruição dos mais caros sentimentos e das mais alentadoras esperanças do herói quanto à vida e ao futuro. Mais adiante, é uma carta de Werner (V 2) que informa Wilhelm da morte do pai e das novidades acerca de sua família e seu patrimônio. Ele conta como a casa do velho Meister ficou cheia de pessoas na ocasião da morte; que ele mesmo pretendia casar com a irmã de Wilhelm; que venderiam o casarão e a mãe e a irmã de Wilhelm morariam com os Werner. Ele roga para que Wilhelm concorde com os planos, que ele não tenha “herdado nenhum dos infrutíferos caprichos de teu pai e teu avô”, ambos, na percepção do inquieto Werner, egoístas, pois “este colocava sua felicidade suprema num sem-número de obras de arte insignificantes, que ninguém, e posso mesmo dizer ninguém, poderia com ele apreciar168; aquele vivia em instalações tão valiosas que a ninguém deixava desfrutar” (V 2, p. 284). Werner diz que sua própria casa era pequena, no entanto, pondera, fora de casa o espaço é muito maior – cafés, clubes, passeios, etc. Assim, ele tomará a providência de tirar

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Sabe-se, entretanto, o quanto o gabinete foi importante para Wilhelm.

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tudo que há de supérfluo na casa, móveis e objetos, coches e cavalos. Bastará o dinheiro. Werner prossegue reafirmando sua alegre profissão de fé: cuidar dos negócios e fazer dinheiro; ser feliz com os seus e não se preocupar com o resto do mundo, senão na medida em que possa ser útil” (V 2, p. 284).

Werner despede-se, dizendo que antes do próximo semestre não precisarão de Wilhelm, que ele então corra “o mundo segundo sua vontade”. Quando os amigos se reencontram “por acaso” no castelo de Lothario no final do romance, torna-se claro que a maneira de ser e de pensar de Werner degradou-o fisicamente, consequência de uma individualidade estreita e a si mesma daninha, o que contrasta vivamente com Wilhelm169. Coloca-se lado a lado a diferença entre a maneira de Werner de gerir o dinheiro e a propriedade e a maneira de administrar dos representantes da Torre. Werner estava lá para proceder à compra de uma propriedade. O escrivão trouxe então os papéis, Werner achou as propostas razoáveis, dizendo, indelicadamente, que os senhores amigos de Wilhelm cuidassem para que a parte dos dois não fosse reduzida e que dependia de Wilhelm aceitar a quinta e empregar parte de sua fortuna nela (VIII 1, p. 490). Jarno e o abade replicam que aquela advertência era desnecessária. Quando Wilhelm pergunta sobre seus amigos e família, Werner conta que as senhoras da casa estão felizes e nunca lhes falta dinheiro. Werner já tem filhos, sobrinhos de Wilhelm, portanto, e eles prometem se tornar sensatos, Werner já os vê calculando, fazendo negócios e permutas. Diz que Wilhelm ficará satisfeito no que se refere aos bens deles – lembrando que Werner, de certo modo, trabalhou por Wilhelm todo esse tempo.

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Depois de Werner garantir que Wilhelm estava “mais instruído em sua essência e mais agradável no seu comportamento”, embora notasse também falta da antiga inocência (VIII 1, p.489-490); nota o narrador que Wilhelm foi discreto quanto às mudanças físicas constatadas em Werner, este, por outro lado, deu “livre curso à sua amistosa alegria”. Schiller declara que ficou feliz com a triste mudança do filisteu Werner, já que mostra o quanto ele ficou atrás de seu amigo Wilhelm. “Essa personagem é também por isso tão benéfica para o todo porque ela esclarece e aprimora o realismo ao qual o senhor remete o herói do romance, igualmente longe da fantasia [Phantasterei] e do filisteísmo [Philisterhaftigkeit], e enquanto o senhor curou-o do primeiro tão felizmente, preveniu-o não menos do segundo” (Schiller a Goethe, 3.7.1796, HA7, p. 636). Nessa passagem emblemática, torna-se claro que, para Schiller, Wilhelm sofre de um mal, o excesso de fantasia, é dela é “curado” no fim do romance.

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Werner quer que Wilhelm volte com ele para casa, posto que agora é possível que intervenha nos negócios mundanos “com algum bom senso”, e que os novos amigos de Wilhelm “devem estar orgulhosos de haver-te colocado no bom caminho” (VIII 1, p. 491492). Werner pergunta quem é Felix, “Wilhelm não teve coragem naquele instante de dizer a verdade, nem vontade de contar uma história, sempre duvidosa, a um homem nada menos que crédulo por natureza” (VIII 1, p. 492). Se Wilhelm não confiou a história a seu melhor amigo de juventude imagina-se como ele a introduziria no seu âmbito familiar. Não parece apropriado considerar a esta altura que Wilhelm duvide, ainda, de que Felix seja seu filho; é mais provável que queira defender-se de antemão contra Werner e não se veja obrigado nem disposto a convencê-lo de nada, demonstrando com isso, de certa forma, a pouca estima que Werner passara a lhe inspirar.

Mariane: a unidade entre amor e atividade

Mariane, atriz, é o primeiro amor de Wilhelm (e podemos acrescentar, o único, pois no decorrer de sua trajetória ele não se envolve com a mesma profundidade com nenhuma outra mulher). A jovem, que está na lembrança do herói em praticamente todo o romance, está presente apenas no Livro I: este se encerra com o abandono da amada, por suspeita de sua traição. No Livro VII, Wilhelm ficará sabendo, pela criada Barbara, do triste destino de Mariane: morreu após dar à luz ao filho de Wilhelm; sem saber, ele a deixara grávida. Mariane de vez em quando se censurava: nem nos braços de Wilhelm sentia-se protegida. Aquele seu estado de espírito culminava na conclusão de que ela “havia compreendido que mísera criatura é a mulher que não inspira, junto com o desejo, amor e respeito” (I 9, p.32). Ela dependia de sua honra para sobreviver: “Norberg está para chegar; Norberg, a quem devemos tudo o que somos, e sem o qual não podemos passar. Wilhelm não dispõe de muitos recursos e nada pode fazer por mim” (I 12, p. 42). Esse ponto nodal, a 210

saber, a opressão das questões materiais mostrada em sua necessidade mais elementar na realidade, afirma a fraqueza de Mariane frente às circunstâncias e sua incapacidade, portanto, de dirigir a própria vida. Ela diz a Barbara: Não tenho escolha – prosseguiu Mariane –, decide tu! Empurra-me para um lado ou para outro, mas fica sabendo de uma coisa: é provável que carregue no ventre uma dádiva destinada a nos unir ainda mais. Pensa bem e decide: qual dos dois devo deixar? Qual dos dois devo seguir? (I 12, p. 42)

As relações materiais determinam também a vida de Wilhelm, mas de um modo totalmente distinto e vantajoso, de maneira que ele pode escrever à amada: “o amor se satisfaz com pouco” (I 16, p. 59); indicando que o herói nem mesmo intuía as dificuldades que batiam diariamente à porta da atriz amada. Barbara explicará mais tarde que ela exercia um poder ilimitado sobre o pensamento de Mariane, mas não sobre seu coração. Mariane só era vencida pela necessidade, somente nesta circunstância a velha conseguia induzi-la. Foi assim que, contra sua vontade, Mariane obedeceu e aceitou entregar-se a um certo Norberg, rico – quatro semanas antes de conhecer Wilhelm. Nos primeiros tempos de sua juventude, Mariane tinha uma vida excelente, mas sua família perdeu tudo. Era inocente e não tinha a menor ideia dos assuntos mundanos, morria de medo de dívidas. Para saldá-las, entregou-se a Norberg. Wilhelm pergunta se Barbara não poderia tê-la salvado, ela responde que só mediante miséria, fome e privações, e para isso a velha nunca esteve preparada. Wilhelm insulta-a, indignado. Mas Bárbara responde que é exatamente isso que fazem mães de distintas casas com suas preciosas filhas, e que, “pelo casamento, ela adquire o direito de dispor como quiser de seu coração e de sua pessoa” (VII 8, p. 466). Ao delegar sua escolha à anciã Barbara, fria e interesseira, Mariane decide por sua ruína. Após um breve silêncio, no qual não se deliberou a gravidade do infortúnio em que Mariane cairia, a anciã diz que o melhor é conciliar o útil ao agradável, "se amas um, pois que pague o outro". A isso, responde Mariane: “faz o que quiseres, não consigo pensar em nada, mas te obedecerei” (I 12, p. 42); a proposta imoral da velha Barbara não surpreende Mariane, que se deixa arrastar irresistivelmente. Mariane “era incapaz de conciliar seu estado com seus sentimentos e suas convicções” (I 12, p.42). Observe-se que Mariane não traiu Wilhelm, ela teve um envolvimento com Norberg antes de conhecer o herói, caso que 211

passa a ser conflituoso com o aparecimento de Wilhelm; ela não acha, porém, que será capaz de viver com pouco, como deixou claro na conversa com Barbara170. A lembrança de Mariane continuou viva durante toda a trajetória de Wilhelm, mesmo após ele ter visto sua amazona. Um dia, tomado de quase desespero quando soube da possibilidade de Philine estar acompanhada de Mariane, ele suplica: Deixa-me ver a jovem! É a minha, é a minha Mariane! É ela por quem tenho suspirado todos os dias de minha vida; ela que é e continua sendo para mim a única mulher deste mundo! Ao menos entre lá e lhe diga que estou aqui, que está aqui o homem que nela entreteceu seu primeiro amor e toda a felicidade de sua juventude. Ele quer justificar-se por havê-la abandonado de maneira tão implacável; quer pedir-lhe perdão e absolvê-la de qualquer falta que porventura tenha ela cometido contra ele, e não pretende tampouco ter qualquer direito sobre ela, só quer vê-la mais uma vez, ver que está viva e é feliz! (V 15, p. 331)

Philine: lascívia e arte como entretenimento Philine, também atriz, é a primeira pessoa que Wilhelm conhece em sua jornada e acompanhará o herói ao longo de toda sua trajetória teatral (entre os livros II e V). No livro VIII sabemos que ela está com Friedrich, e grávida. Ela e Laertes eram o que havia sobrado de uma companhia de teatro que não vingou171. Aos poucos ela demonstrará que gosta de viver alegre e despreocupadamente 172, e segue tão intensamente essa conduta que às vezes aproxima-se da frivolidade, mesmo que esta tenha algum espírito. Philine destoa completamente do tom das reflexões elevadas e do comportamento sério de Wilhelm, e o faz com alguma pilhéria. Diante das

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Segundo Körner, frente a Wilhelm Mariane não era “nada além do que uma moça amável, pouquíssima para ser sua esposa, demais para ser abandonada por ele”, ela “em nada correspondia a seu ideal” (HA7, p. 654). Mas é preciso ponderar também que mesmo assim Wilhelm apaixonou-se e foi feliz. 171

Laertes aparece discretamente no romance. Ele é mostrado como um rapaz bom, tranquilo e razoável, porém misógino. Philine conta a Wilhelm que Laertes odeia as mulheres, desde os dezoito anos de idade, pois havia sido traído. Laertes fará parte da ópera de Serlo, quando Wilhelm já não via mais futuro para si no teatro. 172 É possível reconhecer também a m{xima espinosana que toma sua forma mais explicita em Philine (Kemper, Lukács, In: Marx und Goethe (1970), p. 156; 1936).

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extravagâncias de Philine, Wilhelm, em muito pouco tempo, tem despertados sentimentos contraditórios de admiração e reprovação. Philine encara a arte não apenas como ocupação, mas como entretenimento. Ela sugere em diversas ocasiões o uso da arte para distrair e agradar os convivas 173. É ela quem propõe o jogo de improvisação no barco, e, na volta desse mesmo passeio, é ela quem tem uma boa ideia de diversão, contando histórias que comporiam bem um drama, e Wilhelm, logo fisgado, "com ajuda da riqueza de sua viva provisão de imagens, compôs todo um drama, com seus atos, suas cenas, seus caracteres e suas peripécias" (II 10, p.118), terminando seu dia se sentindo muito bem, como há muito tempo não acontecia. Quando os condes chegam na estalagem do povoado, Philine é a primeira a apresentar-se a eles, “com expressão deslavada e gestos humildes”, como atriz. O narrador faz uma observação sobre a natureza ligeira, fria, ladina e imitativa de Philine, mas não má, posto que ela usava suas qualidades de rápida conhecedora das características das pessoas somente para se divertir, mas, se quisesse, naquelas condições já teria feito fortuna. É Philine que falará à condessa sobre Wilhelm, um jovem bonito e talentoso, despertando na nobre o desejo de conhecê-lo e a intenção de querer vê-lo no castelo, compondo a trupe. Já no castelo, Philine continua a enaltecer junto à condessa as qualidades de Wilhelm, sua “nobreza moral, a generosidade e sobretudo sua reserva no trato com o sexo feminino”, pois havia percebido a impressão que ele lhe causara. Os exércitos estavam para avançar, mas os atores (como Philine) preocupavam-se apenas em “tirar o melhor proveito de cada instante”, enquanto Wilhelm “ocupava-se à sua própria maneira. A condessa havia-lhe pedido uma cópia de suas peças, e ele considerava aquele desejo da amável dama como a

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Não primando sempre pelo bom gosto, como em breve constataria Wilhelm. Quando Philine pediu para que o ancião tocasse uma canção que ela gostaria de cantar, cujo conteúdo era de mau-gosto e até indecoroso, Wilhelm disse a ela que não viu nenhum mérito poético ou moral na canção, ainda que a interpretação tenha sido graciosa (II 11). Nesse sentido, comenta o narrador bem mais tarde, após a saída de Philine do teatro de Serlo: “a ausência de Philine não trouxe nenhuma sensação especial nem ao teatro nem ao público. Ela levava as coisas de forma pouco séria; as mulheres, em geral, a odiavam, e os homens preferiam vê-la face a face a vê-la no teatro; assim, resultava inútil seu belo e até mesmo muito oportuno talento para o palco” (V 16, p. 333). Apesar de sua leviandade também em questões artísticas, ela é capaz de zombar das opiniões estéticas do conde, que considera que o ator não deve nunca despir-se de seu personagem, como acontece com o pedante e a barba do harpista (IV 1).

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mais bela recompensa” (III p. 191). Uma noite a baronesa chamou Wilhelm a seu quarto, lá ele deparou com Philine, que agiu de forma muito decorosa e cortês, obrigando-o a fazer o mesmo. Ela se desculpou, acusou-se e se arrependeu do seu indecoroso comportamento passado com o herói. Wilhelm ficou atônito com tal discurso. Conhecia muito pouco o mundo para saber que justamente as pessoas mais levianas e mais incapazes de se emendar são as que costumam recriminar-se com mais intensidade, reconhecer seus erros e arrepender-se sinceramente deles, ainda que não tenham força alguma para desistir desse caminho, para o qual as impele uma natureza superior. Ele não podia, portanto, mostrar-se inamistoso ante a linda pecadora; entabulou com ela uma conversa e ficou a par da proposta de usar um insólito disfarce, com o qual pensavam surpreender a bela condessa. (III 10, p.182).

Fica claro que Philine conhece as características dos homens e Wilhelm não. Assim, é irônico, porém não descabido, que exatamente Philine, com sua personalidade ligeira e leviana, mas não tola ou desonesta (embora se mostre diversas vezes dissimulada), seja quem zele pelo herói no momento seguinte após o assalto (“Philine, em meio à desordem de tal modo de vida, ficava à espreita do esquivo herói, por quem seu bom gênio devia velar”, IV 2, p. 208). O herói, seriamente ferido, quer distribuir seus bens entre todos; Philine não permite, dizendo que a mala era sua e que ela podia vender coisas e assim ter algum dinheiro guardado para a cura de Wilhelm e o que mais ele pudesse precisar numa “terra estranha”. A desprendida Philine torna-se previdente e guarda as coisas do herói, não deixando que Wilhelm as dissipe, mais uma vez, em favor daquelas pessoas. Ela, mostrada em inúmeras ocasiões como materialmente desinteressada, busca apenas aproveitar da melhor maneira seu tempo174 (despendendo dinheiro e recursos), e exatamente, portanto, conhece os meios para isso, bem como as ameaças que rondam (os puramente interesseiros, como Melina), as quais, a princípio, Wilhelm não compreende como tais. Ela cuida durante dias a fio do herói ferido.

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Pensamento que Philine expressa a Laertes, que quando todos estavam de partida do castelo, fica melancólico à janela. Pensava na passagem do tempo, que transforma tudo (ela via vazio o que antes era um campo com homens acampados). Philine tenta brincar com ele, dizendo para que aproveitassem o presente, já que não era possível reter o tempo depois dele já ter passado (IV 1). Wilhelm dirá mais tarde que não via melhor recomendação que esta: “Ali onde estiveres, ali onde permaneceres, faz o que podes, sê ativo e solícito, e que o presente te traga satisfação!” (VII 8, p. 463).

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Philine dá corpo à tensão entre o imoral (descompromisso, zombaria e sedução) e o erótico; Wilhelm aproxima-se dela enquanto simultaneamente se condena. Ele se sente atraído e isso se dá em diversas ocasiões. A sensualidade de Philine age sobre Wilhelm mesmo após a recente aparição da amazona. Precisamente na atração sempre renovada que ela provoca nele está um importante traço de Philine no próprio Wilhelm, uma certa leviandade em se deixar encantar pelas mulheres que cruzam seu caminho, mas que só não se consuma porque ele, diferente dela (de Serlo, de Lothario), controla-se. Philine fala abertamente no quanto Wilhelm a interessa, ele, por sua vez, Não podia tratar mal nem ser hostil a Philine, pois ela não lhe havia feito nada, e ele se sentia tão distante de qualquer inclinação por ela que podia afirmar a si mesmo seu orgulho e perseverança (V 10, p. 313).

Não é bem isso, porém, que o narrador descreve logo em seguida, quando Wilhelm vê as pantufas de Philine ao pé da cama. Parecia que as cortinas se moviam, ele sente uma “agitação de ânimo”, tomada como aborrecimento, fala em voz alta que Philine saia, procura-a por todos os cantos e nada, “e um espectador malicioso poderia até mesmo crer que ele procurava com o desejo de encontrar”. Sem sono, ele coloca as pantufas sobre a mesa, e um gênio travesso há de assegurar que ele passou grande parte da noite ocupado com aquelas tão graciosas andas, fitando-as com certo interesse, manuseando-as e brincando com elas, e que só por volta do amanhecer foi deitar-se na cama, ainda vestido, quando então adormeceu entre as mais estranhas fantasias (V 10, p. 314).

Comprovando por meios sutis que Wilhelm a desejava 175, e, conhecendo-o, sabia que ele jamais se aproximaria dela sem sérias intenções, ela, então, agiu em vez dele – depois de Mariane, está na noite de estreia de Hamlet o único momento íntimo do herói com uma mulher em todo o romance. Quando Wilhelm chega a seu quarto, depois de um banquete em comemoração àquela bem-sucedida noite, ele despe-se, apaga a luz e vai para a cama, ouve um barulho, em sua entusiasmada imaginação pairava precisamente naquele momento a

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“/.../ amei Philine e acabei por desprezá-la. (VIII 7, p. 551). Essa é a única vez em que Wilhelm confessa que amou Philine – e só pôde fazer isso quando esse amor já tinha se extinguido.

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imagem do rei em seu arnês, sentou-se no leito para interpelar o espectro, quando sentiu que braços delicados o entrelaçavam, cerravam sua boca com beijos ardentes e um outro peito se estreitava contra o seu, um peito que não teve coragem de repelir (V 12, p. 322).

Na manhã seguinte, não havia ninguém na cama com Wilhelm, ele estava com uma “sensação incômoda”176. Tinha um pouco de ressaca e a lembrança da visita noturna o inquietava. De quem suspeitou primeiramente foi Philine, mas “o amável corpo” não parecia ser o dela. Tempos depois, houve o incêndio, Wilhelm não conseguia dormir. Pensava em Philine, que ao sair do teatro lhe havia roçado o cotovelo e sussurrado algumas palavras, que ele, entretanto, não havia compreendido. Estava confuso e descontente, sem saber o que deveria esperar ou fazer /.../ Ele não sabia como a bela chegaria até o jardim, caso fosse esta sua intenção. Não desejava vê-la, e, no entanto, bem que teria gostado de se explicar com ela (V 14, p. 327).

A saída de Philine do teatro de Serlo, apesar de tudo, foi sentida, visto que ela era uma espécie de elo de ligação do grupo. Ela entretinha Serlo com habilidade, suportava com paciência a impetuosidade de Aurelie “e sua ocupação mais peculiar consistia em adular Wilhelm” (V 16, p. 336).

Mignon e o harpista

Na estalagem, Wilhelm intriga-se com uma estranha criança – Mignon. Pouco depois, Wilhelm salva-a de uma trupe de saltimbancos pela qual ela era obrigada a apresentar-se; e assim, a partir daquele momento ela permanecerá ao lado do herói, para em tudo servi-lo e ajudá-lo – enquanto ela mesma precisava do conforto do amigo. Na recuperação de Wilhelm, Mignon era “cheia de solicitude e amor, ansiosa por servi-lo e disposta a entretê-lo” (IV 10, p. 233). Mignon desperta-nos piedade. Ela surge

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Foram poucas as ocasiões em que algo como um franco mal-estar instalou-se no íntimo de Wilhelm. Duas delas estão ligadas a Philine. Isso se deve, em grande parte, ao fato dela despertar sentimentos que não se coadunam à pureza de Wilhelm, como ciúmes (II 12, p. 128) e desejo sexual.

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como um “afetuoso gênio tutelar” acompanhando também Felix, o menino de aproximadamente três anos cuja paternidade foi atribuída ao herói. A cada dia com mais impetuosidade, abraçava Wilhelm com força e beijava-o, chegando a assustá-lo. Todas as suas brincadeiras pareciam resultado de “uma violenta convulsão interior” (IV 16, p. 255). Sua serenidade advinha do convívio com Felix, com o qual se sentia muito bem. A relação de Wilhelm com Mignon é delicada – ele apega-se a ela por razões inexplicáveis, mas em nenhum momento parece amá-la com ardor, que é o sentimento que Mignon acaba por desenvolver por ele177. Wilhelm cuida dela, protege-a, preocupa-se com ela. Ele “sentia imenso prazer com a atenção da criança” (II 12). Mas, talvez por sua própria inexperiência, ele mostra-se muitas vezes negligente com ela: em relação às roupas das quais necessita, Wilhelm dá excepcionalmente como um presente que ela almeja; em relação à alimentação, no episódio do castelo, ele por orgulho nega o que Philine lhe enviara, mas a criança pede para que ele aceite as frutas e doces, pois ela estava com muita fome. Wilhelm pouco nutriu os parcos conhecimentos da menina, que vinham acompanhados de uma insaciável sede de aprendizado; ela fala um mal alemão, mas anseia aprender coisas de seu interesse, gosta de mapas, tenta escrever. Wilhelm ajuda a menina quando é solicitado, e o faz de bom grado, contudo, ele não se dispõe a ser seu tutor ou algo do gênero. Em relação à sua saúde frágil, Wilhelm não leva às últimas consequências os sérios indícios de sua debilitação. Quando ele retorna do castelo de Lothario, percebe que Mignon está mais magra e mais pálida que de costume (VII 8); é a velha Bárbara que fica encarregada de levar Mignon e Felix para a casa de Therese. Quando recebe o bilhete da irmã de Lothario informando-o sobre a criança que o venerava, Wilhelm em nenhum

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É o médico que se refere ao amor de Mignon por Wilhelm. Ele conta da noite em que entrou uma figura feminina no quarto de Wilhelm após a representação de Hamlet. Não era Mignon, mas uma rival que se antecipou a ela, que estava escondida lá e não planejava nada além de um “íntimo e plácido repouso” (VIII 3, p. 511). Pois “a inclinação pelo senhor, meu amigo, já era viva e poderosa naquele bom coração; em seus braços a boa criança já havia aplacado mais de uma dor, e agora desejava tal felicidade em toda sua plenitude” (VIII 3, p. 511). Desde aquela noite que ela viu Wilhelm com Philine, o coração que batia “vivamente de nostalgia e expectativa” (naquela “natureza semidesenvolvida” [halbenentwickelte Natur], HA, p. 524.), “começou a parar e a oprimir-lhe o peito”. Mignon não pode ter nada do que desejou e só lhe restou deixar a vida.

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momento durante a viagem pensara que estava indo para ver Mignon, gravemente doente (ao invés disso, deliberava se ia ou não ao encontro da condessa). É um traço de egoísmo no generoso Wilhelm178. Ele se sente magnetizado por Mignon – mas, às vezes, na prática de suas relações, isso parece ser tudo. Posto assim, dirá ele, de frente aos “frequentes erros que com ela cometi”, Wilhelm perde a coragem de ver Mignon já perigosamente doente, ele poderia inclusive “acelerar seu fim”; mas o médico insiste dizendo que “a presença de um objeto querido rouba à imaginação sua força destruidora, transformando a nostalgia numa contemplação serena” (VIII 3, p. 512). O médico recomenda que ela permaneça em equilíbrio físico e espiritual. Contudo, conturbações alteraram seu estado de espírito. Wilhelm desabafa e reconhece que Mignon, pobre criatura, buscava proteção e abrigo junto a ele, “/.../ mas em seu espírito só havia o vazio e a solidão” (VIII 5, p. 530). É somente no último livro que sabemos um pouco sobre Mignon, de onde veio e por que, história que Natalie percebeu entrecortada nas cantigas e falas da menina. Mignon foi enganada e raptada e, por fim, “fez a si mesma o voto solene de nunca mais confiar em ninguém, nunca mais contar sua história, e viver e morrer na esperança de uma imediata proteção divina” (VIII 3, p. 510). No que certamente lembra a crença de Wilhelm no destino insondável179. Mas Mignon aparenta-se à natureza de Wilhelm também pela inocência, infantil no seu caso, pela qual, diferente do seu protetor, pagou um preço caro: o destino com ela foi trágico, como foi o de seus pais. Wilhelm tem de defender Mignon e o pai dela, o harpista, da sociedade e da condição de ambos criada socialmente. O extremo a que a superstição pode levar é um aviso para que Wilhelm mude de direção quanto às suas próprias ideias místicas, como mostra a história do ancião Augustin, personagem surgido também no segundo livro como um harpista que age fortemente sobre

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Que lembra um pouco seu comportamento pouco afetivo com sua família. Wilhelm reluta em se colocar no papel de professor ou mestre; e talvez por esse motivo parte importante de seu aprendizado seja ele se tornar pai. Ele só se sente capaz de orientar no âmbito teatral – em que ele é diretor artístico e uma espécie de líder prático e intelectual das companhias pelas quais passou. 179 Ver: Franziska Schlösser e especialmente Ammerlahn, sobre a representação de Mignon como o Lebensgeist do próprio Wilhelm.

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as emoções Wilhelm. Apesar de ser um alento ao herói, o harpista é também, pela nostalgia tão profundamente arraigada nele, uma forma de manter as coisas como são. Não é por acaso que o ancião ficou por tantos anos num convento, preso, para que ao mesmo tempo aplacasse sua paixão e consolasse seu coração: ele mesmo se tornou um templo ermitão, um refúgio solitário, essencialmente triste, pois apenas pode servir de consolo ao que é inevitável, aos fatos consumados, ao irrealizável. O harpista, como Wilhelm, crê que está predestinado; no entanto, seu destino é implacavelmente cruel, o velho não poderia jamais ser culpado de sua sina nem tampouco ser livrado do castigo. “Sou culpado, mas mais infeliz que culpado” (IV 1, p. 206). Não só para o bem age o destino. O protagonista tem provas vivas da justiça cega levada a cabo por ele e ainda assim não parece convencer-se disso. O ancião é um asilo para Wilhelm, consolando-o com sua música da espécie de fatalidade que se abate sobre ele quando é paulatinamente obrigado a aceitar que não pode desdobrar sua individualidade pela expressão plena de suas disposições artísticas180. Augustin conta com esforço que leu o manuscrito que continha sua história, já que ficou no quarto do abade depois da distribuição feita pelo conde. Ficou tão desolado que decidiu morrer. Isso acontece no último livro, depois de uma trajetória ao lado do herói só interrompida em meados do quinto livro, quando ele é enviado para tratamento médico, após ser tomado de um acesso de loucura. A deslegitimação de um representante da Torre – Jarno – das companhias de Wilhelm, especificamente Mignon e o harpista, conduzem à ponderação de que o

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O que determinou o destino catastrófico de Mignon não foi uma decisão sua, ao contrário, como numa tragédia grega, a determinação de seu destino trágico é anterior a seu nascimento. A concepção de destino (como vira Hamann em Sokratischen Denkwürdigkeiten) liga-se ao conceito de Dämon intimamente, uma vez que suas forças são determinadas pelo acaso e pela tragédia, pelas forças naturais curativas ou destrutivas. Goethe viu nos homens determinados pelo Dämon o gênio virtual, cujas naturezas eram tomadas de um excessivo impulso para a atividade e para a vida (como Frederico II, Napoleão, Mozart, Lord Byron etc.). Entre seus personagens, Mignon e o harpista contam entre tais naturezas, ao lado de Fausto. A fixação da individualidade e da vivência da alma receberiam sua determinação pelas forças produtivas do Dämon, de modo que o conceito passa a ter o mesmo significado de enteléquia. Tentou-se igualar essa ideia de determinação da individualidade a uma espécie de ocultismo ou superstição, uma vez que isso “não é solucionável pelo entendimento e pela razão” (Goethe, Conversas com Eckermann, 02.03.1831).

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necessário banimento de suas inclinações é algo cruel e desprovido de um sentido humanista181. Wilhelm se sentiu triste e decepcionado com as palavras ofensivas contra o harpista e Mignon proferidas por Jarno. O narrador comenta que o herói “não podia suportar ver tão profundamente rebaixados, por um homem a quem tanto respeitava, dois seres humanos que haviam inocentemente conquistado seu afeto” (III 11, p. 187). A crítica de Jarno a Mignon e ao harpista vai num sentido totalmente oposto ao sentimento do herói por aquelas criaturas. A formulação de Wilhelm é imprecisa: “tu, insensível mundano, imaginas poder ser um amigo! Tudo o que me podes oferecer não vale o sentimento que me une a esses infelizes” (III 11, p. 187). Junto a Mignon que se aproximou naquele momento, Wilhelm brada que nada os separaria ou o faria esquecer o quanto ele devia a ela, nem mesmo a “aparente sabedoria do mundo”. (Mignon “estreitou-se fortemente” frente aquela “inesperada manifestação de ternura”.) Mignon e o harpista são representados como artistas que não têm lugar no mundo – mesmo realizando suas atividades, não podem ser felizes – eles são o limite de uma situação reiteradamente mostrada no romance: mesmo os artistas famosos e bem-sucedidos, Narcisse e Landrinette, Serlo e Aurelie, não são capazes de se satisfazer com o exercício de suas atividades/inclinações artísticas. Eles lembram Wilhelm a todo instante de sua condição burguesa, em que o conteúdo da atividade não importa, o que os próprios representantes da Torre provarão também, na medida em que a expressão da individualidade só pode ocorrer obedecendo a condições determinadas socialmente, e portanto, é possibilita uma liberdade bastante questionável para o livre desenvolvimento das inclinações e disposições individuais.

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Trata-se, sim, do veto a uma atividade socialmente inviável e inútil, sacrifício que é feito com a própria existência de pai e filha, e atividade da qual Mignon, por amor, alertava para que Wilhelm se distanciasse.

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Aurelie: realização e autodestruição

Aurelie é irmã de Serlo. Atriz consciente de sua arte e bem-sucedida, ela surge ao lado do irmão como um alento para os anseios teatrais de Wilhelm no momento em que, por causa do assalto, sua trupe havia se desfeito. É junto dela que Wilhelm vê Felix pela primeira vez (IV 15, p. 246), ele havia sido levado por Barbara para ser cuidado por Aurelie como um suposto filho de Lothario. Conhecemos melhor Aurelie quando da representação de Hamlet, em que ela fica a cargo de Ofélia. Poucos traços magistrais bastam para definir o caráter da personagem 182, diz Aurelie, o principal é que ela abandona “seu coração de tal modo a seus desejos” (IV 14, p. 241) que “havendo de sacudir a complacente deusa Ocasião a pequena árvore, o fruto tombará sem demora” (IV 14, p. 242). E quando ela se vê abandonada, prossegue Aurelie, “despedaça-lhe o arcabouço de sua vida”, completa Wilhelm. Essa conversa desperta toda a dor de Aurelie, que “diante da companhia” sentia-se “atada e oprimida” e diante do “implacável irmão” estava sempre fingindo. Wilhelm compreende os sentimentos da recém-conhecida, e esta, por sabê-lo sensível e sincero, abre-lhe o coração. Depois de alguns dias, Aurelie chama Wilhelm para falar de si mesma e de seu destino, contando assim entre os personagens que narram sua história. Por causa da criação de uma tia que se entregava aos seus impulsos sem nenhum controle, Aurelie passa a conhecer muito bem o sexo masculino, e desde cedo aprende a odiá-lo. A nação abstratamente pensada e referida por Wilhelm, toma corpo, com Aurelie, em indivíduos e suas respectivas ocupações. Ela conta como o prazer em ouvir os aplausos tornou-se repulsa pelos “homens da nação” de todas as classes, idades e caráteres, os quais conhecia porque eles a assediavam. Os tipos que ela esquadrinhou com a ajuda do irmão são: “o inquieto caixeirinho de loja”, “o pretensioso filho de comerciante”, “o hábil e flexível homem do mundo”, “o audaz soldado”, “o expedito príncipe”, “o estudante fantasticamente

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Aurelie faz como Wilhelm, que ao explicar Hamlet define a si mesmo.

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engalanado”, “o sábio embaraçado em sua altivez humilde”, “o decano com ar de modéstia e pés vacilantes”, “o rigoroso e atento homem de negócios”, “o rude barão rural”, “o cortesão afavelmente adulador e vulgar”, “o jovem eclesiástico desviado de seu caminho”, “o comerciante negligente”, “o ativo especulador” (IV 16, p. 253). Todos faziam “alguma estúpida observação”, de nenhuma parte ela ouvia “alguma frase nobre, inteligente e espirituosa”. A nação que antes elevava seus pensamentos, “parecia em seu todo tão desajeitada, tão mal educada, tão miseravelmente instruída, tão desprovida de caráter agradável, tão insípida...” (IV 16, p. 254). Mas Aurelie censura-se dizendo que estava sendo nessa época cega e “hipocondriacamente” injusta. Casou-se sem saber exatamente como e por quê – certo é que seu casamento foi útil a Serlo; já adiantando a Wilhelm o caráter do irmão. Os negócios iam bem. Numa indiferença generalizada, ela não representava mais segundo seu sentimento e convicção, não tinha nada a compartilhar com o mundo, seu conceito de nação se perdera; ela se submeteu à vontade de Serlo, que além de gostar e precisar de elogios, tinha muito apreço por sucesso e dinheiro. O marido adoeceu e morreu. Depois disso, ela conheceu um homem que veio a mudar todo seu conceito sobre sua nação – Lothario (na descrição, porém, ela não diz seu nome). Ela nos conta a ventura e desventura de tê-lo e perdê-lo. Certo dia, criticando Philine e tendo o desgosto de vê-la defendida por Wilhelm, que dizia lhe dever gratidão e que, embora sua conduta fosse censurável, devia fazer “justiça a seu caráter”, Aurelie chama-o de "ave do paraíso". Wilhelm pergunta a que deve o honroso título, ela responde apenas: “dizem que essas aves não têm patas, que pairam no ar e se alimentam do éter” (V 10, p. 312), um mito, uma ficção poética. Assim, também Wilhelm foi tipificado por ela. Aurelie tem um triste fim. Wilhelm tentava afastar dela a ideia de morte (tal como fez com o harpista). Mas quando ela adoece e o médico emitiu juízo sobre sua saúde, ela, que havia escrito uma carta que pretendia ao menos por um instante provocar remorso em Lothario, escreveu então outra carta, mais amena, perdoando-o. O narrador diz que o efeito da carta será realmente conhecido pelo leitor quando ele ler o livro seguinte (Confissões de uma bela alma). Aurelie fazia suas algumas ideias do manuscrito. Um dia Wilhelm 222

encontrou-a morta. Bem-sucedida em sua atividade, morre por ter um amor não correspondido. Assim o narrador nos transmite os sentimentos e pensamentos de Wilhelm: Pela estima que tinha por ela e pelo hábito de viver a seu lado, esta perda lhe foi extremamente dolorosa. Ela era a única pessoa que lhe queria verdadeiramente bem, e nos últimos tempos ele não havia sentido senão a frieza de Serlo. Eis por que se apressou em cumprir a embaixada da qual se viu encarregado, com o desejo de afastar-se dali por algum tempo. /.../ e nosso amigo estava satisfeito com tudo que lhe facilitasse sua licença por algumas semanas. Havia feito uma ideia singularmente importante de sua missão. A morte de sua amiga comoverao profundamente e, vendo-a abandonar tão prematuramente o palco, sentia-se forçosamente hostil contra aquele que abreviara sua vida e tanta dor a fizera sofrer nessa sua curta vida. A despeito das últimas palavras amenas da moribunda, ele havia tomado a decisão de pronunciar um severo juízo sobre o amigo infiel ao lhe entregar a carta; como não quisesse se fiar na inspiração eventual do momento, imaginou um discurso que, uma vez elaborado, acabou tornando-se mais patético que razoável. Assim que se sentiu plenamente convencido da boa redação de seu trabalho, pôs-se a decorá-lo ao mesmo tempo em que tomava as providências necessárias para sua viagem (V 16, p. 346-347).

Aurelie morre no inverno, mesma época em que se encerra a trajetória teatral do herói.

Serlo: talento e interesse O ator e diretor Serlo é mencionado no Livro I como um conhecido de Wilhelm junto ao qual este buscará uma colocação para viver com Mariane. Wilhelm lembra-se novamente de Serlo após o assalto, com a decorrente falência da trupe da qual o herói havia acabado de ser elegido diretor. Wilhelm parte rumo à grande cidade comercial, na qual situa-se o teatro de Serlo, e é recebido calorosamente por ele, que dizia que o herói continuava o mesmo e lembrava-se, sobretudo, de seu ardor pelo teatro. Mas criticou implacavelmente todos os membros da companhia referendados por Wilhelm, que queria dizer algo a favor deles, mas Aurelie interrompe-o, tratando Wilhelm com muita amabilidade e uma conversa muito agradável, que o herói não tinha desde que encontrara Jarno no castelo. Diferente daqueles atores com os quais Wilhelm havia se unido, os irmãos Serlo e 223

Aurelie tinham outra postura em relação à arte. Passavam em revista as peças recentes, julgavam com segurança, explicavam-se com prontidão – eles são, em suma, o que Wilhelm dissera pouco antes sobre o que o ator deveria ser, na explanação sobre Shakespeare para a companhia. Ao ver uma peça representada pela companhia de Serlo, Wilhelm constatava que “era a primeira vez que via um teatro numa tal perfeição. Todos os atores mostravam excelentes faculdades, felizes disposições, uma noção elevada de sua arte”, além de serem todos “deveras seguros e precisos” (IV 15, p. 245). Serlo, que apreciava música, recebia constantemente pessoas em sua casa para concertos e considerava que o tom e a medida musicais deviam ser usados na atuação. Ele era a alma do grupo: “um humor sereno, uma vivacidade comedida, um sentimento preciso do oportuno, tudo isso associado a um grande dom de imitação. A íntima satisfação de sua existência parecia espalhar-se por todos os espectadores” (IV 15, p. 245)183. Ele narra sua história de vida a Wilhelm. Desde muito pequeno estava sobre o palco. Seu pai surrava-o de tempos em tempos para que ele adquirisse segurança e constância em suas habilidades na representação de papéis. Assim que cresceu um pouco mais e percebeu seu notável talento para a imitação, fugiu de seu pai. “Sua boa estrela o guiou” primeiro para um mosteiro, onde assumiu os principais papéis dos Mistérios, até chegar ao de Salvador do mundo. Foi em seguida para uma cidade vizinha, sendo recebido por uma sociedade chamada “Os Filhos da Alegria”, estes “compreendiam muito bem que a soma de nossa existência, dividida pela razão, nunca é exata, restando sempre uma estranha fração”184 (IV 18, p. 263). Os membros dessa sociedade castigavam-se como loucos para purgar seus erros (que era o que sobrava de insensato daquela conta) com representações alegóricas. Serlo não tinha capacidade inventiva, mas sabia aproveitar tudo que encontrava pela frente. Movido pela inquietude, abandonou a posição vantajosa em busca de outras aventuras, foi para o norte da Alemanha. Ali, ele não podia servir-se de seus artifícios católicos de entretenimento, “teve de agir sobre o coração e o espírito” (IV

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Estudiosos encontram semelhanças entre Serlo e Friedrich Ludwig Schröder (1744-1816), ator de talento excepcional e diretor em Hamburgo desde 1771 (v. Trunz, HA7, p. 749). 184 Lembrando um comentário que Goethe faz em carta a Schiller (9.7.1796) sobre WML.

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18, p. 264). Mas logo viu que nos palcos alemães reinava a monotonia, a decadência, e percebeu ao mesmo tempo o que agradava e comovia. Passou a representar peças completas em cortes e aldeias, conseguia alimento e abrigo aonde quer que fosse. Muito contrariamente à natureza de Wilhelm, “seu ardor juvenil supria a falta de um sentimento profundo; passava por força sua impetuosidade e por ternura sua adulação” (IV 18, p. 264). Aperfeiçoou rapidamente sua arte, “com seu espírito vivo, livre e por nada coibido”, repetindo papéis e peças. Aceitava como pagamento o que quer que fosse, recusando dinheiro se achava já ter o suficiente, “e assim, vagando de lá para cá com cartas de recomendação, viajava durante certo tempo de uma a outra corte nobre, onde despertava e desfrutava muito prazer, e onde não se furtava às mais gratas e galantes aventuras” (IV 18, p. 265). A “íntima frialdade de sua índole” fazia com que ele não amasse propriamente ninguém, seu olhar, que captava o todo tão bem, restringia-se, porém, à observação apenas das qualidades exteriores, estas que serviam à sua mímica. Como se sentia muito ofendido se não conseguia agradar, seus sentidos foram tão aguçados a ponto de não só em cena, mas também na vida, ele somente adular. Foi assim que se tornou, sem perceber, um “consumado ator”. E mais: por uma ação e reação aparentemente estranhas, mas absolutamente naturais, graças a seu discernimento e sua aplicação, conseguiu ele elevar sua arte de recitar e declamar e sua mímica a um alto grau de verdade, liberdade e espontaneidade, enquanto na vida comum e no trato com as pessoas parecia tornar-se cada vez mais hermético, artificial e até dissimulado (IV 18, p. 265).

As fraquezas da nobreza Friedrich, de criado a nobre pícaro Friedrich está na história desde o início, como empregado de Philine, totalmente inexpressivo embora com algumas excentricidades; seu próprio nome sabemos apenas cenas após sua primeira aparição (cabe ainda mencionar que Friedrich é o único dos irmãos que não é caracterizado pela tia, a bela alma, em seu manuscrito – talvez por ser 225

muito novo). Quando, no entanto, já estamos no último livro, o jovem Friedrich reaparece, dessa vez em uma posição bastante vantajosa: ele é o irmão mais jovem da condessa, de Natalie e de Lothario. Ele ressurge desabrochado num curioso pícaro (ironicamente irmão do exemplar Lothario e da “mortal perfeita” Natalie), e muito agradecido a Wilhelm. Friedrich adquirira uma vasta erudição [Gelehrsamkeit], referindo-se, a cada frase, a histórias e fábulas antigas. Ele conta então a Wilhelm que estava com Philine, que continuava amando-a com a “mesma loucura de sempre” (VIII 6, p. 542), eles haviam arrendado um castelo de uma possessão feudal e lá passaram a se entreter com os livros da biblioteca. Wilhelm pergunta como pode manter-se por tanto tempo junto o casal divertido e frívolo. Friedrich diz que isso é o bem e o mal. Philine está grávida. Wilhelm diz que será engraçado vê-los como pai e mãe. Friedrich diz que ficou de início desconfiado daquela noite que Philine passara com Wilhelm depois de Hamlet; Wilhelm pergunta sobre qual visita, Friedrich explica. O narrador não explicita a resposta de Wilhelm e, quanto à possibilidade de Wilhelm ser o pai do filho de Philine, Friedrich diz: “A paternidade baseiase principalmente na convicção; estou convicto, logo sou pai. Como vê, sei empregar a lógica também no lugar apropriado” (VIII 6 p. 543). Ele adquiriu uma vasta formação espiritual, mas sua personalidade é burlesca e ridícula. Friedrich não tem, nem mesmo aparentemente – como o núcleo do castelo do conde – a distinção que Wilhelm admira no mundo rico.

O ridículo conde e seu séquito Wilhelm vai para o castelo dos condes no Livro III e os reencontrará no final do Livro VIII. Na estalagem em que Wilhelm se encontrava com a trupe recém-formada (após a compra dos apetrechos por Melina com o dinheiro de Wilhelm), conde e condessa descem do coche e tomam conhecimento da companhia de teatro (III 1). O conde lamenta que os atores não sejam franceses; a condessa acha que mesmo 226

assim poderiam proporcionar divertimento ao príncipe, um apreciador do teatro, ela comenta que “é com o teatro que uma grande sociedade encontra sua melhor distração” (III 1, p.146); e que o barão ajustaria o necessário nos atores. O barão era um entusiasta do teatro alemão e acreditava que todas as companhias nacionais eram “bem-vindas e satisfatórias”. Ele havia escrito um drama que gostaria de ver encenado pela companhia e granjear reconhecimento. O capítulo começa com o narrador falando sobre a relação entre o barão e os atores. Ele os presenteava, eles se empenhavam em sua peça. Mas o barão preferia uns em detrimento de outros e isso causava atrito entre os atores. Enquanto a companhia estava no castelo, começou a circular um poema anônimo que fazia uma chacota com o barão e sua inclinação à literatura – zombaria a que nosso herói se opôs veementemente. Um pouco diferente da opinião do círculo burguês familiar de Wilhelm, o teatro é reconhecido entre aqueles nobres como algo que pode proporcionar um prazer até instrutivo, mas não parece estar muito longe de ser visto como uma paixão que, como tal, pode tornar-se desmedida. Os nobres querem homenagear o príncipe, Wilhelm será o encarregado da peça, e ele assevera: \...\ procurarei de muito bom grado contribuir para o prazer de tão admirável personalidade, e minha Musa certamente não encontraria ocupação mais prazerosa que a de se fazer ouvir, mesmo que balbuciante, num louvor a um príncipe que tanta admiração merece (III 6, p. 163).

Chega o príncipe com toda sua comitiva militar. A bravura heróica do guerreiro mais as qualidades nobres da aparência deixam todos maravilhados – Wilhelm não menos. Todos se aglomeravam para ver o excelente príncipe, todos se admiravam com sua afabilidade e condescendência, e todos se assombravam de ver no herói e no comandante-chefe, ao mesmo tempo, o mais amável cortesão (III 8, p. 170).

Não apenas nosso herói, portanto, vê-se admirado pelo esplendor de um indivíduo que está numa posição social de tanto destaque e que condensa em si atributos tão excelentes. O conde pede que Melina, o diretor, mostre como a companhia atua e seu repertório. Todos se reuniram, um queria aparecer mais que os outros. Na apresentação muitos não se saíram bem, eram superficiais ou forçados. O conde se mostrou crítico, atento aos detalhes, 227

aconselhou o que deveria ser mudado em cada um. Ele gostava do pedante, achava que nele se escondia um excelente ator, pois atuava sempre segundo seu próprio jeito. A ironia do narrador evidencia que o conde não é de fato conhecedor do teatro, mas um excêntrico com seus gostos particulares. A convite do conde, os atores, depois de alguns dias, seguiram animados para o castelo. Lá chegando, porém, foram muito mal recebidos. De manhã o conde foi pessoalmente ao castelo velho inteirar-se da situação e mostrou-se muito indignado, o barão apareceu também e teve o mesmo tom. Providências imediatas foram tomadas para melhorar a situação dos hóspedes. O conde revelava ter conhecimentos pouco comuns em todas as artes (III 4); não deixa de ser, no entanto, ridicularizado – por Jarno, que “ria de um modo inteiramente descomedido” enquanto o conde pedia para ver as imagens da deusa que havia em sua biblioteca; pela baronesa, que passa a falar do figurino para que Wilhelm não falasse mais da peça e desse pistas ao conde de que sua própria concepção não estava sendo obedecida. No dia do ensaio geral, a baronesa e a condessa estavam preocupadas com as impressões do conde, pois de sua ideia original não restava nada, apenas a Minerva. Contaram tudo a Jarno, que ficou efusivo e disposto a ajudá-las (III 7). O conde chega atrasado, a baronesa o distrai; e o aparecimento de Minerva ao final o deixou plenamente satisfeito. Quando começou a duvidar se o prólogo era de fato ideia sua, Jarno aparece mudando de assunto. Místico-religioso desde aquele estranho caso185, o conde intrigava a baronesa pois havia mudado sua maneira de ser. Abrandou seu pedantismo e sua natureza autoritária; parecia mais feliz, apesar de mais quieto. A baronesa acaba por confidenciar a Jarno (agora seu amante) o acontecido daquela noite. Jarno ri e desvenda o segredo: o conde acha que

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Wilhelm, fantasiado de conde, esperava a condessa, mas vê com terror aparecer o conde, que entra no quarto, e ambos se veem pelo espelho. Enquanto Wilhelm pensava se iria pedir perdão, fugir, confessar, negar, o conde logo sai e fecha a porta. A baronesa entra em seguida e o leva dali para o seu quarto, depois de guardar de volta o roupão do conde. Ela explica que quando foi anunciar a chegada do conde à condessa, esta já sabia, pois o havia visto chegar, foi então que a baronesa correu para tirar Wilhelm dos aposentos do conde, mas Wilhelm diz que ela chegou tarde. O conde vai então ao encontro da baronesa mais afável que de costume e pede para chamar Wilhelm, para que ele lesse uma peça. Wilhelm vai preocupado, hesitante, e seu tom inseguro agrada bastante o conde, por convir muito bem à novela lida.

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pode morrer por ter visto uma aparição de si mesmo. Sugere para que aproveitem a ocasião para “moldá-lo” [formieren], evitando que continue a ser um fardo para a esposa e os outros (o que acarretará um efeito completamente oposto – novamente, uma ironia em relação à manipulação da vida alheia). Começam a falar de aparições e coisas do tipo na presença do conde, mostram-se céticos, até que o conde chama Jarno e diz que a ele mesmo havia acontecido algo assim. A sós, Jarno e a baronesa caçoam e riem dele. Quando, já no último livro, o conde chegou para buscar a esposa na casa de Natalie, ele é progressivamente retratado como confuso, desmemoriado e quase louco. Vendo Wilhelm, trata-o cordialmente, chamando-o de milorde. Wilhelm diz ser alemão, e, antes que completasse sua frase – informando sua procedência burguesa – Jarno completa: “e um homem honrado”. Logo depois o conde perguntou por Wilhelm, queria dizer-lhe que ele sem dúvida tem pai inglês, e de boa estirpe – o conde confunde diversas vezes Wilhelm com um jovem inglês da comitiva do príncipe (era impensável para ele que um burguês frequentasse o círculo nobre). Jarno se faz ajudante do velho conde e diverte-se muito enganando-o por vezes. Ficamos sabendo por fim que o conde queria substituir o falecido conde Zinzendorf na comunidade dos Hernutos, queria parecer-se com ele, achava-se quase um santo e pretendia talvez brilhar como mártir, tudo isso ao lado de sua pobre esposa.

A beleza da condessa Quando os condes chegaram na estalagem, Wilhelm não saiu de seu quarto espontaneamente, mas apenas instado por Philine, que comentou da beleza dele com a condessa, que por sua vez pediu para vê-lo. Wilhelm a princípio não se anima, mas sente-se curioso, “ao ouvir falar de pessoas tão distintas, sentiu um grande desejo de conhecê-las mais de perto” (III 1, p. 148). Seus olhos encontram imediatamente os da condessa, Philine o leva até ela. Wilhelm inclinou-se e respondeu, não sem confusão, às perguntas que lhe fez a encantadora dama. Sua beleza, juventude, graça, elegância e amabilidade causaramlhe a mais agradável impressão, tanto mais que suas palavras e gestos eram

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acompanhados de um certo pudor, e poderíamos mesmo dizer um certo embaraço (III 1, p.148).

Vaidosa e amante dos adornos, de bela e exuberante aparência, o que supõe também sempre pessoas a apreciá-la, a condessa é, como se saberá, irmã da boa Natalie, do grande Lothario e do burlesco Friedrich. A condessa é superficialmente caracterizada – na mesma medida da superficialidade de sua personalidade. Sua tia escrevera que desde criança ela, a condessa, “ocupava-se demais com seu exterior” (VI, p. 405). Em seu ambiente, porém, a “condessa” (a personagem não tem um nome próprio na história) é, no entanto, aparentemente quase tão indefectível quanto é sua irmã, Natalie, em ambiente superior. No decorrer da história constatamos, porém, que sua vaidade condenou-a a viver com o conde mostrado diversas vezes como ridículo, com a baronesa (frívola e ardilosa) e o barão (cujo principal defeito é o diletantismo vaidoso na poesia). Após o encontro na estalagem, Wilhelm queria rever a condessa, mas “buscava antes convencer-se em termos gerais de como lhe seria vantajoso conhecer mais a fundo aquele mundo rico e distinto” (III 2, p.151). A trupe estava no castelo, e a condessa achava Wilhelm cada dia mais interessante, fitava-o em cena, ele também começa reciprocamente a nutrir um interesse secreto; em pouco tempo parecia declamar somente para ela. “Contemplar-se mutuamente era para os dois um prazer indescritível, a que abandonavam por completo suas almas inocentes, sem alimentar desejos mais vivos nem se preocupar com os efeitos que poderiam advir” (III 8, p. 172). Trocavam olhares significativos “através do abismo extraordinário do nascimento e do nível social” (III 8, p.172). A baronesa articulou a história de Wilhelm fantasiado de conde e fez saber à condessa, que começou a “considerar, perseguir e imaginar” a cena com Wilhelm. Por causa da guerra, o príncipe tinha de partir e um banquete foi preparado em sua honra. Baronesa e condessa se arrumam com luxo e bom-gosto. Philine, prevendo o tédio que seria para ambas esperar pelos convidados, propõe chamarem Wilhelm para entregar seus manuscritos e ler algumas coisas. Ele fica surpreso com a aparência da condessa, que está ricamente adornada. Sempre lhe agradara a bela dama, mas, agora, era como se nunca tivesse visto nada mais perfeito e, dos mil pensamentos que em sua alma se entrecruzavam,

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poderíamos resumir mais ou menos do seguinte modo o conteúdo: ‘Que insensatez insurgirem-se os poetas e homens que se dizem sensíveis contra o adorno e o luxo, exigindo das mulheres de todas as classes que usem apenas trajes simples, adequados à sua natureza! /.../ com que prazer haveria eu de reunir aqui todos os conhecedores do mundo e perguntar-lhes se pretenderiam suprimir algo desses plissados, desses laços, dessas rendas, desses franzidos, desses cachos e dessas pedras cintilantes (III 12, p. 192).

Era de se esperar que Wilhelm, atento desde à decoração de seu quarto e ao modo de vestir-se, às pantufas delicadas de Philine até o figurino teatral, fosse seduzido pelo aspecto luxuoso da condessa. Ele olhava repetidamente para ela, como querendo gravar sua imagem, e os enganos que cometeu enquanto lia não o perturbaram, “ainda que, de ordinário, a simples troca de uma palavra, de uma letra, ou um único e infeliz desdouro em sua récita fossem capazes de levá-lo ao desespero” (III 11, p. 192). Somente o estado de seu coração pode atenuar a seriedade com que Wilhelm se entrega a sua atividade. Quando Philine diz para ele agradecer ou ao menos imitar o que ela própria, beijar a mão da condessa, Wilhelm ajoelha-se e beija a nobre mão. “A condessa parecia embaraçada”. Philine começa a falar sem parar, primeiro, sobre as jóias e a beleza da condessa, que, chamando-a de aduladora, pede-lhe silêncio, depois, sobre o retrato do conde no medalhão, perguntando se a condessa porventura guardaria outra imagem em seu coração. A condessa chama-a de atrevida, diz que a perdoará, mas não tolerará que se repita. A tudo isso Wilhelm parece alheio; ele continua na mesma posição, “tinha entre as suas a mais bela mão” (III 12, p. 193). Na hora de levantar-se para se retirar, sem saber como, ele toma a condessa em seus braços. Beijam-se. Ela “passara os braços em torno de Wilhelm, que a abraçou com paixão, estreitando-a repetidas vezes em seu peito” (III 12, p. 194). Depois de um breve instante junto a ele, a condessa gritou, pedindo que ele se afastasse. Wilhelm, atordoado que estava, permanece imóvel. E então a condessa pede amável, embora perturbada, que ele saia. “Os infelizes! Que estranho aviso do acaso ou do destino separava um do outro?”, arremata o narrador.

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A história de interiorização excessiva da “bela alma” O Livro VI consiste na história de vida de uma outra personagem e, assim, temos em WML não apenas a história detalhada de Wilhelm, mas também a da “bela alma”. A narrativa autobiográfica intitulada Confissões de uma bela alma (VI) é um manuscrito que estava em posse do médico que cuidava do harpista e foi entregue a Aurelie por Wilhelm. Após sua morte, o protagonista também o lê. A bela alma é a representação da relação extrema do indivíduo com a religião (de viés pietista), numa época em que a atmosfera religiosa reinava na Alemanha em todas as classes sociais (VI, p. 375)186. A narrativa tem o convencional início ab ovo – tão logo ela se inicia, tomamos contato com a infância e a história pregressa daquela que narra. A força de sua imaginação – e de sua vida “interior” – é um traço que ela percebe já na infância e que irá perdurar na vida adulta. Também por isso, as mudanças em sua vida ocorrem em muito pouca medida partindo de situações geradas por ela, estas são de desenvolvimento muito lento, depurado ao longo dos anos. Desde o princípio, sua história é determinada por suas relações afetivas com um menino, depois com Narcisse, em seguida com Philo, num progressivo processo de “purificação” e condensação do sentimento de amor físico, e de respectiva aproximação de si mesma pela via místico-religiosa. Ela enamorou-se e chegou a noivar, conheceu os sentimentos seculares, mas descobriu, a tempo, que não era um homem a sua meta, mas o pleno sentimento de Deus dentro de si. Talvez por esse motivo, sua renúncia, decidindo pela castidade e pela solidão,

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Sobre a autobiografia como forma narrativa, cabe uma consideração. Por que no século da individualidade e da autobiografia, Goethe não utilizou esse estilo para narrar a vida de nosso herói? Porque a força da épica – em outras palavras, a pujança das circunstâncias – só surge inteiramente em uma narrativa que mostra o indivíduo em todas as suas principais relações, desde as mais imediatas até as mais mediadas, e estas não podem ser visualizadas em toda sua amplitude pelo indivíduo particular. Por essa razão, Wilhelm sente-se compreendido e compreende mais sobre si mesmo e sua trajetória quando lê o que outros escreveram sobre ele. A “pluralização de posições” em torno da perspectiva do romance encontra-se no romance do barroco tardio (Anton Ulrich, em Römische Octavia, ampliou o modelo fundamental acrescentando a crença judaica) e em Goethe, tanto estrutural quanto tematicamente, mas Goethe ampliou-a, dificultando essencialmente a resposta à questão por uma perspectiva do romance (Igel: 2007, p. 630).

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seja ainda mais contundente do que a naturalidade com que isso se deu, no aspecto amoroso, com Natalie. Na experiência da tia, o amor voltado para um homem está intrinsecamente ligado ao sofrimento. Ela teve desde muito jovem suas paixões, mas sua narrativa é pontuada por diversas aproximações amorosas que nunca chegam a se consumar. O par amoroso ansiado desde a tenra infância foi um desejo que nunca se realizou. A bela alma, à certa altura tornada canonisa, torna abstratas as suas relações objetivas. Ela flerta com o “invisível”, como ela mesma denomina Deus. Aproxima-se e distancia-se dele, cria com ele um relacionamento complexo que envolve um amor intangível e exigente, em que qualquer passo em falso dela os distancia, e assim, configura uma relação inundada e movida pela culpa, sendo ela o ser inferior, cuja vida só em inflexões especiais de seu próprio interior pode alcançar o infinito, uma espécie de nirvana. Essa relação interiorizada e íntima com a divindade, na qual qualquer mínima inflexão de ânimo é percebida e analisada, faz de responsabilidade do indivíduo a salvação de sua alma. Tal como Wilhelm, ela não pode crer que está no controle das circunstâncias, em inúmeras ocasiões ela delibera que determinados fatos não se deram por acaso, e que isso “não poderia ser senão para meu veradeiro bem”187. A interação social, pela qual algumas vezes ela manifestou grande prazer, mas constantemente acompanhada de decepções, é tida por ela, que não queria ficar sozinha, como inevitável. Por causa mesmo das repetidas frustrações, ela sempre se voltava a si mesma e a seu “guia invisível” como juízes de suas decisões e sensações muitas vezes geradas socialmente. Para a bela alma, é importante confirmar e prevalecer, no seu círculo social, em suas teorias a respeito da moral, do verdadeiro conhecimento de Deus, etc. É com tais

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Quando falta a ela uma clara explicação do sentido da cadeia dos acontecimentos, a bela alma faz do acaso o responsável por um rumo ao qual talvez seu desejo mais aparente não corresponde, no entanto, é interpretado como o mais condizente ao mais íntimo de seu ser. Porém, diferente de Wilhelm, quando os tristes acontecimentos não entram na lógica de ação de acaso e destino, é por esta via que o acaso toma na vida da bela alma a forma de predestinação: ela vê isso como provação. Nos momentos difíceis ela vê que seu caminho é verdadeiro, e assim todos os aparentes acasos da vida passam a convergir e desaguar nesse seu porto seguro: “havia procurado e encontrado a direção correta de meu coração rumo a Deus /.../ isso era tudo que me facilitava” (VI, p. 379).

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argumentações que ela pode e passa a escolher um destino que podemos chamar desviante, justamente por ser (ou se apresentar, afinal, é uma autobiografia) tão exclusiva, única e insuperável em suas aspirações sutis, gerais, excelentes, grandiosas – como mostra o tio, a bela alma tem aqui uma audácia, um orgulho de sua causa, que beira a vaidade, ao querer ser uma com Deus, a perfeição, o tudo188. As limitações da bela alma são ressaltadas quando ela aproxima-se do tio [Oheim]. Isso acontece primeiramente pela admirável atmosfera da casa dele, que era o reflexo de sua própria pessoa, pela hospitalidade que se desdobra para satisfazer cada qual a seu modo e, sobretudo, pela arte que recende nesse ambiente. Objetos, arquitetura, música aliados a todos os prazeres e fruições da convivência que elevam a alma e engrandecem o homem (o sentido humanista da arte); apesar disso, ela não consegue encontrar-se consigo mesma por meio de um desvio, como se expressou uma vez o emissário da Torre sobre os jogos de improviso. Mesmo que a relação estreita e precoce com a literatura tenha sido importante para a constituição subjetiva da canonisa 189, eles pouco influenciaram a determinação que ela daria à sua individualidade 190. Mesmo após os dias passados na residência do tio e o envio regular de algumas obras de arte, com cartas explicando a respeito, provavelmente concentrando-se do mérito estético da obra, a bela alma já havia se

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“Passei então a ler avidamente diversos livros que me capacitavam a tagarelar sobre a religião, mas que jamais me ocorreu pensar o quanto dependia de mim que minha alma estivesse igualmente conformada [gestalten], que ela parecesse um espelho no qual se poderia refletir o sol eterno, pois isso era algo que eu já havia definitivamente presumido” (VI, p. 355). 189 Os livros que descreviam acontecimentos maravilhosos eram seus preferidos. O romance Hércules cristão alemão contava uma piedosa história de amor que “se harmonizava com todo meu espírito”; o herói, antes de socorrer sua amada de perigos terríveis, sempre rezava. Quando cresceu um pouco mais, ela lia de tudo e tinha grande apego aos livros, mas a história da Romana Octavia (Anton Ulrich), que descrevia as perseguições aos primeiros cristãos, estava entre suas preferidas. A mãe passou a repreendê-la, mas foi sensata e compreendeu que “nada podia ser feito contra aquilo”, recomendando então que, do mesmo modo, lesse a bíblia, o que a bela alma faz com muito interesse. A mãe estava sempre atenta ao conteúdo das leituras da filha; mas a própria bela alma comenta que, dado o alto grau de virtuosidade de seus heróis, ela mesma teria rejeitado qualquer leitura perniciosa. De todo modo, grande parte do que ela conhecia “da história natural do gênero humano” adveio da bíblia combinado com o que via diante de olhos. 190 “A relação Deus-eu é experienciada no eu e pelo eu, com completa inobservância das coisas mundanas em arte e natureza, mas também inobservância das relações entre os homens, mesmo dentro da família mais próxima” (MAY, p. 24). Para May, ela não pode aparecer como modelo de um ser humano verdadeiramente formado justamente por falta-lhe a esfera de valor sensivelmente estética e a realização ética-social-prática. Ela é pobre e atrofiada em sua Bildung.

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acostumado a ocupar-se consigo mesma e a conversar com pessoas somente sobre isso para que uma obra de arte lhe prendesse a atenção por muito tempo. Para ela, uma “representação plástica precisava dizer-me algo, precisava instruir-me, comover-me, melhorar-me; e por mais que meu tio dissesse o que bem entendesse em suas cartas /.../ elas continuavam para mim como antes” (VI, p. 400). A bela alma menciona uma conversa que teve com o tio em que este fala da virtude do homem em dominar as circunstâncias. Sua própria posição é posta pela primeira vez em confronto com um modo completamente diverso de ver o mundo, mas uma visão que ela reconhece como à altura da dela, cuja interioridade mística torna-se agora explícita. O tio vê a individualidade socialmente ativa; para a bela alma, a dimensão da atividade é puramente subjetiva na individualidade, centrada na auto-observação e na observação desse mesmo aspecto, que para ela é determinante, nos outros, a atividade objetiva não existe, por ser a finalidade da canonisa tão estritamente fechada em si mesma. Contudo, a bela alma não muda sua forma de agir e pensar por causa do reconhecimento da superioridade dos princípios do tio. Ainda que ela devesse se submeter à vontade dele por questões de autoridade e hierarquia, a especificidade e virtude da bela alma consistia em não trair suas íntimas convicções. Quando a irmã morre e à bela alma é confiado o papel da mãe, ela aprendeu “a agarrar seriamente também as coisas do mundo e a por em prática o que até então só havia cantado” (VI, p. 401). Acaba, entretanto, por reconhecer a autoridade do tio e seu próprio alheamento na questão da formação dos diferentes indivíduos, tão voltada que sempre esteve sobre si mesma, e o tio toma para si a tarefa de educar os sobrinhos. Ela cede, não sem acusar o tio, e também seu amigo, o abade, de um certo despotismo. Cede pois não tem mais autoridade que ele, ela não pode prevalecer, deve ser submissa em suas convicções. O afastamento da influência religiosa sobre as crianças é a superação da Bildung religiosa, de modo que esse caminho não se mostra, no romance, a via principal e nem mesmo uma via salutar para a formação da individualidade dos novos tempos. A religião é ensinada, transmitida culturalmente nos costumes e hábitos, mas é insuficiente e limitada para que o indivíduo seja sobretudo um indivíduo socialmente ativo. 235

A presença da bela alma, de geração anterior, no meio da história de Wilhelm evidencia, contudo, que essa forma de cultivo interior é uma etapa histórica importante no curso do desenvolvimento da individualidade – forma que, como sabemos, continua a subsistir com força entre os indivíduos, mas evidentemente de uma maneira bem mais superficial do que a da bela alma, fato que, aliás, ela mesma já comprovava em sua experiência entre as pessoas religiosas. Esse é um dos diversos ângulos que possibilitam enxergar WML como representando um processo de secularização191. A bela alma termina seu relato com uma recapitulação de algumas das principais ideias que orientaram sua formação de exclusivo cultivo interior. Pergunta por que sua fé não pode ter uma origem divina, esse impulso que a guia sempre para o bem, e que na prática é tão eficaz, pois “é só pela prática que nos tornamos absolutamente certos de nossa própria existência”. Sobre seus atos, ela diz que são “cada vez mais semelhantes à ideia que faço de perfeição”, ela obedece livremente a seus sentimentos, não permite que façam parte de seu ser limitação e arrependimento. E como é regra nos autores de escritos confessionais (cf. Stahl), ela diz: jamais correrei o risco de me orgulhar de meu próprio poder e de minha capacidade, já que tenho reconhecido claramente que monstro pode nascer e nutrir-se em cada coração humano, se uma força superior não nos protegesse (VI, p. 407).

Assim, a bela alma prevê o mal, a falta, o pecado em si mesma antes de tudo acontecer; culpa-se e foge, privando-se das experiências.

191

Cf. Igel. Sistemas de explicação teológica não estão completamente fora de Os anos de aprendizado, mas foram deslocados do centro para a periferia. Assim, a religião “privada” da bela alma é mais uma visão de mundo entre outras, e o catolicismo de Mignon é algo secundário, ligado à caracterização de sua origem italiana. De qualquer modo, todas as pessoas que de algum modo representam pontos de vista religiosos já estão mortas ou morrem antes do final feliz. Os condes despedem-se do romance justamente quando entram para a comunidade dos Hernutos. Natalie, a valorosa mulher que se tornará esposa de Wilhelm, é mostrada como alguém orientada por princípios e valores cristãos, porém, ela age por si mesma, não se relaciona com um Deus, como ela mesma faz questão de ressaltar.

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A Sociedade da Torre Não há uma instância divina (Deus) e/ou mística (concepção de destino/acaso de Wilhelm) onipresente no romance, quem cumpre esse papel, de censor e autoridade máxima, é a Sociedade da Torre. Pode-se vê-la, portanto, como símbolo do controle social sobre o indivíduo. O herói tem de se transformar ao longo de sua trajetória e ele não é capaz de fazer isso por si mesmo192. A Sociedade da Torre apresenta-se como um grupo de homens nobres que tenta, secretamente193, prever e facilitar a ações dos indivíduos no mundo, no sentido de promover o desenvolvimento e a realização da individualidade, de modo a gerar, consequentemente, um equilíbrio entre esta e seu meio. Ela age no sentido de observar, direcionar e controlar a trajetória de seus integrantes, se possível fazendo com que, portanto, convirjam inclinações, disposições e dever social. Esse incentivo ocorre, porém, dentro de limites sociais bem demarcados, em que as classes dominantes determinam o campo das atividades dos indivíduos, assim, se por um lado ela tem o intuito de possibilitar à individualidade o melhor desenvolvimento segundo suas capacidades e inclinações, isso não deve ocorrer se for de encontro com os fundamentos e necessidades econômicas de seus membros. Assim, como veremos, em Therese está representado o prenúncio da emancipação da mulher, ao mesmo tempo que Lothario tem de tolher sua disposição inata, mas ambos cumprem sua

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“Grande parte dos intérpretes acredita que a filosofia da Torre é mais ou menos a filosofia do narrador” (Seitz, p. 127), este que, por sua vez, coincide com a persona do autor. Seitz discorda de que haja uma voz que seja a de Goethe, para ele, o autor faz neste romance o que já havia feito em Götz e em Werther, a saber, transmite diferentes posições em diferentes personagens e fica, ele mesmo, Goethe, numa posição suprapartidária. 193 Estudos que mostram as relações entre a Sociedade da Torre e sociedades secretas como a maçonaria e os Iluminados (ou Illuminati): Rosemarie Haas: Die Turmgesellschaft in Wilhelm Meisters Lehrejahre. Zur Geschichte des Geheimbundromans und der Romantheorie im 18. Jahrhundert. Bern, 1975. Hans-Jürgen Schings: Wilhelm Meister und das Erbe der Illuminaten. In: Jahrbuch der Deutschen Schillergesellschaft 43 (1999). Wilfried Barner: Geheime Lenkung. Zur Turmgesellschaft in Goethes Wilhelm Meister. In: William J. Lillyman (org.): Goethe’s Narrative Fiction. The Irvine Goethe Symposium. Berlin, 1983. Stahl cita um interessante estudo de F.J. Schneider (Die Freimaurerei und ihr Einfluss über die geistige Kultur in Deutschland am Ende des 18.Jahrhunderts. Leipzig, 1909) sobre a influência do pensamento maçom no que se refere à crença do destino, poder maior ao qual os heróis sempre estão submetidos; o que é bastante irônico para a Sociedade da Torre, que, se tem raízes maçônicas, ao mesmo tempo exorta ao controle das circunstâncias, destituindo o destino do comando da vida dos indivíduos.

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função social de personificação econômica. Os membros da Sociedade da Torre são escolhidos por razões que permanecem secretas no romance. Poder-se-ia pensar que se trata de uma sociedade meritocrática, que premia com sua tutoria o indivíduo singular, “independente” de sua proveniência de classe. Mas não parece ser esse o caso, ela tem interesses sociais (e materiais) sobre Wilhelm. A primeira aparição de um membro da Torre que nos é relatada na história de Wilhelm foi na ocasião da venda da coleção de arte do avô, quando ele tinha 10 anos (I 17). O homem, lamentando que “a localidade 194 tenha perdido um bem tão precioso”, diz que ajudou a vender o gabinete de arte, pois foi o avaliador enviado pelo aristocrata “rico e grande aficionado [Liebhaber]” que o comprou – a saber, o tio dos nobres irmãos. A segunda intervenção ocorre no passeio feito com os recém-conhecidos Philine e Laertes, e os novamente encontrados integrantes da antiga trupe de Mariane e o casal Melina (II 9). Nos livros seguintes, a presença da Torre é discreta e dissolvida em pequenos acontecimentos (com Jarno apresentando Shakespeare e manifestando um interesse especial por Wilhelm; a ajuda com o espectro de Hamlet e o lenço exortando Wilhelm à fuga, em IV). As preleções teóricas de seus membros só retornarão na parte final da autobiografia da canonisa e seguirão cada vez mais intensas até o fim do romance, parte em que Wilhelm deve-se convencer-se de seu erro e decidir-se pelo melhor caminho – aquele que a Torre o aponta baseada em muitos e sábios fundamentos.

O tio [Oheim]: razão e arte “\...\ procurar conhecer em toda sua amplitude o homem sensível e reduzi-lo ativamente a uma unidade”

Conhecemos o tio-avô de Lothario, Natalie, Friedrich e da condessa no manuscrito da bela alma, por ocasião da festa de casamento que ele oferecia aos noivos, os pais dos quatro irmãos – sendo o noivo sobrinho do tio, e a noiva irmã da bela alma, que diz,

194

Nicolino Neto traduz o termo Ort (local, lugar, localidade, povoação) por cidade, determinando o que o autor intencionalmente deixou indeterminado.

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maravilhada: Tão agradável quanto a visão de um homem bem conformado [wohlgestalten] é para nós uma instalação inteira que nos faz sentir a presença de um ser compreensivo e razoável. Entrar numa casa bem conservada já é um prazer, ainda que ela tenha sido construída e decorada sem gosto, pois nos revela, no mínimo, a presença parcial de pessoas cultas [gebildet]. Como nos é, pois, duplamente agradável quando de uma habitação humana se dirige até nós o espírito de uma cultura [Kultur] superior, ainda que somente material (VI, p. 393).

O tio estava feliz, pois o casamento selava sua vontade de deixar a seus sobrinhos suas “belas propriedades” que ele mesmo administrava. Sobre a quinta em que se encontravam, disse o tio que só pretendia deixá-la como herança a alguém que soubesse “reconhecer, apreciar e desfrutar o que ela contém”, uma pessoa que compreendesse “as razões que tem um homem rico e de nível elevado, sobretudo na Alemanha, para estabelecer algo sobriamente modelar” (VI, p.398) – essa propriedade, porém, é herdada por Natalie, que não tem nenhuma afinidade com a arte. Excetuando o tio, a arte no círculo da Torre é, como se verá, uma esfera secundária na vida humana (fato que acaba por colocar sob suspeita seus julgamentos sobre o herói)195. Com o critério da evolução da arte, o tio reuniu uma série de quadros, os quais comentava um a um com a sobrinha. Desviando do conteúdo dos mesmos, ele procurava demonstrar o fato de que somente a história da arte pode dar a “ideia do valor e da dignidade” de uma obra de arte. Por meio da história da arte conhece-se “os penosos níveis do mecanismo e do ofício em que o homem capacitado teve de trabalhar ao longo de séculos, para só então compreender como é possível que o gênio se mova livre e alegremente nesse cume” (VI, p. 397). A canonisa diz que vê aí, como uma parábola, a “educação moral”. O tio concorda e completa dizendo que não se deve se entregar à educação moral solitariamente e de modo ensimesmado: deve-se “educar ao mesmo tempo sua mais fina sensibilidade” – somos remetidos aqui ao segundo encontro de Wilhelm com o emissário da Torre, no qual este falava da necessidade de uma formação precoce, ou em 195

Karl Schlechta renova a tese romântica de ocaso da arte no romance; Hannelore Schlaffer atualiza o argumento: a arte não é um ideal, ela é reduzida na Sociedade à peça de museu (Schings: 1985, p. 73, discorda).

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outras palavras, do correto despertar da sensibilidade. Uma educação moral isolada e ensimesmada eleva a moral a um nível que, sem a sensibilidade, pode fazer o homem despencar em fantasias desregradas. A biblioteca do tio continha livros “apropriados para nos conduzir a um claro conhecimento ou apontar-nos a verdadeira ordem, provendo-nos de bons materiais ou convencendo-nos da unidade de nosso espírito” (VI, p. 398). Assim, a unidade e a harmonia são o que toda individualidade deve buscar. Antes de partirem os convidados, o tio preparou uma surpresa, chamou novamente o coral à capela, o que trouxe vivas sensações à bela alma, remetendo a “unidade harmoniosa ao melhor e mais profundo sentido do homem, fazendo-o na verdade sentir vivamente naquele momento sua semelhança com Deus” (VI, p.399). Natalie referir-se-á mais tarde ao gosto do tio pela música, com a excentricidade de não gostar de ver os cantores. Ele dizia que o teatro pervertia totalmente neste quesito, pois a música nele só servia para os olhos, enquanto ela deve ser somente para o ouvido, “uma bela voz é o que se pode pensar de mais genérico, e se o limitado indivíduo que a produz se põe diante de nossos olhos, destrói o puro efeito dessa generalidade” (VIII 5, p. 528). Se a figura do cantor devia ser para ele invisível, para não seduzi-lo nem extraviá-lo, por outro lado, o tio tinha de ver o indivíduo com quem havia de falar, “pois se trata de um indivíduo único cuja figura e caráter valorizam ou desvalorizam suas palavras”. Na música, “fala só um órgão para o órgão, não o espírito para o espírito, não um mundo multiforme para um olho, não um céu para o homem” (VIII 5, p. 528). Depois que as outras pessoas se recolhiam, o tio costumava entreter a canonisa. Certa feita disse que, se foi concebido que um dia o Criador tomou a forma de sua criatura, não poderia haver então “contradição entre o conceito do homem e o conceito da divindade” (VI, p. 394). E que se isso às vezes não aparece assim é porque o homem insiste em procurar os defeitos dos outros homens, enquanto deveria olhar para suas perfeições. A bela alma replica que essa linguagem é a dela, e pede para que o tio expresse-se a seu modo. Ele então diz: o maior mérito do homem consiste, isto sim, em determinar, tanto quanto

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possível, as circunstâncias, deixando-se determinar por elas o menos possível. Todo o ser do Universo estende-se diante de nós como uma grande pedreira diante do arquiteto, que só merece esse nome quando, dessa fortuita massa natural, compõe com a máxima solidez a imagem primitivamente concebida por seu espírito. Tudo o que está fora de nós não é senão elemento, e poderia até mesmo dizer, também o que está em nós; mas no fundo de nós mesmos reside essa força criadora que nos permite criar o que deve ser e que não nos deixa descansar nem repousar até que tenhamos representado, de uma forma ou de outra, o que está fora ou dentro de nós. A senhora querida sobrinha, talvez tenha escolhido a melhor parte, buscando conjugar com seu ser moral sua profunda e amável natureza consigo mesma e com o Ser supremo, ainda que tampouco nós outros sejamos dignos de censura por procurar conhecer em toda sua amplitude o homem sensível e reduzi-lo ativamente a uma unidade (VI, p. 394).

Determinar as circunstâncias havia sido o tema da primeira conversa de Wilhelm com o desconhecido em I 17. Esse modo de pensar de um dos fundadores da Sociedade da Torre, da encarnação dos princípios seculares modernos, tem suas raízes, portanto,, na geração anterior, a mesma do avô de Meister. Tal maneira de viver e colocar as coisas corre paralela à visão religiosa moderna. De ambas, porém, a ideia de Bildung é componente essencial, na medida em que tratam da formação interior – ainda que a interioridade “secular” seja substancialmente diversa, pois é entendida amalgamada à exterioridade, com a ênfase da atividade individual em sociedade. O presente diálogo da sobrinha com o tio é a representação dessas duas maneiras elevadas de ver e viver o mundo e, por extensão, evidencia como a visão do tio é a que rege as relações dos homens da época. O autoconhecimento do pietismo parece não poder sustentar de maneira tão abrangente as relações modernas. Ela exigia que o tio falasse sem condescendência. Ele diz que não a elogia, mas simplesmente admira o homem que sabe claramente o que quer, avança sem cessar, conhece os meios rumo a seu objetivo e sabe assenhorear e utilizá-los; em que medida seu objetivo é grande ou pequeno, digno de elogio ou censura, isto só levo em consideração depois. Creia-me, minha querida, a maior parte de nosso infortúnio e de tudo o que chamam mal no mundo tem sua origem exclusivamente no fato de serem os homens negligentes demais para conhecer com absoluta certeza seus objetivos e, quando os conhecem, trabalhar seriamente para alcançá-los. São, para mim, como homens que, tendo a ideia de que poderiam e deveriam construir uma torre, só empregam em suas fundações pedras e trabalho necessários para a construção de uma cabana (VI, p. 395).

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Novamente, vem à tona o controle das circunstâncias. Wilhelm é inseguro, ele não tem “absoluta certeza”, mas trabalha duro para alcançar seus objetivos. Depois de uma breve réplica da bela alma, ele prossegue: Seja o que for – replicou ele –, razão ou sentimento, o que nos obriga a sacrificar ou escolher uma coisa pela outra, resolução e perseverança são, a meu ver, o que há de mais admirável no homem. Não se pode ter ao mesmo tempo a mercadoria e o dinheiro, pois tão mau quanto aquele que vive a cobiçar a mercadoria, sem ter ânimo de sacrificar o dinheiro, é aquele que se arrepende da compra quando tem em suas mãos a mercadoria. Mas estou muito longe de censurar os homens por essa razão, pois não é culpa deles, e sim da complicada situação em que se encontram e na qual não sabem governar-se (VI, p. 395).

Ele era um homem peculiar por pretender sintonizar arte, razão e sensação196. Mas é preciso renunciar: razão ou sentimento, dever ou inclinação, se faz necessário escolher. E a conclusão que o leitor pode tirar é a de que Wilhelm é perseverante, mas falta-lhe resolução. O tio admira a bela alma justamente por “saber governar-se”. Wilhelm, ao contrário, quer ser ativo no mundo e até mesmo tem pretensões de ajudar na construção do teatro nacional; portanto, deduz-se que, uma vez ativamente em interação com os homens, é difícil “saber governar-se”. Assim, por exemplo, a senhora encontrará na média menos maus administradores no campo que nas cidades, e menos também nas cidades pequenas que nas grandes. E por quê? O homem nasceu para uma situação limitada; é capaz de discernir objetivos simples, próximos e determinados, e se habitua a empregar meios que estão a seu alcance imediato; mas, tão logo ultrapasse esse limite, já não sabe o que quer nem o que deve fazer, não importando em absoluto que saia fora de si pela grandeza e dignidade dos mesmos. Para ele, é sempre uma infelicidade ser levado a se esforçar por algo com o qual não pode ligar-se por uma atividade espontânea regular (VI, p. 395).

Demonstrando um ponto de concordância entre tio e sobrinha, aquele diz que, Na verdade – prosseguiu ele -, nada é possível neste mundo sem seriedade, e entre aqueles que chamamos homens cultos, haveremos de encontrar muito

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Schings (1985) é um dos que defende que a voz do tio, em especial, é a autoridade mais próxima de Goethe. “Poder do intelecto [Verstand], liberdade, razão contra poder dos afetos, servidão, acaso – sobre essas oposições, que são correntes em Espinosa, o tio erige o edifício de sua arte de viver, ela aproveita-a no domínio da ‘força criativa’ sobre o ‘elemento’” (Schings, p. 78). Não só no tio de Natalie, mas no abade e em Natalie estaria oculta a filosofia de Espinosa. Influenciadas por esse filósofo, sensibilidade e razão assentamse, na filosofia de Fichte, Schelling, Novalis a partir de 1795 sobre a identidade absoluta como fundamento comum dos dois reinos separados por Kant (cf. Krings).

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pouca seriedade; diria que eles se dirigem aos trabalhos e aos negócios, às artes e mesmo às diversões com uma espécie de autodefesa; vivem como quem lê uma pilha de jornais, somente para livrar-se deles, e, a este respeito, me vem à mente aquele jovem inglês em Roma que, certa noite, numa reunião social, contava muito satisfeito que naquele dia havia visitado seis igrejas e duas galerias. Queremos saber e conhecer muitas coisas, e precisamente aquilo que não nos concerne, e não nos damos conta de que não se aplaca a fome aspirando ar. Quando conheço uma pessoa, logo me pergunto: ‘com que se ocupará? E como? E com que frequência?’ E, conforme a resposta a essa pergunta, é que se decide para toda a vida meu interesse por ela (VI, p. 396).

Um médico e naturalista, que estava também na residência do tio por ocasião do casamento da irmã da bela alma, elogiava o tio Por sua tolerância e apreço de tudo o que revela e fomenta o valor e a unidade da natureza humana, exigindo somente de todos os outros seres humanos a mesma coisa e cuidando de não condenar nem evitar nada tanto quanto a presunção individual e a limitação exclusivista (VI, p. 398).

O abade: teorias sobre atividade e Bildung O abade também é citado pela canonisa. Segundo seu amigo médico lhe revelara, ela conta que aquele “que muitos tomam por um eclesiástico francês, sem que se saiba ao certo sua origem”, convencera o tio a respeito da “educação dos homens”197. Desse modo, foi dada ao abade a possibilidade de exercer “o controle sobre todas as crianças que são educadas em lugares diferentes e colocadas em internato ora aqui ora acolá” (VI, p. 406). O médico explica o plano dessa educação, plano que à bela alma parecia, a princípio, incompreensível: ao se pretender fazer algo pela educação do homem, devia-se considerar para onde tendem suas inclinações e seus desejos. Em seguida, deve-se colocá-lo em condições de satisfazer aquelas logo que possível, de alcançar estes logo que possível, para que o homem, caso esteja equivocado, possa reconhecer bem cedo seu erro e, caso tenha encontrado o que lhe convém, agarrar-se a ele com mais zelo e com maior diligência continuar aperfeiçoando-se. Espero que essa

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O abade é o mentor da Sociedade da Torre, mas, como vimos, a religião tem no romance papel secundário, quando não nocivo, para a individualidade – as distorções da esfera religiosa concentram-se no Livro VI, mas estão presentes também em Mignon e no harpista.

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singular tentativa possa ter êxito, pois com tão boas naturezas [os irmãos] talvez ela seja possível. Mas o que não posso aprovar nesses educadores é o fato de procurarem afastar das crianças tudo o que poderia levá-las ao trato consigo mesmas e com o amigo invisível, único e fiel (VI, p. 407).

A época da vida em que os erros ocorrem é fator de fundamental importância para a determinação futura do indivíduo, uma vez que, para ser possível que a individualidade vingue, é necessário que haja tempo para que os – prováveis – erros de percurso sejam corrigidos. É estranho que o abade, que sente simpatia pela inclinação do herói e incentiva Wilhelm em sua jornada teatral, não discuta diretamente com ele a respeito de Bildung, arte, destino. É Jarno que se encarrega de contar a Wilhelm sobre a origem da Torre e seus princípios. A inclinação da juventude ao mistério, às cerimônias e às palavras grandiloquentes é extraordinária e, muitas vezes, indício de uma certa profundeza de caráter. Durante esses anos se pretende sentir todo o ser tocado e comovido, ainda que de maneira obscura e indeterminada. O jovem, que pretende muitas coisas, crê encontrar muitas num mistério, crê ter de atribuir muitas a um mistério e por este agir. Pensando dessa maneira, o abade consolidou uma sociedade de jovens, em parte segundo seus princípios, em parte por inclinação e hábito, já que outrora havia tido ligação com uma sociedade que devia ter atuado muito em segredo. Eu era quem menos podia considerar-me em tal estado. Era mais velho que os outros, desde e infância havia visto claro e em todas as coisas não desejava senão claridade; não tinha nenhum outro interesse senão o de conhecer o mundo e contagiei com esta paixão os melhores de meus companheiros, pouco faltando para que toda nossa formação [Bildung] tomasse um rumo falso, pois começamos a ver apenas os defeitos alheios e suas limitações e considerar a nós mesmos como seres excelentes. O abade veio em nosso socorro e nos ensinou que não devemos observar os homens sem nos interessar por sua formação e que só estamos em condição de nos observar e conhecer a nós mesmos quando em alguma atividade (VIII 5, p. 533-534).

Na fala de Jarno, a formação é colocada em oposição à paixão, do que se depreende que a primeira está ligada à obrigação, e que esta é incompatível com a inclinação, que tende a se tornar uma fixação apaixonada. Outra relação fundamental exposta por Jarno é a existente entre formação e atividade198, o que deixa entrever que Wilhelm é observado em

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Mas é preciso notar também que a Bildung está associada ao meio social – não há pessoas de diferentes classes “formadas”. Kurt May (1957) repassa os significados de Bildung em momentos significativos do romance (pp. 12-13).

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sua atividade teatral, mesmo que esta não seja considerada como atividade eficaz pela Sociedade da Torre. Prosseguindo sobre a constituição da Torre, Jarno diz que aquelas primeiras formas da sociedade foram preservadas, a conselho do abade, e eles adotaram “depois como símbolo a forma de um ofício que se eleva até a arte. Disso provêm as denominações de aprendizes, assistentes, mestres”. O título do romance e o nome do herói, podem assumir, assim, diferentes significados. Eles queriam ver com os próprios olhos e formar para si um arquivo próprio de nosso conhecimento de mundo; daí procedem as muitas confissões que em parte nós mesmos escrevemos, em parte levamos os outros a fazê-lo, e com as quais compusemos mais tarde os anos de aprendizado (VIII 5, p. 534).

Os anos de aprendizado são o relato das experiências de formação de cada um – que eles assumam também a forma de máximas significa que todos passam pelos anos de aprendizado e a razão e os sentimentos envolvidos podem ser evocados por essas palavras de cunho geral abstraídas de vidas particulares. Não são todos os homens que podem fazer algo por sua formação, continua Jarno, pois muitos querem apenas uma receita para a riqueza e para a felicidade. Os associados apenas absolviam “aqueles que sentiam vivamente e reconheciam com clareza para que haviam nascido, e se haviam exercitado o bastante para prosseguir seu caminho com certa alegria e facilidade” (VIII 5, p. 534). É uma grande ironia que este não seja o caso de Wilhelm: em sua absolvição, ele reconhece que errou, mas não sabe ainda para o que, afinal, ele nasceu. Quando Wilhelm pede explicações sobre o abade, a quem tanto deve e a quem tem tantas censuras a fazer, Jarno explica qual é a especificidade daquele homem: – O que o torna tão valioso para nós – replicou Jarno –, o que de certo modo lhe confere a soberania sobre todos nós, é o olhar livre e perspicaz de que a natureza lhe dotou sobre todas as forças que só no homem residem e das quais cada uma pode desenvolver-se à sua maneira. A maior parte dos homens, mesmo os melhores, é limitada; cada qual aprecia em si mesmo e nos outros determinadas qualidades; e ele só favorece aquelas que quer ver desenvolvidas. De um modo totalmente oposto age o abade; tem o sentido para tudo, tem interesse de tudo reconhecer e promover (VIII 5, p. 537).

Mas só até certo ponto: Wilhelm vai até o limite do teatro profissional, depois tem 245

de renunciar. O abade, porém, não é o responsável por isso, ele apenas tenta abrir os olhos de Wilhelm para um fato que as circunstâncias, mais cedo ou mais tarde, demonstrariam de maneira inequívoca. Ademais, a capacidade do abade de “tudo reconhecer e promover” significa também perceber a obediência e constância de Wilhelm nos negócios do pai. A crítica à falta de rédeas do indivíduo sobre a multiplicidade da vida e o controle do acaso pela razão não são ideias que partem diretamente do abade, o grande mentor pedagógico da Torre. Embora ele não fale de Deus e tenha ideias profanas (mostrando que o processo de secularização é algo que não atenta contra a religião), de modo a ampliar seu espectro a ponto de distanciá-la de uma influência religiosa dominadora da individualidade (como ocorre com a bela alma) e hostil à vida social, o abade é um líder espiritual, e como tal volta-se para a formação interior dos indivíduos integrada à vida da comunidade (atividade útil). O suspeito Jarno Jarno faz a mediação entre os nobres: ele encontra-se tanto no núcleo daqueles nobres frívolos do castelo do conde quanto no daqueles nobres virtuosos que conheceremos mais tarde, especialmente nos dois últimos livros199. Diversamente dos valorosos nobres do círculo da Torre, são acentuados na caracterização de Jarno, estranhamente, comportamentos condenáveis. Assim, a primeira vez que Jarno aparece não é sob a luz mais favorável. Estamos no livro III com a companhia teatral no castelo dos condes. O barão, quando interpelado por Wilhelm, “não pôde dizer nada de bom” (III 4, p. 159) sobre um cavalheiro cujos “grandes olhos de um azul-claro brilhavam sob uma fronte alta, seus cabelos louros estavam negligentemente jogados para trás e sua estatura mediana indicava uma natureza intrépida, firme e determinada. Suas perguntas eram animadas, e ele parecia entender de tudo sobre o que

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Considere-se, nesse contexto, a observação de Schiller: “Jarno permanece igual até o fim” (Schiller a Goethe, 3.07.1796, HA7, p. 635).

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perguntavam” (III 4, p. 158). Wilhelm simpatiza de antemão com Jarno, “mesmo havendo nele algo de frio e repugnante”, como transmite o narrador, e a respeito do qual o barão informa ser: major, favorito do príncipe, sendo talvez seu filho natural, presunçoso por ter tido notoriedade em suas viagens pela Europa, dizia-se profundo conhecedor da literatura alemã, julgando-se autorizado a fazer dela gozações. Jarno aparece capítulos adiante rindo “de um modo inteiramente descomedido” por ocasião da procura do conde em todos os livros que pudessem ter imagens de Minerva (III 7, p. 167); depois, incumbido de distrair o conde para que ele não percebesse que sua ideia sobre a peça de honra ao príncipe não havia sido seguida (III 7, p. 169), e ainda, sendo “generosamente recompensado [pela baronesa, de quem se tornou amante], e os dois trataram de urdir novas intrigas, para tornar ainda mais dócil o conde, e incitar a reforçar a inclinação da condessa por Wilhelm” (III 11, p. 190). Jarno é o único a falar com todas as letras ao herói – ressaltado a discrepância entre a origem de classe e a atividade escolhida por ele: Ainda não lhe perguntei como veio parar nesta companhia, para a qual certamente não nasceu nem foi criado. Tenho visto, e é o que espero, que está ansioso para deixá-la. Nada sei de sua origem nem de suas circunstâncias familiares; reflita no que pretende confiar-me (III 11, p.186).

Wilhelm fica muito grato por encontrar uma alma amiga e toma Jarno por amigo e protetor (ao menos é o como o narrador apresenta a cena). Conta a ele toda sua vida. Jarno diz que não compreendia como Wilhelm “pôde tornar-se amigo dessa gente”, citando um músico ambulante ao qual Wilhelm dedica-se “de coração” e uma “criatura parva e hermafrodita”. Wilhelm fica “consternado” com as últimas palavras do “belicoso amigo”. Jarno é o único entre aqueles nobres a falar sobre a peça que Wilhelm concebeu e montou e a “elogiá-lo com algum senso”, fazendo o adendo: “É lamentável que tenha de atuar ao lado de nozes ocas e para nozes ocas!” (III 8, p. 171); palavras que deixaram Wilhelm bastante intrigado. Em outro momento, emenda Jarno: “É um pecado que desperdice suas horas tentando dar adereços humanos a esses macacos e esforçando-se para que aprendam a dançar esses cães” (III 8, p. 175). Desta vez, no entanto, Wilhelm gostaria de ter continuado a conversar com Jarno “que, embora de um modo desabrido, trazia-lhe 247

novas ideais, ideias de que carecia”. Por fim, Jarno apresenta Shakespeare a Wilhelm. A influência nociva das pessoas ao seu redor denota a suscetibilidade do herói frente às circunstâncias exteriores – e com Jarno isso se torna nítido. A amargura de Aurelie e o frio desprezo que seu amigo Laertes nutria pelos homens corrompiam seu juízo com mais frequência que o devido, mas ninguém lhe era mais perigoso que Jarno, um homem cuja intelligência clara proferia um juízo justo e severo sobre as coisas presentes, mas que ao mesmo tempo tinha o defeito de professar esses juízos particulares com uma espécie de generalidade, ainda que as sentenças da razão só são verdadeiramente válidas uma vez e em cada caso concreto, tornando-se injustas quando aplicadas ao caso seguinte (V 1, p. 281).

Depois do comentário dele contra Mignon e o harpista, Wilhelm considera-o como alguém de “coração totalmente corrompido”. Ele percebe a “frieza do empedernido coração” de Jarno e, profundamente magoado, censurar-se-á por ter deixado por um instante de observar aquilo que se tornava cada vez mais nítido em todos os gestos dele. “A partir daquele momento, ele passou a prestar mais atenção aos atos de Jarno, que já não lhe pareciam dignos de louvor, chegando alguns inclusive a desagradar-lhe em absoluto” (III 11, p.188). Apesar de ter ficado bastante magoado e aborrecido, Wilhelm, contudo, não guarda rancor. Ao rever o conhecido, tempos depois, na casa de Lothario, lembra-se dele como seu protetor (VII 2, p. 421), se diz alegre, tranquilizado e acalmado pela presença de Jarno “num momento tão singular” (VII 2, p. 422). Já entre os amigos da Sociedade da Torre, é novamente Jarno, aquele cujo modo de pensar e agir já havia levantado suspeitas e desgosto, quem diz com sua crua franqueza que Wilhelm não leva nenhum jeito para ser ator, que desista: “penso que o senhor deve abandonar de vez o teatro, para o qual não possui nenhum talento” (VII 7, p. 458). Wilhelm “ficou desconcertado e teve de dominar-se, pois as duras palavras de Jarno haviam ferido não pouco seu amor-próprio”, e replica defendendo humilde e teimoso sua posição: “Se me convencer disso – replicou ele, com um sorriso forçado –, estaria prestando-me um serviço, ainda que seja um triste serviço o de arrancar alguém de seu sonho favorito” (VII 7, p. 458). Levando em conta a maneira como Jarno é caracterizado, ficamos em dúvida se ele realmente diz a verdade ou não – e se não, qual o sentido de ele mentir sobre o talento de 248

Wilhelm. Seu procedimento deixa a impressão de que, para legitimar um caminho do qual o herói quer se afastar (o dos negócios), é preciso deslegitimar outro caminho em seu cerne: a principal inclinação da individualidade do herói. Jarno que tem a incumbência de esclarecer Wilhelm sobre a Sociedade da Torre. Apesar de Wilhelm com certeza estar curioso, ele diz que seu espírito está ocupado com muitas outras coisas. Jarno diz: “Tem-me por um sujeito esperto e deve ter-me também por um homem honesto e, o que é mais, desta vez tenho um encargo” (VIII 5, p. 533). Wilhelm diz que se ele não pode ouvi-lo sem desconfiança, então, por que escutá-lo? Jarno diz que tudo o que ele viu na torre são apenas “relíquias de um empreendimento juvenil”, que agora todos os iniciados riam do que antes era levado muito a sério por eles. Foi também Jarno o encarregado de mostrar os documentos sobre Therese a Wilhelm e é um dos que tentam convencer Wilhelm ao final do livro – sugerindo que o acompanhe em uma viagem para a América.

Lothario: renúncia e individualidade exemplar Lothario é mencionado por Aurelie no Livro IV, depois pela tia no Livro VI. Wilhelm conhece-o no Livro VII e com ele se relaciona até o final do romance. O narrador conta que o castelo de Lothario era uma estranha construção, cuja beleza exterior (simetria e aparência arquitetônica) parecia haver sido sacrificada (era um remendado de anexos, galerias e passagens) “em nome da comodidade interior”. Mas, em contraste, os campos e jardins estavam no seu melhor estado, com uma “alegre” aldeia ao fundo (VII 1). Em vários momentos, vemos que Lothario exerce um efeito poderoso em seu círculo. As causas dessa atração arrebatadora são um pouco vagas, segundo nos transmitem algumas passagens. Primeiro, o relato de Aurelie, que se alegrava “por haver encontrado um guia”. Acolheu-me com um decoro tranquilo, com uma bondade sincera; falou-me de

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mim mesma, de minha situação e de meu ofício, como um velho conhecido, e com tanta simpatia e precisão que pela primeira vez pude alegrar-me de ver reconhecida claramente minha existência em outro ser. Seus julgamentos eram justos, sem ser negativos; precisos, sem ser inclementes. Não mostrava nenhuma rudeza e até sua ousadia era ao mesmo tempo agradável. Parecia estar habituado à sua boa sorte junto às mulheres, o que me deixava de sobreaviso; não era de modo algum lisonjeador nem impetuoso, o que me deixava despreocupada. Não se relacionava com muita gente na cidade; andava geralmente a cavalo, visitando seus numerosos conhecidos na região e cuidando dos negócios de sua casa. Ao voltar, apeava à minha porta, cuidava de meu marido, cada dia mais doente, com uma solicitude carinhosa, proporcionava ao enfermo o alívio de um médico competente e, assim como demonstrava interesse por tudo que a mim dizia respeito, também me deixava partilhar de seu destino. Contava-me as histórias de sua campanha, de sua irresistível inclinação pela caserna e de suas relações familiares, e confiava-me também suas ocupações atuais. Em resumo, não tinha segredos para mim; revelava-me a intimidade de seu ser, permitindo-me ver os recônditos mais escondidos de sua alma, e eu aprendia a conhecer suas faculdades [Fähigkeit] e suas paixões. Era a primeira vez em minha vida que eu desfrutava uma relação tão cordial, tão espirituosa (IV 16, p. 256-257).

A impressão que Lothario deixou em Wilhelm foi imensa. Quando ele acaba de chegar da casa de Therese e quer desculpar-se com Lydie (que exclamou a seu respeito para Therese: “um rosto tão leal, uma conduta tão franca, e essa secreta perfídia!”, VII 5, p. 434), diz: Ela me presta muita honra em me censurar – replicou Wilhelm. – Não posso sequer aspirar à amizade desse excelente homem, e desta vez nada mais fui que um instrumento inocente. Não pretendo elogiar minha conduta; já basta ter me comportado da maneira como me comportei. Estava em jogo a saúde, a vida de um homem, a quem tenho na mais alta estima, mais que todos os outros que já conheci. Oh, e que homem é, senhorita, e que homens o cercam! Em sua companhia, bem posso dizê-lo, tive pela primeira vez uma conversa, pela primeira vez o verdadeiro sentido de minhas palavras, mais rico, mais completo e com maior amplitude, veio a meu encontro pelos lábios de um estranho; tornou-se claro para mim o que eu pressentia, e aprendi a contemplar o que pensava. Infelizmente, por conta de toda sorte de preocupações e caprichos esse prazer sofreu modificações e se interrompeu devido a esta desagradável missão. Aceitei-a resignadamente, pois considerava meu dever pagar meu ingresso nesse círculo de excelentes homens, ainda que com sacrifício de meus próprios sentimentos (VII 5, p. 435).

Não nos é mostrada, porém, a maneira como se dá essa integração plena, Wilhelm simplesmente enuncia esse encontro valioso em que viera à tona, pelos lábios de um estranho, o “verdadeiro sentido” de suas palavras, “mais rico, mais completo e com maior 250

amplitude”, que se tornou claro para ele o que pressentia, de modo que ele aprendeu a “contemplar o que pensava”. Em que momento da narrativa isso aconteceu? Em nenhum lugar ele existiu palpavelmente para o leitor, que intui, aceita e completa essa confissão fundamental para a compreensão dessa inflexão decisiva no destino do herói200. Tentemos nos aproximar de Lothario para tentar entender porque Wilhelm laureia-o como o homem pelo qual mais estima sentiu. Segundo conta Aurelie, ele afirmava ser o alemão o povo que mais bravura tinha (e assim, a ideia de nação reaparece, agora, elevada, por vir de Lothario). Quando jovem, ele conhecia a história e se relacionava com os homens mais notáveis de seu tempo. Por mais jovem que fosse tinha os olhos voltados para a promissora juventude, que desabrochava em sua pátria, e para os trabalhos silenciosos de homens laboriosos e ativos em tantas profissões. Ele me possibilitava ter um panorama da Alemanha, do que ela era e do que ela podia ser, e eu me envergonhava de haver julgado uma nação pela confusa multidão que se amontoava num camarim de teatro. Ele me impunha a obrigação de ser, também em minha especialidade, verdadeira, inteligente e estimulante (IV 16, p. 258).

Os aspectos louváveis de Lothario concentram-se sobre suas relações sociais com indivíduos eminentes, em sua atenção sobre a atividade social seu conjunto e sobre o engrandecimento da nação por meio da atividade individual. “O mundo se lhe apresentava tão claro, tão aberto, quanto para mim a região de cuja economia me havia ocupado” (VII 6, p. 443), dizia Therese. Lothario possui, assim, um apurado senso de sociabilidade, de modo a considerar a individualidade sempre nessa relação polar – e é justamente nisso que se diferencia crassamente da consciência e do caráter de Wilhelm, que embora não seja destituído de intenções de melhoramento da pátria, não se mostra capaz, na prática, de ultrapassar os limites de sua individualidade, o que é evidente pela sua falta de interesse pelo mundo exterior. Essa dificuldade de Wilhelm não se deve a um egoísmo inato ou adquirido, mas sim à urgente necessidade íntima de desdobramento da própria individualidade. Wilhelm não quer sacrificá-la, como chega a defender Lothario, que

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“Lothario destaca-se menos entre todos os caracteres principais por razões bem objetivas. Um caráter como esse nunca pode aparecer por completo no material por meio do qual o poeta opera. Nenhuma ação individual ou discurso o representa; devemos vê-lo, devemos ouvi-lo por si mesmo, devemos viver com ele /.../ ele tem, portanto, de ser produzido pelo próprio leitor” (Schiller a Goethe, 3.7.1796, HA7, p. 635).

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renunciara ele mesmo à sua natureza heróica e guerreira. A ambiguidade está em que, nessa renúncia, promete-se à individualidade um efetivo desdobramento – ainda que em direção diversa da inclinação – e, justamente por isso, pode ter uma efetiva relevância social. Sob esse ponto de vista, insistir na inclinação pode ser visto facilmente (e se tornar realmente) um comportamento apaixonado que não leva a lugar algum, nem à realização ativa da individualidade nem à integração social desta para o proveito geral. No período de reestabelecimento de Lothario após o duelo, Wilhelm, com prazer, lia frequentemente para o doente. Num dia que ele parecia especialmente disperso, expressa-se da seguinte forma: “– Sinto hoje vivamente – disse ele – a que ponto o homem deixa passar de maneira imprudente seu tempo! Quantas coisas já fiz, em quantas coisas já pensei, e quantas hesitações diante dos melhores propósitos!” (VII 3, p. 423), e logo fica claro a que ele se refere: “revi os planos de reforma que pretendo efetuar em minhas propriedade, e posso dizer que, principalmente por esse motivo, estou contente de a bala não ter seguindo uma trajetória perigosa” (VII 3, p. 423). Lothario coloca a vida a serviço da propriedade e de seus frutos. Após explicar as reformas que ele implementará e ser advertido por Jarno a dar tempo ao tempo, pois tinha dívidas a serem pagas, sua urgência obriga-o a dizer: “e, nesse meio tempo, ficar à mercê de uma bala ou uma telha, caso desejem elas aniquilar para sempre os resultados de minha vida e de minha atividade!” (VII 3, p. 424). O acaso para ele é uma força cega a qual não devemos nos sujeitar, concepção que se defronta com a que Wilhelm tem de destino. Lothario, como um bom membro da Torre, quer controlar as circunstâncias. Na continuação de suas explanações nesse contexto, ele oferece o enquadramento adequado sob o qual Wilhelm deve reavaliar sua própria experiência: “é um defeito capital de homens cultos querer sacrificar tudo por uma ideia e muito pouco ou quase nada por um objeto” (VII 3, p. 424), dizendo que contraiu dívidas, ficou indisposto com o tio e abandonou os irmãos à própria sorte por que acreditava numa ideia: ser útil na América. No relato de Aurelie é contado que Lothario tinha acabado de servir com distinção à causa americana. Para ele, se uma ação não estivesse repleta de perigos, não era digna nem significativa. A tia diz o seguinte da inclinação de Lothario: 252

O filho mais velho de minha irmã parecia-se com seu avô paterno, cujo retrato, muito bem pintado, estava exposto na coleção de nosso tio; como aquele, que se havia revelado um bravo oficial, ele adorava, mais do que qualquer outra coisa, armas de fogo, com as quais sempre se ocupava quando vinha visitar-me. Pois meu pai havia deixado um belo armário repleto de armas, e o pequeno não sossegou enquanto não lhe presenteasse com um par de pistolas e um fuzil de caça, até chegar a descobrir como se montava o gatilho de uma arma alemã. No mais, ele não era rude em seus atos nem em sua maneira de ser, sendo, ao contrário, doce e sensato (VI, p. 405).

Depois da aventura na América, Lothario passou a valorizar o que estava próximo dele. Lothario deve ser um exemplo para Wilhelm: ele também errou seu caminho, mas após esse extravio, recolocou-se em seu norte: uma atividade condizente com a posição de proprietário. Ao exclamar: “Aqui [em sua própria casa], ou em parte alguma, está a América!” (VII 3, p. 425), Lothario reconhece em sua busca algo de inatingível (o que torna bastante simbólico o fato de a luta ser a paixão que deve ser sacrificada), ao mesmo tempo em que vê que o realizável está ali, bem perto dele: é o dado 201. Mas ele ainda se censura por ser menos ativo em seu solo quanto fora na América. Lothario sacrifica sua sensibilidade, exatamente onde estão concentradas suas inclinações e disposições202. Sua conversa era séria e atenciosa; seus entretenimentos, instrutivos e reconfortantes; podia-se ver com frequência traços de uma delicada sensibilidade, ainda que ele procurasse dissimulá-la, parecendo mesmo desaprová-la quando, contra sua vontade, ela se manifestava (VII 7, p. 453) 203.

Lothario é sensível, não está tão longe de Wilhelm, e o fato do narrador destacar a sensibilidade de Lothario já é uma evidência do caminho para o qual Wilhelm deverá se dirigir. Renunciar aos desejos, convicções, comportamentos é o que faz de Lothario

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A frase de Lothario é de um idealista que foi transformado em pragmático pela realidade, o que, politicamente, significa: reformador (Steiner, p. 129). 202 Ele repreende o cunhado – o conde – que doa seus bens à comunidade dos Hernutos e com isso crê estar salvando sua alma, enquanto seria muito mais efetivo se ele sacrificasse seus bens alienando-os em favor de fazer felizes outros homens, criando assim um paraíso na terra. Desesperados, e não decididos, os homens renunciam ao que possuem, sendo “raro que nossos sacrifícios se resolvam em ações” (VII 3, p. 425). 203 Se o romance representa o quadro de uma sociedade em transição na Alemanha (Voßkamp, Lukács, Krings), Lothario (bem como Lenardo e Fausto) é tipo [Typus] da modernidade. Para melhor colocar essa apreciação, acrescentaríamos que Lothario é o tipo dominante da modernidade, mas talvez não seu tipo representativo e até mesmo típico, para o qual Wilhelm talvez ofereça um modelo melhor. Körner fala de Lothario, da “frieza e dureza do homem do mundo”, que não conhece entusiasmo, e o qual “aprecia em Shakespeare apenas o material [Stoff], a verdade da representação” (HA7, p. 652).

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superior e é o que deve fazer Wilhelm. A renúncia de si mesmo é a necessidade imposta pelas circunstâncias. Quando o homem se martiriza com assuntos externos, quando tem de juntar e proteger seus bens e inclusive quando toma parte nos negócios do estado, depende, onde quer que esteja, das circunstâncias e, poder-se-ia até dizer que nada governa enquanto imagina governar; vê-se obrigado sempre a ser político, onde de bom grado seria razoável; dissimulado, onde desejaria ser franco; falso, onde desejaria ser leal, quando, em nome de um propósito que jamais alcança, tem de renunciar a todo instante ao mais belo dos propósitos: a harmonia consigo mesmo (VII 6, pp. 443-444).

Essa percepção de Lothario contrapõe-se frontalmente às teorias da Torre, pois ele reconhece que por mais que se tenha de controlar as circunstâncias, ele depende delas e é determinado por elas. Lothario, tal como Wilhelm, não encontra a almejada harmonia. Wilhelm está completamente arrebatado pelo excelente Lothario cede formalmente as rédeas de sua vida àquela Sociedade. Wilhelm mostra-se, apesar de suas convicções, bastante flexível para até mesmo desistir de Therese, a quem havia pedido em casamento. Calou-se um instante, com o olhar perdido no vazio, e Jarno fez menção de falar. – Deixa-me dizer ainda oura coisa – atalhou Wilhelm –, pois desta vez está em jogo todo o meu destino. Neste momento vem em meu socorro a impressão que a presença de Lothario gravou em mim ao vê-lo pela primeira vez e que persiste dentro de mim. Esse homem merece toda sorte de inclinação e amizade, e sem sacrifício não há que se pensar em amizade 204. Por ele foi-me fácil enganar uma infeliz jovem, por ele há de ser possível renunciar à mais digna das noivas. Vá, conte-lhe esta singular história e diga-lhe a que estou disposto (VIII 4, p. 521).

Wilhelm resume o fim de sua própria trajetória: ele paga de bom grado com seus sentimentos e suas convicções àqueles aos quais ele reconhece como seres exemplares. O traçado fundamental da individualidade e da trajetória de Lothario fazem sucumbir quaisquer desvios de natureza inferior – como seu gosto pela taverna ou seu comportamento volúvel com as mulheres, que tanto as faz sofrer205. Por isso, em nenhum

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Apesar de Schiller dizer que não, se seguirmos a mesma referência citada anteriormente (IV 2, p.209-210), Wilhelm coloca-se como servidor de Lothario. 205 A primeira vez que Lothario discorre sobre algo e mostra por si mesmo sua personalidade, suas inclinações, etc., é ao narrar seu dia de rememoração de seu primeiro amor, ele justificava-se (e era indulgente com o reviver prazeroso do passado) pela debilidade que sua doença lhe causava. Apesar de Wilhelm, como Lothario, ir facilmente de uma paixão a outra, Lothario é sensual, a ele importa a satisfação dos sentidos, as

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momento é questionada a volubilidade das paixões de Lothario, Wilhelm, aliás, fala em sentido totalmente elogioso: É justo, disse a si mesmo, que um homem tão notável atraia para junto de si almas femininas também notáveis! Quão longe se propaga a influência de uma nobre virilidade! Se os demais não ficassem tão prejudicados! Sim, confessa a ti mesmo teu receio! Se algum dia tornares a encontrar tua amazona, essa visão das visões, e descobrires, a despeito de todas as tuas esperanças e de todos os teus sonhos, para tua vergonha e humilhação, por fim, ser ela noiva de Lothario! (VII 5, p. 437)206

Ora, sob esses aspectos, nosso herói é muito mais valoroso que o elogiado Lothario, mas é Wilhelm, e não Lothario, que necessita de correção, pois está na maneira como se desdobra a atividade individual o centro de gravidade da individualidade e, portanto, desse romance goethiano. Wilhelm, como todos que conhecem Lothario, rendeu-se completamente à sua superioridade, e foi inclusive capaz de agir contra seus princípios. Mas são justamente o caráter e a consciência de Wilhelm que permitem que ele se deixe conduzir por aqueles homens. Sobre Lydie, Wilhelm confessa: É a primeira vez em minha vida que engano alguém dessa maneira, pois sempre

experiências amorosas de Wilhelm são, por assim dizer, platônicas, além disso, seu comportamento estritamente moral impede-o de ser como Lothario. Como será evidenciado, esse tipo aflorado de sexualidade é o calcanhar de Aquiles de Lothario. Wilhelm chega ao castelo e, portanto, à Sociedade da Torre, exatamente para vingar a morte de sua amiga Aurelie, que perdeu a razão de viver após de ser deixada por Lothario. Logo em sua chegada, Wilhelm presenciou um “estranho acontecimento”. É explicado que a aventura de Lothario com uma dama causou um escândalo maior que o conveniente (isso se deveu, como explica o abade, ao caráter da dama, que queria exibir sua vitória sobre uma rival). E assim, “infelizmente, ao cabo de algum tempo, ele não via mais nela o mesmo atrativo e passou a evitá-la; mas, dona de um temperamento violento, foi-lhe impossível aceitar serenamente seu destino” (VII 2, p. 423). No baile em que Lothario rompe publicamente com ela, ela sente-se ofendida e quer vingar-se; o marido do qual ela havia se separado há algum tempo defende-a, desafiando Lothario – embora atingido, Lothario deixou o coronel em muito pior situação. Wilhelm presencia os resultados desse acontecimento. A partir do momento em que são compartilhados com Wilhelm os motivos do duelo em que Lothario ficara perigosamente ferido, o herói é aceito como membro da família. 206 Lothario neutraliza as mais belas intenções de Wilhelm, que chega até ele com as palavras: “trago-lhe as últimas palavras de uma amiga, as quais o senhor não há de ler sem emoção”. Wilhelm entrega a carta de Aurelie a Lothario, não sem ter de esperar um pouco pelo ocupado homem. No momento de leitura da carta, Lothario retira-se para sua sala ficando de porta entreaberta. Wilhelm vê que ele sela e sobrescreve cartas antes de abrir o bilhete. Lothario – ao contrário de Wilhelm – não coloca o sentimento à frente da atividade. Wilhelm intui que seu discurso em defesa de Aurelie, recriminando Lothario por sua morte, seria patético, inapropriado frente àquela “natural acolhida”.

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acreditei que se pudesse chegar muito mais longe se começamos a enganar em favor do bom e do útil (VII 4, p. 431).

O problema não é enganar (como bem mostrou o comportamento de Wilhelm com seu pai), mas são as causas e finalidades do logro. Lydie era um estorvo de uma paixão desequilibrada e não um plácido amor verdadeiro. Wilhelm é convocado a intervir e a agir, não concebe ele próprio essa necessidade. Jarno replica que é esse o único modo de educar as crianças. Wilhelm reconhece que com as crianças é por certo assim, /.../ mas, quanto a nossos semelhantes, para quem nosso coração nem sempre dispensa cuidados tão manifestos, poderia tornar-se muitas vezes perigoso. Ainda assim – prosseguiu ele, depois de uma breve reflexão –, não creia que, por esse motivo, recuso tal missão. Pelo respeito que me inspira sua inteligência, pela inclinação que sinto por seu excelente amigo, por meu vivo desejo em contribuir para sua cura, não me importam os métodos utilizados, pois de bom grado esquecerei de mim mesmo. Não basta poder arriscar a própria vida por um amigo; é preciso também, em caso de necessidade, abjurar por ele de nossa convicção. Por ele devemos sacrificar nossa mais cara paixão, nossos melhores desejos. Aceito a missão, embora já preveja o tormento que as lágrimas de Lydie e seu desespero me farão sofrer (VII 4, p. 431).

Wilhelm age como amigo, algo que, segundo ele anteriormente expressara à sua trupe (IV 2, pp. 209-210), um nobre jamais é capaz de ser. É por amizade que Wilhelm se sacrifica? Não necessariamente, a ele também é vantajoso entrar nesse círculo de homens excelentes, para adquirir (ou tentar aparentar consistentemente) o que o teatro não pôde lhe proporcionar. Wilhelm transforma sua atitude imoral com Lydie numa obrigação moral. Ampliando um pouco a ideia presente nessa fala do herói, podemos dizer que não é simplesmente pela abnegação que a amizade exige o motivo pelo qual Wilhelm deixe de lado seus mais caros sonhos de desdobramento da individualidade. É, primeiramente, pela sua experiência frustrada. Quanto às mulheres, ele discordava que o sexo masculino era injusto com elas, como era hábito considerar, para ele era estranho que se censurasse o homem “por colocar a mulher no lugar mais alto que ela é capaz de ocupar” (VII 6, p. 443), pois para ele o lugar mais elevado é o governo da casa. A mulher, portanto, não precisa renunciar a nada, pois no lar está em harmonia consigo mesma. A dona de casa reina no interior do lar e proporciona a toda a família atividade e satisfação; Lothario pergunta: “qual é o bem supremo do 256

homem senão o de realizarmos aquilo que consideramos justo e bom? O de sermos realmente senhores dos meios que conduzam a nossos fins?” (VII 6, p. 444), e os fins mais imediatos estão dentro de casa. Além disso, ela não depende de ninguém e proporciona a seu marido a verdadeira independência, “a independência doméstica, interior”, pois “com calma, amor e eficiência” ela age regularmente e provê, fabrica, gasta, guarda, planta e colhe. E com seus bens assegurados e tão bem utilizados, ele pode dedicar-se a grandes questões e ser para o estado o que sua esposa é para a casa. Descrevendo a si próprio e seu círculo, Lothario exorta Wilhelm, ao final do romance: Não nos deixe levar uma vida banal, já que nos reunimos de modo tão prodigioso! Atuemos juntos e de maneira digna! É incrível o que um homem culto pode fazer por si mesmo e pelos outros quando, sem querer dominar, tem o ânimo de ser tutor de muitos, prepará-los para fazer no momento propício o que de bom grado todos desejariam fazer, e conduzi-los aos objetivos que em geral têm diante dos olhos, e só tomam o caminho errado. Façamos uma aliança entre nós; não é nenhum delírio, é uma ideia extremamente viável e realizada com frequência (VIII 10, p. 584)207.

Therese: satisfação plena na autoatividade Conhecemos Therese no livro VII. Nobre, saberemos no VIII que ela é fruto de uma relação de seu pai com a mulher que se encarregava de todo o serviço doméstico de sua casa. Ela ama Lothario e é muito amiga de Natalie. Therese não só representa o mesmo ponto de vista da Torre como é um de seus melhores exemplos – a diferença dela para os nobres irmãos é que ela não foi objeto dos experimentos pedagógicos da Torre. Assim como ocorre com Lothario, antes de conhecermos os proprietários, temos os traços gerais de suas residências. A casa de Therese era pequena, extremamente limpa e bem arrumada. No pequeno jardim, Wilhelm observava que tudo estava em tão perfeita

207

Goethe segue a sugestão de Schiller, que pede algumas palavras de Lothario para ratificar de uma vez por todas as mésalliances do final do romance (Schiller a Goethe, 5.7.1796, HA7, p. 639).

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ordem e limpeza que era realmente de se admirar. Como Lothario, ela tinha uma bela estatura, sem ser alta, e nada do que acontecia lhe passava despercebido. Seus olhos eram “claros como cristal”, e Wilhelm acreditava ver “até mesmo o fundo de sua alma” (VII 5, p. 436). No primeiro encontro com o herói, ela fala de muitas coisas, dentre elas, que não é tão rica e que pode sozinha cuidar de sua pequena propriedade. No passeio, Therese explica ao administrador da propriedade de seu vizinho todos os procedimentos e os conhecimentos sobre agricultura e coisas da região, o que muito admirou Wilhelm. Ela diz ainda que o vizinho, rico, ofereceu-lhe a mão, mas ela recusou, objetando que “rico é aquele que sabe administrar o que possui; ter muito é uma carga pesada quando não sabemos levá-la” (VII 5, p. 437). O talento dela para a agricultura vinha de uma “inclinação decidida, ocasião precoce, impulso exterior e ocupação contínua numa causa útil”. Therese cumpre todos os requisitos que a Torre preconiza em termos de Bildung (embora, como sabemos, não tenha sido objeto dos experimentos pedagógicos). Como Natalie, Lothario e o próprio Wilhelm, Therese desde pequena sentiu e exerceu sua inclinação. Ela vivia nos celeiros, na cozinha, na granja, nas despensas – a ordem e a limpeza da casa eram seu único instinto e objetivo. Enquanto o pai, alegrando-se com isso, dava-lhe ocupações mais adequadas a essas tendências infantis, a mãe não lhe amava e nem dissimulava isso. Ela cresceu, e suas atividades também. Therese havia ampliado sua inclinação para a direção certa. Quando, ainda antes de conhecer Therese, Lothario descreve a mulher que gostaria para si, ela era exatamente como Therese, como esta, que o ouvia, reconhece prontamente com felicidade indescritível, pois ele, a quem ela tanto estimava, preferia não sua “pessoa”, mas sua “natureza mais íntima”. Mas Therese desejava que ele a conhecesse, “que demonstrasse interesse pessoal por mim” (VII 6, p. 446). Um dia ela veste-se com suas roupas masculinas e vai disfarçada encontrar o grupo de caça de Lothario. Um dos sobrinhos de sua benfeitora começa a elogiar-lhe e contar a ele tudo que Therese havia feito nas terras. Lothario passa a perguntar-lhe muitas coisas sobre as propriedades e a região. Ele passou a visitar a casa constantemente, conversavam muito sobre as “grandes 258

realizações que o homem é capaz de criar graças ao emprego consequente de suas energias, seu tempo e seu dinheiro, mesmo valendo-se de meios aparentemente mesquinhos” (VII 6, p. 446). Therese passa a amá-lo; mas ela percebia que ele tinha uma inclinação por Lydie, embora não fosse nada sério. Certa feita, Lothario pede Therese em casamento. Nesse instante ela sentiu a felicidade suprema, pois a queria um homem a quem ela tanto estimava, e com o qual ela via “o emprego total, livre, amplo e proveitoso de minha inclinação inata, de meu talento adquirido pela prática” (VII 6, p. 447) 208. Mas logo em seguida, por acaso, Lothario descobre que Therese é filha de uma mulher que ele conhecera na Suíça alguns anos antes. E desalentado nunca mais a procura. Em harmonia consigo mesma, nada tira de Therese sua paz de espírito. Mesmo com o brusco afastamento de Lothario e o relacionamento dele com Lydie (que havia sido criada em sua casa), Therese mantém-se tranquila e, “ainda que ele a desposasse, haveria tido talvez coragem suficiente para suportar tais relações, desde que não viessem perturbar sua ordem doméstica” (VII 6, p. 451). Ela conta ainda que educa, junto com a irmã de Lothario, as crianças que têm inclinação viva e diligente para donas de casa, enquanto a outra educa as que são mais calmas e sutis, “pois é justo velar de todas as maneiras pelo bem dos maridos e das atividades domésticas” (VII 6, p. 449). Natalie e Therese exercem também uma função social que é essencialmente voltada à comunidade. Suas atividades, assim como as dos homens nos negócios, são homogeneizadas: ambas educam meninas para administrar a casa – Therese tem apenas um domínio doméstico mais amplo. Assim, Wilhelm pensou em como Mignon e Felix seriam felizes sob os cuidados de Therese, e como seria “prazeroso viver perto de um ser humano assim tão transparente”. Como revela o narrador, essa reflexão era apenas um preâmbulo para confessar-se o que já havia decidido: deveria procurar uma mãe para o menino, e ninguém melhor que Therese. “Uma tal esposa e companheira parecia ser a única a quem poderiam confiar-se ele e os seus” (VII 6, p. 494).

208

Atente-se para o importante detalhe: a inclinação e disposição inatas de Therese foram desenvolvidas a ponto de tornarem-se talento – este pode ser, portanto, “adquirido”.

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A inclinação que ela tinha por Lothario não o preocupava. É-lhe necessário uma mãe para seu filho, e quem poderia ser nesse quesito mais completa que Therese? Lothario, por sua vez, buscava uma mulher que se realizasse ativamente numa direção bastante específica – assim, ele não se apaixona por quaisquer aspectos da individualidade de Therese, mas, sobretudo, pela sua autoatividade. Wilhelm, ao contrário, interessa-se sobretudo pelas funções caracteristicamente femininas que ela poderia exercer. Dada a impossibilidade de unir-se a Lothario, Therese aceita o pedido de casamento de Wilhelm. Ela aceita resignada seu destino, fazendo o que se deve esperar dela: “Mas hei de ser digna, cumprindo com meu dever, realizando o que se pode esperar e aguardar de mim” (VIII 4, p. 519). Numa carta que Natalie enviara a Therese, havia uma folha para Wilhelm que dizia: Sou sua assim tal como sou e como o senhor me conhece. Chamo-o de meu assim tal como é e como o conheço. As mudanças em nós mesmos e em nossas relações que porventura o casamento vier a introduzir, haveremos de saber suportá-las com razão, bom ânimo e boa vontade. Já que não é a paixão, mas a inclinação e confiança que nos unem, arriscamos menos que milhares de outros. O senhor me perdoará com certeza se por vezes me recordo de meu velho amigo; em troca, estreitarei seu filho contra meu peito como uma mãe (VIII 4, p. 517).

Diz que ele pode ser dono e senhor de sua casa imediatamente, até que se compre a quinta dele; pede ainda que ele espere para ouvir a opinião dela antes da compra. Em outro contexto, ela já havia antecipado sua opinião sobre os casamentos desiguais: a fusão de classes sociais através do casamento só merece o nome de casamento desigual à medida que uma das partes não pode interessar-se pela existência inata, habitual e por assim dizer necessária da outra. As diferentes classes sociais têm diferentes modos de vida que não podem compartilhar nem trocar reciprocamente, e eis por que é melhor que não se consumam uniões dessa espécie; mas é possível também que ocorram exceções (VII 6, p. 451-452).

Para ela, pode ser chamado de casamento desigual aquele entre uma jovem e um velho, ou, no caso dela, com um homem que a obrigasse a não fazer nada. (Ela preferiria dar sua mão a um “honrado filho de arrendatário”.) Ou seja, é digno de nota que Therese renuncia, se for necessário, a Lothario ou mesmo ao amor exclusivo dele, mas jamais à sua inclinação, à sua “natureza mais íntima”. Na carta a Natalie, Therese prossegue: no que concerne à posição social [Stand], sabes o que sempre pensei a respeito.

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Alguns homens sentem terrivelmente as discrepâncias das condições exteriores e não as podem suportar. Não pretendo convencer ninguém, do mesmo modo como pretendo agir segundo minha convicção. Não penso em dar exemplo, embora não proceda sem exemplo. Só me inquietam as discrepâncias íntimas, um recipiente que não se adapta àquilo que deve conter; muito luxo e pouco prazer, riqueza e mesquinhez, nobreza e grosseria, juventude e pedantismo, miséria e ostentação, aí estão as condições que poderiam aniquilar-me, a despeito de o mundo poder selá-las e apreciá-las como quiser (VIII 4, p. 518).

Tais oposições são, por sinal, aquelas do círculo natal de Wilhelm, presentes em seu pai e nos Werner, e também identificáveis entre os nobres no castelo do conde – e assim, sob o aspecto das convenções sociais, Therese corresponde à interpretação schilleriana da nulidade das posições sociais quando se trata de algo “puramente humano”. Ao ter esperança de nossa adaptação, apoio minhas palavras principalmente no fato de ele se parecer contigo, querida Natalie, a quem infinitamente estimo e venero. Sim, de ti tem ele a nobre procura e o esforço para o melhor, graças ao qual produzimos o bem que acreditamos encontrar (VIII 4, p. 518).

Natalie, a individualidade íntegra: amor e atividade Há de ser sempre inacessível o modo de agir que a natureza prescreveu a essa bela alma. Sim, ela merece esse título mais do que outras, muito mais que, se me permite, nossa nobre tia que, na época em que nosso bom médico assim classificava aquele manuscrito, era a mais bela alma que conhecemos em nosso círculo. Natalie, entretanto, se desenvolveu, e a humanidade se alegra de tal presença (VIII 10, p. 584).

Assim Lothario descreve sua irmã Natalie, da qual ouvimos falar na narrativa autobiográfica de sua tia e só conheceremos diretamente no último livro. Ela é, no entanto, a bela amazona que socorre Wilhelm após o episódio do assalto, no Livro IV. Natalie é a única entre os sobrinhos que é nomeada, foi a ela que a tia mais se afeiçoou: Devo dizer que quanto mais cuidadosamente a observava enquanto crescia, mais ela me embaraçava, e eu não podia olhar aquela menina sem admiração, e quase poderia dizer, sem respeito. Não é fácil ver uma figura mais nobre, uma índole mais serena e uma atividade tão regular que não se limite a um só objeto. Em nenhum momento de sua vida ela ficava desocupada, e todo trabalho que lhe caía nas mãos transformava-se num ato digno. /.../ Nunca vi em minha vida uma atividade como aquela, sem que lhe fosse necessária uma ocupação

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[Beschäftigung]209. Desde a infância era inimitável seu comportamento diante dos necessitados e desamparados /.../ Nunca a vi dar dinheiro a um pobre, e o que ela recebia de mim para essa finalidade, transformava-o sempre em objeto de primeira necessidade. Nunca me parecia mais amável que quando me pilhava o guarda-roupa e os armários de roupas brancas; sempre encontrava algo que eu não usava e de que não precisava, e sua maior alegria era recortar aquelas peças velhas e reformá-las para uma criança esfarrapada (VI, p. 405).

A aparição da amazona ocorre precisamente no meio do romance, ligando início e fim210. A jovem pede para que o tio permita que ela dê o capote que a cobria ao ferido Wilhelm: “Querido tio, permita-me ser generosa às suas custas?” – tal como Wilhelm, o que Natalie possui para exercer sua inclinação quase franciscana é herdado 211. A excentricidade de Natalie no amparo aos “desassistidos” (IV 9, p. 230) é de natureza distinta da de Wilhelm no mesmo assunto. Ambos têm esse traço, mas em Natalie ajudar os outros é a inclinação dominante, em Wilhelm não, é um parâmetro de conduta, mas não é seu principal objetivo. Os desejos de Natalie são satisfeitos na satisfação das necessidades dos outros, de modo que os desejos que possui anulam-se a si mesmos enquanto desejos da própria Natalie, pois são sempre de outros. Como soubemos por Therese, Natalie educa meninas. Talvez o senhor já saiba que tenho à minha volta um certo número de meninas, cujos espíritos pretendo formar [bilden] para o bem e para o justo enquanto elas crescem ao meu lado. De minha boca não ouvem nada que eu mesma não tenha por verdadeiro; contudo não posso nem pretendo evitar que escutem de outras pessoas aquilo que, enquanto erro e preconceito, é corrente no mundo. Se me questionam a esse respeito, procuro, na medida do possível, ligar essas ideias estranhas e inconvenientes a alguma outra que seja justa, para que assim resultem, senão úteis, ao menos inofensivas (VIII 2, p. 503).

Wilhelm pergunta se Natalie segue com suas meninas os princípios daqueles homens especiais: “deixa, portanto, cada natureza formar-se [ausbilden] por si própria? Deixa também que as pessoas à sua volta procurem e se enganem, cometam erros, alcancem felizmente suas metas ou se percam desafortunadamente em equívocos?” (VIII 3,

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Ora, é inevitável observar aqui que até mesmo a atividade de Natalie (sem ser ao menos uma ocupação!) é considerada como tal; é muito estranho, portanto, que do teatro não se possa dizer o mesmo. 210 Schings: 1981, p. 141. 211 Schings (1985, p. 50) nota que “fé, amor e esperança” são as “três virtudes cristãs” atribuídas a Natalie por Jarno (apesar dela agir sem qualquer teologia), enquanto Therese contrapõe as virtudes do ethos econômico.

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p. 514). Ela diz que não, que isso iria contra ao seu modo de agir, pois para ela deve-se socorrer e aconselhar imediatamente. Além disso, parece-lhe necessário formular e incutir às crianças certas leis que deem à sua vida certo amparo. Sim, quase poderia afirmar que é melhor equivocar-se segundo as regras que se equivocar quando a arbitrariedade de nossa natureza nos deixa à deriva, e, tal como vejo os homens, parece-me sempre restar em sua natureza um vazio que só uma lei categoricamente formulada pode preencher (VIII 3, p. 515).

E ela completa que por aí se vê a inacreditável tolerância desses homens aos quais ela age contrariamente, mas que não a impedem de assim o fazer, pois é seu caminho. Natalie exclui o erro como método de formação; substitui-os por leis. Enquanto o abade acredita que a individualidade deva perder-se e achar-se por si própria, Natalie quer ampará-la da inquietação apática (o vazio) que ela parece estar condenada a cair se andar por si mesma. Para a Sociedade da Torre trata-se do oposto: dar a liberdade necessária para que cada indivíduo encontre-se a si mesmo nas circunstâncias que são em parte prédeterminadas e em parte determinadas por ele próprio. Natalie questiona essa liberdade: nela embute o sofrimento da desorientação interna. E assim a lei externa, categoricamente formulada, é um parâmetro social para o indivíduo perdido. Natalie, pouco antes, ouvira a seguinte apreciação de Wilhelm a seu respeito – algo que fora para ela muito claro desde a infância: Encontro na amiga de Therese aquela Natalie a quem se apegava tanto o coração da valiosa parenta, aquela Natalie que desde pequena foi tão compassiva, carinhosa e prestativa! Só de uma tal estirpe podia originar-se uma tal natureza! Que perspectiva se abre diante de mim ao contemplar de uma só vez seus ancestrais e todo o círculo a que a senhora pertence! (VIII 3, p. 507)

Wilhelm, que “podia agora observar Natalie em seu círculo; não teria podido desejar nada melhor que viver a seu lado” (VIII 3, p. 513). Ele pergunta a ela se o curso de sua vida fora sempre igual, pois o retrato que a tia pintara dela continuava fiel. “Vê-se que a senhora nunca se sentiu desorientada. Nunca se viu obrigada a recuar um passo” (VIII 3, p. 513). Wilhelm se sentiu muitas vezes desorientado e agora se via obrigado a corrigir não apenas um passo, mas toda a rota a qual havia direcionado sua vida desde a infância. Ela responde que devia isso ao tio e ao abade que julgaram devidamente suas qualidades. Apesar da importância desse fato na história de Natalie, devemos considerar também as 263

circunstâncias. A espécie de aspiração, determinada ou adequada à posição que cada um assume na sociedade conta muito aqui. Suas inclinações são por natureza limitadas ao círculo familiar doméstico e à vizinhança mais próxima. Assim, se perguntamos por que a Natalie e a Therese foi possível efetivarem sua natureza mais íntima e a Wilhelm e Lothario não, uma das respostas é que Wilhelm e Lothario têm inclinações cuja efetivação está no intercâmbio social mais amplo; Lothario lutava por ideais e nação na América; Wilhelm queria se tornar uma pessoa pública (além da criação de um teatro nacional alemão, que de tão longínqua possibilidade, a realização acaba por esvanecer-se como objetivo do herói), comunicando a cada indivíduo o que de mais humano a arte poética e teatral podia transmitir. Natalie tinha uma aspiração ambiciosa, mas cuja realização podia ser implementada no cotidiano de seu círculo. Ela explica: Desde minha infância não me recordo de uma impressão mais viva que a de ver em todas as partes as necessidades do ser humano e sentir um desejo invencível de compensá-las. A criança, que ainda não podia sustentar-se sobre os pés, o ancião, que já não se mantinha sobre os seus, o desejo de uma família rica de ter filhos, a incapacidade de uma família pobre de manter os seus, todo desejo tácito de exercer um ofício, o impulso para o talento, as disposições para centenas de pequenas capacidades necessárias, tudo isso a natureza parecia haver destinado meu olhar a descobrir. Eu via aquilo para o qual ninguém havia me chamado a atenção; mas parecia haver nascido também apenas para ver. Os encantos da natureza inanimada, aos quais tantas pessoas são extremamente sensíveis, não produziam em mim nenhum efeito, e quase menos ainda os encantos da arte; ao me deparar com uma deficiência, uma necessidade no mundo, minha mais grata sensação era, e ainda o é, a de procurar no espírito uma compensação, um remédio, um socorro. Bastava ver um pobre em farrapos, e logo me vinham à mente as roupas supérfluas que via penduradas nos armários de meus familiares; se via crianças consumindo-se por falta de cuidados e tratamento, lembrava-me sem demora de uma ou outra mulher em que havia observado um certo tédio suscitado pela riqueza e pelo conforto; se via muitas pessoas encerradas num espaço estreito, pensava prontamente em alojá-las nos grandes cômodos de muitas casas e palácios. Essa maneira de ver era para mim totalmente natural, desprovida de qualquer reflexão, e foi a responsável pelas coisas mais bizarras do mundo que fiz quando pequena, levando mais de uma vez as pessoas ao constrangimento com as mais extravagantes proposições. Outra peculiaridade minha era a de não poder senão com muito esforço levar em conta o dinheiro e, só mais tarde, vim a considerá-lo como um meio de satisfazer as necessidades; todas as minhas boas ações eram em espécie, e sei que fui constantemente motivo de riso. Só o abade parecia compreender-me; era condescendente comigo, fazia-me tomar consciência de mim mesma, de meus sonhos e de minhas inclinações, ensinando-me a satisfazê-los apropriadamente (VIII 3, p.

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514).

A habilidade de Natalie é justamente descobrir e satisfazer carências. A futura amada do protagonista despreza dinheiro e propriedade – vê apenas as necessidades humanas. Estas, criadas socialmente, ela simplesmente quer remediar212. Sendo Natalie o par perfeito do herói, ela completa-o exatamente por lhe impor as leis sociais que devem ser cumpridas com resignação, porém sem sofrimento. Wilhelm não deve seguir os ditames espontâneos de sua individualidade, mas procurar coaduná-los à sociedade sem revolta, depois de conhecê-los e satisfazê-los de maneira correta. Diferente da bela alma, Natalie não se volta às atividades e produtos espirituais e ideias dos homens – nem ciência, nem arte, nem religião. A carta de Therese a Natalie explicita as características de ambas, em especial as diferenças essenciais entre Natalie e a bela alma – principalmente da ordem da secularização de certos princípios formativos. Assim, segundo Therese, Jarno dizia: ‘Therese adestra suas pupilas, Natalie as forma. Sim, tão longe ele foi nisso que um dia chegou a me negar por completo estas três belas qualidades: fé, amor e esperança. ‘Em lugar da fé’, disse ele, ‘ela tem inteligência; em lugar do amor, a obstinação; e em lugar da esperança, a confiança’. Também quero confessar-te de bom grado que, antes de te conhecer, não conhecia no mundo nada superior à lucidez e à prudência; só tua presença me convenceu, animou, dominou, e com prazer cedo essa posição à tua alma bela e elevada (VIII 4, p. 519).

Jarno contrapõe, portanto, as virtudes práticas de Therese às compassivas, de Natalie. Como Therese, Natalie é prática e pragmática – ambas organizando os recursos disponíveis da melhor maneira, entretanto, o modo de ser e agir de Natalie a afasta da relação social canônica – o dinheiro (o que para Therese é impossível), esta é uma das características mais admiradas por sua tia. Mas a profundidade espiritual de Natalie não compreende os conteúdos humanistas da arte nem os transcendentais da religião. Ela é casta também de sentimentos e talvez por isso o que a tia admira na sobrinha seja a religião cristã em seu mais puro sentido213.

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À parte toda ironia, se Natalie é a personagem que representa a individualidade mais perfeita do romance e ela despreza o dinheiro, nessa representação está uma crítica de Goethe ao dinheiro enquanto relação social, ou seja, uma crítica à existência mesma do dinheiro. 213 Nesse caso, condiz a afirmação de Schiller sobre Natalie ser a superação estética do cristianismo (ver também Steiner, p. 128).

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– Sim, posso mesmo dizer que somente por ele senti que o coração se comove e se eleva, que no mundo pode se haver alegria, amor e um sentimento que nos satisfaça acima de toda necessidade (VIII 4, p. 524).

Wilhelm toma a mão de Natalie e exclama: “– Oh, prossiga! Este é o momento exato para uma verdadeira e mútua confiança; nunca nos foi tão necessário que nos conhecêssemos melhor”. Ela responde, sorrindo, com sua “serena e indescritível dignidade”, que sim, “talvez não seja inoportuno dizer-lhe que tudo quanto muitos livros e o mundo mencionam e descrevem como amor, sempre me pareceu apenas uma história fantasiosa”. Wilhelm pergunta se ela nunca havia amado, ela responde: “nunca ou sempre” (VIII 4, p. 524). O amor sentido por Natalie é um amor universal e inexprimível, voltado aos homens e às coisas humanas mais dignas desse sentimento. Não é por um homem singular que ela anseia que se torne seu. Sua vida afetiva é vazia (e talvez, como a tia, esse fosse o maior problema de sua natureza celestial), mesmo assim, segundo as palavras de Therese sobre a “nobre amiga”, “sua beleza e sua bondade a fazem digna da adoração de todo o mundo” (VII 6, p. 449). Natalie é fria, Lothario (e Wilhelm) ardoroso, e por isto ela precisa do irmão: para sentir. Pense que tem em suas mãos a felicidade de minha vida. Minha existência está tão intimamente ligada e arraigada à existência de meu irmão que ele não pode sentir uma dor que eu não sinta, nem alegria que não me faça também feliz (VIII 4, p. 524).

Por causa dessa mesma incapacidade sensível própria às naturezas divinas, Friedrich diz que ela não deveria se introduzir nessa matéria, ela que, ele crê, só casará onde “esteja faltando uma noiva, e então, segundo tua bondade habitual, te dedicarás a ser suplemento de alguma existência”. Ela é boa, mas incapaz de amar. A tia já notara que Natalie, ao ajudar os necessitados, não deixava “transparecer nenhuma espécie de amor e, se posso dizer, nenhuma necessidade de apegar-se a um ser visível ou invisível, como eu havia manifestado tão vivamente em minha juventude” (VI, p. 406). Para ser ativa de acordo com suas inclinações Natalie não precisa acreditar em algo transcendente ou imanente, ela apenas é o que é, e para realizar atos de bondade, não é necessário amor. Em contraste, tanto a canonisa quanto Wilhelm, que tanto almejam concretizar o amor, creem em algo maior que os determina, indício claro de sua irrealização ativa, de sua esperança de que 266

algo separado de si se torne unido, como em Natalie (o tio já observara essa característica dela214). Seus traços sobre-humanos são delineados desde o primeiro encontro do herói com sua deusa: Wilhelm, que até ali estivera preso à lenitiva visão de seus olhos, ficou surpreso com a bela silhueta da jovem ao retirar o capote. Ela se aproximou e pouso-o delicadamente sobre ele. /.../ de súbito lhe pareceu ter ela a cabeça aureolada por raios de luz e que uma luz brilhante se espalhava pouco a pouco por toda sua figura. /.../ A santa desapareceu aos olhos do prostrado; ele perdeu os sentidos e, ao voltar a si, haviam desaparecido os cavaleiros e os coches, juntamente com a bela e seus acompanhantes (IV 6, p. 224).

Enfim, Wilhelm encontrou até mesmo uma santa para desposar, o destino acena-lhe com o paraíso, o etéreo, o inalcançável, o irreal, corporificados em um indivíduo. Mas não há milagre que faça sua vida social possibilitar que se unam, em sua individualidade, inclinação e disposição em uma atividade.

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Ele costumava gracejar com a sobrinha: “‘Pode-se considerar Natalie feliz no tocante à vida do corpo, já que sua natureza não exige nada além daquilo que o mundo deseja e necessita’” (VIII 5, p. 525). E na visão do tio, esse descompasso entre o que corpo almeja (os impulsos) e o que o mundo deseja (a razão) exige esforço e autodomínio para que se possa atingir uma “atividade pura e apropriada”.

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CAPÍTULO 4

Trajetória [Wilhelm] Pensava com grande rapidez numa sucessão de fatos, ou melhor, não pensava, mas deixava agir sobre sua alma aquilo que não podia afastar. Há momentos na vida em que os acontecimentos, semelhantes a lançadeiras aladas, vão e voltam diante de nós e, sem cessar, rematam uma trama que pouco mais pouco menos temos nós mesmos urdido e forjado (VIII 5, p. 530) Wilhelm, que segue uma existência incondicionada, vive na maior liberdade, condiciona-se sempre mais, exatamente porque age livremente e sem atenção (Caderno de notas de Goethe de 1788, viagem de Roma para Nurembergue, HA7, p. 616)

“O herói não tem plano, mas a peça é planejada” (IV 3, 214), dissera Wilhelm sobre Hamlet sem perceber que ele descrevia a tragicidade de sua própria trajetória. A teoria sobre o herói romanesco, enunciada na obra, diz que “todos os fatos coadunam-se em certa medida com os seus sentimentos” (V 7, p. 302) e o “romance pode permitir-se o livre jogo do acaso, desde que este sempre seja conduzido e governado pelos sentimentos da personagem” (V 7, p. 302-303). É necessário que o herói do romance seja passivo ou, pelo menos, não seja ativo em alto grau (V 7, p. 302)215. O posicionamento do herói como experienciador e reagente, e não – ou em menor medida – como agente e configurador, tornou-se um problema central na literatura

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Discussões em torno de se as concepções desse trecho representam ou não a teoria do romance e do drama do próprio Goethe são feitas por Felicitas Igel (2007, p. 639-643), Gerwin Marahrens, Mathias Mayer, entre outros. Como se mostra desde sua primeira recepção, não foi difícil identificar em Wilhelm Meister esse topos da teoria do romance e da crítica literária do século XIX, momento em que o herói do romance não pode mais ser apresentado como ativo e agente, seu agir esgota-se no “querer” impotente e no refletir indeciso e temeroso de ação (cf. Plett: 2002). Diferente do que se expõe no romance, Lukács assevera que: “A passividade do herói romanesco não é, porém, uma necessidade formal, indica a relação do herói com sua alma e com seu meio. Ele não tem de ser passivo, por isso toda passividade nele tem uma qualidade própria psicológica ou sociológica e determina um certo tipo nas possibilidades de estrutura do romance” (citado em Plett: 2002, p. 35). Sendo ou não uma necessidade formal, contudo, o complicador é que a passividade do herói “não é meramente consequência resignada, mas frequentemente decisão consciente” (Plett: 2002, p. 35).

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romanesca. Determinar em que medida e em que sentido o herói é passivo é portanto de suma importância para o sentido do romance. A passividade de Wilhelm é enfatizada pelo narrador, os fatos intercalam-se casualmente e não depende da vontade dele que tal articulação se dê a seu favor. Wilhelm concebe-se como totalmente passivo frente às circunstâncias e à determinação da própria vida, e dada a necessidade formal do romance, isso nem sempre significa que ele esteja sentimentalmente apartado dos acontecimentos: E não devo honrar o destino que, sem a minha intervenção, me conduziu até aqui, a satisfazer todos os meus desejos? Não se está cumprindo neste momento tudo quanto outrora elaborei e concebi, por pura obra do acaso e sem qualquer colaboração de minha parte? Que coisa mais estranha! \...\ Tudo que só me havia aparecido em sonhos antes daquela desafortunada noite que me afastou de Mariane, está agora diante de mim, a se oferecer a mim mesmo. Aqui quis refugiar-me e para cá fui cuidadosamente conduzido; quis buscar emprego com Serlo, e é ele mesmo quem me procura e me oferece condições que, na qualidade de principiante, jamais poderia esperar (IV 19, p. 268-269).

Os acontecimentos ocorrem de fato em parte de acordo com seus sentimentos (reforçando sua crença na predestinação), mas, em parte, em contraposição aos mesmos 216. A possibilidade de escolha colocada ao protagonista assume importância e coloca-se em oposição à necessidade formal de sua passividade. Assim, é preciso fazer algumas ressalvas à história de Wilhelm Meister para que a teoria sobre o romance expressa na obra seja adequada ao seu herói. Pois se Wilhelm, ao final, tem seus sentimentos satisfeitos pelo noivado com Natalie, justamente na atividade, tão ligada aos sentimentos do herói, sua realização não acontece. Isso não se dá, contudo, porque o herói age ou deixa de agir, ou porque é uma necessidade formal que ele não se realize ativamente, mas, fundamentalmente, porque tal realização não está inscrita como possibilidade concreta na realidade de Wilhelm. No entanto, percebe-se em Wilhelm que

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Do Livro II, Max Kommerel diz que “nada acontece sem que acontecesse em Wilhelm e por Wilhelm; mas tudo acontece por si mesmo e em sua própria lei” (apud Trunz, HA7, p. 723); mas podemos estender essa afirmação para todo o romance. A qualificação de “pobre cão”, dada por Goethe a seu herói, refere-se ao fato de Wilhelm estar, ao final, completamente perdido quanto à compreensão de tudo que se passa (Stadler: 1980, p. 369). Isso poderia acontecer se o sentido dos acontecimentos estivesse plenamente de acordo com os sentimentos de Wilhelm?

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um traço necessário à sua caracterização de passivo herói romanesco é a insegurança para agir, essa característica mescla-se, imperceptivelmente, à personalidade de nosso herói, justamente porque esse traço tem de ser fundado numa necessidade da individualidade e não simplesmente numa imposição composicional do romance. Se formos radicais na ideia de passividade217, concluímos que um herói predominantemente passivo é aquele que não tem domínio sobre o curso das circunstâncias, ele é apenas receptor, moldável (a Bildsamkeit, de Schiller218). Seu poder de ação é anulado: nada do que ele fizer será o suficiente para mover as circunstâncias – as quais se movem paralelamente aos, e em parte de acordo com, os sentimentos do herói, mesmo sem a mediação da ação. A ideia de passividade tem como pressuposto os mencionados antagonismos da modernidade, os sustentáculos da ideia de que o indivíduo não age, mas apenas reage, determinado por tudo que lhe é oposto, “exterior”. No romance vê-se a correção e os limites dessa concepção. A correção porque as circunstâncias, em última instância, são uma casualidade para o indivíduo singular, defrontam-se com ele, e o único comportamento possível dele para com elas é a aceitação (e nesse sentido pode ser também entendido o conceito de resignação em Goethe). Se a crença do herói nas circunstâncias, no destino e no acaso permite-lhe ser passivo, é a objetividade das circunstâncias que o obriga a ser passivo. A articulação entre a necessidade que Wilhelm tem de agir e a liberdade para isso relaciona-se diretamente, no romance e na vida, à configuração entre acasos. Isso não precisa significar necessariamente, porém, uma postura conservadora frente à realidade: a

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De acordo com Espinosa, os afetos são determinados pela alegria ou pela tristeza que causam no indivíduo; a primeira está associada à ação, a segunda, à passividade. (Talvez este seja o único ponto onde a teoria de Schings sobre o caráter depressivo de Wilhelm Meister poderia se fundamentar – embora o autor não faça essa relação). A passividade natural tem três causas: “a necessidade natural do apetite e do desejo de objetos para sua satisfação; a força das causas externas maior do que a nossa; e a vida imaginária, que nos dirige cegamente ao mundo, esperando encontrar satisfação no consumo e apropriação das imagens das coisas, dos outros e de nós mesmos. Por isso, na paixão, diz Espinosa, somos causa inadequada de nossos apetites e de nossos desejos, isto é, somos apenas parcialmente causa do que sentimos, fazemos ou desejamos, pois a causa mais forte e poderosa é a imagem das coisas, dos outros e de nós mesmos, portanto a exterioridade é mais forte e mais poderosa do que a interioridade causal corporal e psíquica” (Chauí: 1995, p. 65). 218 Em carta a Goethe de 28.11.1796, Schiller diz que Wilhelm representa a moldabilidade enquanto as energias em torno dele o comprimem. Conrady (1994) concorda, e explica: Wilhelm envolve-se nelas, sem de fato poder agir e reagir conscientemente, segundo um plano, e evitar erros de percurso.

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tomada para si de tais circunstâncias pode torná-lo cada vez menos apto a apenas ser um portador mecânico das determinações sociais. Entretanto, a impossibilidade de autodesdobramento de tendências inatas e o necessário redirecionamento das mesmas (para a atividade estritamente capitalista) acabam paulatinamente fundamentando a passividade do herói. A ascendência das circunstâncias sobre Wilhelm também se insinua quando, a partir do Livro II, no que compete à afirmação decidida a favor de sua atividade teatral, Wilhelm é sempre instado pelas circunstâncias (na medida em que elas o atraem, naturalmente). Por exemplo, os condes aparecem na estalagem em que ele estava, ele só os conhece por causa de Philine; ele vai para o castelo dos condes integrando a trupe não porque havia se decidido firmemente pelo teatro, ainda que também elencasse como razão colocar à prova seu talento. Ou, ainda, as circunstâncias que o fazem finalmente aceitar a proposta de Serlo para que ele integrasse sua companhia. Com esse comportamento de deixar-se levar, Wilhelm determina seus próprios rumos. Assim, seu futuro em relação ao teatro é incerto, seus planos de ação são parciais, provisórios, mas ele vai seguindo e deixando-se levar na direção que ele sente como necessária para si. Como ocorre de modo geral desde o começo da narrativa, Wilhelm posiciona-se de modo a responder às circunstâncias que de alguma forma se interpõem, favorecem ou influenciam suas inclinações individuais, mesmo que ele não aja em busca disso de antemão. Alguns momentos da trajetória de Meister demonstram que o que desencadeia ações que têm uma repercussão significativa em sua vida é sempre algo exterior derivado da passividade do herói em relação às situações por ele mesmo criadas. Assim, em diversos episódios da trajetória de Wilhelm não se pode falar de passividade sem a contrapartida da ação: Wilhelm sempre se vê em situações onde ele é levado a agir. E aí, a problemática da passividade é deslocada para dar lugar a outras questões: em que direção Wilhelm age? E por quê? “Acaso é inútil tudo aquilo que não nos põe dinheiro nos bolsos, que não nos proporciona um patrimônio imediato?” (I 2, p. 11), pergunta Wilhelm. Isso não é uma formulação positiva e geral que afirme suas disposições íntimas, ainda que nos indique a 272

direção das mesmas e confirme suas ações e atitudes (pois, a despeito do pai e de todos, ele frequenta o teatro) das quais muitas vezes ele não quer tomar consciência e nem refletir a respeito. Ele acredita na coerência do destino em relação a seus próprios sentimentos e, portanto, crê no melhor encadeamento das circunstâncias. Por isso, ele mais responde “aos sinais” do que conduz sua própria vida. Nosso herói encontra limitações bem concretas na realidade social, e as mais imediatas advêm de sua própria família; num primeiro momento, somente viajando, somente se desenraizando de seu meio seria possível levar a cabo seus desejos.

A tensão entre passividade e ação como jogo entre acaso e destino A sensibilidade de Wilhelm torna-o aberto para receber certos estímulos externos e, ao mesmo tempo, leva-o sucessivamente ao desencadeamento da ação. Por isso, de certo ângulo, a passividade é um traço inconsistente do herói. Se observarmos sua trajetória teatral que começa na infância, percebemos que Wilhelm agiu firmemente nesta direção que lhe apontara sua individualidade, sendo até mesmo um líder entre as crianças. O pai de Werner e o velho Meister decidiram que nosso herói faria uma viagem “para ver o que se passa no mundo” e ao mesmo tempo cuidar dos negócios das duas famílias. O papel de Wilhelm é ser um bom filho e cumprir a missão de que lhe encarregam. Mas o acaso trouxe, sem sua intervenção, a situação que ele esperava – encontrar uma “colocação” e buscar Mariane. Pouco antes da primeira viagem do herói, o seu pai e o pai de Werner combinam que Wilhelm irá buscar o cavalo em outro povoado, chamam Wilhelm para comunicá-lo que ele irá em dois dias: é sua chance de partir para sempre com Mariane. /.../ quem estaria mais feliz que ele ao ver em suas mãos os meios para realizar seu desígnio, cuja ocasião lhe fora apresentada sem que para tanto houvesse dela participado! /.../ e ele reconheceu aqui, em meio a esta coincidência de circunstâncias, o sinal do destino que o conduzia (I 11, p. 39).

Acompanhemos Wilhelm na estrada, é o começo de sua jornada. Wilhelm decide 273

ficar numa localidade para ver uma peça representada por funcionários de uma fábrica. Essa decisão do protagonista é um indício, porém positivo e concreto, do caminho que ele está predisposto a percorrer. Em outra parada, vemos novamente o protagonista passivo, na medida em que simplesmente responde às iniciativas de Philine e Laertes e, contudo, ao responder positivamente às abordagens de ambos, o herói age no sentido de travar conhecimento e se dispor a um convívio com aquelas pessoas, e com isso abre, portanto, certas possibilidades que seriam inexistentes caso ele negasse se relacionar com eles. Esta é uma atitude que se repete em outros momentos: Wilhelm tende a ceder. Nos primeiros livros, Wilhelm segue rumo ao mundo teatral; a cada passo que avança nessa direção, sente-se ao mesmo tempo inseguro e afobadamente contente. É o que revela o narrador quando ficamos sabendo da reação do herói quando Melina levou-o consigo para ver os objetos teatrais que estavam à venda. Este sentiu, ao lhe abrirem os cômodos, uma certa atração, que não confessou nem a si mesmo /.../ ele não podia defender-se da sensação de ter passado os momentos mais felizes de sua vida nas proximidades de bricabraques como aqueles (II 6, p.104).

Por isso, aquele era o momento exato para Melina pedir a Wilhelm que comprasse todos aqueles apetrechos, mas Melina não sabia disso. Todavia, seu interesse não demorou para conduzi-lo ao pedido de empréstimo do dinheiro a Wilhelm. Quando se conheceram naquela infortunada ocasião, Wilhelm elevou a profissão de ator a picos altíssimos, desprezando todas as razões eminentemente práticas que faziam Melina declinar da profissão. Agora, no entanto, que se via instado a ajudar o ator (na verdade, os atores, dado que Melina pretendia empregar todos os atores desempregados que ali casualmente haviam se reunido), Wilhelm, quase como um movimento de autodefesa, “se deu verdadeiramente conta de que não podia deter-se por mais tempo ali, pelo que se desculpou, passando a tomar as providências necessárias para prosseguir sua viagem” (II 6, p.105). Mas faltou ao herói, no entanto, resolução. Observava Mignon e refletia sobre ela e seus hábitos estranhos. Melina pede-lhe novamente o dinheiro para comprar os adereços de teatro, Wilhelm pensa de novo em partir... Ele queria escrever para a família, que já não recebia cartas suas há algum tempo; começou com uma carta a Werner relatando suas aventuras 274

sem se ater muito à verdade; acaba desistindo de aproveitar o correio do dia. É assim que Wilhelm, sem realmente se decidir, é lenta e irreversivelmente levado pelas circunstâncias. A passividade liga-se à falta de decisão e, portanto, à insegurança. Wilhelm ia enredando-se mais e mais naquelas circunstâncias, mas sem proferir positivamente nada a esse respeito; Melina dirige-lhe uma dura censura por ele haver dissipado um dinheiro que poderia ter sido empregado para comprar o meio de subsistência dos outros; ainda mais tendo em vista que Wilhelm havia alimentado esperanças quanto à compra dos acessórios teatrais, justamente por não ter se posicionado firmemente sobre o assunto, sobre o qual havia ficado de pensar. Essa postura, que faz inclusive com que interesseiros se aproveitem de sua falta de propósito, mereceu censuras não totalmente injustas, na frente de todos, por parte de Melina, como afirma o narrador; posto que, como explica o próprio Melina, Wilhelm não economizou, não partiu e não se decidiu a respeito do guarda-roupa. Vendo que, até certo ponto, Melina dizia a verdade, ainda que asperamente, Wilhelm foi atingido por suas palavras e então se viu obrigado a tomar uma resolução. “No incômodo estado de inquietação em que se encontrava, ocorreu-lhe procurar o ancião” (II 13, p. 129). Quando se viu oprimido pelas circunstâncias em que se deixou paulatinamente envolver, Wilhelm toma a providência de mergulhar nos sentimentos. Ainda que depois desse encontro, no caminho de volta, ele tivesse refletido bastante e tivesse se decidido firmemente a livrar-se de sua situação, quando Melina chegou com o notário, nosso herói paga, mesmo hesitante (pois agora não podia mais voltar atrás em sua promessa), os 300 táleres pelos apetrechos teatrais (II 14). Mas, apesar disso, continua decidido a partir sem mais demora. A amizade com Laertes, a inclinação por Philine e o interesse por Mignon não pareciam ser razões suficientes para ele ficar mais tempo num lugar e com “um grupo onde não podia alimentar sua inclinação favorita nem satisfazer seus desejos senão às escondidas, por assim dizer, e perseguir furtivamente seus velhos sonhos, sem propor-se um objetivo” (II 14, p.134). A solução era o afastamento. O fato de ter negociado com Melina e a amizade com o ancião fizeram com que ele ponderasse um pouco mais. Ainda assim, decide que deve e há de partir. Mas cai numa poltrona, “abalado”. 275

Mignon sofre um ataque, e ele promete ficar para sempre com ela. Uma vez emprestado o dinheiro, vê-se formalmente vinculado à trupe; ao mesmo tempo, Mignon e o harpista tornam-se uma necessidade para Wilhelm e vice-versa. A indecisão de Wilhelm quanto às suas reais motivações e suas decisões forçadas pelas circunstâncias nutrem sua insegurança e sua insatisfação. Assim prossegue ele, não querendo admitir certas coisas para continuar vivendo essas mesmas coisas. É exatamente o que acontece quando, depois de receber a carta de Werner (V 2), Wilhelm anuncia que irá aceitar a proposta de Serlo. Avançamos para o Livro III. É quando os condes passam pela estalagem em que Wilhelm e os demais estavam. O herói não está presente à chegada, mas viu chegar o estribeiro do conde, o qual foi recebido muito bem pelo estalajadeiro, que falou da boa sociedade que ali se encontrava. Conversando, olhavam para Wilhelm, que percebe e se vai dali. Philine diz à condessa que havia ainda um jovem muito bonito que poderia fazer o papel de galã. Ela vai buscar Wilhelm a pedido da condessa (III 2, p. 148). Despertada dessa maneira sua curiosidade pelo mundo rico e distinto, Wilhelm acompanha a trupe recém-formada. “Nesse meio tempo, Wilhelm se perguntava se deveria acompanhá-los ao castelo e, por mais de uma razão, achou conveniente segui-los” (III 2, p. 150). Nosso herói não apenas toma parte ativamente como também lidera as iniciativas no teatro apresentado aos nobres. Era chegada a hora de mostrar e confirmar seu talento. Quando o período no castelo termina, Wilhelm está confiante e cheio de planos para o grupo, ele é eleito o novo diretor. No caminho para a próxima parada, a trupe é assaltada. Eles haviam tomado um caminho perigoso; apesar do grupo ter sido insistentemente alertado, cede à persuasão do novo diretor: destoando de seu comportamento habitual, Wilhelm, alegre e entusiasmado com os recentes acontecimentos, convence os amigos a fazer o caminho mais curto, o arriscado. Foi uma decisão infeliz – eles foram assaltados. Despojados e feridos, quase todos culpavam Wilhelm, este, se no primeiro momento indignou-se, no momento seguinte culpou-se por tudo. Como se não bastasse, ele teve de passar um bom tempo prostrado, recuperando-se do grave ferimento. Assim, quando Wilhelm tomou claramente a iniciativa e agiu, levando consigo outras pessoas, sua atitude 276

foi um malfeito. Depois do perigoso ataque dos bandidos, Wilhelm, já com a recuperação do ferimento em estágio bem adiantado, pensava no que fazer. Parecia ter mudado de ideia quanto a confiar no destino e se deixar levar pelas circunstâncias, ele “não queria continuar vivendo sem planos, ao acaso, mas sim traçar seu caminho rumo ao futuro com passos bem marcados” (IV 11, p. 233). O narrador esclarece que Wilhelm, desorientado, buscava ao seu redor, primeiramente, o lado para onde esperava ir. De tal maneira insólita haviam-se enredado os fios de seu destino, que ele não esperava outra coisa senão ver desatados ou cortados esses estranhos nós. […] assomava pressuroso à janela, na esperança de que fosse alguém à sua procura, trazendo-lhe, ainda que por mera casualidade, notícias, certeza e alegria (IV 12, p. 236).

Imaginava histórias com Werner chegando de surpresa, Mariane, ou mesmo Melina, “trazendo-lhe notícias de seu destino”, ou “de preferência” o caçador, da parte “daquela beleza adorada”, a amazona. Mas, infelizmente, nada daquilo acontecia, e ele se viu obrigado a ficar sozinho consigo mesmo, revolvendo o passado, uma circunstância que quanto mais considerava e buscava explicar, mais adversa e insuportável se lhe apresentava (IV 12, p. 236-237).

Nosso herói quer agir, mas espera que algo maior sobrevenha e resolva a situação para ele – pois ele não sabe o que fazer. Com esse mesmo ânimo, um pouco mais tarde, Wilhelm não sabia se queria ou não entrar na companhia de Serlo. Ele não quis ver seus correspondentes comerciais nem pegar as cartas que os familiares provavelmente haviam lhe mandando, “temia ter de ouvir em pormenores suas preocupações e seus reproches”, ainda mais naquela tarde que prometia “um grande e puro prazer com a representação de uma nova peça” (IV 15). O herói quer continuar fruindo daquele prazer impossível e, para ele, quase proibido. Wilhelm aceita, por fim, a proposta de Serlo; toma iniciativas no âmbito teatral que resultam, não por sua inabilidade artística, mas social, em sua manipulação por Serlo – mais experiente, ardiloso e ambicioso. É a morte de Aurelie que o fará sair desse círculo de relações, que não nutria mais nenhum dos sonhos teatrais de Wilhelm, e o levará à Sociedade da Torre, onde, finalmente, decidir-se-á seu destino. 277

Wilhelm age instado pela Sociedade da Torre Quando se vê frente a frente com Lothario, Wilhelm não tem coragem de acusá-lo pelo abandono e morte de Aurelie. Atraído inicialmente pela espécie de homem que era Lothario, Wilhelm, com a boa condução da situação por aqueles que rodeavam Lothario e pela própria presença do mesmo, cede progressiva e rapidamente àquele agressivo ânimo inicial. Wilhelm não é apenas chamado a agir, mas, sobretudo, a agir com uma finalidade clara, direcionar acontecimentos. Essa interferência nem sempre franca e transparente na vida alheia é da natureza das interferências invisíveis da Torre sofridas por Wilhelm em sua própria vida; é ao mesmo tempo indicado que até mesmo as pessoas do círculo da Torre, como Lothario, têm (e tiveram), em certos momentos, suas vidas direcionadas por outros. Esse tipo de intromissão no âmbito pessoal pretende mostrar ainda não só que sociabilidade e individualidade dependem e frutificam mediante tais interações, isto é, por meio de interferências diretas e complexamente mediadas, mas que é ilusório pensar que a felicidade e a “completude” do indivíduo se fazem por uma rígida autodeterminação. No que concerne à Sociedade da Torre, existem critérios para que se realizem intervenções, não apenas quanto ao que deve ser feito, sempre prevalecendo o que vai de encontro ao indivíduo, interna e socialmente considerado, mas também sobre a necessidade de intervir sobre determinada situação. Assim, Lothario informa a Wilhelm que Mignon está mal, e que sua irmã pede que Wilhelm vá ver a criança (VIII 2). Entrega-lhe um bilhete que Wilhelm pensa ser escrito pela condessa. Lothario já havia providenciado e decidido tudo: Wilhelm deveria partir na manhã seguinte e levar Felix, para que as crianças se distraíssem. Com a insistência, Wilhelm vai, mesmo atormentado com a ideia de encontrar a condessa (pois ele ainda não sabia que Natalie e a condessa eram irmãs). É quando o herói conhece sua bela amazona. – Será possível? – exclamou. – Será verdade? Que devo fazer? Ficar, aguardar e explicar? Ou sair correndo? Correr e arrojar-me a uma solução? Estás a caminho dela, e podes hesitar? Esta noite deves vê-la, e queres por vontade própria encerrar-te numa prisão? É sua letra, sim, é ela! Esta mão te chama, seu coche

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está atrelado para te conduzir a ela; está, pois, solucionado o enigma: Lothario tem duas irmãs (VIII 2, p. 500).

A esta altura, Wilhelm “aguardava com ansiedade para ver como se reatariam e em parte se romperiam tantos fios, e como sua própria situação determinaria seu futuro” (VIII 2, p. 496); mas ele hesita diante da realização do almejado sonho de rever a sua amazona. Passividade e indecisão nos momentos-chave reiteram-se recorrentemente na trajetória do herói. No dia seguinte, Therese envia uma carta dizendo que Natalie mandasse sem demora para ela seu noivo, Wilhelm, pois havia planos para separá-los. Wilhelm pergunta o que fazer; Natalie diz que é a primeira vez que seu coração e sua razão estão em silêncio, ela não sabe o que fazer e nem o que aconselhar. – Seria possível, exclamou impetuosamente Wilhelm – que o próprio Lothario ignorasse tudo isso, ou, supondo que soubesse, que fosse como nós um joguete de planos secretos? Teria Jarno, ao ler nossa carta, improvisado toda esta história fantasiosa? Ou nos teria dito algo diferente, se não nos precipitássemos daquela maneira? Que plano terá imaginado Therese? Sim, não se pode negar que Lothario esteja rodeado de influências e ligações secretas; eu mesmo pude presenciar ali muita atividade, a preocupação em certo sentido com os atos e destinos de determinadas pessoas e o modo como pretendem dirigi-los. Nada compreendo desses mistérios; mas esta mais recente intenção de me arrebatarem Therese, vejo-a com muita clareza. De um lado pintam-me a felicidade possível de Lothario, talvez só dissimuladamente; de outro, vejo minha amada, minha respeitada noiva, que me chama para junto de seu coração. Que devo fazer? Que devo não fazer? VIII 4, p. 522)

Wilhelm já era indeciso e hesitante, agora, enredado em planos secretos de uma organização que dirige e controla “atos e destinos”, a passividade surge como paralisia diante do mundo. Jarno explica que nesses casos é melhor a espera e o silêncio do que muitas palavras. – Eu, ao contrário, pensava – disse Wilhelm –, que justamente este caso era capaz da mais serena e mais pura decisão. Censuram-me com muita frequência por minha vacilação e incerteza; por que agora, que estou decidido, querem cometer comigo a mesma falta que em mim reprovaram? Empregará o mundo tanto esforço em nos educar, só para nos fazer sentir que ele não quer educar-se? Sim, conceda-me logo o alegre sentimento de estar livre de um mal-entendido no qual incorri com os mais puros propósitos do mundo (VIII 6, pp. 545-546).

Todos parecem querer determinar o seu destino e suas ações – fica evidente para o 279

herói que ele é levado a agir por motivações estranhas às suas disposições e inclinações, é notável (na proposta de casamento a Therese, no assalto) que onde sua capacidade de autodeterminação se mostra possível, ela é continuamente desfeita, quando não deliberadamente impedida (e exatamente por ter essa sensação que Wilhelm escreve em segredo a Therese pedindo sua mão em casamento). Na verdade, excetuando Melina, a vacilação e a incerteza são características que não foram apontadas por ninguém ao longo da narração da trajetória de nosso herói. É Wilhelm que se sente assim. Em outro momento, assim se expressa: – Outrora, quando vivia despreocupadamente, ou melhor, desatinadamente, sem planos nem objetivos, recebiam-me de braços abertos, chegando mesmo a me importunar, amizade, amor, inclinação e confiança; agora, quando o assunto se torna sério, o destino parece adotar comigo um rumo diferente. A decisão de oferecer a Therese minha mão é talvez a primeira que tenha partido inteiramente de mim. Com ponderação fiz meu plano, minha razão manteve-se plenamente em harmonia com ele e, com o assentimento dessa excelente jovem, todas as minhas esperanças foram satisfeitas. Agora, a mais estranha sina desencoraja minha mão estendida. Therese me estende a sua de longe, como num sonho, não posso pegá-la, e a bela imagem me abandona para sempre. Adeus, pois, bela imagem! Adeus, imagens da mais rica felicidade que em torno dela se reúnem!

Quando ele decidiu e agiu por si mesmo, as circunstâncias (identificadas por Wilhelm como destino) obrigaram-no a renunciar. A percepção de Wilhelm é a de que até a decisão sobre Therese ele não havia nunca se posicionado e tomado a iniciativa quanto aos rumos de sua própria vida. Concordamos com o ponto de vista do herói na medida em que, realmente, em outros momentos importantes de sua trajetória (manter-se no convívio com os atores, montar e ingressar em companhias de teatro, seus fugazes “casos” de amor) foram decididos pela inércia de Wilhelm, foram provocados por terceiros. Passaram-se ainda vários dias sem que Wilhelm ouvisse nada sobre o assunto e seus amigos mantinham-se aparentemente os mesmos, sempre com uma conversa geral e indiferente. Quando Wilhelm é finalmente esclarecido sobre as artimanhas de alguns acasos que tantas vezes agiram em sua vida, quando, enfim, o teatro já estava fora de cogitação e ele é tornado livre para decidir seu rumo, ele, talvez não tão ironicamente assim, não consegue sair do lugar, simplesmente não está preparado. É certo que muitas coisas do que ouvira sobre sua vida e, sobretudo, vivera, ainda não haviam sido assimiladas por ele que, 280

não tendo claras suas experiências, não era capaz de planejar os próximos passos e prosseguir. Há, no entanto, no final do romance, certa pressa para a precipitação dos acontecimentos que contrasta ainda mais fortemente com as dificuldades de ação do herói, ressaltando com isso certa morosidade sua, que então começa a ver as vantagens de perpetuar um sólido patrimônio. Assim, no último livro, com Wilhelm ainda sem destino definido, começam a surgir propostas para determiná-lo. Jarno chama Wilhelm para viajar com ele para a América; o abade propõe que Wilhelm viaje com o marquês. A precipitação de uma atitude por parte de Wilhelm por meio de cobrança e provocação faz com que ele se ponha em ação. Não, porém, sem irritação, impaciência e uma espécie de raiva contida. O narrador participa-nos que Wilhelm, em seu íntimo, estava tão indignado com essa nova proposta que mal a conseguia dissimular. Via claramente naquilo um arranjo para se livrarem dele o mais depressa possível, e, o que era ainda pior, faziam-no ver tudo às claras, sem nenhuma consideração. Ademais, a suspeita que Lydie nele despertara, tudo o que ele mesmo havia descoberto, ganhou novamente vida em sua alma, e a maneira natural com que Jarno lhe expusera tudo parecia-lhe apenas uma apresentação artificial (VIII 7, p. 550).

Wilhelm não consegue compreender os desígnios da Torre para ele. Ao invés de achar que eles estavam tentando ajudá-lo, mantendo-o entre eles, inclusive, ele percebe que apenas querem excluí-lo. Ele vê, no entanto, que o melhor a fazer é controlar-se. Contendose, ele responde que a proposta do abade sobre o marquês merecia uma “reflexão madura” (VIII 7, p. 550). O abade diz que é preciso pressa. Wilhelm retruca que naquele instante não estava preparado, que se esperasse o marquês chegar para que ele então pudesse se decidir, e que, de todo modo, deveria poder levar Felix consigo. O abade diz que isso provavelmente não seria possível. Indignado, o herói diz não saber por que deveria deixar que qualquer pessoa impusesse condições a ele e porque tinha ele de conhecer a própria pátria com um italiano. O abade, com uma “serenidade imponente”, assevera que um jovem “tem sempre motivo para se juntar a alguém” (VIII 7, p. 550). Percebendo que seria incapaz de continuar emocionalmente equilibrado, Wilhelm afirma, para encerrar o assunto, não de maneira grosseira, mas mostrando o exaurimento de suas forças: 281

– Que me concedam apenas algum tempo para pensar, e suponho que bem depressa decidirei se tenho motivo para continuar a me juntar a alguém ou se, ao contrário, o coração e a astúcia não me ordenam de modo irresistível desatar-me de tantos laços que me ameaçam com uma prisão eterna e miserável (VIII 7, p. 550).

Voltando-se para Felix, clama para que ele ocupe um vazio ainda maior que o de Mariane e de Therese. “Ocupa meu coração, ocupa meu espírito com tua beleza, tua amabilidade, tua ânsia de saber e tuas aptidões!” (VIII 7, p. 551). Arrumou melhor o brinquedo de Felix, ele perde o interesse, Wilhelm vê nesse gesto o ser humano por excelência. “– Vem, meu filho! Vem, meu irmão! Vamos sair sem destino pelo mundo a brincar, enquanto podemos!” (VIII 7, p. 552). Agora esse era seu firme propósito, afastar-se e correr o mundo com seu menino. Escreveu a Werner e pediu-lhe dinheiro. “Por mais contrariado que estivesse com seus outros amigos, suas relações com Natalie permaneceram incólumes” (VIII 7, p. 552). Contou a ela suas intenções de partir, ela aprovou, ele ficou um pouco magoado com sua indiferença – ele esperava por aquela força exterior que o “obrigasse” a ficar. Chega a resposta de Werner, que se decepciona por não ser ainda daquela vez que Wilhelm tomaria juízo, mas o perdoa; afinal, por causa de Wilhelm tinham boas relações naquela região. Nestes momentos derradeiros, a passividade de Wilhelm gera a imobilidade dos outros personagens que gravitam em torno da decisão dele. Por fim, o resultado do tempo de espera imposto pelos amigos de Lothario à questão do casamento com Therese foi necessário para desenvolver o amor de Wilhelm por Natalie – e provavelmente vice-versa. As propostas dos amigos vêm anunciar que o amor já amadurecera e somente Wilhelm está atando o desenlace de todos os destinos. No final, mostra-se explicitamente verdadeiro que “o romance deve evoluir lentamente, e os sentimentos do protagonista, seja da maneira que for, devem retardar o avanço do conjunto até seu desenvolvimento” (V 7, p. 302). Friedrich é o único que pode acelerar, com certa leveza, os acontecimentos, isto é, forçar que Wilhelm finalmente aja, pois até o último instante – dias se passam – ele não conversa com Lothario sobre a proposta a Therese e nem é capaz por si mesmo de encontrar um caminho que o conduza a Natalie. 282

Wilhelm dirige-se então ao abade e diz que deixa a critério dele qualquer decisão a seu respeito, que fará o que ele considerar justo, desde que possa levar Felix. Wilhelm repete o que dissera um pouco antes (em VIII 6, p. 545): – Entrego-me totalmente a meus amigos e à sua orientação; é inútil empenhar-se neste mundo em agir segundo a própria vontade. Tenho de abandonar o que desejei reter, e um benefício imerecido se impõe a mim (VIII 10, p. 573).

Quanto mais avassaladora a força com que lhe assaltavam seus sentimentos e emoções, maior a inação de nosso herói. Até que seu corpo, por fim, reagiu. Wilhelm estava abalado, transtornado pelas paixões mais violentas; os inesperados e terríveis ataques desconcertavam-no tão a fundo, que ele resistia a uma paixão que de seu coração se apoderava com violência. Haviam-lhe devolvido Felix e, não obstante, era como tudo ainda lhe faltasse; ali estavam as cartas de crédito de Werner, não necessitava de mais nada para sua viagem, exceto a coragem de partir. Tudo o pressionava para essa viagem. Podia supor que Lothario e Therese esperavam apenas que estivesse distante para casar-se. Contrário a seu costume, Jarno andava calado, e poder-se-ia dizer que havia perdido um pouco de sua alegria habitual. Felizmente, o médico veio livrar de certo modo nosso amigo do embaraço, declarando-o doente e receitando-lhe medicamentos (VIII 10, p. 582).

Como o filho do rei, Wilhelm adoece por amor. A singela referência é conhecida por todos os presentes, que riem quando Friedrich remete espirituosamente à história antiga, mas ficam também embaraçados e disfarçam como podem. Natalie, ruborizada, sai discretamente da sala na primeira oportunidade. Silêncio. Friedrich canta que maravilhas irão ocorrer antes do próximo amanhecer. Therese segue Natalie. Friedrich sai. Lothario esteve todo o tempo parado diante da janela olhando, sem se mover, o jardim. Wilhelm se encontrava na mais terrível situação. Mesmo quando se viu a sós com o amigo, permaneceu um instante em silêncio; repassou com um rápido olhar sua história e por fim se deteve, horrorizado, em seu estado presente, até que, levantando-se de um salto, exclamou: – Se sou culpado pelo que se passa, pelo que nos acontece, castigue-me então! Prive-me de sua amizade, aumentando ainda mais meus sofrimentos; deixe-me partir sem consolo por este vasto mundo, no qual devia ter me perdido há tempo. Mas se vê em mim a vítima de um cruel e fortuito enredo [zufällige Verwicklung], do qual me via incapaz de me desembaraçar, assegure-me de seu afeto, de sua amizade, enquanto parto para uma viagem que não posso mais adiar. Haverá um tempo em que poderei dizer o que ocorreu comigo nestes dias. Talvez já esteja sofrendo agora mesmo este castigo, porque não me desabafei mais cedo com o senhor, porque hesitei em me mostrar por inteiro; teria, estou certo, contado com sua ajuda, com seu auxílio no momento propício. Contudo,

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uma vez mais abri os olhos demasiadamente tarde e, como sempre, em vão. Como mereci as censuras de Jarno! Como acreditei havê-las compreendido! Como esperava aproveitar-me delas para começar uma nova vida! Mas, podia? Devia? Em vão acusamos, homens que somos, a nós mesmos, em vão acusamos o destino! Miseráveis que somos e à miséria estamos destinados! E não é de todo indiferente que, por culpa nossa ou por influência superior, pelo acaso, virtude ou vício, sabedoria ou demência, nos precipitemos na ruína? Adeus! Não ficarei nem mais um minuto nesta casa onde, contra meu direito, violei terrivelmente o direito de hospitalidade. A indiscrição de seu irmão é imperdoável, impele minha infelicidade ao mais alto grau e me leva ao desespero (VIII 10, p. 583-584).

Lothario diz então a Wilhelm, de modo amável, que o casamento do herói com Natalie é a condição de Therese para que esta dê sua mão a Lothario. (Lothario e Therese falaram com o abade, e os três passaram somente a observá-los, prometendo não intervir de modo algum. Friedrich, que irritou tanto Wilhelm por explicitar uma situação, “não fez senão derrubar o fruto já maduro”.) Assim, para que a aliança entre eles se realize, Wilhelm precisa agir: é necessário que ratifique o que a “natureza” determinou. É emblemático da passividade do herói que até o último instante ele não profira nenhuma palavra e não se dirija ao encontro da amada. Até o último instante, quem age para precipitar os acontecimentos na vida de Wilhelm (mesmo que eles estivessem prestes a acontecer) é um terceiro. As últimas falas do romance, que são sobre Wilhelm, cabem a Friedrich.

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Destino É fora de questão que os aparentes resultados pronunciados por mim são muito mais limitados que o conteúdo da obra, e eu pareço com alguém que, depois colocar muitos e grandes números um ao lado do outro, fez, por fim, deliberadamente mesmo, erros de adição, para, sabe Deus por qual capricho, reduzir a última soma (Goethe a Schiller, 9.7.1796). Um escritor de romance faz um tipo de final rimado [bouts rimé] (Novalis, HA7, p. 682).

O final de um romance é um pouco forçado, isso é uma necessidade da épica, que tem de colocar, de algum modo, um ponto final sempre arbitrário para a rica e variada vida que foi representada em que tantos encaminhamentos eram possíveis 219. O próprio autor corrobora essa ideia quando se expressa à época, em carta a Schiller de 25.6.1795, ao enviar-lhe o oitavo e último livro do romance: Alguns lugares ainda precisam de mais exposição, alguns a exigem, e eu, porém, mal sei o que é para fazer; pois as imposições que esse livro me faz são infinitas e não podem ser – pela natureza mesma da coisa – inteiramente satisfeitas, embora tudo até certo ponto tenha de ser resolvido (HA7, p. 628).

O encontro com a Torre e a promessa de casamento com Natalie pertencem a esse tipo de acontecimento arbitrário que precipita o fim da história do herói 220. Mas essa observação deixa de valer quando se trata do destino da atividade de Wilhelm, cujo fim apresenta-se, acima de tudo, como necessário. De acordo com suas disposições, inclinações e talentos, o teatro era o destino de Wilhelm, e assim ele reconhece-o desde criança. Pouco esforço deliberativo do herói foi preciso para que os acasos convergissem e Wilhelm, de acordo com sua vontade, fosse

219

Em 12.07.1796, Goethe escreve a Schiller que eles tinham de conversar pessoalmente sobre o romance: “a questão principal será: onde se encerram os anos de aprendizado /.../ e em que medida se tem a intenção de fazer os personagens atuarem novamente no futuro. Sua carta de hoje apontou-me, com efeito, uma continuação da obra, para a qual eu bem tenho ideia e prazer...” (HA7, p. 648). 220 O final feliz com casamentos (ainda que uma festa de casamento não seja descrita, temos noivados), após confusões aparentemente insolúveis, condiz também com o modelo histórico cortês (Igel: 2007). Para Witte (1989, p. 123), o desfecho com casamentos de Os anos de aprendizado é de comédia.

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ativo no teatro. Por esse motivo, ele tem razão em ligar o caprichoso enredar de acontecimentos de sua vida à força do destino. O destino de Wilhelm, o fechamento de sua trajetória, começa a ser delineado no Livro VII. O teatro é reconhecido como erro; o passado, como um vazio. Como a trajetória do herói demonstra para o leitor e para o protagonista, a sorte que acompanhou Wilhelm (e ela sem dúvida foi decisiva para que ele conhecesse a corte e encontrasse a melhor posição profissional para um ator de sua época, com Serlo) não foi suficiente para seu sucesso. Destino e acaso acabam desviando Wilhelm do teatro. Para o herói, essas duas forças são insondáveis, incontroláveis, desconhecidas, fazem dele marionete: o necessário e o arbitrário se entrelaçam e já não é possível reconhecer um e outro.

O ritual de aprendizado e suas consequências No Livro VII, Wilhelm passa a conhecer pessoalmente algumas daquelas pessoas da sociedade que o acompanhava em segredo e, coincidentemente, sobre as quais havia lido na narrativa da canonisa. Uma noite, Jarno anuncia que era hora de confiar a Wilhelm os segredos sobre a Sociedade da Torre, e assim enuncia ele: é bom que o homem que pela primeira vez entra no mundo faça uma grande ideia de si próprio, pense em obter-se muitas vantagens e procure fazer todo o possível; mas quando sua formação [Bildung] atinge um certo grau, é vantajoso que aprenda a se perder numa grande massa, aprenda a viver para os outros e a se esquecer de si mesmo numa atividade apropriada ao dever. Só então aprende a conhecer a si mesmo, pois a ação [Handeln] que verdadeiramente nos compara aos outros (VII 9, p. 479).

Considera-se que Wilhelm obteve uma formação (mesmo não tendo sido adequada); e se antes (II 9) o representante da Torre falava em “trazer de volta a si mesmo”, agora ele fala em “se esquecer de si mesmo”, em agir segundo o dever. Em outras palavras, Wilhelm já teve a oportunidade de viver a seu modo, nutrido pela “grande ideia” que fazia de si como ator. Jarno retorna àquela concepção do “talento extraordinário” aventada pelo 286

eclesiástico e, como ele, defende acima de tudo a atividade socialmente útil. É chegada a hora de Wilhelm “se esquecer de si mesmo” e se adaptar a uma atividade voltada ao bem comum, esse é o dever do herói. Jarno despreza o fato de que Wilhelm manteve-se intensamente ativo no teatro por um longo tempo e que ele concebia uma finalidade maior, a bem dizer social (mesmo que de maneira vaga e ainda que ela fosse ficando cada vez mais longínqua de sua prática) dessa sua inclinação (a construção do teatro nacional, “tocar o coração dos homens” etc.).

É por meio de um ritual bastante teatral 221 – e severo – que nosso herói recebe, oralmente e por escrito, sistematizada, sua lição. Antes do nascer do sol, Wilhelm é conduzido por Jarno através de alas conhecidas e desconhecidas do castelo, até pararem diante de uma grande e antiga porta guarnecida fortemente de ferro, Jarno bateu, ela se abriu, ele empurra Wilhelm para dentro. Wilhelm entra no salão, senta-se, como uma voz lhe ordenara, no único assento disponível. Os primeiros raios do sol da manhã saudavam-no amigavelmente, mas como a “poltrona estava presa ao chão \...\ não lhe restou outra coisa senão manter a mão diante dos olhos” (VII 9, p. 480). É o momento do encontro de Wilhelm consigo mesmo, mas pelo olhar de terceiros. O primeiro homem que aparece é o do encontro de I 17, ele lembra da coleção do avô e do quadro preferido, e termina dizendo: “Talvez possamos chegar agora a um acordo sobre destino e caráter” (VII 9, p. 480). Antes que Wilhelm pudesse responder-lhe, ele desaparece. Wilhelm acha estranho perguntarem, naquele momento, pela coleção do avô, e indaga: Será que os acontecimentos fortuitos guardam relação uns com os outros? E aquilo que chamamos destino, haverá de ser simplesmente o acaso? (VII 9, p. 480)

Wilhelm questiona-se com perguntas contraditórias: se o acaso que rege a fortuidade dos acontecimentos tem um sentido previamente dado, ele aproxima-se do que Wilhelm

221

Toda a passagem do ritual pode ser vista como uma encenação, algo tão caro a Wilhelm (cf. Kallweit: 1988, p. 403).

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entende por destino, porém, também é possível, a posteriori, encontrar um sentido nos acasos e nomeá-lo igualmente de destino. Então, os resultados do encadeamento dos acontecimentos sempre podem ser vistos como obra do destino222. A cortina abre-se novamente e Wilhelm reconhece o pároco rural de II 9, provavelmente o irmão gêmeo do abade, que lhe comunica: Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sorva de taças repletas seu erro. Quem só saboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo, alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por completo, deve reconhecê-lo como erro, conquanto não seja demente (VII 9, p. 480).

A cortina se fecha e Wilhelm tem algum tempo para refletir. Ele passa a procurar o grande erro que poderia ter cometido em sua vida. De que outro erro esse homem poderá estar falando’, disse a si mesmo, ‘senão daquele que me perseguiu ao longo de toda minha vida, que me fazia buscar formação [Bildung] ali onde não havia nenhuma e imaginar que podia adquirir um talento para o qual não tinha a menor disposição? (VII 9, p. 480).

O reconhecimento de que ele não poderia adquirir formação no teatro resulta na negação de sua disposição, uma vez que, de fato, ele não pôde realizá-la nesse meio. A esta altura, sabemos que Wilhelm já vê o teatro como passado, não fica completamente claro, porém, o motivo. Insinua-se sua falta de talento para atuar, mas também o modo como as

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Sobre o acaso, comenta o famoso pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi, muito estimado por Herder (citado em Stahl, p.174): “O crescimento do homem e de suas forças é coisa de Deus. Acontece segundo leis divinas eternas. A formação do homem é casual e dependente de circunstâncias que mudam, dentro disso se encontra o homem”; ou ainda: “o homem é formado por meio do acaso, por meio do casual que se encontra em sua posição, em suas circunstâncias e em suas relações”. Schiller percebe o jogo entre acasos e coincidências nos detalhes: “tais descobertas /.../ unem tudo /.../ que parece ser inteiramente desunido” (2.7.1796, Schiller a Goethe, p. 632). Ao referir-se ao episódio em que Felix toma da garrafa ao invés do copo e por causa dessa travessura não se envenena, Schiller diz que há muitas dessas ideias no romance, ele elogia o fato de que “elas ligam de um modo muito simples e natural [naturgemäß] o indiferente ao significativo, e inversamente, e fundem a necessidade com o acaso” (3.7.1796, HA7, p. 636). “A vida comum é repleta de acasos semelhantes. Eles perfazem um jogo que, como todo jogo, traz surpresa e decepção” (Novalis, p. 681). “Os acontecimentos são tão belamente motivados e tomam no entanto um curso tão rápido e inesperado para o leitor, os caracteres sustentam-se maravilhosamente /.../” (Humboldt, p. 656). Mas o acaso é também uma maneira de denominar a legalidade insondável das forças sociais na vida do homem; por essa perspectiva é possível uma aproximação da percepção goethiana de que a história era uma ficção dos historiadores, pois só o que havia em todos os tempos eram indivíduos. Ora, se não há história, não se percebe a legalidade das relações sociais entre os indivíduos e tudo que na verdade daí advém parece então mera obra do acaso.

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relações práticas se desenrolavam no âmbito teatral, desde a administração até a própria consecução de uma peça, tudo permeado do início ao fim por relações difíceis conduzidas por pessoas não comprometidas pela arte; Wilhelm não fora capaz de enobrecer tudo isso. Todavia, que Wilhelm chegue a dizer que não tinha “a menor disposição” é incongruente com toda sua trajetória, pois ele sempre mostrou, correspondendo à sua inclinação, disposição e talento para o teatro. Duas explicações são possíveis para que Wilhelm constate de modo diferente neste instante: como dissemos acima, o fato de a experiência teatral ter sido mal-sucedida; mas, também, a Torre agindo sobre o herói, convencendo-o de que seu caminho é outro – e para tanto foi preciso pouco empenho, pois Wilhelm, além de ter visto seu caminho no teatro encerrado, encontrou indivíduos cuja constituição ele almejava, já há tempos, para si mesmo. Mas, por que a Torre quer convencer Wilhelm? Essa ideia de formação advém da Torre e foi assimilada por Wilhelm. Tal ideia jamais poderia ser assimilada por Werner, com ele, a Torre apenas faz negócios – enquanto Wilhelm é incorporado à classe nobre. Novamente, abre-se a cortina, um oficial (que Wilhelm reconhece como aquele que o abraçou no parque do conde) aparece dizendo: “– Aprenda a conhecer os homens nos quais se pode confiar!” A ingenuidade de Wilhelm é um traço que ele deve superar – no entanto, pode Wilhelm confiar na Sociedade da Torre? Sem se dar conta de que ele acabara de ser esclarecido sobre a pedagogia do erro, ele interroga, desconfiado: - Se tantos homens se interessavam por ti, se conheciam o curso de tua vida e sabiam o que te era conveniente fazer, por que não te guiaram de um modo mais rigoroso, mais sério? Por que favoreciam teus jogos, ao invés de te afastarem deles? (VII 9, p. 481)

Uma voz ordena: “- Não discutas conosco!”, e prossegue: - “Estás salvo e a caminho de tua meta. Não te arrependerás de nenhuma de tuas loucuras, tampouco sentirás falta delas; não pode haver para um homem destino mais venturoso” (VII 9, p. 481). Mas, como a Torre poderia saber que Wilhelm estava “a caminho de sua meta?”, e qual seria essa meta? De repente, aparece uma imagem do velho rei da Dinamarca, o espectro de Hamlet, dizendo: me despeço consolado, pois meus desejos por ti se cumpriram, mais do que me

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foi dado compreendê-los. Regiões íngremes só podem ser escaladas por atalhos; na planície, caminhos retos conduzem de um lugar a outro. Adeus, e pensa em mim quando estiveres desfrutando o que te preparei (VII 9, p. 481).

Wilhelm estava “profundamente emocionado” e confuso, sabia não ser a voz de seu pai, mas acreditava tê-la ouvido. De fato, agora compreendemos a meta “de Wilhelm”: ele entrará para a atividade dos negócios, cumpre-se o desejo de seu pai. E não tão ironicamente assim, já que o membro da Torre que representa o pai do herói diz que tudo isso já havia sido preparado por ele(s), quando diz: “Adeus, e pensa em mim quando estiveres desfrutando o que te preparei” (VII 9, p. 481). Por fim, aparece o abade e apresenta a Wilhelm sua carta de aprendizado; ele a lê. Posteriormente (VIII 5, p. 533), antes de comentar algumas passagens, intercalando observações e histórias, Jarno dirá que a primeira parte do pergaminho refere-se à formação [Ausbildung] do senso artístico, a outra trata da vida. Algumas das reflexões gerais que ela contém são: “A imitação nos é inata, mas o que se deve imitar não é fácil de reconhecer”; “Atraem-nos a altura, não os degraus”; “Só uma parte da arte pode ser ensinada, e o artista a necessita por inteiro. Quem a conhece pela metade, engana-se sempre e fala muito; quem a possui por inteiro, só pode agir, fala pouco ou tardiamente”; “O melhor não se manifesta pelas palavras. O espírito, pelo qual agimos, é o que há de mais elevado. Só o espírito compreende e representa a ação”; “O ensinamento do verdadeiro artista abre o espírito, pois onde faltam as palavras, fala a ação. O verdadeiro discípulo aprende a desenvolver do conhecido o desconhecido e aproxima-se do mestre” (VII 9, p. 482). Essas passagens explicitam uma concepção do artista que nasce artista e precisa agir, mas, do ponto de vista da Sociedade da Torre, somente se a formação a ele proporcionada permitir. A de Wilhelm foi inadequada, por isso, ainda que ele tivesse nascido artista, ele jamais haveria de se tornar verdadeiramente um 223. Wilhelm supunha as

223

Para os que compartilham dessa concepção, a leitura que Wilhelm faz de seu anos de aprendizado tem um caráter de anagnórise (Schings: 1985, p. 43).

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altas regiões da arte sem considerar o esforço para alcançá-las, pensou nos fins sem pensar nos meios. Wilhelm não foi poeta, e quanto à sua maior aspiração, os palcos, o verdadeiro artista (por exemplo, Shakespeare) não abriu seu espírito para fazer brotar o desconhecido do conhecido. Com a intenção de fundamentar para Wilhelm os motivos de seu fracasso no teatro, em vez de constatar na realidade teatral a impossibilidade de efetivar uma eventual disposição do herói para o teatro, a Torre acusa Wilhelm de erro, ele não soube ver que não era um artista, seja por falta de formação ou de real disposição, e uma das provas disso é: ele mais falou que agiu. Refletir e conversar sobre teatro é um dos principais comportamentos de Wilhelm, e é a maneira – mostrada ao leitor – pela qual o herói externa o conteúdo de sua inclinação (já que somente em alguns momentos nos são mostrados os resultados artísticos da atividade do protagonista). O abade ordena que Wilhelm pare de ler e veja os armários. Nele estão os anos de aprendizado de Lothario, Jarno, dele próprio e de muitos outros nomes desconhecidos. Os anos de aprendizado têm um componente social geracional, é esse conhecimento que infunde propriamente a “sabedoria” dos postulados. Não são mencionados os anos de aprendizado de Natalie, embora ela tenha sido objeto dos experimentos pedagógicos da Torre. E não se menciona porque Natalie, como mulher, limita-se ao âmbito doméstico, sua função, por mais ampla que seja em sua comunidade, é socialmente restrita, exatamente proporcional à amplitude de sua atividade. Em suma, Wilhelm não pode seguir sua inclinação. Assim como Lothario não pôde seguir sua inclinação e disposição guerreiras. Suas habilidades só serão utilizadas se se adequarem aos tempos, e só se sabe o que o tempo exige do indivíduo se olharmos para as gerações de indivíduos, isto é, para a história, presente nos rolos de aprendizado. É hora de Lothario fazer a transição da propriedade feudal para a produção capitalista e Wilhelm unir os negócios burgueses à aristocracia. Assim sendo, a teoria sobre a necessária formação precoce para o correto direcionamento das disposições, ou mesmo o julgamento de Jarno, de que Wilhelm não tinha talento (“penso que o senhor deve abandonar de vez o teatro, para o qual não possui nenhum talento”, VII 7, p. 458), tudo isso, verdadeiro ou falso, é secundário e não revela o real motivo do fracasso da efetivação das inclinações de alguns homens dessa sociedade 291

(Lothario e Wilhelm, precisamente). O teatro é mostrado, durante todo o livro, como uma ocupação inferior – ora, se Wilhelm tivesse tido disposição, formação e talento para os palcos, ainda assim ele fracassaria, pois o teatro era inviável para alguém com tão nobres sentimentos. Wilhelm estava entretanto suficientemente preparado, as circunstâncias já lhe haviam falado de maneira viva, seus amigos tampouco o haviam poupado \...\ todas as circunstâncias lhe voltavam à memória, graças àquele manuscrito (VIII 1, p. 495).

Ali o herói “encontrou a história circunstanciada de sua vida em grandes e acentuados traços \...\ afetuosas considerações davam-lhe as indicações”. Sua história é narrada do ponto de vista da Torre, é assim que Wilhelm tem de compreendê-la. É bastante elucidativo, portanto, que, após ler o manuscrito, Wilhelm quisesse ele mesmo escrever sua história para Therese, mas “quase sentia vergonha de não ter para apresentar \...\ nada que pudesse testemunhar uma atividade eficaz” (VIII 1, p. 495). Depois de confirmar a paternidade de Felix, o abade encerra o ritual: “Glória a ti, jovem! Chegaram ao fim teus anos de aprendizado; a Natureza te absolveu” (VII 9, p. 483). A paternidade acaba por conduzir Wilhelm com mais facilidade para uma convergência com as concepções da Torre. Mais tarde, entretanto, Wilhelm replicará com mofa: dão-nos rolos manuscritos de máximas magníficas, misteriosas, dos quais, por certo, não entendemos senão pouquíssima coisa, revelam-nos que até aqui éramos aprendizes, absolvem-nos e continuamos tão sábios quanto antes (VIII 5, p. 533).

A alegria da qual todos estão imbuídos dá um caráter solene e de certo alívio pelo fim dos anos de aprendizado do herói. Este, todavia, não compartilha totalmente dessa atmosfera: ele ainda não compreendeu de fato qual foi seu aprendizado. É certo que após anos de insistência, perseverança, confiança e trabalho, seus objetivos artísticos desembocaram em nada. A Torre aponta-lhe agora o retorno à atividade paterna da qual Wilhelm tanto quis fugir, e convencê-lo da necessidade da morte dessa parte de si, quiçá a mais bela, que dentro em pouco será acompanhada da morte física de Mignon e do

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harpista224, é essencial para o sucesso da intenção da Sociedade. Por isso, a teoria da Torre que deve ser transmitida a Wilhelm é a de que ele teve um sentido que o paralisou e uma ação que o limitou (VIII 5, p. 535). Mas o ritual teatralizado não bastou para que Wilhelm se convencesse. No último livro ele está irritadiço e perdido, acha que eles se precipitaram com ele, “pois exatamente a partir daquele momento é que passei a saber bem menos do que posso, quero e devo” (VIII 5, p. 535). Ele pede para que Jarno pare de ler palavras estranhas, pois tais frases já o confundiram bastante e tudo o mais que se explique ou se diga irá piorar a situação. Jarno insinua que em Wilhelm há muito ainda o que desenvolver, portanto, o que ele não entendia ainda se tornaria claro. Se o abade defendia que o erro só podia curar-se com o erro e que Wilhelm deveria, portanto, errar, Jarno prossegue dizendo que ele próprio não foi um bom mestre pois não suportava ver alguém fazendo tentativas canhestras. Por isso, confessa que sempre falou a pura verdade para Wilhelm. Este retruca que realmente não foi poupado por Jarno, que replica: “que significa ser poupado quando um jovem dotado de muitas e boas disposições toma um rumo completamente errado?” (VIII 5, p. 535). O herói responde: o senhor me negou duramente qualquer aptidão [Fähigkeit] para ser ator; confesso-lhe que, mesmo havendo renunciado de vez a essa arte, não me é possível declarar-me totalmente incapaz para isso (VIII 5, p. 535, grifo meu).

Assim, no último livro, nosso herói não está convencido de que o objeto apropriado à sua individualidade não é aquele pelo qual todo seu ser esteve orientado desde a infância. Mas ele se vê obrigado a renunciar, essa foi a principal lição de seu aprendizado. Para os membros da Torre, porém, a promissora constituição individual de Wilhelm que despertava o interesse do abade deveria ter sido, na verdade, dirigida desde cedo para outra atividade – e não simplesmente bem orientadas dentro da arte. É contraditório que o abade defenda que “toda disposição é importante e deve ser desenvolvida” (VIII 5, p. 537), se Wilhelm, segundo a insinuação de um emissário, não desenvolveu suficientemente e da maneira mais

224

Os quais representavam simbolicamente a expressão artística destituída de quaisquer obrigações de profissão ou carreira, a pureza da arte que era elemento constituinte central da sensibilidade do herói.

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apropriada suas excelentes disposições, e sua orientação das mesmas para uma atividade específica, a artística, para a qual sentia a mais viva inclinação, não foi bem sucedida. Jarno diz que para ele é fora de dúvida que não é ator aquele que só consegue representar a si mesmo. Wilhelm interpretou Hamlet e alguns outros papéis, e para isso, assevera Jarno, “lhe favoreciam seu caráter, sua figura e a disposição de ânimo momentânea”. E completa: “ora, isso seria suficiente para um teatro de amadores e para quem não visse pela frente nenhum outro caminho” (VIII 5, p.536). Deve-se – prosseguiu Jarno, lançando um olhar para o manuscrito – precaver contra um talento que não se tenha esperança de exercitar à perfeição. Pode-se avançar nele tão longe quanto se queira, sempre ao final, quando se torna claro o mérito do mestre, haverá de lamentar-se penosamente a perda de tempo e forças que foram dedicadas a tal fancaria. – Não leia nada! Disse Wilhelm. Peço-lhe encarecidamente, continue a falar, conte-me, esclareça-me! (VIII 5, p. 536)

O “mestre” ao qual Wilhelm deveria se equiparar, para convencer-se de sua falta de aptidão, não existe em sua história. A Wilhelm não foi dada oportunidade, pela realidade e sua conjunção de acasos que lhe é tão própria, de conduzir adequadamente o desenvolvimento de suas disposições. Para a Torre nenhum talento por si só é suficiente se não for exercitado, e para isso ele depende do meio (a começar porque é o meio que tem de lhe proporcionar uma formação; mas também é o meio que decidirá se o talento exercitado redundará em inclinação e disposição efetivadas). A visão do alto da Torre conclui que Wilhelm tem de seguir outro caminho em sua vida, um caminho que não foi traçado por ele, para o qual não tem nem disposição, inclinação ou talento, mas que lhe é destinado. Essa concepção de destino predeterminado corresponde à do herói, não, porém, quanto ao conteúdo: se para Wilhelm seu destino era ser artista, para a Torre, é ocupar o lugar determinado por sua classe. Além disso, uma suposta disposição para os negócios tampouco foi exercitada à perfeição por Wilhelm (como deveria ocorrer com a arte e com qualquer talento, segundo a Torre), donde concluímos que a atividade capitalista, por seu turno, é suficientemente abstrata para incorporar quaisquer disposições e talentos, em qualquer grau de desenvolvimento. Wilhelm quer apenas ouvir os fatos, saber das histórias, não quer teorizações, juízos 294

generalizados ou máximas a partir dos quais ele teria de fazer as mediações necessárias para compreender o que se passa consigo mesmo e ao seu redor. Essa insistência da Sociedade da Torre em falar por meio de máximas indica quão pouca clareza eles estão interessados em transmitir ao herói, ela não pode dizer diretamente seus objetivos com ele. Que Wilhelm não os entenda é tanto mais revelador porque ele gosta de refletir e dialogar. A única providência tomada por Jarno para satisfazer o anseio de Wilhelm foi falar um pouco sobre o abade, mas logo voltou a ler quando passou a falar da concepção do eclesiástico: “\...\ tenho de olhar novamente o rolo!”, prosseguia Jarno, denotando que um complicado programa da Torre, com a devida fundamentação teórica tão cara a Wilhelm, tinha sido traçado para ele, não era uma percepção espontânea e evidente que podia prescindir de quaisquer consultas e a que se chegava tomando conhecimento dele e de sua trajetória. Só todos os homens juntos compõem a humanidade; só todas as forças reunidas, o mundo. Estas estão com frequência em conflito entre si e, enquanto buscam destruir-se mutuamente, a natureza as mantém juntas e as reproduz 225. Do mais íntimo instinto artesanal e animal ao mais sublime exercício da arte espiritual; dos balbucios e gritos da infância à mais perfeita manifestação do orador e do cantor; das primeiras brigas dos rapazes aos monstruosos preparativos pelos quais se guardam e conquistam países; da mais frágil benevolência e do mais fugidio amor à paixão mais violenta e à mais séria união; do mais puro sentimento da presença sensível aos mais sutis pressentimentos e esperanças do mais remoto porvir espiritual: tudo isso e muito mais está jacente no homem e deve ser desenvolvido; mas não em um, e sim em muitos. Toda disposição é importante e deve ser desenvolvida. Quando um promove somente o belo, o outro somente o útil, só os dois juntos é que formam um homem. O útil promove a si mesmo, pois a multidão o produz e ninguém pode prescindir dele; o belo deve ser promovido, pois poucos o representam e muitos o necessitam (VIII 5, p. 537).

Wilhelm teria insistido demasiadamente no belo e descuidado do útil. Era a hora de desprender-se de si mesmo, de suas aspirações e de seus anseios pessoais, para cumprir seu dever, reunindo-se aos outros homens, mas na posição que lhe foi socialmente conferida

225

Nota-se a proximidade do pensamento do abade com o do próprio Goethe, que entende que a individualidade se constitui entre a autoconserva}ao e a delimita}ao contra o “universal”: de um lado, a individualidade e apreendida em suas respectivas fronteiras e limita}oes, por sua vez, exclusivas, e de outro, como algo constante e combativo – que por sua vez, aproxima-se da ideia espinosana de conatus.

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(portanto, independente de suas inclinações e disposições); e assim o teatro foi o desvio que trouxe o herói para si mesmo (II 9, p. 114). Wilhelm quer conversar. Ele já havia lido tudo isso, suplica novamente para que Jarno pare: “Chega de sentenças!” (VIII 5, p. 537). Jarno insiste, pois logo em seguida estava o abade por inteiro: “uma força domina a outra, mas nenhuma pode formar a outra” (VIII 5, p. 537); “em toda disposição se encontra também a força para concluí-la”; “poucos homens o entendem, mas apesar disso pretendem ensinar e agir” (VIII 5, p. 537). Wilhelm repete que não entende, que tem o coração ferido, e prefere que se fale logo como e de que modo pretendem sacrificá-lo. Jarno diz que Wilhelm pedirá perdão a eles por tantas suspeitas. É sua tarefa examinar e escolher; assisti-lo, é a nossa. O homem não é feliz antes de seus desejos incondicionais determinarem limites a si mesmos. Não se espelhe em mim, mas no abade; não pense em si mesmo, mas naquilo que o cerca. Aprenda, por exemplo, a considerar a excelência de Lothario: como sua visão de conjunto e sua atividade estão indissoluvelmente ligadas; como está sempre fazendo progressos, como se propaga e arrasta todos consigo. Onde quer que esteja, carrega um mundo, sua presença anima e inflama (VIII 5, p. 537).

Wilhelm é instado constantemente a olhar para fora e em volta de si, esquecer-se de si mesmo, para considerar com precisão a necessidade de desistir do belo, que tem pouca repercussão e abrangência, e aceitar o que ele deve fazer de sua vida dali em diante. O que é enfatizado em relação a Lothario não é perspectiva e finalidade práticas de suas ações no que respeita à atividade material, mas a maneira coerente com que ele liga sua visão geral à sua atividade. O que faz com que ele se torne magnético é essa maneira de se comportar, é nesse sentido que Wilhelm deve tomá-lo como exemplo, e é esse magnetismo que Wilhelm não soube explicar, mas que o atraiu. O desprezo pelas relações mundanas (embora não por seus indivíduos) é um traço de Wilhelm que tem de ser corrigido para que ele possa unir-se indissoluvelmente a essas relações, e assim, promete a Torre, o que Wilhelm não conseguiu voltado somente para si, conseguirá na sua integração consciente na sociedade. O médico, prossegue Jarno dando mais um exemplo, parece ser de uma natureza oposta à de Lothario: Enquanto aquele [Lothario] só age em conjunto e também à distância, este [médico] só dirige seu claro olhar às coisas mais próximas, e mais que gerar e

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animar a atividade, ele proporciona os meios para ela; seu modo de agir é perfeitamente semelhante ao de um bom administrador; sua eficácia é silenciosa, uma vez que a cada um só favorece em seu próprio círculo; seu saber consiste num juntar e num gastar contínuos; num tomar e compartilhar no pequeno /.../ Talvez Lothario pudesse destruir num dia aquilo que o outro levou anos para construir; mas talvez Lothario também pudesse comunicar ao outro num momento a força para refazer cem vezes o que foi destruído (VIII 5, p. 538).

Wilhelm achava triste pensar nos méritos dos outros num momento de desacordo consigo mesmo, que estas considerações não convinham àquele que está “agitado pela paixão e incerteza”. Jarno afirma que sempre é bom “contemplar de maneira tranquila e razoável”, enquanto nos habituamos a pensar nos méritos alheios, sorrateiramente os nossos vêm tomar seus lugares, e de bom grado renunciamos a toda falsa atividade para a qual nos atrai a fantasia. Liberte, se possível, seu espírito de toda suspeita e ansiedade! (VIII 5, p. 538)

Sempre rejeitando a apologia à atividade de seu meio burguês, o herói, mantendo sua inapelável condição burguesa, deverá aceitar a ideia da Torre sobre a educação para a atividade (Krings, p. 164).

Ascensão social burguesa e a nobreza aburguesada Wilhelm vem de uma família burguesa e ascende, com o casamento, à aristocracia. Burguês do comércio, ele não deve tornar-se um assalariado, mas um proprietário – esse é seu destino social226. E assim, em última instância, o romance configura a necessidade imperativa das circunstâncias sobre a individualidade do herói, precisamente, a importância

226

Após citar a carta de Schiller em que este diz temer que Wilhelm esteja sempre em situação de inferioridade frente aos nobres no final do romance, Igel replica: Wilhelm não deve absolutamente esquecer que é um burguês. “Não se trata de uma assimilação a mais perfeita possível e sem estrondo à nobreza, mas de uma conversação e cooperação no mesmo nível entre os estratos” (2007, p. 654). (Igel comenta ainda sobre a interpretação essencialmente falsa, que encontrou eco na crítica, de que a trajetória de Wilhelm seguia rumo à aristocratização. Quem inicia essa polêmica é Novalis, com seu título Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ou a peregrinação para o título de nobreza [Wilhelm Meisters Lehrjahre oder die Wallfahrt nach dem Adelsdiplom]).

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que o elemento de classe possui em sua trajetória. Wilhelm, eleito desde criança pelos membros da Sociedade da Torre, representará a fusão de classes na própria individualidade. Mas Wilhelm ascende a uma classe condenada à extinção, como os inequívocos fatos históricos na Europa demonstravam há quase dois séculos (e, afinal, tiveram seu pico na Revolução Francesa de apenas 7 anos antes do romance ter sido terminado). Tais lutas, como sabemos, chegaram amortecidas e não impactaram revolucionariamente a Alemanha, sendo os casamentos mésalliance ao final do romance a maneira mais simbólica da fusão, e não da luta, das classes que disputavam o domínio 227. Assim sendo, o casamento desigual é um modo de manutenção de uma classe dominante que precisa adaptar-se aos novos tempos. Porém, só o casamento com um burguês não garante a segurança buscada pela nobreza. As reformas planejadas por Lothario mostram claramente a direção modernizadora de suas iniciativas: longas considerações costumam demonstrar que não se tem em vista o ponto em questão; e ações precipitadas, que se não o conhece de todo. Vejo claramente que, em muitos setores relacionados com a administração de minhas propriedades, não posso prescindir dos serviços de meus aldeões, e devo ater-me estritamente a certos direitos; mas vejo também que outras atribuições me são vantajosas, ainda que não absolutamente indispensáveis, de sorte que posso conceder algo delas à minha gente. Nem sempre se perde quando se abre mão de algo. Acaso não tiro muito mais proveito de minhas propriedades que meu pai? Não hei de aumentar ainda mais meus rendimentos? E terei de gozar sozinho dessas crescentes vantagens? Não devo conceder também aquele que comigo e para mim trabalha sua parte nos benefícios que os largos conhecimentos e o progresso de uma época nos proporcionam? (VII 3, p. 424)

Lothario assume as funções de proprietário e administrador em busca do maior proveito possível, ou seja, assume a função de capitalista 228. Ele passa de nobre proprietário

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Embora os casamentos do final do romance condigam com o modelo barroco, os atores principais mudaram: não vêm mais de uma linhagem real, são em parte nobres e em parte burgueses, e os casamentos são desiguais [Mésalliance] – o que seria impensável para o alto romance (Igel: 2007, p. 650). Os casamentos desiguais são também uma provocação ao leitor da época. O mundo cortês e seu meio estão fora do ponto central do romance, são sua periferia, perderam aquela dignidade que lhe atribuía o romance cortês. Não se trata mais de um par da alta ou mais alta procedência social cujas provas e sofrimentos são narrados. Agora, o herói é oriundo da burguesia – impensável para o romance barroco (e isso não é algo evidente em Goethe, posto que os personagens principais de Afinidades Eletivas [Wahlverwandschaften], por exemplo, são nobres). De todo modo, os casamentos desiguais eram uma maneira recorrente de correção social nos romances prérevolucionários da Aufklärung. 228 A função de arrendatário corresponde a um estágio de desenvolvimento do capital ainda ligado à

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fundiário a capitalista, sem escalas, sem a mediação do arrendatário – e Therese, a prometida de Lothario é justamente sua parceira na figura do arrendatário: sua principal atividade é extrair da terra o melhor proveito – sem ser proprietária das mesmas. Lothario diz que renunciaria à felicidade de “o coração se abrir para um novo objeto” (VII 7, p. 456) se o destino o tivesse unido a Therese, de quem uma das principais características era a “lucidez no tocante às circunstâncias (VII 7, p. 457). A igualdade é uma condição que existe apenas a posteriori, como direito de concorrer para a fruição dos frutos dessa relação fecunda entre o trabalho e a propriedade privada. O nobre precisa dividir os lucros e resultados que o trabalho gera em suas propriedades e coloca essa necessidade econômica como questão moral. Lothario, que se alegra tanto de uma propriedade quando de sua legitimidade, expõe sua concepção do que considera uma propriedade legítima: a que deve pagar tributos ao estado, pois “dessa igualdade com todas as outras propriedades resulta unicamente a segurança da propriedade” (VIII 2, p. 497). Pois o único motivo que tem o camponês, “nesses tempos modernos em que tantos conceitos vacilam”, para considerar menos fundamentada a propriedade do nobre é o fato de ela não pagar tributo229. Werner pergunta, então, como ficarão os rendimentos de seus capitais. Respondendo a Werner, Lothario diz que o estado, em troca desse pagamento justo e regular, pode libertar os grandes proprietários, novos capitalistas, dos “embustes feudais”, dos “limitados e limitadores privilégios”, e permitir-lhes dispor dos próprios bens da maneira que lhes

propriedade fundiária, pois se é o arrendatário que se torna primeiramente o capitalista, mas extraindo o lucro, ele não é, contudo, o proprietário daquela terra. O arrendatário intermedeia a relação do proprietário feudal com sua propriedade fundiária, por isso é tomado como forma intermediária da figura do capitalista (que pode surgir tanto do arrendatário que se torna proprietário, e aqui o proprietário perde, literalmente, terreno) quanto do proprietário que acumula as funções do arrendatário, tirando proveito de suas propriedades a partir da aplicação do trabalho, é o caso de Lothario (para a origem do arrendatário: Marx, K: O capital. vol 1, p. 174). De todo modo, dessa fusão surge o capitalista moderno. (O mercantilismo, a forma como o dinheiro se transforma em capital num sistema de produção de mercadorias, ocorre simultaneamente aos cercamentos na Inglaterra nos idos do século XVI. Esse processo de formação da figura do capitalista que durou alguns séculos na Inglaterra e na França, é abreviado na Alemanha.) 229 Witte (1989, p. 125) chama a atenção para o fato de Goethe defender por meio de Lothario o livre mercado (isto é, as propriedades de terra deveriam se tornar móveis – ela pode ser parcelada e transferida) numa área que foi regida por antigas leis tradicionais até quase o começo do século XX.

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aprouver, isto é, que a terra possa ser repartida entre seus filhos, “proporcionando a todos eles uma atividade livre e viva” (VIII 2, p. 497). Lembremos o que disse Werner a Wilhelm logo no início do romance, quando nos dá um quadro geral da época de um ponto de vista burguês, porém limitado: Os grandes deste mundo apoderaram-se da terra e vivem no luxo e na abundância. Até o menor quinhão de nosso continente já tem dono, já está consolidada a propriedade; empregos e demais negócios burgueses rendem pouco; onde haverá, pois, um ganho mais legítimo, uma conquista mais razoável, senão no comércio? Os príncipes deste mundo têm em seu poder rios, estradas e portos, e de quantos por eles passam e circulam retiram um grande lucro. E quanto a nós, não devemos aproveitar com alegria a ocasião e cobrar também, por nossa atividade, tributos por nossos artigos que em parte a necessidade, em parte a arrogância, têm tornado indispensáveis aos homens? E posso assegurar-te que, se pretendes empregar aqui tua imaginação poética, poderias opor resoluto à tua a minha deusa, na qualidade de vencedora irresistível. É verdade que à espada prefere ela empunhar o ramo de oliveira; ela ignora completamente punhais e grilhões, mas em troca distribui entre seus eleitos coroas que, sem desmerecer ninguém, reluzem do ouro puro extraído das minas, e das pérolas apanhadas nas profundezas do oceano por seus sempre atarefados servidores (I 10, p. 36).

Werner não deixa de ter razão quando fala dos “grandes deste mundo”, como demonstrará Jarno, indiretamente corroborando a ideia de que toda propriedade já tem dono: Nos dias de hoje, nada é menos aconselhável que ter uma propriedade num só lugar, que confiar seu dinheiro a uma só praça; mas é igualmente difícil mantêlo sob vigilância em muitos lugares, daí porque concebemos algo diferente: de nossa velha torre há de sair uma sociedade que se espalhará por todas as partes do mundo, e na qual de todas as partes do mundo se poderá entrar. Asseguramos reciprocamente nossa existência para o caso único de que uma revolução nacional desaloje um ou outro de suas propriedades (VIII 7, p. 547).

O abade irá para a Rússia, Lothario ficará na Alemanha e ele, Jarno, irá para a América aproveitar os contatos que Lothario fizera por lá. Aos camponeses as medidas antifeudais de Lothario também proporcionariam felicidade, por exemplo, quanto ao casamento, que dependia da aprovação do dono da terra e passaria a ser feito por sua própria escolha e sem outras considerações. “O estado teria mais e talvez melhores cidadãos, e não estaria tão frequentemente embaraçado por falta de mãos e cabeças” (VIII 2, p. 498). Esse mesmo raciocínio pode aplicar-se a Wilhelm, cujo 300

casamento com Natalie ajudaria a livrar de dificuldades os planos progressistas de Lothario. A burguesia necessita da propriedade para investir seu capital tanto quanto a nobreza precisa do capital comercial disponível para melhorar suas propriedades. Porém, quem é a porta-voz dos mais avançados capitalistas são os nobres do círculo da Torre, não os burgueses, cuja extração mais alta (uma burguesia industrial vanguardista) não é representada no romance, por ser incompatível com a época e o lugar. Tanto quanto garantir a sobrevivência de suas propriedades, como diz Jarno: “é preciso conhecer um pouco dos negócios do mundo para perceber que nos esperam grandes transformações e que as propriedades não estão mais seguras quase em parte alguma” (VIII 7, p. 546). A nobreza vê, antecipadamente, que às classes dominantes é imprescindível um estado forte ao qual elas estejam ligadas. Nesse sentido, Lothario fala do bom patriota que paga primeiro a despesa mais importante – o estado. Werner, que apenas começava a aventurar-se nas propriedades imóveis, diz por sua vez a Lothario que nunca havia pensado no estado, e que somente pagava tributos por costume. Enquanto a Sociedade da Torre pensa no mundo, Werner pensa na quinta recém-adquirida e em como Wilhelm poderia aplicar os conhecimentos dos temas “úteis e interessantes” que seu diário de viagem tratava. Werner comenta especialmente sobre o processo de fabricação de certos objetos e das observações sobre a concorrência. As noções administrativas que “Wilhelm” demonstrara (o diário, como sabemos, foi escrito por Laertes), principalmente sobre o melhoramento de quintas rurais, é o que mais alegra a família Werner, que pretendia investir o dinheiro da casa do velho Meister dessa maneira, fazendo com que Wilhelm procedesse aos melhoramentos na propriedade comprada . Ironias \...\ parece que o senhor está predestinado a encontrar por toda parte atores e espetáculo (VII 2, p. 421)

Desde o bilhete de Norberg até a decisão da viagem, passando por Philine à janela e 301

pelo dinheiro a Melina dado irrefletidamente, a ida ao castelo dos condes, o espectro de Hamlet até por essas vias chegar à Torre, conhecer Therese por causa do incidente com Lothario, e este por causa de sua amizade com Aurelie, Felix que bebe da garrafa e não do copo etc.: o romance é repleto desses pequenos acontecimentos que conduzem a história do herói. Junto às necessidades composicionais do romance (que têm de articular os acontecimentos à vida do protagonista), os acontecimentos seguem um caminho que leva Wilhelm a crer que o destino realmente atua na sua vida, do início ao fim, pois unir-se ao verdadeiro amor está completamente de acordo com os sentimentos do herói – não, porém, de acordo com suas inclinações que anseiam por objetivação. O destino confunde-se, em mais de uma ocasião, com a Sociedade da Torre, Jarno chega mesmo a dizer que o abade “gosta em geral de representar um pouco o papel do destino” (VIII 5, p. 538)230. A Torre tenta, porém, convencê-lo justamente do contrário, de que não há destino predeterminado e cada um deve tomar as rédeas da própria vida, de modo a atuar sobre as circunstâncias para delas tirar o melhor proveito para si 231. A Torre quer que prevaleçam na individualidade de Wilhelm caráter e ação (ação que Wilhelm identifica nos nobres), ativa conformação das circunstâncias, em vez de sentimentos e passividade diante dos fatos. Em resumo, se tomarmos a teorização sobre romance e drama (V 7, p. 303), a Torre exige de Wilhelm que ele, herói romanesco, transforme-se em herói

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A Torre assume o papel de destino na história como orientação oculta, assim argumenta Wilfried Barner: Geheime Lenkung. O mesmo pensamento tem Schlechta, mas para ele a Torre nega o destino, pois ela controla as circunstâncias (e Wilhelm, pois o herói, para a Torre, faz parte das circunstâncias). De acordo com Gehrt, como seus representantes são iluministas, eles têm também seus limites. As possibilidades reais de influência não bastam para que eles banquem o destino (como diz Jarno do abade). De todo modo, a doutrina da Torre é confirmada no curso na narração (Gehrt, Igel). Nesse sentido, Goethe quis representar criticamente tanto a Sociedade da Torre quanto Wilhelm, a “ave do paraíso”: “o conjunto do decurso do romance refuta as máximas iluministas-otimistas da Torre sobre a relação entre razão e destino. A decisiva mensagem do romance não está nas sentenças sobre ‘Bildung’, mas no destino [Fügung] dos acontecimentos” (Gehrt: 1996, p. 114). No mesmo sentido, Seitz diz que Wilhelm não encontra, concretamente, nos últimos livros, as máximas sobre arte etc. da Torre, mas a bela amazona (1993, p. 131). Gehrt, por sua vez, apesar de falar que a mensagem não estava em sentenças, cita como exemplo de sua tese sobre o Fügung des Geschehens as conversas de Wilhelm com a Torre a respeito do tema destino. 231 A ideia kantiana de autonomia “determine-se por si mesmo”, no contexto da Aufklärung, é a ideia que a Torre procura incutir em Wilhelm. A ironia consiste em que Wilhelm é determinado por aqueles que lhe rogam ser independente e autodeterminado (ver Koopmann. Schiller-Handbuch, p. 629).

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dramático232. Contudo, quando ele decide fugir com Mariane, viajar pelo caminho mais perigoso que quase lhe custa a vida, entrar para o teatro profissional de Serlo, casar com Therese, enfim, quando Wilhelm tenta agir por si mesmo e direcionar os acontecimentos, ele fracassa. ‘Oh!’, exclamou, ‘quem sabe as provas que ainda me aguardam; quem sabe o quanto ainda me atormentarão os erros passados; quantas vezes mais fracassarão os bons e razoáveis projetos para o futuro \...\. Adeus, pois, razão e inteligência! Adeus, todo cuidado e toda cautela!' (VIII 2, p. 499).

Resta ao herói fazer o que a Sociedade da Torre determina, o que significa deixar a vida ativa do teatro e ficar inativo junto à Sociedade da Torre (Seitz, p. 131). Ainda que o narrador diga, portando a atmosfera de pensamentos do Salão do Passado: Os olhos de Wilhelm vagueavam por sobre os incontáveis quadros. Do primeiro alegre impulso da infância a empregar e exercitar todos os membros no jogo, até à gravidade serena e solitária do sábio, podia-se ver numa bela e viva sequência como o homem não possui inclinação [Neigung] nem aptidões [Fähigkeit] inatas que não empregue e aproveite (VIII 5, p. 527).

Como Wilhelm utilizará suas inclinações e aptidões artísticas? O emissário da Torre diz que o necessário é o fundamento do ser, mas na história esse ser mostra-se exclusivamente como social e histórico. Assim, o entrelaçamento de caráter e destino do herói evidencia-se sobretudo na necessidade de Wilhelm aceitar as circunstâncias: ele admira os nobres, viverá no meio deles; ele não se interessa pelos assuntos mundanos, mas os nobres agirão por todos. O romance faz uma apologia da atividade, todavia, não considera o teatro como tal e não vemos nenhum membro da Torre seriamente no trabalho (como bem nota Seitz, p. 133). É o que acontecerá com Wilhelm, que passará a não mais trabalhar no teatro e, ao migrar para “os negócios”, tampouco se posicionará ativamente até o fim de sua trajetória, como fica indicado quando Jarno convoca Wilhelm para, com o abade, ajudar na compra de propriedades, tarefa da qual Lothario os incumbira (VII 9). Nas conversas sobre castelos, prados e lavouras, Wilhelm não desejava senão a presença de

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Da mesma forma que o romance historicamente foi avaliado sempre em comparação com a épica, seu herói também foi, portanto, compreendido mediante essa mesma relação. Porém, evidentemente, não passou despercebida a grande diferença que separava o herói épico antigo do moderno, sendo uma das características mais marcantes a aproximação do herói romanesco do herói dramático.

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Therese, cuja disposição e competência eram amplamente conhecidas e opostas às de nosso herói, que continua com pouquíssimo interesse por tais assuntos. O senhor chegou bem a tempo de nos ajudar – disse ele [Jarno] –, a mim e ao abade. Lothario nos encarregou da compra de importantes propriedades nestas imediações; tudo já havia sido anteriormente providenciado, e agora, no momento propício, encontramos dinheiro e crédito. A única coisa que nos preocupava era o fato de uma casa de comércio de fora também ter em vista essas mesmas propriedades; mas agora finalmente estamos decididos a fazer negócio junto com ela, pois do contrário teríamos feito subir o preço sem necessidade nem razão. Ao que parece, temos de negociar com um homem esperto. Daí porque estamos fazendo cálculos e estimativas, e pensando também no aspecto econômico, na maneira como haveremos de repartir as terras de forma que cada um obtenha um belo quinhão. Mostraram a Wilhelm os papéis, examinaram as terras para a lavoura, os prados e castelos, e embora Jarno e o abade parecessem entender muito bem do assunto, Wilhelm desejava que a senhorita Therese pudesse fazer parte da sociedade. Levaram vários dias naqueles trabalhos, e Wilhelm mal teve tempo de contar aos amigos suas aventuras e sua duvidosa paternidade, acontecimento tão importante para ele, tratado com indiferença e leviandade (VII 9, p. 478).

Assim, era de Werner a firma estrangeira com quem Lothario compraria as propriedades. “Jarno e o abade não pareceram em nada surpresos com aquele reencontro” (VIII 1, p. 490), e Werner não pode deixar de exclamar: “com essa figura tens que me adquirir uma bela e rica herdeira” (VIII 8, p. 490). Wilhelm viu-se materialmente obrigado a ceder, e as palavras do narrador por ocasião da morte do pai do herói são perfeitamente válidas para o que acontecerá mais tarde em sua vida. Não pode o homem deslocar-se para uma situação mais perigosa do que quando circunstâncias exteriores provocam uma grande alteração em seu estado, sem que sua maneira de sentir e de pensar estivesse para tanto preparada (V 1, p. 281).

Therese estima Wilhelm rapidamente, e o liga a Natalie. Sua opinião é a de que Wilhelm procura em vão, que seus objetivos são vagos, e que depende apenas dele mesmo mudar essa situação. Therese, Natalie e Lothario agem, acima de tudo, segundo o dever; e é isso que se esperará também de Wilhelm. Em carta a Natalie, Therese analisa: Também no mesmo sentido reverencio meu amigo; sua história de vida é um eterno procurar e um não encontrar; mas não um procurar vazio, e sim o admirável e benevolente procurar o provém, ele imagina que lhe poderiam dar o que só dele pode vir. Assim, minha cara, tampouco desta vez minha lucidez me prejudica; conheço meu esposo melhor que ele mesmo se conhece e por isso

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tanto mais o estimo. Eu o vejo, mas não o apreendo com o olhar, e toda minha inteligência não é suficiente para prever o modo como ele pode agir. Quando penso nele, sua imagem se mescla à tua, e não sei como sou digna de pertencer a duas tais pessoas. Mas hei de ser digna, cumprindo com meu dever, realizando o que se pode esperar e aguardar de mim (VIII 4, p. 519).

Sem dúvida, Natalie e Wilhelm assemelham-se sobretudo em seu distanciamento das relações materiais; inclusive por isso, não teria sido mais “útil” a Wilhelm unir-se a Therese, já que ele deverá aceitar sua condição de proprietário? Não se pode prever a ação do herói, pois nele se reúne o conjunto – e por isso ele precisa ser plástico e indeterminado. O herói é imprevisível porque ainda não sabe quem é e o que quer, já que seu único projeto (a inclinação, isto é, transformar o teatro em autoatividade) malogrou. A avaliação de Therese sobre Wilhelm enquadra-se naquelas que tendem a localizar a “solução” da individualidade apenas nela mesma (cf. Schiller). Ou seja, ao invés de usar as circunstâncias a seu favor e exteriorizar suas melhores e mais verdadeiras inclinações, posicionar-se no mundo como indivíduo ativo e autoconsciente, Wilhelm é moldado pelas circunstâncias. Assim, que Wilhelm “procure nos outros o que só dele pode vir” deve ser compreendido como uma ação de acordo com o dever (que ironicamente é deixar moldar-se pelas circunstâncias) e não num errático buscar contínuo, como é interpretada a tentativa de efetivação da inclinação individual (no caso de Wilhelm e de Lothario), absolutamente deixada de lado como absurda. É ambíguo que Wilhelm, que estava no caminho “errado”, tenha tido uma trajetória que deixou nele efeitos físicos positivos; enquanto em Werner, cuja inclinação foi subjugada desde sempre pelo dinheiro, mas sempre agindo de acordo com seu dever de classe, os efeitos tenham sido opostos ao de Wilhelm. Ao final de sua história, se não conseguimos saber tão nitidamente o que mudou dentro do herói, é bastante claro, por sua aparência exterior, que dar vazão às suas inclinações, ainda que tenham resultado na constatação de sua impossibilidade na realidade, foi uma decisão acertada. Werner não deixa de retrucar, brincando, que Wilhelm, apesar de não ter ganhado dinheiro, transformou-se numa pequena personagem que pelo menos poderia arrumar um bom partido; Wilhelm responde que Werner continuava o mesmo, vendo em tudo uma 305

mercadoria que poderia especular em cima e ganhar dinheiro. Werner replica que se ele mesmo não tivesse ganhado um bom dinheiro nesse período, “não seria absolutamente nada”. É irônico, por fim, que os postulados sobre Bildung, que como vimos resumem-se na renúncia, encontrem-se predominantemente na segunda parte do romance (Kemper, p. 214).

Correção da sensibilidade? [Wilhelm:] Feliz, acima de tudo, aquele que para se por em harmonia com o destino, não necessita rejeitar toda sua vida anterior! (VII 6, p. 449) [Wilhelm:] De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de escórias? E de que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural, se comigo mesmo me desavim [uneins bin] ? (V 3, p. 286)

De que serve ser um bom burguês se isso não corresponde às carências da individualidade do herói? É exatamente esse, porém, seu destino. Quer Wilhelm aceite quer não, somente a própria realidade, isto é, a interação dos indivíduos, suas relações e acontecimentos podem dar o substrato para a resolução de seus anseios. Portanto, de nada adianta negar a existência de dinâmicas sociais mais amplas, como as relações econômicas e as classes – elas têm uma influência ativa e concreta sobre a vida de Wilhelm e sobre a vida de todos os indivíduos. A trajetória de Lothario é muito instrutiva por mostrar que mesmo uma índole épica e guerreira como a dele, que portanto estava em sintonia com nações e povos, não pode se realizar se não agir na direção correta, determinada por sua posição de classe. As teorias e máximas do abade a respeito de formação, atividade e disposições servem de quase nada se não satisfizerem o mesmo objetivo: que cada indivíduo personifique a função econômica que lhe cabe. Por essa razão, 306

o romance é circular, Wilhelm encerra sua trajetória na mesma condição que a iniciou. Poder-se-ia objetar que em Wilhelm existiam disposições que poderiam ser aplicadas em outras direções que não o teatro, não a arte. Poder-se-ia concordar com a Torre e também com seu criador e conceder que o herói enganou-se quanto às suas reais aptidões. Porém, se esse fosse o caso, Wilhelm deveria ter encontrado ao menos uma indicação para uma atividade que fosse adequada à sua sensibilidade, ao seu caráter, em suma, à sua individualidade. Mas o romance nos reconduz ao início, à atividade burguesa da qual Wilhelm queria fugir. Ele é reconduzido também ao amor perfeito: este se encontra no fim tal como no início. Esposar é a mesma recompensa de Davi, recebida ao final de sua trajetória233. No fim do romance, Friedrich se lembra do dia em que pediu um ramalhete a Wilhelm, e agora era ele que lhe oferecia uma bela flor. Ao que responde o protagonista: “– Não me lembre neste instante de felicidade suprema daquele tempo”. Friedrich tranquiliza o herói: não há porque se envergonhar, como tampouco ninguém tem por que se envergonhar de suas origens. Eram bons aqueles tempos, e tenho mesmo de rir ao olhar para ti: tu me lembras Saul, o filho de Quis, que foi à procura das jumentas de seu pai e encontrou um reino (VIII 10, p. 586) 234.

Com Mariane, Wilhelm “pairava feliz sobre as regiões mais elevadas, e diante dele abria-se um mundo novo mais rico em magníficas perspectivas”, “onde quer que estivesse, para onde quer que fosse, falava consigo mesmo, extravasava incessantemente seu coração e expressava num jorro de palavras magníficas os mais sublimes propósitos” (I 9, p. 32). A intensidade com que Wilhelm padece a perda de Mariane é portanto aumentada porque estavam também em jogo suas paixões e inclinações. Ele vê “que um dano profundo e precoce não para de crescer, nem pode ser reparado; sinto que haverá de me acompanhar ao túmulo” (II 2, p. 83). Essa é uma previsão do futuro de Wilhelm quanto ao teatro. Inflamado, metafórico, emocionado e eloquente na retrospectiva de suas lamentações, não

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E a comparação de Wilhelm com Saul remete às lembranças de Wilhelm do teatro de marionetes (Bluhm, p. 7). 234 Assim é introduzida sua história no Antigo Testamento: “Havia um homem de Benjamin, cujo nome era Quis /.../ homem de bens. Tinha um filho cujo nome era Saul, moço e tão belo /.../” (Samuel I 9-10).

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devemos minimizar a dor do herói: sendo o amor o sentido com o qual o protagonista experiencia o mundo, a perda de Mariane foi um duro, profundo e precoce golpe à sua individualidade. Não apenas a superstição que os italianos representam, com suas crenças no destino inelutável, deve ser superada na consciência de Wilhelm – é a base de sua individualidade que deve ser reorientada. Wilhelm torna-se sempre mais inseguro quanto ao que sente e parece muitas vezes não confiar o bastante no que os sentimentos comunicam aos seus sentidos, ou estes nem sempre são contundentes, por isso, nosso herói está constantemente envolto em dúvidas. Se a bela alma perscruta dentro de si mesma um estado de bem-aventurança permanente como habitat para sua individualidade, Wilhelm busca entre os homens esse lugar que lhe é mais afim, ele sente-se ligado a eles pelo que ele próprio possui “de melhor e mais íntimo”. Longe de ver-se apartado e em oposição ao mundo, ele é capaz de perceber o exterior como uma extensão da própria individualidade. Esse exterior é toda a objetividade com que a individualidade se depara e da qual ela é fruto e parte: a sociedade e a natureza humanamente mediada pelas relações sociais. No sentido mais direto e imediato, trata-se do reconhecimento das relações entre os indivíduos enquanto fundamento da individualidade. Wilhelm é capaz de encontrar a si próprio no que há de mais humano em outra individualidade – essa capacidade se desenvolve por meio de sua sensibilidade, a mesma que leva Wilhelm à comoção em diversas circunstâncias e gera nele uma profunda compaixão pelo homem. Se pensarmos pela lógica da causalidade, e se o que move Wilhelm – e em certa medida desencadeia o enredo de sua trajetória – é o amor, então podemos considerar que a felicidade no destino do herói é uma consequência necessária pertencente à legalidade imanente presente em determinações da realidade em conexão com sua individualidade (o que Goethe denominaria de Dämon). Essa é outra face do chamado “destino”235, este que

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“Assim como se costuma dizer que as desgraças nunca vêm sós, pode-se observar que o mesmo ocorre com a felicidade e inclusive com as outras circunstâncias que se reúnem de maneira harmônica em torno de nós, seja por obra da sorte, seja porque o homem tenha o poder de atrair para si todas as coisas que estejam em conexão” (Poesia e Verdade, GOETHE, 1998, vol. X, p. 75. GOETHE, 1986, vol. II, p. 505. P. 78). Nesse trecho Goethe remete à Ética de Epinosa, livros 3 e 5. (GOETHE, 1998, vol. X, p. 76.)

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age, na história de Wilhelm, para conduzi-lo ao melhor fim possível. Por Wilhelm só se realizar com uma mulher, no fim do romance, torna-se evidente que nesta sociedade a atividade individual não está condicionada pela concomitante realização sensível e, por extensão, sentimental, esta que é intrínseca à autoatividade, isto é, à efetivação e desdobramento da própria inclinação. É uma bela emoção, querida Mariane – replicou Wilhelm -, relembrarmos os velhos tempos e os inocentes erros, sobretudo quando o fazemos em momentos em que atingimos o ponto culminante da felicidade, de onde podemos olhar ao redor de nós e apreender o caminho percorrido. É tão agradável podermos recordar, se contente estamos com nós mesmos, os diferentes obstáculos que, com um sentimento doloroso, acreditávamos por vezes insuperáveis, e comparar o quanto evoluídos somos agora com o quão pouco evoluídos éramos então (I 3, p.16)

Olhar o passado e refletir sobre o presente, quando esse é a concretização da mais pura felicidade, deu a tudo uma coloração vibrante e positiva, de modo que passado e futuro passaram a adquirir um significado novo para o herói. Mais tarde, porém, ao fim da sua trajetória, mas antes de ter Natalie consigo, é muito interessante observar como não é absolutamente essa maturidade da citação acima que ele demonstra. Sem o bálsamo de um amor, olhar para seus erros passados causa-lhe dor, já não os vê como inocentes, ao contrário, Wilhelm coloca-se na posição de quem deveria – ou poderia – ter controle sobre os próprios erros, de modo que a culpa passa a fazer parte do rol de sentimentos negativos a respeito de sua experiência anterior. Deveres, paixões, conhecimentos, talentos, propósitos avivados em Wilhelm por Mariane (I 3, p.14) destoam dos deveres e propósitos que se tornam um pouco mais claros para o herói ao lado de Natalie. Se sob a perspectiva do amor Wilhelm realça tudo aquilo que lhe diz respeito, supõe-se que no final de sua jornada, com Natalie, tudo isso deveria também sobressair ainda mais forte236: mas o destino de suas disposições artísticas, ao final de sua história, permanece uma incógnita. E a associação entre amor e atividade na

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Um leitor da época, acostumado com o alto romance barroco, espera que Wilhelm e Mariane fiquem juntos no final – e mesmo Goethe, na versão mais antiga do projeto, planejava isso (como relatou sua mãe. Igel: 2007, p. 664). Goethe mantém o final com ápice no amor, mas com Wilhelm ligando-se à Natalie (mesmo assim, o casamento não é consumado no final do romance).

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individualidade de Wilhelm (e fortemente marcada no início do romance) torna a não realização de um dos pólos da felicidade de Wilhelm, ao final, ainda mais patente. O destino de Wilhelm é abandonar a arte, mas como deixá-la se ela está intrinsecamente ligada ao amor, e por extensão, à própria constituição da individualidade de nosso protagonista?237 O narrador sai de cena nos últimos momentos do romance e deixa que os personagens dialoguem e encaminhem a história para seu final. O teatro não vingou, a segurança material do herói foi mantida, e a ela foi somada distinção social. Assim, as últimas palavras de Wilhelm são: “– Não sei o valor de um reino, mas sei que alcancei uma felicidade que não mereço e que não trocaria por nada no mundo” (VIII 10, p. 586). Wilhelm sente-se realizado afetiva e materialmente sem que fizesse quase nada para tanto. Ele chega ao final bem-aventurado sem entender como, ou seja, para ele o enredo de sua vida não foi articulado para aquele final feliz. Um destino assim, no entanto, está de pleno acordo com as características de nosso herói. Em consonância com sua sentimentalidade, a união com Natalie, a “bela amazona”, é de fato sua felicidade suprema, e isso não anula, não omite nem suprime sua frustrada atividade individual. Na verdade, a completa derrocada emocional de Wilhelm é evitada com o surgimento de Natalie.

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“Se é a razão que faz o homem, é o sentimento que o conduz” (Rousseau). Esta epígrafe escolhida por Schiller para abrir a primeira carta Sobre a educação estética da humanidade (In Die Horen: http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/horen/horen.htm) denota não apenas a tensão entre razão e sentimento, mas principalmente a impossibilidade de supressão de uma das partes. Nesse sentido, Espinosa pode ter sido recuperado por Goethe para recolocar os termos da discussão. Para este filósofo, “é um preceito da razão que o ódio deva ser vencido pelo amor e pela generosidade. O ânimo se inflama da felicidade que advém do conhecimento verdadeiro das paixões, e governá-las e também os apetites se faz pelo amor à liberdade”. (Ética, Livro V, trad. Lívio Xavier (p. 197-198) (Chauí: 1995, p. 94-95). Por essa via, a renúncia é atributo do amor, e assim Wilhelm pode (e tem de) se resignar com seu destino. As paixões não são vícios ou doenças, são efeitos do fato de sermos partes da Natureza. Para Espinosa, “a relação originária da alma com o corpo e de ambos com o mundo é a relação afetiva”, pois a essência do homem é desejo. O corpo é relacional: constitui-se de relações internas entre seus órgãos; externas com outros corpos e pelas afecções: “capacidade de destruir outros corpos e ser por eles afetados” (Chauí: 1995, p. 54). A renúncia (parte IV de Poesia e Verdade) e o amor são conceitos afins, são sentimentos irmãos. Ambos estão ligados em Espinosa, na Ética (Schings menciona-o ao explicar Natalie). Por isso é relativamente naturalizado o fato de Wilhelm renunciar à atividade teatral.

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Em conversa com Müller (29.05.1814), Goethe afirma que escreveu “a obra inteira por causa desse caráter”, isto é, por causa de Mignon238. Ora, o que de tão especial poderia conter essa estranha menina para que uma obra dessa amplitude fosse escrita somente a partir dela? A impossibilidade da existência de Mignon e de seu pai é a tragédia da não efetivação da individualidade por meio da autoatividade, pois inclinação e capacidade para determinada atividade não se coadunam com trabalho e profissão, estes se tornam mera ocupação. Por isso, Mignon clama para que Wilhelm deixe os palcos. Isso não significa o fim da arte ou da poesia (como interpretou parte da crítica 239), já que, como os artistas de sucesso provam no romance, a arte é muito bem absorvida pela sociedade do lucro, mas é o símbolo da constatação extrema do naufrágio da possibilidade histórica do livre desdobramento da individualidade240. Wilhelm não poder desenvolver sua individualidade num determinado sentido tem o mesmo significado de uma fatalidade natural. Ele não compreende a necessidade de desistir de suas inclinações teatrais, as quais ele não sente, ao final, realizadas. Mas sua atividade tem de mudar, e por isso, sua concepção tem de mudar. A individualidade tem sua unidade harmônica – ainda que irrealizada – destruída. O significado subjacente ao destino de

238

Muito se falou sobre Mignon na crítica. Entre os estudos mais conhecidos está o de Ammerlhan (1968). Especialmente pela primeira geração de românticos, no contexto da oposição entre poesia e prosa: “todo o verdadeiro maravilhoso é por si poético /.../ a essência maravilhosa [Wunderwesen] de Meister não está no mecanismo de madeira – que poderia ser mais polido e mais forte –, mas no abismo espiritual esplêndido de Mignon e do harpista, que por sorte é tão profundo que as escadas posteriormente introduzidas pela genealogia resultam demasiadamente curtas” (Jean Paul, Vorschule der Ästhetik. 1.Programm §5). Friedrich Schlegel vê na morte de Mignon e do harpista o fim da poesia natural [Naturpoesie] (cf. recensão sobre o livro; fragmento do Lyceu, n. 120). Novalis vai na mesma direção. Hannelore Schlaffer comenta que a crítica se divide, a esse respeito, em duas frentes: aquela que vê (na morte de Mignon e do harpista) a derrocada da poesia como perda, e aquela que considera a superação da existência poética, por Wilhelm, como ganho para o indivíduo que se desdobra. Estes últimos são os que interpretaram o romance como Bildungsroman. Autores que analisam detalhadamente os dois personagens em geral afirmam o sofrimento, a renúncia e a morte como poderes irrefreáveis no romance. A escola de Max Kommerell (1902-1944) segue essa tendência, é o caso de Karl Schlechta, de quem Schlaffer segue a interpretação, embora não compartilhe da visão pessimista sobre o declínio da arte e da humanidade (cf. Schlaffer, p. 219-220). 240 Mas não foi interpretado dessa maneira pela crítica romântica, que na maioria das vezes contrapôs-se ao romance de modo irracionalista e niilista, negando todas as relações econômicas – veja-se o fantasioso e místico romance de Novalis Heinrich von Ofterdingen, realizado em resposta ao Meister para que a poesia pudesse vencer. 239

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Wilhelm Meister, a tristeza da renúncia à autoatividade para o desdobramento da individualidade são mostrados apenas simbolicamente, com as mortes de Mignon e do harpista, que podem ser entendidas como um atrofiamento de parte constitutiva importante da individualidade do herói. A nostalgia de uma harmonia interna conhecida intuitivamente, mas na prática inalcançável e, mais precisamente, tragicamente perdida: Wilhelm é levado a reconhecer a necessidade de seu destino241. A condução do destino de Wilhelm é uma metáfora do predomínio, ao fim e ao cabo, de determinações da sociabialidade que incidem sobre a individualidade, sociabialidade que conhece os anseios de Wilhelm, que os gerou, e, apesar disso, por intrincados caminhos faz com que as exigências dela predominem na orientação e no conteúdo da atividade individual dele. Wilhelm está entranhado de determinações sociais sem se aperceber disso.

241

Rosales, em referência a Dom Quixote e sua contínua ressurreição do passado, diz algo que se aplica perfeitamente ao destino não realizado de nosso herói: “pode estar relegado e em um segundo plano, mas não pode desaparecer” (p. 769).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Erro e falsa tendência Levando em conta as características do diletantismo artístico, Goethe reconhece numa carta a Friedrich Heinrich Jacobi (2 de janeiro de 1800) que sua atuação sobre as artes plásticas é diletante. Assim, minha tendência prática para as artes plásticas era uma falsa tendência, pois eu não tinha disposição natural para isso, e a mesma não poderia, portanto, desenvolver-se em mim. Certo carinho com os arredores da paisagem me era próprio e por isso minhas primícias foram promissoras. A viagem para a Itália destruiu essa alegria prática; uma ampla perspectiva assomou ao lugar, mas a amável capacidade se perdeu, e já que não se podia desenvolver um talento artístico nem técnica nem esteticamente, então meu anseio desvaneceu em nada (Gespräche mit Eckermann, 20.4.1825, pp. 132-133).

Se excetuarmos a maneira como Goethe configura a sensibilidade do herói – prova mais cabal do conteúdo de sua enteléquia – Wilhelm é configurado ambiguamente no decorrer de sua trajetória, ele tem tanto características de diletante quanto de verdadeiro artista242. Por vezes, o autor nos induz a pensar que Wilhelm não tinha talento para aquela arte, por exemplo, quando Serlo diz a Wilhelm que sua estreia na carreira era muito escrupulosa, e o narrador comenta: Wilhelm pretendia desenvolver tudo das idéias que ele havia concebido, e tratar a arte como um todo. Queria fixar regras explícitas, definir o justo, belo e bom e o merecedor de aplauso; enfim, tratava tudo com extrema seriedade (IV 18, p. 266).

E Goethe afirma: “A verdadeira arte pode surgir apenas de seriedade e jogo

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Neumann (1992) é um dos que interpreta a carreira teatral de Wilhelm como um “evidente diletantismo”, de modo que, com a aceitação na Torre, o herói encerra formalmente seu tempo de aprendizado. Schings fala de uma sensibilidade ingênua, porém desperta e receptiva que é própria a Wilhelm, no sentindo de deduzir que sua falta de senso estético para as artes plásticas significa também uma falta de aptidão para a arte em geral (1985, p. 73).

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intimamente ligados”243, e o diletante só observa a arte de um modo ou de outro. Por fim, Jarno declara que Wilhelm só sabia representar a si mesmo. Outras vezes, no entanto, vemos que em seu empenho Wilhelm angariou reconhecimento por sua arte, e, longe de considerar-se inapto para o teatro, o herói passa a perceber na própria experiência os obstáculos que se interpõem à prática de sua atividade. Além do mais, olhando retrospectivamente, Wilhelm escolhe uma arte particular, faz dela profissão, liga-se ao mundo dos artistas, exercita sua arte de acordo com a ciência. Mais ele não pôde fazer, pois sua trajetória no teatro deveria acabar. Ora, justamente essas características diferenciam o diletante do artista244. Se podemos falar em autoengano, ele ocorre não no erro de percepção e avaliação das próprias tendências, mas sobretudo na maneira como Wilhelm ignora as debilidades e decrepitudes em suas relações humanas, estas que são predominantemente oriundas das relações baseadas em interesses materiais – como se observa claramente no círculo natal do herói, no âmbito teatral e entre os nobres da Sociedade da Torre. Wilhelm, apesar de crítico do comércio e de aspectos gerais da classe burguesa, não sabe ao certo sobre e nem lhe apetece manifestar atenção pela organização social em seu conjunto, isto é, em como as relações se organizam e os indivíduos interagem245. O humanismo de nosso herói deixa-se entrever, ironicamente, justamente através dos mecanismos de autoengano – geralmente consciente, e portanto tal comportamento é simplesmente uma escolha voluntária pelo desprezo dos “defeitos” alheios, visando, evidentemente, o fim maior (os elevados fins da

243

Goethe: Berliner Ausgabe. Aufbau, Berlin 1973, p. 268. Über den sogenannten Dilettantismus, p. 261. Para mais distinções entre o dilentante e o verdadeiro artista, ver as oito cartas de Der Sammler und die Seinigen. Mesmo que haja pouco a se dizer a favor da grandeza da personalidade de Wilhelm (“Sem dúvida, na arte e na poesia a personalidade é tudo; mas existiram personagens fracos entre os críticos e os juízes de arte da época mais recente, os quais não quiseram confessar isso e quiseram contemplar uma grande personalidade em uma obra de poesia ou arte apenas como um tipo de acréscimo menor”, Eckermann, 13.2.1831, p. 387), como ator ele está inteiramente de acordo com as recomendações do próprio Goethe, que assim inicia o texto em que oferece algumas regras para os atores: “A arte do ator consiste na linguagem e no movimento corporal” (Goethe, Regeln für Schauspieler), o que Wilhelm exercitou desde a infância e deseja aperfeiçoar no teatro (na carta a Werner, V 3, para se aproximar da aparência nobre). 245 Depreciativamente, Trunz considera que o idealismo de Wilhelm advém de seu filisteísmo pedante (1981, p. 695). 244

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arte teatral e do amor). Apesar de muitas vezes agir generosamente porque isso vai de encontro aos seus objetivos pessoais, Wilhelm age também desmotivado de tais objetivos (como nas inúmeras vezes em que demonstra seu apreço pelo homem ao ajudar pessoas em situações críticas ou perigosas). Por outro lado, Wilhelm não se importa com as relações sociais em seu conjunto porque está estrita e estreitamente vinculado apenas aos seus objetivos particulares que em nada se aproximam das ambições puramente materiais que regem aquelas. Por essa razão, é mais conveniente ignorar tudo que contradiga suas aspirações, o que consequentemente não o torna apto a enxergar os móveis da realidade que determinarão objetivamente o destino dos seus anseios. Os inícios de Wilhelm Meisters ficaram por longo tempo em suspenso. Eles provêm de um obscuro pressentimento da grande verdade: que o homem frequentemente gostaria de experimentar algo para o que a natureza lhe negou disposição, gostaria de empreender e exercitar [algo] que nele não se pode transformar em habilidade [wozu ihm Fertigkeit nicht werden kann]; um sentimento interior previne-o para desistir, ele não pode, porém, chegar às claras consigo e é impelido por falso caminho para falso objetivo, sem que ele saiba como isso ocorre. Tudo que se chamou de falsa tendência, diletantismo etc. pode ser contado. Se acerca disso desponta para ele de tempos em tempos uma meia luz, então surge um sentimento que beira o desespero, e ele deixa-se, de novo, temporariamente, apenas meio contraditado, ser arrastado pela onda. Muitos desperdiçam com isso a mais bela parte de sua vida e decaem finalmente em estranha melancolia. E no entanto é possível que todos os passos falsos conduzam a um bem inestimável: uma punição que se desdobra, esclarece-se e confirma-se sempre mais em Wilhelm Meister, e se pronuncia por fim com palavras claras: ‘você me parece Saul, o filho de Quis, que saiu para procurar as jumentas de seu pai e encontrou um reino’ (Urteile über Wilhelm Meisters Lehrjahre, p. 618, Tag- und Jahreshefte 1819/20 do trecho “até 1786”).

Temos novamente expressas as ideias espinosanas de que o homem, sem saber, age para o seu bem e deve ter o controle de suas paixões, que é como Goethe compreende a insistência numa falsa tendência da individualidade, que se autoengana pois no fundo sabe que jamais será capaz de realizar tal tendência à perfeição. Quem há de negar que todos os dias os indivíduos, muito especialmente os jovens, defrontam-se consigo mesmo em busca de sua vocação na vida, perscrutam-se sem cessar a fim de descobrir a certeza íntima de que nasceram para exercer tal ou qual ofício? Goethe debruça-se sobre essa verdade tão premente num mundo em que o trabalho se “libertou”, verdade que por sinal ele também 315

viveu, tendo de reconhecer dolorosamente que jamais seria um grande artista plástico. Mas será esse o caso de Wilhelm? Será que Goethe, em suas formulações extraliterárias, não deixou oculta outra grande verdade do mundo burguês, isto é, que nem sempre as condições sociais de existência permitem que a individualidade se desdobre de acordo com suas faculdades e potencialidades?246. Há nos indivíduos falsas tendências e diletantismos de todo tipo, contudo, se fosse de fato esse o caso para o nosso herói, o romancista assinalaria de algum modo a descoberta de uma disposição autêntica e seu desdobramento prático, em suma, indicaria o encontro de Wilhelm com sua verdadeira “vocação” [Beruf]. Mas isso não acontece. Ao contrário, sua receptibilidade aos objetos artísticos é tanto mais realçada quando se tem em vista a falta de interesse do protagonista pelo que o narrador chama de “mundo exterior”, algo que se mostra forte até o fim, com Wilhelm pensando em Therese e em Felix enquanto Jarno, o abade e Lothario discutiam como dividiriam as terras prestes a serem negociadas com um comerciante esperto (Werner). Seus novos pensamentos sobre as vantagens de um sólido patrimônio, agora que se tornara pai, apenas contrabalançam suavemente esse desinteresse, pois ele não se volta aos assuntos econômicos propriamente, e sim aos de ordem sentimental e filosófica advindos de sua nova situação. Por isso, apesar de Wilhelm declarar que é feliz, o final do romance permanece intrigante. Concedamos por um instante que Wilhelm não possuía verdadeira inclinação para o teatro. Para ele o teatro não era algo intrínseco à sua individualidade, algo pelo que ele era impelido por um impulso interior à atividade e que, por isso, levaria adiante de qualquer maneira. Digamos que seu talento era medíocre. E que no teatro ele se ligava apenas ao superficial, à aparência aliada a alguns belos sentimentos pela humanidade que, com um toque de vaidade e ingenuidade, o fazem imaginar poder criar o teatro nacional. Nesse caso, se não creditarmos essa descoberta ao futuro que ultrapassa a trajetória do herói nesse romance, o trágico de sua existência é que nele não há inclinação verdadeira (e nem

246

“Lord Byron é grande apenas quando poetiza, tão logo ele reflete, é uma criança” (Eckermann, 18.1.1825; p. 121). O polímata Goethe não pode ser comparado a Byron, porém (parafraseando Lukács), essa citação poderia ser uma confissão às avessas de Goethe de que o realismo triunfou contra suas intenções.

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Bildung possível, se esta for entendida como acesso às faculdades inatas) – ele é plástico e indeterminado e por isso é perfeito para servir, de bom grado, por fim, ao capital. Demonstra-se assim que, de um modo ou de outro, com ou sem verdadeiras inclinação e disposição artísticas, Wilhelm estava destinado a tornar-se uma personificação econômica. Portanto, nossa argumentação situa-se num momento anterior: havendo ou não inclinação (embora para nós seja evidente sua existência, inclusive porque, se Wilhelm tivesse podido seguir suas inclinações e exercer suas disposições de modo a corresponder à sociedade, o conflito do romance simplesmente não existiria), o indivíduo não pode autodeterminar-se em sentido algum na sociedade burguesa, ele é simplesmente uma personificação econômica abstrata para a qual o conteúdo da atividade é indiferente. Assim, a colocação do problema não pode se resumir a identificá-lo na falsa inclinação de Wilhelm, no teatro em si mesmo, ou exclusivamente na sociedade. A investigação deve se dar em torno dos motivos ou dos meandros da impossibilidade de desenvolvimento da individualidade por meio da autoatividade, deve, portanto, primeiramente compreender e aceitar Wilhelm integralmente nas relações sociais, estas que devem ser igualmente compreendidas sem falsificação ou fantasia. A perspectiva moralizante, própria e talvez necessária aos romances do século XVIII, deveria deixar claro que o herói tinha um caminho a seguir, o caminho correto, e este era o da classe dominante. Assim, o erro é apontado por aqueles que interpretam que Wilhelm deveria ter desde o início se ajustado à sociedade (e por isso nosso herói sempre lembra algo de quixotesco). Ora, essa é a perspectiva de uma sociedade que menospreza as carências da individualidade. Quando se analisa a história de Wilhelm Meister pela perspectiva do herói e pelos fatos (e não pelas teorias da Torre), o romance torna-se um manifesto crítico: ele evidencia que Wilhelm foi impedido de desdobrar suas inclinações e disposições individuais inatas.

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Renúncia e felicidade. Espinosa, Wilhelm e a Bildung247

H{ uma grande diferen}a se eu me resigno nas fronteiras da humanidade ou dentro de uma hipotetica limita}ao de meu individuo estreito (Maximen und Reflexionen). Esta obra pertence, aliás, às mais incalculáveis produções para as quais quase até mesmo me falta a chave. Procura-se um centro, e isso é difícil e nem sempre

247

Questoes filosoficas presentes em WML nao sao simplesmente questoes goethianas, mas, principalmente, problemas de sua epoca. Espinosa (1632-1677), considerado pensador heretico, vivia uma epoca de reabilita}ao e nova avalia}ao na Europa, epoca da qual Goethe, mas tambem Lessing, Herder, os primeiroromanticos e ate Hegel participaram, mesmo que o antissemitismo influisse desde esse tempo na critica cientifica do pensamento espinosano. Acompanhando o curso da historia alema que desembocou no nazismo, no entanto, a pesquisa passou paulatinamente a afastar essa influencia sobre o pensamento de Goethe. Assim, se ate aproximadamente meados do seculo XIX nao pairava sequer uma sombra de duvida sobre isso (Heine ate mesmo nomeia Goethe como o “Espinosa da poesia” – em Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland), j{ nas ultimas decadas do mesmo seculo, iniciando significativamente com Wilhelm Dilthey, o espinosismo de Goethe come}ou a ser relativizado pela filologia ate chegar a sua total elimina}ao em meados do seculo vinte. Somente com germanistas da Republica Democr{tica Alema (DDR) o impacto de Espinosa sobre Goethe volta a ser reconhecido (Veja-se Braemer, 1959, e Lindner, 1960; Bollacher observa aqui que tal pesquisa era “estreitada doutrinariamente e o espinosismo adotado como materialismo”, p. 1000). Bollacher (1969) nomeia-se, ao lado de Hermann Timm (1974), como o primeiro a apresentar, revalidado e apreciado, o espinosismo de Goethe). O filosofo teria tido uma influencia tao profunda na Bildung de Goethe que ela e compar{vel apenas ao efeito que Lineu (nas ciencias naturais) e Shakespeare tambem exerceram sobre ele. º possivel encontrar diversos vestigios de Espinosa nos escritos do artista, desde a tese apresentada Ω Universidade de Estrasburgo, em 1773, ate as concep}oes filosoficas predominantes em WML (Kemper: 2004). Encontram-se em Goethe congruencias filosoficas com Espinosa especialmente no que concerne Ω filosofia da natureza e Ω unidade de um mundo divinamente pensado. A teoria de Espinosa e interpretada como fruto de uma sagrada dire}ao vital e como a confirma}ao da moderna perspectiva secular de mundo do artista, o que lhe possibilitou o reconhecimento de sua fundamental cren}a panteista, que se manifesta na unidade entre Deus e a natureza (Bollacher, p. 1000, Goethe Handbuch). Assim, no que concerne Ω religiao e ao ceticismo frente Ω igreja, Espinosa e a mais forte influencia de Goethe (Bohme, p.163-165). Sabe-se que Goethe dedicou-se, sobretudo, ao estudo da Etica de Espinosa, j{ partir dos anos 1770. Desde meados dos anos 1780 Goethe empreende observa}oes da natureza com diversas conexoes filosoficas. Em intercambio com ideias de Herder e Jacobi, Goethe ocupou-se centralmente com Espinosa (Steiner, p. 114), chegando a estudar a Etica com Charlotte von Stein no inverno de 1784-1785. A filosofia espinosana “ofereceu a ele o fundamento etico-ontologico para sua cren}a na natureza e no mundo [Welt-e Naturfrommigkeit] e permitiulhe apreender como unidade integradora a variedade de suas perspectivas esteticas, antropologicas, religiosas e cientifico-naturais” (Bollacher, p. 1001). Luk{cs comenta que Espinosa, na Etica e sua respectiva divisa do “Amor Dei intellectualis”, combate a antiga doutrina que baseava a etica numa rela}ao metafisica de recompensa e castigo. No lugar dela, coloca como finalidade etica ultima a pr{xis humana terrena. Nas famosas palavras referentes Ω scientia intuitiva espinosana: “Deus castigou[-me] com a metafisica /.../, mas com a fisica me aben}oou, para que na contempla}ao de suas obras eu me transformasse” (Goethe a Jacobi, 5.5.1786), Goethe encontra uma expressao pontual dessa alian}a de interesses filosoficos e cientifico-naturais. Numa carta a Voigt de 27 de fevereiro de 1816, falando de seu “antigo senhor e mestre”, Goethe enuncia uma ideia que est{ na boca do protagonista de Os anos de aprendizado: “O filosofo no qual eu em geral confiei, /

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bom. Eu devia achar que uma vida rica, variada, que passa aos nossos olhos, seria também em si algo sem tendência pronunciada, esta que existe, porém, meramente para a ideia [Begriff]. Mas se quisermos completamente desse modo, então temos nas palavras de Friedrich, dirigidas no final ao nosso herói, quando diz: ‘Você me parece Saul, o filho de Quis, que saiu para procurar as jumentas de seu pai e encontrou um reino’. Eis aqui. Pois fundamentalmente o todo não parece, porém, nada mais querer dizer que o homem, apesar de todas as bobagens e erros, mas dirigido por uma mão mais alta, alcança o feliz objetivo (Conversas com Eckermann, 18.01.1825, p. 619-620).

Goethe inicia na década de 1770 o estudo da Ética de Espinosa e anos mais tarde escreverá a Jacobi (21.10.1785) que esse é “o livro, dentre todos que conheço, que mais vem de encontro ao meu modo de pensar”. Muitos críticos souberam reconhecer a influência de Espinosa sobre a obra de Goethe em geral e sobre Wilhelm Meister em particular248 – o próprio poeta, nos livros 15 e 16 de sua autobiografia Da minha vida. Poesia e Verdade, oferece um resumo sobre sua experiência juvenil com Espinosa (algo que facilitou o abandono do subjetivismo exagerado do Sturm und Drang) e o efeito que ele exerceu ao longo de sua vida, repercutindo até sua obra tardia, como na ideia de renúncia [Entsagung]. Portanto, a visao de Espinosa est{ especialmente onipresente nao somente em WML, mas em todo o ciclo Meister. Mas em nossas pesquisas não encontramos ninguém que fizesse a relação do pensamento de Espinosa com o protagonista – pois o filósofo

Ensina que nao em todas, porem, no mais das vezes, / inconscientemente nos realizamos o melhor: / Nisso se acredita com prazer e se vive entao despreocupadamente [frisch ins Blaue]” (citado em Bollacher, p. 1002). 248 A respeito das influências filosóficas que teriam agido na configuração de WML, não existe uma única opinião, ou melhor, uma perspectiva consensual. Ainda que perto da última retomada de Os anos de aprendizado (no início de sua amizade mais próxima com Schiller) Goethe tenha reafirmado repetida e expressamente a crescente influência da filosofia kantiana, somente mais tarde o peso determinante do filósofo é reconhecido em sua vida, como ele esclarece em conversa com Eckermann de 12 de maio de 1825: “Que Lessing, Winckelmann e Kant eram mais velhos do que eu, e os dois primeiros agiram em minha juventude e o último no minha velhice, foi para mim de grande significado”. Desde que, num encontro em Jena em 1794, Schiller explicou a Goethe a relação e a diferença entre experiência e ideia segundo os conceitos de Kant, Goethe aprofundou-se no estudo do filósofo de Königsberg (Günter Hartung, Goethe Handbuch, Immanuel Kant, p. 589). Kemper, que analisou especificamente as teorias filosóficas que atuam no romance, não menciona a influência kantiana que seria tão evidente segundo outros autores (vide Marahrens, p. 160-163, na análise da passagem sobre destino e acaso em I 17). Já a influência de Lessing sobre Goethe foi sobretudo pela via da dramaturgia, não tanto pela crítica e pela teoria. Sobre as diferenças entre ambos, Goethe comenta com Eckermann em 11 de abril de 1827: “Lessing detém-se, segundo sua natureza polêmica, preferencialmente na região da contradição e da dúvida /.../ Eu nunca me envolvi em contradições, as dúvidas eu procurei equilibrar no meu interior e apenas expressei os resultados encontrados” (Cf. também Johannes John, Gotthold Ephraim Lessing, p. 658.).

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maldito é geralmente tido apenas como a autoridade subjacente à teoria dos representantes e ao círculo da Sociedade da Torre 249. Porém, a concepção de um Deus imanente à natureza em Os anos de aprendizado faz com que a natureza seja a “força atuante tanto no próprio indivíduo quanto fora dele” (Igel: 2007, p. 683) e o princípio atuante de duas instâncias concorrentes, Wilhelm e a Torre. De fato, a Sociedade da Torre representaria o racionalismo absoluto da filosofia espinosana, “a confiança na capacidade libertadora da razão” 250 (Chauí: 1995, p. 35): a realidade é passível de ser inteiramente conhecida pelo nosso intelecto, não havendo lugar para qualquer obscurantismo. Segundo essa perspectiva, o homem não deve prender-se ao medo ou à esperança de que algo aconteça, deve afastar-se de tudo que lhe causa tristeza. É fácil reconhecer aqui a filosofia dos membros da Torre empregada para combater os pensamentos do herói sobre destino e acaso e que também serve como explicação para o fim daqueles que, supersticiosos como Mignon e, sobretudo, o harpista, foram marcados por um destino trágico251. O medo e a esperança seriam frutos da maneira como nossa imaginação apreende inadequada e confusamente a natureza: uma força onipotente e onisciente, que governa tudo segundo sua vontade, esta que o homem em última instância não seria capaz de compreender. A religião seria, então, a forma dos homens estabelecerem uma relação de submissão e veneração com essa divindade (e uma vez conhecidas as causas do medo e da esperança, cessam suas repercussões religiosas e políticas).

249

Kemper (2004, p. 210-211) é um dos que vê no abade, em sua posição do mentor intelectual da Sociedade da Torre, especialmente sobre o importante problema necessidade-acaso-destino, clara presença espinosana. Essa perspectiva de análise foi aberta por Schings, que apesar de acentuar essa influência sobre Natalie, reconhece que a ultrapassa, uma vez que o cerne da doutrina da Torre torna-se completamente compreensível somente com Espinosa (Schings, Natalie und die Lehre, p. 56). 250 “Sendo o Pensamento um atributo de Deus, tudo quanto existe – Deus, seus atributos e seus modos –, isto é, a Natureza Naturante e a Natureza Naturada, são plenamente inteligíveis, não havendo no universo mistérios, milagres, forças ocultas, nem fins incompreensíveis” (Chauí: 1995, p. 50). 251 No Tratado teológico-político (1670), aproximando-se muito da concepção dos membros da Sociedade da Torre e ao mesmo tempo do que o romance mostra serem as reais causas moventes da concepção de destino e acaso de nosso herói, escreveu Espinosa: “Se, em todas as circunstâncias, os homens pudessem decidir com segurança, ou se a sorte lhe fosse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição. Mas como se encontram frequentemente perante tais dificuldades e não sabem que decisão hão-de-tomar, e como os incertos benefícios da sorte que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre dispostos a acreditar seja no que for /.../. O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição” (2003, p. 5).

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A felicidade de Wilhelm no fim do romance não é um acaso; como diz Lothario, a natureza agiu, e o herói, reciprocamente, agiu de acordo com a natureza. Agir de acordo com a natureza é o que Espinosa define como virtude. Para o filósofo, o homem é livre para pensar e agir porque ele é parte da natureza divina252, a natureza ajuda-o a encontrar seu caminho e, por isso, Wilhelm, no fim, encontra a felicidade 253. Assim, o que foi interpretado no século XVII como o fatalismo da filosofia de Espinosa é justamente sua demonstração de que a realidade é regida por leis universais, necessárias, imutáveis e eternas, às quais os seres humanos também se encontram submetidos, pois a noção de livrearbítrio é ilusória, sinal de nossa ignorância quanto às causas necessárias que determinam nossas ações, ideias e desejos (Chauí: 1995, p. 11).

Assim, apesar de existir desconhecimento do homem em relação à natureza, não há uma contradição entre ambos. Espinosa, no Livro II da Ética, enuncia que: “A ordem e conexão das ideias é a mesma que a ordem e conexão das coisas” (proposição 7). Para ele, não há um abismo que impossibilite o conhecimento dos objetos e a ação dos sujeitos sobre eles254. A sensibilidade do protagonista, da qual o elemento mais explícito é o amor e o mais discreto é a maneira como todo seu ser se irmana à natureza, como se por meio de seus sentidos fosse dela sua extensão mesma, denota que Wilhelm é receptivo a determinações circunstanciais até o ponto de ser representado unificado com tudo que existe, num certo nível intangível, por certo, quase místico, como o sente o próprio Wilhelm; um nível onde

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“Dizemos que um ser é livre quando, pela necessidade interna de sua essência e de sua potência, nele se identificam sua maneira de existir, de ser e de agir” (Chauí: 1995, p. 52). 253 Por isso, para Igel, a natureza é no romance de Goethe equivalente ao Deus do romance barroco. “Não um Deus pessoal preocupa-se em WML pelos encontros e reencontros felizes, mas uma força divina; pois o divino manifesta-se na natureza” (Igel: 2007, p. 694). “A secularização na obra goethiana é a mudança do Deus sobre nós para o Deus em nós, que aparece no aspecto do realismo goethiano como um Deus imanente natural e mundial” (Wolfgang Binder citado em Igel: 2007, p. 695). Aproveitamos para notar que no que concerne à existência de uma divindade imanente no mundo, Goethe foi influenciado primeiramente pelo pensamento de Giordano Bruno. 254 Essa unidade fundamenta-se no monismo da filosofia espinosana em que Deus é compreendido como imanente à natureza (ou seja, não transcendente) e o homem, por sua vez, como todas as coisas, é parte da natureza ou, em outras palavras, é um modo singular finito da substância infinita (Deus). A especificidade humana é que sua constituição é a mesma de sua causa imanente, isto é, compõe-se da mesma unidade complexa e é da mesma natureza que ela: “pelo atributo Pensamento, é uma ideia ou mente ou alma; pelo atributo Extensão, é um corpo” (Chauí: 1995, p. 54).

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os antagonismos, portanto, se dissolvem, é a supressão da oposição entre sujeito e objeto. Somos o que fazemos e sentimos, nossa essência e nossa potência são idênticas, assim como ambas são na substância divina. Assim, se Wilhelm está de antemão integrado, sua existência e atividade são expressão da natureza divina. Contudo, para Espinosa, ainda que corpo e alma não estejam em oposição e haja uma correspondência entre os acontecimentos corporais e psíquicos, que provêm de uma mesma causa (ou substância), isso não significa que ambos estejam em equilíbrio e harmonia. Os problemas humanos advêm exatamente da falta de conhecimento dos homens sobre o que concerne ao corpo e à alma. Essa relação é mediada, e por isso a ética assume um lugar proeminente: A ética espinosana busca o livre exercício do corpo, da alma e a da razão. Sua viga mestra é a ideia de que o homem é parte imanente da Natureza, não sendo um império num império – um poder rival ao da Natureza – nem, por sua paixões e ações, um agente perturbador da ordem natural, mas uma parte dela que possui a peculiaridade de não ser apenas parte e sim capaz de tomar parte na atividade do todo do universo (Chauí: 1995, p. 53).

De acordo com Espinosa, se o espírito do homem apresenta uma ideia adequada frente ao contexto da necessidade universal da natureza, ele está em estado de ação; do contrário, se ele tem uma ideia inadequada, está em estado de paixão255. A ação traz a alegria do espírito; a paixão, tristeza. Em ambos os estados, o homem está sob o domínio dos afetos, e quanto mais ele se deixa dominar por eles, mais está sob o poder do destino cego, da fortuna. O domínio da sorte é consequência, portanto, do domínio sobre os próprios afetos. Se o indivíduo apresenta ideias inadequadas, paixões, ele precisa corrigir seu intelecto de modo a ser capaz de se resignar à necessidade divina e alcançar o amor Dei intellectualis, atingindo assim a liberdade humana. Essa unidade dos seres fundamenta “o ‘amor intelectual da alma por Deus’, pois esse amor não é senão o amor infinito dos homens uns pelos outros e seu amor por todos os seres da Natureza” (Chauí: 1995, p.72) 256. 255

Nas partes II e III da Ética é desenvolvida a Doutrina dos Afetos. Diz Espinosa: “um afeto que é uma paixão cessa de sê-lo tão logo nós formemos uma ideia clara e nítida sobre ele” (apud Kemper, p. 212). 256 “O amor é, para Espinosa [Livro IV da Ética], o afeto da alegria como percepção do aumento de nossa força para ser, agir e viver em ato. /.../ Na paixão e na servidão, os humanos são contrários a si mesmos e contrários uns aos outros, cada qual cobiçando como maior de todos os bens a posse de um outro

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Goethe faz uma estreita ligação (como Lessing e Herder) entre amor de Deus e amor entre os homens (a “Gottesverehrung des Atheisten”, carta a Jacobi 5.5.1786, p. 85). Essa harmonia que Wilhelm deve buscar. O problema é que o que se denominou de “paixão” dominante de Wilhelm – a atividade teatral – teve de ser retirada de sua constituição individual (sua Bildung, entendida como resultado de um processo, é então definida negativamente: ele aprendeu que não era possível exercer a atividade para a qual havia – ou, de acordo com outros, pensou haver – nascido); ela teve de ser substituída. Seu lugar foi ocupado pelo amor supremo de Natalie; assim, não houve uma troca de equivalentes (só uma paixão pode sobrepujar outra paixão), houve uma expansão de algo – um sentimento – já existente e forte na individualidade do herói, algo que o envolve e o ultrapassa. O amor, um sentimento amplo e aberto ao mundo, eleva Wilhelm à maestria, consagra seus anos de aprendizado; o amor é liga das relações de Wilhelm e móvel de suas ações, e, por fim, seu destino 257. Mas o amor fica excluído da atividade do herói, assim como o quis a Torre. Se prosseguimos com Espinosa, mas da perspectiva do herói, chegamos a uma conclusão bem distinta da que alcançamos com a perspectiva da Torre: descobrimos que sua disposição para o teatro não é uma paixão que deve ser suprimida, mas sim uma aptidão que deveria ser desdobrada. Por isso, a consequência que se extrai da lógica da Torre não é apenas suspeita, mas deveria ser impossível de acordo com o pensamento espinosano, integrativo, harmônico, cujo telos máximo é a felicidade. Na proposição 29 do Livro I, o filósofo enuncia: “na natureza das coisas nada é casual, ao contrário, tudo é determinado por força da necessidade da natureza divina a existir e atuar de certo modo”

humano /..../” (Chauí: 1995, p.72). 257 Espinosa estudou, dentre outros, Leão Hebreu, grande neoplatônico da Renascença que concebia o mundo fundado no amor como força cósmica (CHAUÍ, M., p. 15). Sob esse ângulo, não é exagero afirmar que “o romance e seu herói pertencem completamente ao espírito da amada” (Schings, schöne Amazone, p. 56). Schings liga Espinosa a Natalie de modo contundente, e por via dela, vestígios espinosanos são vinculados a Wilhelm – esses rastros no herói, porém, não mereceram no estudo mencionado uma investigação pormenorizada. O autor argumenta que o direcionamento de Wilhelm ao encontro com a bela amazona acontece num momento em que Goethe retoma seu Theatralische Sendung, por volta de 1785; esquece-se de mencionar, porém, que o conhecimento da Ética vem da década anterior, podendo estar presente, portanto, desde os inícios da concepção de Wilhelm Meister, cujo primeiro registro data de 1777.

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(cf. Schings, p. 62). Além disso, se “é da natureza da alma estar internamente ligada a seu objeto porque ela não é senão atividade de pensá-lo, potência para abrir-se ao objeto e para acolhê-lo” (Chauí: 1995, p. 59), Wilhelm nada mais faz em sua aventura teatral do que unir-se ao seu objeto, algo que ele enuncia literalmente em mais de uma ocasião. Por outro lado, se “a filosofia de Espinosa é uma ética da alegria, da felicidade, do contentamento intelectual e da liberdade individual e política” (Chauí: 1995, p.52), pode-se deduzir que não cabia a Wilhelm uma atividade que não fosse capaz de lhe oferecer esses bens tão preciosos; e nessa medida, o teatro teve de ser entendido conscientemente como paixão que, portanto, teve de ser corretamente reorientada pelo intelecto, isto é, suprimida enquanto paixão despertadora de esperanças e causadora de tristeza. Porém, a melancolia e a tristeza decorrem justamente por Wilhelm não conseguir realizar sua inclinação teatral. Afinal, soube Wilhelm identificar o que a natureza lhe reservara? Deveria ele exercitar continuamente seus afetos para enfim se conectar com as finalidades que a natureza lhe reservou? Algumas aporias a que chegamos observando Wilhelm pela filosofia de Espinosa talvez sejam solucionáveis se recorrermos ao conceito de Bildung, este que se vincula intimamente à ideia de natureza imanente258. A Bildung humana tem em Goethe um fundamento ontologico de car{ter filosofico-natural (Jacobs; Gamm) em que a realidade é apreendida como um cosmos em que cada objeto tem uma necessidade intrinseca de desdobramento, como uma semente que contem potencialmente em si a planta na qual deve se desenvolver (o conceito de entelequia, de Aristoteles). Assim, a natureza forma o homem e cria para ele, ao mesmo tempo, as possibilidades de sua propria transforma}ao [Umbildung]. “O crescimento da planta – como Ausbildung de for}as formais intrinsecas – e o processo de forma}ao autoconformado [selbstgestaltet] do homem transformam-se para Goethe em met{fora da natureza que se renova inesgotavelmente, cuja for}a transpessoal e apenas percebida com admira}ao” (Bohme, p. 43). Em razao da maneira com que operam as for}as naturais, compreende-se que Goethe, na pedagogia pr{tica, nao tenha se envolvido

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E também a Deus: “Bildung nao pode existir sem essa experiencia do divino”, Bohme, p. 166.

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em um canone de recomenda}oes regulativas ou did{ticas, mas reconhecido, na espontaneidade corporal e espiritual da crian}a, o impulso necess{rio para a futura for}a vital desta. Mas a espontaneidade natural cede lugar, no homem, ao trabalho sobre si mesmo em ânimo e domínio ao longo da vida, em que o autodestrutivo deve ser afastado, a limita}ao deve ser exercitada e o caracteristico/tipico [Eigentumlichkeit] alcan}ado. O complicador humano é que a necessidade natural interna de desdobramento – denominado Bildung – pode ser aperfeiçoada, redirecionada e até anulada pelo homem por meio da educação e da moral. Como vimos (II 9), a Sociedade da Torre considerou que a ausência de uma Bildung apropriada à constituição de Wilhelm em sua infância foi um dos principais fatores que determinaram de uma vez por todas seu destino. Contudo, pode-se relativizar essa opinião (e com isso questionar a Sociedade da Torre) se considerarmos que Wilhelm poderia ter elevado sua Bildung: Tem de se ser algo, para fazer algo. Dante nos parece grande, mas ele tinha uma cultura de séculos atrás de si; a casa de Rothschild é rica, mas custou a mais de uma geração conquistar tais tesouros. Essas coisas situam-se sempre mais profundamente do que se pensa. Nossos bons artistas alemães antigos nada sabiam disso, eles voltam-se para a imitação da natureza com fraqueza pessoal e inaptidão [Unvermögen] artística e acham que isso seria alguma coisa. Eles estão abaixo da natureza. Quem quer fazer, porém, algo de grande, tem de ter elevado de tal modo sua Bildung que seja capaz de, igual aos gregos, elevar a menor natureza real até a altura de seu espírito e fazer verdadeiramente o que, em fenômenos naturais, por fraqueza interior ou por impedimento exterior, permaneceu apenas intenção (Eckermann, 22.10.1828, p. 257).

O destino do potencial (cujo desdobramento era necessário) para ser ator não foi selado em sua derrocada já na infância. Mas se não pode ser somente por falta de Bildung na infância, chegamos à seguinte questão: por que Wilhelm não poderia ser ator se ele reconhece isso como inclinação e, sobretudo, como necessidade advinda da própria natureza? Talvez Goethe respondesse desta maneira: Como muito se tem debatido esse assunto, sobretudo nos últimos tempos, eu não gostaria de que me compreendessem mal e faço questão de deixar aqui algumas reflexões sobre esse sistema tão temido e mesmo tão detestado. Nossa vida física e moral, nossos costumes, nossos hábitos, a política, a filosofia, a religião e mesmo os sucessos acidentais, tudo nos convida à renúncia. Há muitas coisas que nos pertencem da maneira mais íntima e que não devemos exibir exteriormente; as exteriores de que necessitamos para o complemento de nossa

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existência nos são recusadas; grande parte delas, pelo contrário, nos são impostas, se bem que estranhas e inoportunas. Despojam-nos do que penosamente adquirimos, do que nos foi dispensado com benevolência, e, antes de nos darmos bem conta de nossa personalidade, nos vemos forçados a renunciar a ela, primeiro por partes e afinal completamente. Seja acrescentado que não se costuma estimar aquele que se mostra descontente com isso. Pelo contrário, quanto mais amargo for o cálice, mais se deve andar de rosto sereno, a fim de que o espectador tranquilo não seja ofendido por alguma careta. \...\ Para cumprir essa difícil tarefa, a natureza dotou ricamente o homem de forças, de atividade e de persistência; mas ele é secundado acima de tudo pela leveza de espírito, seu imperecível apanágio. Graças a ela é capaz, a cada momento, de renunciar a uma coisa, contanto que um momento depois possa apanhar outra; e é assim que, sem o percebermos, reparamos constantemente a nossa vida inteira colocando uma paixão em lugar de outra; ocupações, inclinações, fantasias, caprichos, de tudo experimentamos, para no fim exclamar que tudo é vaidade. Essa máxima falsa e mesmo blasfematória não horroriza ninguém; mais ainda: ao pronunciá-la julgamos ter proferido uma sentença sábia e irrefutável. São raros aqueles que pressentem essa impressão insuportável e que, para furtar-se a todas as resignações parciais, resignam-se completamente uma vez por todas (GOETHE, 1998, vol. X, p. 77-78).

Enquanto formação [Formung] interior abrangente do homem, aperfei}oamento espiritual ou moral, forma}ao da personalidade, como moldamento do homem por meio da educa}ao, modelo, exemplo, experiencias, vivencias, ou ate mesmo conotada como acesso Ωs capacidades inatas259, a Bildung do homem tem para Goethe um forte componente ético. A formação como apropria}ao do que e relativo Ω propria natureza, isto e, o principio individualizante260 cede lugar, em WML, à limitada e limitante obrigação moral. Nesse sentido, Wilhelm exclama: Oh, que inútil severidade da moral, quando a natureza, a seu modo amoroso, nos forma para tudo que devemos ser! Oh, as estranhas exigências da sociedade burguesa que primeiro nos confunde e nos desencaminha, para depois exigir de nós mais que a própria natureza! Pobre de todo tipo de formação que destrói os meios mais eficazes da verdadeira formação e nos indica o fim, ao invés de nos tornar felizes no caminho, propriamente! (VIII 1, p. 493)

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Kemper afirma que no século XVIII o termo Bildung é usado em dois sentidos: desenvolvimento e educação. O romance nos mostra, porém, esses sentidos especificados: como acesso às capacidades inatas; como moldamento pela natureza ou pela sociedade. 260 “As possibilidade inatas e, por isso, dadas a ele enquanto determinação de suas ações [Wirkung] formam o princípio individualizante” (Kemper, p. 253).

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A moral que se manifesta no agir denota que a Bildung, no romance, é um processo que não se realiza segundo as disposições da individualidade, às quais Wilhelm tem de renunciar261. Trata-se do reconhecimento da condicionalidade da vida social. Assim, diz Goethe inteiramente de acordo com a configuração que concedeu a seu protagonista Wilhelm Meister: Come}ar a trabalhar sobre a propria Bildung moral e o mais simples e factivel que o homem pode pretender/propor-se; o impulso nele para isso e inato; ele e dirigido, sim, for}ado a isso na vida burguesa por meio de intelecto [Verstand] humano e amor (Dichtung und Wahrheit).

Ou ainda: /.../ se o filho, apos a prematura morte do pai, nao tem mais uma juventude tao confort{vel, tao favorecida, entao talvez ele ganhe, exatamente por causa disso, mais r{pida Bildung para o mundo, por meio de oportuno reconhecimento que ele tem de se render aos outros, o que, afinal, todos nos temos de aprender mais cedo ou mais tarde (Die Wahlverwandschaften).

Goethe refere-se ainda Ω alta Bildung e sua perfei}ao nos estratos sociais mais altos (por exemplo, na conversa com Eckermann de 10.1.25), o que também coaduna-se muitíssimo com as aspirações que nosso herói acaba por desenvolver, e pressupõe um destino inelutável: inclinação e disposição para o teatro têm de ser suprimidas. Essa sua [de Eckermann] tendência natural não é realmente de tipo sociável; mas o que seria de toda Bildung, se nós não quiséssemos procurar superar nossas direções naturais? É uma grande tolice exigir que os homens devam se harmonizar a nós. Eu nunca fiz isso. Eu vi um homem sempre como um indivíduo que se basta por si, o qual eu me esforcei por investigar e conhecer sua especificidade [Eigentümlichkeit], mas do qual eu não exigi absolutamente nenhuma simpatia. Assim procedi para poder lidar com homens, e somente desse modo origina-se o conhecimento de caracteres variados, assim como a necessária versatilidade na vida. Pois exatamente em naturezas contrariadas temos de nos deter para nos entendermos com elas, e assim todos os diferentes lados são em nós estimulados e levados ao desenvolvimento e à formação [Ausbildung], de tal modo que de face a face sintam-se crescidas (2.1.1824, p.

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Essa concepção de Bildung segundo o dever corresponderia à teoria sobre a moral de Kant, na medida em que esta significa agir racionalmente visando meios e fins, o que se contrapõe à ação de acordo com a inclinação ou os desejos – concepção que opõe razão e sentimento. Pode-se entender nesse sentido a afirmação de Lukács: “A moral de Wilhelm Meister é uma grande polêmica – tácita, é verdade – contra a teoria moral de Kant” (1936, p. 602).

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98).

É necessário apropriar-se das capacidades inatas, individualizar-se ao buscar a própria peculiaridade, mas é preciso também suprimir direções naturais. A Bildung é entendida, portanto, como um conceito-irmão ao de renúncia, na medida em que pressupõe a superação das tendências naturais do indivíduo, mas paralelamente acompanhada pelo desenvolvimento de outros aspectos da individualidade, que dessa maneira alcança maior completude e harmonia. Esta última parte da ideia de Bildung, porém, não está realizada na individualidade de Wilhelm Meister, embora esteja teoricamente presente nos objetivos da Sociedade da Torre para o herói: no centro da doutrina do abade está uma figura do homem como determinado pelo conjunto de capacidades inatas, as quais adaptam o potencial de sua realização ao mundo (VIII 3). A influência espinosana sobre a obra complexifica a rígida colocação do problema de Wilhelm Meister como determinado pela oposição entre realidade e idealidade. Espinosa não compreende essa relação como antagônica, isso porque, na integração de todos os seres, o indivíduo está, em última instância, fazendo o que a natureza predeterminou (ele não é “um império dentro de um império”); e, por outro lado, uma impossibilidade de efetivação ativa da individualidade foi interpretada como uma paixão do indivíduo que deve ser corrigida pelo seu próprio intelecto. Na Ética, Livro IV, Espinosa demonstra como a ideia verdadeira ou a razão jamais podem sobrepujar uma paixão: “somente uma paixão vence outra paixão, se for mais forte e contrária a ela” (Chauí: 1995, p. 66). Ora, que paixão entrou no lugar do teatro? Fato é que corrigir o intelecto não basta para suprimir a sensibilidade do herói e nem, portanto, para lhe trazer a felicidade e a alegria, objetivos de nosso herói pertencentes em primeira instância à finalidade da filosofia de Espinosa. Em WML, Goethe incorpora as ideias integrativas de Espinosa no que respeita ao entendimento da natureza e do homem e isso desempenha um papel importante na individualidade de Wilhelm, tais ideias não permitem, porém, que se chegue a um sentido unívoco. Se o homem é natureza, por que ele deve suprimir inclinações e disposições naturais para coadunar-se com a natureza? Se é por razões sociais e a sociedade, igualmente, é parte da natureza, não deveria haver, igualmente, um consenso entre as partes 328

da natureza? Se a natureza social antagoniza e predomina frente à natureza individual não há um conflito com as determinações da natureza? Resta indagar: a lógica que orienta a história de Wilhelm Meister pode ser entendida somente pela ótica espinosana? Na teoria de Espinosa, a felicidade suprema está no fato de participarmos da atividade infinita. Também Herder e Goethe veem o homem como um consciente cocriador da natureza, esta que é compreendida como móvel, plástica, versátil. Espinosa combate as ideias antagônicas da modernidade, mas suas premissas são fundadas nos afetos (portanto, no indivíduo), de modo que o problema da atividade, precisamente da autoatividade socialmente considerada, não é um fator central.

Goethe e a economia política No romance, o teatro é entendido não apenas como “falsa tendência”, mas também, como se expressou Jarno, como “falsa atividade” (VIII 5, p. 538). Ele é identificado como erro de Wilhelm que, uma vez experienciado, deve ceder lugar não ao desenvolvimento de outros aspectos da individualidade, mas sim a um aspecto socialmente muito determinado: seu papel econômico de burguês. E como para comprovar a insuficiência e abstração, para a individualidade, desse papel, o momento em que Wilhelm deixa o teatro é justamente aquele em que ele se torna mais inativo (o contrário do que avaliou Schiller, que assim o fez somente porque apontou para um caminho que não estava concretizado no fim do romance, mas estava presente em intenção). Para Wilhelm, sua tarefa histórica resumiu-se a migrar da vida ativa (que estava de acordo com sua inclinação, disposição e talento) para a vida inativa como proprietário262. Apesar dessa constatação, o romance expressa repetidamente a ideia de que uma

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Nesse sentido, Seitz remonta à citação do “pobre cão” para dizer que tomar as máximas da Torre como realizadas no herói seria, para o próprio Goethe, suspeito. O que o herói deve tornar-se no fim? “Restam atividades sem forma determinada, as quais no todo têm algo de precário” (citado em Koopmann: 1983, p. 23). Foi assim que Vischer opinou sobre o final de Wilhelm Meister; vê-se que o continuador de Hegel foi mais incisivo e preciso na constatação da resignação do herói.

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vida ativa é a forma correta do homem correto ter uma existência plena (Trunz, p. 699). “Ser ativo é a primeira destinação do homem” (VI, p. 403), diz o médico à bela alma. E para Wilhelm, a unidade entre fazer e pensar efetivada pela atividade é o sentido de felicidade que ele busca na vida. Em resumo, Goethe concorda com o pensamento fundamental do século XVIII que considera a atividade direcionada a um fim a essência do mundo e que a determinação do homem se satisfaz no agir (Peters: 1998, p. 1037), e isso se explicita em WML, em que o conceito diretor da atividade estaria presente como em nenhuma outra obra de Goethe (Günter Peters, Goethe Handbuch, p. 1036). O indivíduo é entendido por Goethe em atividade, e a sociedade, assentada sobre o trabalho (algo visto como uma condição natural). Por que há o interesse em que Wilhelm corrija seu intelecto e suprima suas paixões? Os membros da Sociedade da Torre precisam de Wilhelm igualmente como ele precisa deles? Por que os membros aristocráticos da Sociedade da Torre, secreta e elitista, elegem precisamente o filho de um homem de negócios burguês para sua observação particular, sua desembaraçada assistência tanto quanto seus altos objetivos humanistas e culturais? Que dom ou talento especial possui Wilhelm – e somente apenas Wilhelm – neste romance, para que eles nele se concentrem? Tem a Sociedade da Torre, para além de sua filantropia, outros motivos de peso para iniciar Wilhelm em seu círculo? A “mão invisível” de Smith não seria análoga ao poder do destino, poder tão atuante na vida de Wilhelm? A economização da Sociedade da Torre é reconhecida corretamente já há muito tempo263, mas ela não foi sempre vista como prejudicial a Wilhelm – ao contrário. Para Lukács (1936), por exemplo, O brilho das esperanças na renovação da humanidade que a Revolução Francesa desperta nos melhores contemporâneos de Goethe produz no Wilhelm Meister o caráter social de sua realização, aquela 'ilha' de homens excelentes que transformam esses ideais em prática na sua vida e cuja natureza e conduta de vida hão de se tornar um embrião do futuro (p. 608)264.

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Desde Max Wundt, 1913. Dentre os que colocam a formação humanista da Torre em dúvida uma vez analisados seus fundamentos sócioeconômicos estão: Arne Eppers: 2003; Markus Steinmayr: 2003; RolfPeter Janz: 1975; Heinz Schlaffer: 1978; Karl Schlechta: 1956. 264 Nesse sentido, Hannelore Schlaffer critica o modo como Lukács (1936), para encontrar o ideal de

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Goethe estiliza de modo a “concentrar todas essas tendências na pequena sociedade da segunda parte e contrapor essa sociedade concentrada, como utopia, à sociedade burguesa” (Id.,p. 609). Assim, o filósofo húngaro reconhece a dificuldade na realização desses ideias humanistas, mas a identifica na Sociedade da Torre. Mas, então, precisamos perguntar, conclui-se que nosso herói encontrou, afinal, em seu destino, a consumação ou uma abertura para a efetivação dos ideias humanistas definidos enquanto uma “atividade movente do homem inteiro” (Id., p. 599) 265? Para nós a resposta é inequívoca: absolutamente não. Tentando avaliar no que consistem exatamente as posições e considerações econômicas presentes no romance, alguns autores fizeram descobertas interessantes, dentre elas, os conhecimentos em economia política que Goethe possuía266. Crítico do cameralismo267, sua preferência expressa era pela “ordem natural”. Assim, a noção de

humanidade, menospreza os empreendimentos econômicos da Torre. Mesmo intérpretes que procuraram ler a obra segundo seus fundamentos sócioeconômicos adotaram opiniões que contradizem esses mesmos fundamentos. Blessin considera que Wilhelm errou. Para Krings, a única “atividade” é a da Torre, o teatro não é “ativo-social”, como ele se refere à atividade da Torre. O autor não entende a decepção de Wilhelm, para ele, o teatro é renunciado não por meio de opiniões racionais, mas por causa de uma influência psicológica da Sociedade da Torre. 265 Lukács vê os ideais humanistas em alguns personagens e também em Wilhelm como a “mola propulsora de suas ações” (1936: p. 598), ideais que se estiolam em outros personagens cuja vida não provenha de “um centro consistente, uma atividade que nasça do centro humano da personalidade e ponha sempre em movimento o homem inteiro” (1936: p. 599). 266 Como provaram os trabalhos de Annelise Klingenberg e especialmente Lottmann, autores que demonstram como Goethe conhecia textos de economia política e como eles influenciaram sua prática ministerial em Weimar. Lottmann defende a tese de que Goethe não apenas manifestou interesse por economia política mas que ela foi importante também para sua própria atividade econômica – já que à época, como diz Goethe em Poesia e Verdade (FA I, 14, p. 699-670), ele conhecia muito pouco a sociedade. Goethe levava a sério sua prática política e (até ir para a Itália em 1786) participou de importantes reformas e decisões do duque Carl August (do último quartel do século XVIII) no sentido da flexibilização da política de imposto e melhoramento das condições agrícolas, divisão das grandes propriedades em unidades menores e economicamente independentes; encurtamento do tempo de arrendamento etc. (Boyle: 1995; Mahl: 1982). Por volta de 1800 (Goethe numa carta a Sartorius de 1809), as expressões “ökonomische Politic” ou “politische Ökonomie”, que remontam às tradições inglesa e francesa, não eram comuns em alemão. Utilizava-se nesta época muito mais os termos Volkswirtschaftslehre (Hufeland) ou Nationalökonomie (Jakob). 267 Enquanto na Europa absolutista o mercantilismo dominava a teoria econômico-política, na Alemanha o cameralismo se apresentava como variante, uma política econômica que incentivava mais a agricultura e o crescimento da população do que o comércio (num contexto de reconstrução da terra após a Guerra dos Trinta Anos, 1618-1648). Ampliação da infraestrutura e dos ofícios por meio da criação de novas manufaturas pela intervenção do estado e o empreendedorismo subordinado ao estado são algumas das características

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natureza no romance pode ter sido influenciada não apenas por Espinosa, mas pelos fisiocratas, ambos estudados por Goethe na década de 1770. No fisiocratismo, Goethe passa a conhecer importantes técnicas, tais como “incentivo à agricultura, imposto unificado junto com a simultânea suspensão de todas as taxas indiretas, introdução da economia monetária, uma redução radical das despesas administrativas, a introdução da liberdade de ofício e a suspensão de todas as formas de domínio baseado na terra [Grundherrschaft]” (Lottmann, p. 122). Johnann Georg Schlosser (1739-1799), cunhado de Goethe, foi um dos que tentou extrair consequências político-econômicas das fraquezas da fisiocracia real 268. Ele duvida da produtividade isolada da agricultura e estabelece, ao lado dela, outras atividades produtivas. Apesar de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, ter sido publicada em 1776, ela mal havia sido percebida na Alemanha até 1784 269, data em que Schlosser supõe, ao discordar da fisiocracia (sem conhecimento de Smith), o trabalho humano como centro das questões de economia política. “Assim, compreendo que o preço por meio do qual os homens são levados a trabalhar e a produzir consiste mais na troca de trabalho por trabalho do que de produto por produto e trabalho” (Schlosser apud Lottmann, 1784, p. 123). É

centrais do cameralismo (cujo nome deriva do alto funcionalismo público no colégio cameral de um príncipe alemão). Constatou-se uma divergência entre os conhecimentos de economia política de Goethe e suas ações administrativas, pois muitas das ações políticas de Goethe documentadas pertencem ainda claramente à tradição cameralista de administração estatal (assunto ainda pouco estudado pela crítica). Lottmann identifica em WML predominantemente posições cameralistas, Blessin discorda, para ele a Sociedade da Torre está imbuída da concepção liberal. “Os Anos de aprendizado são um romance de mudança social. A superação do feudalismo é apresentada da perspectiva de uma sociedade liberal-burguesa completamente formada (perspectiva de Lothario). Os erros que acompanham Wilhelm pela vida têm sua base econômica em que a burguesia, por meio do princípio da acumulação de posse inerente à circulação de mercadorias, está continuamente se refeudalizando /.../” (Blessin, p. 214). Blessin utiliza em sua interpretação o cientista político canadense Crawford Brough Macpherson (1911-1987), conhecido principalmente por sua interpretação de inspiração marxista do liberalismo (especialmente das obras de Thomas Hobbes e John Locke). 268 Escreveu, dentre outros, Politische Fragmente (1777) e Xenocrates oder Ueber die Abgaben (1784). 269 A Riqueza das Nações chegou ao conhecimento de Goethe apenas duas décadas depois de ser escrito. Mas no começo do século XIX surgem diversos estudos no contexto da recepção de Smith na Alemanha. Torna-se um ponto de referência para as discussões de economia política. A crescente resignação da prática política pode ser entendida também como favorável a uma posição de pensamento crítica: “a valorização do trabalho humano por meio da economia política e a ideia de uma sociedade de trabalho autorregida [selbstregiert], como se torna evidente especialmente em Adam Smith, pôde ser percebida apenas como desenvolvimento ambivalente” (Lottmann, p.132).

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muito provável que Goethe conhecesse essas teorizações e concordasse em grande parte com elas – nesse sentido, lembramos aquela passagem em que Schlosser (1777) se refere à classe dos artistas e à criação de produtos imaginários para necessidades imaginárias. Sendo assim, Goethe é irônico em WML também porque ele próprio, como artista, é idêntico a seu herói, e bem ativo – mas esse ofício, no romance, não é considerado atividade. Outra fonte importante sobre a precoce ocupação de Goethe com economia política é Justus Möser (1720-1794)270. É ainda menos que Schlosser uma teoria econômica homogênea. Como ele, porém, Möser critica a teoria fisiocrata, pois “agricultura e comércio” devem ser promovidos ao mesmo tempo e ajudarem-se reciprocamente. Segundo Lottmann, esses escritos podem ser vistos como uma crítica social antecipada ao liberalismo de Smith, Möser volta-se criticamente contra a aristocracia e os empreendedores capitalistas, embora não ofereça, tanto quanto não oferece Schlosser, um contraprojeto. De todo modo, os intérpretes concordam que a Torre representa relações econômicas e políticas modernas271. A Sociedade da Torre defende a própria posição de poder pela legitimação racional orientada para a segurança da posse, não por meio do exercício da autoridade. Na estima pelos camponeses e na útil riqueza natural Lothario está próximo dos fisiocratas, mas em geral a Torre representa pontos de vista do cameralismo; em um ponto, porém, ela vai além: quando prevê o ganho de lucros por meio da grande vantagem da concentração de empreendimentos agrícolas. Wilhelm faz negócios com Lothario e investe o dinheiro no empreendimento insolvente deste, por fim, somente a Torre lucra com o investimento de Wilhelm. A Torre não quer o “melhor” para Wilhelm, portanto, mas apenas seu capital (Lottmann, p. 174). Lothario incorpora as ideias de que a razão instrui o conhecimento racional do mundo e o domínio de todas as relações, e nenhum destino rege o mundo na modernidade, mas o

270

“Em torno daquela época [Frankfurter gelehrten Zeitungen dos anos de 1772 e 1773] estudei ainda mais as Fantasias de Justus Möser” (Goethe, Tag- und Jahreshefte FA I, 17, p. 256 / citado em Lottmann, p. 124). Goethe refere-se às Patriotische Phantasien. 271 De posição contrária, Giuliano Baioni vê em Lehrjahre um reacionarismo político-social, deixando de fora a modernização presente no romance.

333

planejamento humano. Apesar de parecer-se com uma sociedade secreta em torno de ideais humanistas, é a racionalidade eficiente para fins econômicos o principal objetivo da Torre. “E Wilhelm? Atividade não é esperável nele. Apenas em razão de seu patrimônio quer se ligar o filho de um comerciante à nobre Natalie” (Krings, p. 175). Essa interpretação destituída da beleza humanista parece ainda mais plausível tendo em vista que mesmo aqueles (Gehrt) que consideram que o casamento com Natalie (posto assim em primeiro plano) só seria possível se Wilhelm se tornasse proprietário de terra (incomum para um burguês à época), mesmo esses duvidam se, ainda assim, Wilhelm alcançou algum ideal, e acabam chegando à conclusão que nem mesmo o casamento com Natalie convence o leitor que Wilhelm encontrou felicidade e satisfação.

O realismo de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister \...\ a antiga concepção segundo a qual o homem sempre aparece (por mais estreitamente religiosa, nacional ou política que seja a apreciação) como o objetivo da produção parece muito mais elevada do que a do mundo moderno, na qual a produção é o objetivo do homem, e a riqueza, o objetivo da produção. Na verdade, entretanto, quando despida de sua estreita forma burguesa, o que é a riqueza, senão a totalidade das necessidades, capacidades, prazeres, potencialidades produtoras, etc., dos indivíduos, adquirida no intercâmbio universal? O que é, senão o pleno desenvolvimento do controle humano sobre as forças naturais – tanto as suas próprias quanto as da chamada 'natureza'? O que é, senão a plena elaboração de suas faculdades criadoras, sem outros pressupostos salvo a evolução histórica precedente que faz da totalidade desta evolução – isto é, a evolução de todos os poderes humanos em si, não medidos por qualquer padrão previamente estabelecido – um fim em si mesmo? O que é a riqueza, senão uma situação em que o homem não se reproduz a si mesmo numa forma determinada, limitada, mas sim em sua totalidade, se desvencilhando salvo do passado e se integrando no movimento absoluto do tornar-se? Na economia política burguesa – e na época de produção que lhe corresponde – este completo desenvolvimento das potencialidades humanas aparece como uma total alienação, como destruição de todos os objetivos unilaterais determinados, como sacrifício do fim em si mesmo em proveito de forças que lhe são externas” (Marx, Form, p.81).

A arte, na concepção goethiana da década de 1780, não é imitação nem 334

embelezamento das coisas, ela é criação, como a própria natureza, e também reflexo. Em Das Göttliche, 1883, Goethe diz: “ela corresponde ao esforço do indivíduo de se manter contra a força destruidora do todo” (apud Schmidt, p. 760). Assim devemos entender a atividade escolhida por Goethe para o protagonista de seu romance: seu objetivo é preservar e desenvolver a individualidade de Wilhelm272. Se com a teoria de Espinosa interpretarmos como necessidade natural o que foi socialmente determinado, isso é decisivo para a individualidade, pois as legítimas inclinações e disposições humanas que estão potencialmente no indivíduo não podem jamais vencer a cega teleologia social. Até onde pudemos investigar, essa é uma contradição sem solução no pensamento goethiano, por mais que ele diga: Se diz com razão que a formação [Ausbildung] conjunta das forças humanas é desejável e também o mais excelente. O homem, porém, não nasceu para isso, cada um tem de se formar [bilden] efetivamente como um ser particular, mas tentando alcançar a noção de que todos estão juntos (Conversas com Eckermann, 20.4.1825, p. 132-133).

Por causa disso, a ética assume o primeiro plano no romance. Mas o que é a moral senão a orientação da inteligência e do espírito para a ação? E o que seria a correção do intelecto de Espinosa senão uma ação moral que conduz o indivíduo e, por extensão, a sociedade, ao bem-estar e à felicidade? Com esse intuito, Wilhelm é configurado para corrigir sua consciência em relação às suas próprias aspirações, para compreender e almejar pertencer à classe dos proprietários; controlar sua sensibilidade, para que se insinuem nele cada vez mais fracos os sinais de um potencial que anseia desdobramento; e reforçar em seu caráter aqueles atributos que são mais apropriados para o destino que lhe cabe: moralidade, amizade, ingenuidade (incluindo o autoengano). Assim, ainda que não explique a trajetória do herói, a sentença de Therese é perfeitamente adequada ao destino de Wilhelm: “a história de um homem é seu caráter” (VII 5, p. 436). O caráter de Wilhelm justificará o abandono do teatro e o retorno submisso à posição social predeterminada. Mas não é seu caráter e nem sua consciência que levam o herói a essa decisão (eles apenas

272

Lembremos que formação pela arte era um tema essencial dentro da questão da Bildung do homem moderno (Trunz, p. 690).

335

facilitam essa aceitação): é a realidade econômica e social. Ao contrário de alguns dos mais famosos heróis romanescos do século seguinte, o problema de Wilhelm nunca foi dinheiro e é irônico e significativo que assim não seja. O dinheiro é um meio de intercâmbio que, como é possível bem perceber pela trajetória do herói, facilita e pavimenta o caminho de suas aventuras – contudo, o dinheiro jamais é posto pelo herói como uma finalidade em si mesma (e Werner contrasta com Wilhelm exatamente nesse sentido). O amor e a arte contrapõem-se ao mesquinho “sentido do ter” (como diria Marx), oposição percebida e vivida pelo herói. Wilhelm almejava a realização plena de sua individualidade, mas a recompensa pelo seu humanismo (no sentido espinosano do amor) e pelo seu talento e trabalho é (só pode ser) material. A bolsa com ouro dada pelo conde; o pai que morre e lhe deixa uma herança; a gratidão de Mignon que se materializa na herança de sua mãe que agora é passada a Wilhelm pelo marquês; o casamento com Natalie que é desigual – para vantagem material de ambos. Todavia, o mundo do dinheiro é inconciliável com as aspirações humanas do protagonista, cujos horizontes são visíveis, mas os meios efetivos de alcançá-los, não. O herói quer efetivar o que traz em seu íntimo – anseios, inclinações, sentimentos, faculdades – ele quer dar um corpo objetivo à sua subjetividade. Mas se porventura a realidade revela-se para Wilhelm considerando-o em suas necessidades humanas, ela é apenas uma miragem: permanece meramente subjetiva e abstrata, como anseio insatisfeito. O que o herói mais temia, que sua inclinação ficasse sem objeto (VII 1, p. 415), aconteceu. Wilhelm tornou-se um indivíduo abstrato porque sua atividade é abstrata, serve somente à valorização do dinheiro. A atividade tem papel central na constituição individual, pois o indivíduo, “ao produzir, desenvolve suas faculdades”, diz Marx (In57, p.108.). Esse exercício constante que a individualidade tem de fazer para se autoconstituir salutarmente e manter-se em consonância consigo mesma e com seu tornar-se é tateado pelo indivíduo desde a infância, sendo a base do desenvolvimento da sensibilidade e da consciência. Ora, o que Goethe faz senão mostrar Wilhelm em atividade, em todas as funções da prática teatral, desde a infância? Guardadas as diferenças de contextos, pode-se fazer uma analogia do que Marx diz sobre a história do trabalho e do trabalhador com a experiência de Wilhelm: visto 336

“no momento de sua atividade criadora” (Cap.VI, p.29), Wilhelm exerceu todas as funções do teatro, ele controlava a si mesmo ao apropriar-se dos objetos. Aceitar a alteração de rumos proposta pela Sociedade da Torre e imposta por seu pai não é uma decisão advinda do reconhecimento de Wilhelm de sua falta de talento (ou porque sua natureza individual clama por outra atividade), mas do fato de que ele jamais poderia reunir em sua individualidade o que na sociedade está separado: o trabalho e a propriedade privada. A imanência no presente das circunstâncias históricas dessa separação, cujas expressões são as classes e a divisão do trabalho, fizeram com que Wilhelm, tal como ele dizia de Hamlet, não estivesse à altura da grande ação que lhe era exigida: unir as ideias às coisas por meio da própria atividade e somente assim propiciar o livre desdobramento a suas inclinações e disposições inatas. Entre os maiores desafios de Wilhelm e de cada indivíduo na sociedade burguesa está o de desvencilhar-se dos valores e condutas herdados historicamente. Mas a consciência de Wilhelm é desprovida de historicidade. Ele se sente incomodado com o modo de vida (ocupações burguesas), com as concepções (utilidade, interesse) e limitações burguesas (à individualidade, embora fale de personalidade), mas não compreende as relações sociais como históricas e materiais. Assim, primeiramente, a concepção do herói passa do supremo valor da autoatividade (I-IV) para o consolo de adquirir uma aparência: a esperança de ser ativo como ator transforma-se na esperança de aparentar uma personalidade nobre por meio do teatro (V). Depois, a desistência disso, que se tornou um meio de vida, em prol do patrimônio e da vida burguesa (VII-VIII). Seja pelo modo como o teatro se desdobra na prática, seja pela pressão da Sociedade da Torre, Wilhelm passa a ver como necessário mudar de atividade, ceder à propriedade, ao dinheiro, ao capital. O fato dele não perceber as causas do impasse em que se encontrava e acabar por deixar de aspirar o que para si era essencial (a formação plena da individualidade por meio de suas capacidades inatas, e não a formação limitada cujo primeiro pressuposto é a renúncia a essas capacidades) é apenas consequência dessas mesmas razões sociais e históricas, estas que originam e orientam a trajetória de Wilhelm e o desfecho “trágico” para sua individualidade. Por fim, aqueles belos ideais almejados por Wilhelm só se 337

realizam muito relativamente por meio da sociabilidade (o amor de Natalie, a paternidade de Felix, os indivíduos da Sociedade da Torre) e não pela autoatividade. Ao ressaltar, de modo aporístico, a oposição ideal x realidade, a tradição interpretativa esqueceu a função revolucionária da burguesia (no Renascimento, no Iluminismo) enquanto classe que libertou as forças humanas, esquece que as possibilidades abertas

naquelas

ocasiões

ao

desenvolvimento

individual

têm

ainda

de

ser

revolucionariamente completadas. Embora Goethe fosse muito pouco afeito a revoluções, ele foi realista, representou esse caminho aberto, esse potencial ainda vivo na individualidade do herói, e ao mesmo tempo os meandros das circunstâncias, pré-existentes e determinantes do destino do protagonista. Wilhelm é pacato e age guiado pelo dever, mas seus objetivos são revolucionários (ou, para os contemporâneos de Goethe, são “infinitos”), simplesmente porque precisam criar novas condições para que possam ser realizados. O romance mostra que sem revolta social contra a cega reposição das condições históricas, que faz o passado continuamente imanente no presente, não há como superar os entraves ao livre desdobramento da individualidade – o ideal de realização individual plena suscitado realmente pelo modo de vida burguês. O indivíduo moderno cresce com a percepção da possibilidade concreta e certa de seu próprio desenvolvimento; ela não encontra eco, porém, nas circunstâncias (relações e situações). Ou seja, a própria sociedade mostra como uma necessidade social a supressão daqueles anseios que ela mesma gerou na individualidade. Se a individualidade de Wilhelm – isto é, Wilhelm considerado como um todo – é observada em suas constituintes categoriais ontológicas, as quais estão tanto no romance quanto na própria realidade, é possível perceber claramente que ele não pôde realizar-se por meio da protoforma do ser social, do trabalho, da autoatividade, porque os meandros das relações sociais não o permitiram. A filosofia idealista não aprofundou os antagonismos na sociedade, não compreendeu a oposição entre trabalho e capital. Tão logo se percebe este antagonismo, as mediações e todas as contradições da sociedade burguesa tornam-se claras. A causa do fracasso da empreitada teatral não está em ela ser oriunda da imaginação etc., mas sim na 338

sua inefetividade prática na realidade do herói. A separação entre sujeito (ideal) e objeto (real), oposição que Espinosa propôs-se a superar e Marx superou de fato, nada mais é que a ratificação, por meio do pensamento, de uma cisão que se impõe na interação social entre o homem e sua atividade.

A plasticidade favorece o comportamento ético Goethe interessou-se por questões éticas ao longo de toda sua vida (Koopmann, Handbuch Ethik, p. 280), ele considerava que tudo que “se passa entre homens, no mais elevado sentido, deve ser observado, contemplado e avaliado da perspectiva ética” (WA II 7, p. 175). Tolerância, amor ao próximo, consciência de responsabilidade são valores fundamentais das ideias de humanidade do século XVIII (como em Lessing). O comportamento ético realiza uma postura que não precisa de leis morais, as máximas e reflexões de Goethe sobre literatura e ética são sobre sabedoria de vida, que, reunidas, apresentam “uma específica ética burguesa, na qual modéstia, eficiência, consciência do dever e gratidão possuem um lugar central” (Koopmann, Handbuch Ethik, p. 281). Acrescente-se a isso “simpatia e amor” (MuR, 286). “O que é seu dever? A exigência do dia” (MuR, p. 443). O reconhecimento da medida e a consciência das próprias limitações, associadas à orientação social, recaem sobre o indivíduo: “Conheça a si mesmo \...\: dê alguma atenção a si mesmo, tome notas de si mesmo, com isso você se certifica [gewahr werden] de como você vai se colocar entre seus iguais e no mundo” (MuR, 657). Goethe denominou seu Wilhelm como um sonho estético-moral (Notizbuch 1793). O contínuo aspirar que se vê no herói tem o conteúdo voltado à atividade e ao comportamento. O autor dotou seu “pobre cão” de atributos como bondade, compaixão, generosidade, brandura, tolerância, paciência, ingenuidade, sentimentalidade, imaginação aguçada. Esses elementos não constituem um temperamento forte e imperioso, ainda que a personalidade do herói esteja claramente definida. Pela natureza específica desses traços, contudo, Wilhelm é mais tendente à recepção do que ao repelimento, mais ao modelamento do que à resistência, do que se caso se manifestassem nele os contrários daquelas 339

características. Um tal caráter é particularmente favorável para a fiel configuração da “interação da vida”. A caracterização de Wilhelm tem de ser feita a partir de traços flexíveis e moldáveis, nesse sentido se identificou a fraqueza estrutural de seu caráter e sua plasticidade [Bildsamkeit]. Ser moldável e flexível é reconhecer a necessidade de ceder e renunciar. A plasticidade de Wilhelm é, portanto, uma necessidade em sua configuração, a individualidade do herói tem de sofrer transformações. A plasticidade exige resignação, enquanto o amor aproxima-se da renúncia: ambos características de passividade. Na história de Wilhelm, a obrigação moral (ou correção intelectual, como se queira) assume o lugar da autoatividade, por isso, o herói cede. A “arte de viver” confirma-se, assim, como o agir conforme o dever, substituindo a autoatividade, como determinação da individualidade, pela atividade considerada útil. Resignar-se, portanto, é uma postura ética, cujo império é tanto mais facilitado na medida em que o senso moral é um traço constitutivo do caráter de Wilhelm. Ela sobrepujará o sonho estético, a sensibilidade. Esse romance goethiano do fim do século XVIII representa a tentativa de realização de uma individualidade pela atividade que lhe é própria. Qualificou-se de plasticidade a capacidade do protagonista ajustar-se às circunstâncias: ser plástico foi o pressuposto não para o desdobramento das potencialidades individuais visando desenvolver elementos que elevassem e engrandecessem a humanidade, mas sim, especialmente, a condição para aceitar o que para o indivíduo é inevitável – a casualidade das circunstâncias de seu nascimento e crescimento. Quando Wilhelm renuncia pessoalmente à sua inclinação, ele renuncia também socialmente à revolução. Mas quando falamos em revolução, não se trata de Wilhelm rebelar-se sozinho contra circunstâncias. Primeiramente temos de considerar que as condições históricas e locais da Alemanha, diferentemente da França, não se colocavam como passíveis de mudança e só décadas mais tarde tornaram-se insuportáveis a diversos indivíduos – não, porém, aos burgueses, mas já aos proletários. Entsagung não é apenas um conceito de Goethe, mas de uma época, e especificamente da burguesia enquanto classe emancipadora, cuja limitação que coloca à atividade individual só poderá ser superada pela classe do trabalho. Por isso, não se trata do que Wilhelm deveria ou não fazer: o que ele fez 340

– ou se fez dele – foi o possível e necessário dentro das circunstâncias. O aspecto reacionário da visão de mundo goethiana está na sua concepção contrária a revoluções e mudanças bruscas (Lukács: 1932). A consequência imediata dessa imagem suave de uma sociedade em transição é o abrandamento da diferença de classe273. De acordo com Blessin, a ausência de violência tem duas dimensões no romance (p. 218): mudança social sem levante revolucionário e o domínio do mercado. Wilhelm não é o sujeito consciente de sua própria história de vida, mas sobretudo o meio de uma satisfação racional que se realiza através de sua pessoa 274. O estranhamento [Entfremdung] é o resultado de um sistema de mercado autorregulador. Se não se tem em vista essa dimensão crucial do romance, Wilhelm é interpretado como capaz de levar a cabo suas intenções e inclinações. Goethe alinha-se à tradição do pensamento liberal que identifica o princípio com a ausência de violência – colocando-se em oposição a Hobbes e aproximando-se de Adam Smith (no tocante à divisão do trabalho e à multiplicação da riqueza nacional, de modo que ninguém enriquece ao custo de outro sem que este outro também não se torne rico). Assim Blessin interpreta os casamentos dos dois livros finais como “encenação desse fundamento humano-liberal”, cuja eficácia da equidade do mercado está ligada a pressupostos tais como, segundo a teoria de Smith, pequenos produtores de mercadorias que são donos dos meios de produção (cf. p. 213). O momento histórico obrigava ao amálgama de perspectivas conflitantes: a Sociedade da Torre não se guia somente por ideias humanistas – sempre limitadas pelo dever – mas está levando a cabo (justamente por causa daquela limitação) a economia mais progressista, com todas as contradições e renúncias que ela implica para o homem e que se

273

Rolf-Peter Janz fala em “harmonização da oposição de classes” (p. 338. Zum sozialen Gehalt der Lehrjahre. In: Helmut Arntzen; Bernd Balzer; Karl Pestalozzi; Rainer Wagner (org.): Literaturwissenschaft und Geschichtsphilosophie. Festschrift für Wilhelm Emrich. Berlin 1975.); Borchmeyer, de reforma da nobreza ligada à burguesia (p. 184. Höfische Gesellschaft und französiche Revolution bei Goethe); Berghahn & Müller veem a burgerização da sociedade (p. 63. Tätig sein ohne zu arbeiten?). 274 Se Wilhelm não tomasse parte do que se esperava dele, facilmente poderia ter se tornado um cínico. Essa é uma apreciação que se relaciona a de Marx sobre o cinismo dos economistas pós-ricardianos, que negaram o que já havia sido exposto contundentemente por Ricardo: a exploração do trabalho que gera o lucro. Goethe certamente adiantou um capítulo da história e solucionou-o de maneira digna – ao menos a mais digna que poderia vislumbrar naquele momento (e certamente, não revolucionária).

341

concentram

vivamente

na

individualidade.

Para

Goethe,

a

possibilidade

de

desenvolvimento da individualidade deve dobrar-se à necessidade, esta que por sua vez não tem compromisso com a carência individual. Entre as mais insignificantes tentativas de se formar em algo mais elevado, de se colocar no mesmo nível de alguém mais elevado, pertence justamente o impulso juvenil de se comparar com personagens romanescos (Poesia e Verdade).

Assim, Wilhelm não é um modelo a ser imitado, ele é somente a – triste – realidade refletida.

342

ANEXOS I Crítica ao conceito Bildungsroman275

Após ter dominado amplamente a pesquisa sobre Wilhelm Meisters Lehrjahre (1795/1796) no século XX e estar visivelmente enfraquecido nos estudos avançados mais recentes, o conceito Bildungsroman ainda parece exercer certo magnetismo em muitos lugares, inclusive no Brasil. Ainda que a noção de romance de formação tenha se tornado autônoma, amplamente difundida e utilizada no âmbito da crítica literária, o conceito, por sua própria origem, é a rigor incompreensível sem a referência a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. O que nos propomos a argumentar neste ensaio é que o conceito de Bildungsroman jamais foi convincentemente definido. Por essa razão, ele pôde ser empregado de forma mais ou menos indiscriminada entre os intérpretes, tanto para rotular com uma palavra o romance goethiano quanto para fundamentar a perpetuação de uma tradição romanesca que teria se afirmado a partir de então276. Ao retrocedermos algumas décadas antes da criação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, entendendo o contexto que possibilitou seu surgimento, podemos bem dimensionar o que veio a ser denominado romance de formação. A teoria do romance e a própria história de constituição do gênero na modernidade fornecem pistas importantes na

275

Artigo publicado na revista Investigações (UFPE), v.26, n.1, 2013. Essa afirmação não ignora nem contradiz o fato de que os teóricos do Bildungsroman encontraram as raízes desse tipo de romance em obras que antecedem o Meister, como História de Agathon (cuja primeira edição data de 1766 e 1767) e até mesmo Parzival, poema épico alemão do século XIII – pois todos são unânimes em afirmar que é com o romance de Goethe que esse tipo de literatura adquire sua forma acabada. 276

343

medida em que o romance, considerado inicialmente um gênero menor frente à poesia épica clássica, tem seu status transformado ao longo do século dezoito, e exatamente aquilo que foi mais tarde designado como Bildungsroman teve lugar central nessa história (cf. Selbmann 1988). A ascensão do romance no século dezoito está intimamente ligada à ascensão da burguesia: o romance transformou-se num meio de autorrepresentação dessa classe. É no final dos anos 1740 que os romances tornam-se conhecidos por conduzirem expressamente a tarefa de propaganda das virtudes burguesas277. Contudo, isso não levou ao reconhecimento do romance como gênero literário pelo classicismo da Frühaufklärung. Johann Christoph Gottsched, em 1751, aceita-o apenas com reservas e sem tê-lo em alta consideração (cf. Jacobs/Krause: 1989, p. 47), pois considerava o epos o mais alto gênero de poesia, e o romance encontrava-se no mais baixo nível daquela 278. A apreciação de Gottsched deve-se em parte ao fato da configuração romanesca ater-se a um mundo apenas cotidiano, habitual prosaico. A realidade da maneira como se apresentava exigia representação no romance, e com esse objetivo esclarecedor a prosa prevaleceu sobre o verso: é a linguagem mais adequada para a configuração da vida humana pragmática, com exigências reais e, com isso, verdadeiras. Tudo isso era diferente da épica, da alta arte nobre e elevada. Por isso, enquanto a épica afirmava seu alto status de literatura antiga transmitida (cf. Koopmann: 1983, p. 4), o romance, com seu público bem mais extenso, raramente era

277

Antes disso o status do romance era bem baixo, no fim do século XVII ele foi até mesmo combatido por autoridades religiosas em razão de seus temas eróticos. A teoria do romance do século XVII esquivou-se de antemão da hierarquia dominante dos gêneros (notadamente da comparação com a épica), muito porque as explanações acerca do romance eram ainda esporádicas e só ganharam força nas últimas décadas do século XVIII. Das teorizações desse período, Koopmann (1983) menciona os seguintes autores: Daniel Georg Morhof, Unterricht von der teutschen Sprache und Poesie, de 1682; Chr. Thomasius, Freymüthige Lustige und Ernsthaffte iedoch Vernunfft- und Gesetz-Mässeige Gadanken oder Monats-Gespräche (Halle, 1688/1689); Christian Weise, Kurtzer Bericht vom Politschen Näscher /…/ (Leipzig, 1680); Pierre Daniel Huet, Traitté de l’origine des romans (1670), Nicolas Boileau, L'art poétique (Paris, 1669-1674). Cf. Koopmann. 278 A L’Art poetique, de Boileau (1636-1711), teve imensa influência na França e ganhou um significado ainda maior na Alemanha com o trabalho de Gottsched Ensaio de uma arte poética crítica para os alemães [Versuch einer critischen Dichtkunst vor die Deutschen] (Leipzig, 1730), com a exigência de um retorno aos gêneros de acordo com a definição aristotélica. Na obra citada, Boileau trata dos três gêneros, mas não se ocupa com o romance.

344

validado como instrumento de instrução, ao contrário, era tido geralmente como uma forma inferior de comunicação (cf. Koopmann:1983, p. 14-15). Já na segunda metade do século dezoito, numerosos romances foram escritos e sua função educativa começa a se tornar uma orientação dominante. No que concerne à ascendência épica, como é possível observar no período ascensional do romance, sua peculiaridade temática estava justamente em representar a “história de desenvolvimento” de um indivíduo (cf. Jacobs/Krause: 1989) 279. Nas palavras de Lukács, “a burguesia dominante conquista o direito de transformar seus próprios destinos em objeto da grande épica”, e ele completa: “apresentam-se igualmente tentativas enérgicas para a criação de um herói 'positivo' burguês” 280. Trata-se de uma representação da individualidade em que o aprofundamento psicológico tem papel importante, algo que se distingue essencialmente daquela representação em que o personagem principal servia apenas como elemento de ligação para episódios de aventura independentes entre si e cuja principal função era ilustrar a instabilidade da sorte e a mutabilidade do mundo. O romance é caracterizado – principalmente desde o romance epistolar [Briefroman] de Richardson (1689-1761) – como descrição da realidade, afirmação interior, estudo de caracteres, espelho de um mundo subjetivamente vivenciado. Não fazia parte do mundo épico a narrativa de uma história interior, a descrição subjetiva do mundo, a exploração da psique. O romance (e portanto o gênero épico, se aceitamos essa filiação) torna-se subjetivo, o que contribuiu para ele fosse imediatamente apreciado. Apesar dessa diferença importante em relação à épica, o romance não foi visto inicialmente em contradição com o gênero épico, como bem ilustra o Ensaio sobre o romance [Versuch über den Roman], 1774, de Christian Friedrich von Blanckenburg. Além disso, a proximidade da biografia – e da autobiografia – torna-o especialmente interessante,

279

Na Alemanha, tais romances surgem no último quartel do século dezoito, com obras de Johann Gottlieb Schummels, Wilhelm von Blumenthal (1780/81), e de Johann Carl Wezel, Hermann e Ulrike (1780) (Jacobs/Krause: 1989, p. 48). Aqui, utilizamos a palavra desenvolvimento sem conotação conceitual de gênero romanesco (romance de desenvolvimento - Entwicklungsroman), como foi posteriormente diferenciado pela crítica literária (sem que se chegasse, no entanto, a um consenso). 280 Lukács: Marx und Goethe [1970]: 1984, p. 63.

345

desviando temporariamente o foco da oposição entre épica e romance. Anton Reiser. Um romance psicológico [Anton Reiser. Ein psychologischer Roman] (1785/1786/1790), de Karl Philipp Moritz, é a criação literária que deixará extraordinariamente claro que o romance trata da história de um indivíduo, e na verdade de sua vida interior – como indica o subtítulo. Moritz diz que o romance é “uma representação tão verdadeira e fiel de uma vida humana /.../ que talvez só ela mesma pode oferecer” (citado em Koopmann: 1983, p. 15). O romance de Moritz narra a historia de um desenvolvimento individual fracassado e tenta mostrar as razões para a infelicidade do herói. O livro representa de modo angustiante como todas as tentativas do herói de encontro consigo mesmo [Selbstfindung] e de integração social não podem alcançar seu objetivo se elas partem de (e são oprimidas por) um ambiente injusto e incompreensível (cf. Jacobs/Krause: 1989). É, no entanto, a partir do exemplo do romance de Martin Wieland, História de Agathon [Geschichte des Agathon], que Blanckenburg (1774) desenvolve a exigência de que o romance deve apresentar o indivíduo efetivo e explicar, sobretudo, o interior do homem – explicação que deve apoiar-se no estatuto de igualdade entre os mundos interior e exterior. Tal formulação já sugere que o romance não deve apresentar o herói com qualidades imutáveis, ao contrario, deve mostrar um homem completo no processo de “tornar-se” [einen ganzen werdenden Menschen] (Jacobs/Krause: 1989, p. 52). Hegel, por sua vez, utilizou o Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister para definir o romance moderno. Para o filósofo, o “romance é uma manifestação marginal [Randphänomen] do épico”, e nessa condição ele é a “moderna epopeia burguesa” 281. O filósofo vê na dissolução dos romances de cavalaria e dos romances pastoris o início do romance em sentido moderno. Esse romanesco”, reflete Hegel, “é a cavalaria novamente transformada no sério,

281

Ainda que a discussão sobre o romance como epopeia da modernidade tenha surgido no início do século dezoito (tendo em vista principalmente o romance de Fénelon, Telêmaco, de 1699-1700), é atribuída ao escritor Johann Carl Wezel a denominação do romance como “epopeia burguesa” [bürgerlichen Epopee] – esse gênero (“em geral desprezado e em geral lido”, de acordo com as palavras de Wezel no prefácio ao seu romance Hermann und Ulrike, 1780) nada mais é que a forma épica dos tempos burgueses, que se passa num mundo burguês e trata de temas burgueses. A partir de Hegel, Lukács retomou a expressão, uma vez que com ela o romance define-se em termos formais e históricos.

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num conteúdo real. A casualidade da existência exterior converteu-se numa ordem sólida e segura da sociedade civil e do estado, de modo que agora, no lugar de finalidades quiméricas que o cavaleiro criou para si, entram a polícia, o tribunal, o exército, o governo do estado. Com isso se altera também o cavaleirismo [Ritterlichkeit] dos heróis agentes nos romances recentes. Eles opõem-se enquanto indivíduos, com suas finalidades subjetivas de amor, honra, ambição ou com seus ideais de melhoramento do mundo, a essa ordem existente e a essa prosa da realidade, a qual de todos os lados põe-lhes dificuldades no caminho. /.../ Especialmente, são jovens esses novos cavaleiros /.../. Essas lutas no mundo moderno, porém, não são nada mais que os anos de aprendizado, a educação do indivíduo na realidade existente /.../, o fim de tais anos de aprendizado consiste em que o sujeito torna-se comedido [sich die Hörner ablaufen], ele se forma [hineinbilden], com seus desejos e opiniões, nas relações existentes e a na razoabilidade das mesmas, adentra no encadeamento do mundo e nele obtém uma perspectiva adequada. /.../ por fim ele recebe, em geral, sua moça e uma colocação qualquer, casa-se e se torna um filisteu como qualquer outro. /.../ Vemos aqui o mesmo caráter de aventura [Abenteuerlichkeit] que apenas nela mesma encontra o seu correto significado, e o fantástico tem de experimentar nisso a correção necessária 282.

Apesar de Hegel ter como interlocutoras as teorias sobre épica e romance do recémdecorrido século XVIII e não falar em Bildungsroman, mas em “anos de aprendizado”, mesmo assim surgiu daí uma das definições mais utilizadas para caracterizar o Bildungsroman, ou seja, aquela que se concentra no antagonismo entre o indivíduo e a sociedade como a tônica da formação [Bildung / Ausbildung] do indivíduo. Tal processo, por sua vez, pôde ser especialmente enfatizado no âmbito da interioridade pelos teóricos do Bildungsroman por meio desta particularidade que tomaram da teoria de Blanckenburg. Além disso, uma vez que Hegel e Blanckenburg não utilizam o termo Bildungsroman, eles colocam o romance de Goethe e Wieland num patamar universal, a saber, o de romances modernos paradigmais, universalidade que sob a denominação Bildungsroman lhes é negada, posto que o romance de formação seria somente um tipo dentre os romances modernos. Assim, como veremos adiante, não é por acaso que as definições do romance moderno se confundem com as do romance de formação, já que muitos dos teóricos do Bildungsroman, apoiados nos articuladores do conceito, Morgenstern e Dilthey, recuam até

282

G.W.F. Hegel. Vorlesungen über die Ästhetik, 1835-1838.

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Blanckenburg e Hegel para encontrar uma definição para o gênero. Além das definições herdadas do romance moderno, outro complicador ao uso do conceito Bildungsroman está justamente no significado complexo de Bildung para Goethe e sua época. O termo Bildung é empregado por Goethe em diferentes contextos, como o estético, o ontológico, o das ciências naturais, o pedagógico. Isso significa que é um conceito que pode referir-se desde o homem até a planta, tanto à nação quanto ao coração, à razão, à educação. Sem dúvida, este é um tema complexo presente no romance de Goethe e como tal deve ser investigado – o que se verificou na história da tradição crítica do romance de formação, porém, dado o procedimento de tomar emprestadas as definições de Blanckenburg e Hegel sobre o romance moderno, não foi um exame apurado da Bildung que justificasse de modo unânime a nomenclatura Bildungsroman. Ao se revisar aquilo que parte significativa da crítica literária do século XX disse sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, o qual, como já dissemos, seria o criador e o ponto máximo do chamado Bildungsroman, torna-se evidente que a riqueza que emana do romance goethiano foi inúmeras vezes sacrificada em favor da sagração do impertinente conceito-ímã. E com esse ponto de partida incerto não foram também isentas de problemas as reiteradas tentativas de aplicá-lo a diferentes romances que sucederam o Meister, de modo que cada intérprete se viu ao mesmo tempo livre e obrigado a definir o conceito conforme seus objetivos particulares. De modo geral, veremos que o conceito Bildungsroman nasce na crítica para designar o romance que apresentava uma história de desenvolvimento interpretada como positiva – essa foi uma das maneiras que ela encontrou tanto para se descolar da Bildung entendida como processo complexo e contraditório enquanto noção imanente ao romance de Goethe, como para ficar à parte na disputa entre romance e épica, ao se posicionar no interior do romance e relegar aquela querela ao esquecimento. O romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister aparece num momento em que a história do romance acabara de alcançar o ponto máximo de sua trajetória desde seu nascimento. É também aí que a relação entre epos e romance surge como problemática

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inescapável de ambos283. Assim, segundo nosso ponto de vista, a peculiaridade do Meister inscreve-se mais nessa discussão central da teoria do romance do que em sua pretensa inauguração da tradição romanesca do romance de formação. As origens do conceito Bildungsroman e sua absorção pela crítica literária do século XX Nos idos de 1968, Lothar Köhn (1988) dizia que embora o conceito Bildungsroman estivesse amplamente difundido, até então a pesquisa não havia solucionado a “problemática da determinação”, a saber, aquilo que deveria ser designado como Bildungsroman, suas definições e suas fronteiras. Lá se vão 45 anos desde essa constatação. Mais antiga ainda, no entanto, é a provocação de Karl Schlechta, que em seu livro de 1953 teria sido o único, desde Novalis, a criticar tão aguçadamente Wilhelm Meister, causando grande impacto e embaraço nas pesquisas da área (ainda que não imediatamente, como indica Heinz Schlaffer em seu prefácio à reedição da obra). O tremor aconteceu porque Schlechta voltou-se contra o tão caro conceito Bildungsroman. Mesmo que em geral não concordemos com sua interpretação, de viés nietzschiano284, devemos reconhecer o papel pioneiro do autor no questionamento daquele conceito que, mesmo sem ser rigorosamente definido, já havia se tornado àquela altura ferramenta paradigmática de classificação literária. O questionamento conceitual do Bildungsroman prosseguiu lenta mas continuamente nas décadas seguintes. Paralelamente, o termo foi reproduzido com tanta avidez no século XX que foi praticamente naturalizado na teoria literária, e somente na década de 1960 alguém se

283

A colisão entre a épica e o romance foi, segundo Koopmann, inevitável, irrefreável e, também, de modo consciente, pré-programada. Uma primeira confirmação nesse sentido encontra-se em Wezel (op.cit.). 284 O autor sustenta que a Sociedade da Torre é uma espécie de corresponsável pelas tendências niilistas da modernidade e, ainda, que a personalidade de Wilhelm não amadurece para melhor, mas, ao contrário, que suas forças são paulatinamente minadas. Schlechta inaugurou um modo pessimista de ler Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, tendente à “lembrança do perdido, do sofrimento, da morte, à transitoriedade do singular [Einzelnen]” (Schlaffer, Hannelore; citada em Steiner, 1996: 141).

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colocou a missão de, afinal, rastrear e identificar sua origem. Foi Fritz Martini, em 1961, quem relatou – para grande surpresa da comunidade acadêmica, que muito o agradece até hoje pela descoberta – que não foi Dilthey, em 1870, mas sim um obscuro professor, Karl Morgenstern, em 1820, quem cunhou o termo Bildungsroman no sentido de um gênero literário específico e tentou definir suas características fundamentais, usando, para tanto, teorizações importantes de Blanckenburg e de Hegel. Isso foi entre 1817/24, um período em que o interesse literário recaia mais sobre o romance romântico Lucinde, de F. Schlegel, e sobre o romance histórico, de Walter Scott, que representavam melhor a produção de romances da época (cf. Selbmann, 1988). O significado de Bildungsroman tem em Morgenstern uma grande abrangência; na verdade, para ele todo bom romance era um Bildungsroman, e então ele elenca em subtipos ou subgêneros todos aqueles romances alemães considerados por ele os melhores. Morgenstern justifica que tais subtipos são voltados para aqueles lados que o homem desenvolve prioritariamente. Assim, como exemplo de romance filosófico e artístico, o professor cita os escritores Friedrich Maximiliam Klinger e Friedrich Heinrich Jacobi; e como exemplo de romances artísticos, os de Tieck e Novalis. O mais incomparável dos Bildungsromane seria a História de Agathon, de Wieland. Porém, ele prossegue, “como obra da mais geral e abrangente tendência da formação do belo homem” figura o Meister, cujo objetivo (a formação) que representa é o equilíbrio, a harmonia e a liberdade (Morgenstern: 65). Como vimos, até a década de 1960 pensava-se que apenas com Dilthey, em A vida de Schleiermacher [Das Leben Schleiermachers], de 1870, o termo Bildungsroman fora usado, pela primeira vez, para designar os romances que se ajustavam à “escola” de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e não à de Rousseau. Embora influenciada pela escola francesa, a alemã distinguiu-se por mostrar a “formação humana em diferentes níveis, configurações, épocas de vida” (citado em Köhn, 1988: 291). Como Morgenstern, Dilthey faz uma analogia da Bildung com a teoria da evolução biológico-orgânica, falando em “níveis e amadurecimento” (Selbmann, 1988: 22). A história dos romances de formação é resumida com o traçado geral: “[nesses romances] foi visto um desenvolvimento na vida 350

do indivíduo segundo leis, cada um de seus estágios tem um valor próprio e é ao mesmo tempo uma base para um estágio mais alto. As dissonâncias e conflitos da vida aparecem como necessários pontos de transição do indivíduo em sua estrada para o amadurecimento e para a harmonia. E 'a mais alta felicidade dos homens mortais' é a 'personalidade' como forma unitária e sólida do ser humano” (1988: 121). Assim, Dilthey interpreta como conquista de uma felicidade suprema o que Hegel ironicamente encara como resignação. Ele assevera ainda que “a estrada que o homem originalmente ingênuo e simples percorre até a completa Bildung é essencialmente igual para qualquer indivíduo” (Dilthey, 1988: 121). Em 1906, Dilthey escreve um ensaio sobre Hölderlin, no qual afirma que seu romance epistolar Hyperion “pertence aos Bildungsromane que, sob a influência de Rousseau na Alemanha, nasceram da direção do nosso espírito da época, voltado à cultura interior”, e completa: “Esses Bildungsromane manifestam o individualismo de uma cultura que está limitada à esfera de interesses da vida privada” (1988: 120). No contexto dessas discussões, emergiu outra problemática que acompanha a história da teoria sobre o Bildungsroman e impacta sobretudo os estudos de literatura comparada: seria este um tipo de romance exclusivamente alemão? Seguindo Dilthey, quase todos os trabalhos de fora da Alemanha acentuaram o caráter peculiar do Bildungsroman dentro da história do romance europeu de maneira a apresentá-lo como forma propriamente alemã do romance da época burguesa285. Para alguns teóricos do romance de formação, no entanto, essa é outra formulação que tem de ser melhor investigada, pois não parece plausível que não haja relações entre Bildungsroman alemão e outros romances europeus e de diferentes épocas; apesar disso, eles reconhecem que a defesa do Bildungsroman como um gênero alemão não é de todo falsa – mesmo levando em conta a coloração político-nacionalista que esse debate possa ter assumido (cf. Krüger citado em Köhn, 1988: 292) – ela apenas coloca como critério central seu caráter histórico. É nesse momento, entre 1904 e 1906, que o conceito Bildungsroman, sob a

285

É o caso de David H. Miles e Martin Swales, cf. Selbmann 1988.

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autoridade de Dilthey, começa a estabelecer-se na crítica. Desse modo, a história da pesquisa sobre Bildungsroman começa propriamente com Dilthey, que embora não tenha inventado o termo, introduziu-o com sucesso na discussão literária, denominando com ele os romances expressa e exclusivamente sucessores de Wilhelm Meister, os romances do círculo de um grupo romântico determinado (F. Schlegel, Tieck, Wackenroder e Novalis) e um subtipo de romance de artista [Künstlerroman] (cf. Selbmann, 1988). Mesmo não sendo a intenção de Dilthey abordar o Bildungsroman de modo definitivo ou sistemático, ele foi suficientemente persuasivo na medida em que generalizou e suprimiu as particularidades que, afinal, distinguem os romances. Mas em vez de generalizar os romances, como fez Hegel, sob a égide do moderno, Dilthey, como Morgenstern, o fez sob a égide do Bildungsroman. Na interpretação otimista de Wilhelm Meister, o individualismo seria positivo do ponto de vista da “personalidade”, que afinal acaba por se formar. Baseado no apagamento das diferenças entre os indivíduos e suas trajetórias individuais, Dilthey deixou de lado todos os fatores que poderiam conduzir a contradições insolúveis, ressaltando apenas a abstrata “personalidade” humana não vinculada às suas necessárias condições de existência, o que tornou possível a afirmação de que a trajetória da formação é igual para todos os indivíduos; concernente à literatura, isso equivaleu a construir um largo e acolhedor conceito de Bildungsroman. A influência das concepções de Dilthey sobre a pesquisa do Bildungsroman foi muito abrangente e é sentida até hoje, principalmente (mas não apenas) em trabalhos que não buscam um aprofundamento do conteúdo do conceito, utilizando-o de forma meramente instrumental para a análise de romances. Esse procedimento leva, muitas vezes, a ignorar asserções importantes que estão pressupostas na história de sua constituição conceitual, fazendo com que a noção de romance de formação torne-se uma espécie de curinga sempre pronto a preencher uma lacuna, um guarda-chuva teórico, pois se tornou tão plástico e flexível que passou a não exigir muito rigor teórico para ser aplicado. No que se refere à avaliação de Wilhelm Meister, a posição de Dilthey não difere fundamentalmente da visão de Morgenstern, ainda que desloque a problemática do Bildungsroman do âmbito biográfico e a situe conceitualmente na “vivência” [Erlebnis] da 352

época e da história das ideias. Contudo, diferentemente de Morgenstern, a ênfase de Dilthey recai sobre o conflito entre indivíduo (inclinações interiores) e sociedade (influências exteriores), de modo que a formação “harmônica” tornou-se então problemática. Neste ponto Dilthey refere-se visivelmente a Hegel. Pois, como vimos, o conflito entre “poesia do coração” e “prosa das relações” é concebido por Hegel como fundamental para o romance, e tais lutas são designadas como “anos de aprendizado”, como “educação do indivíduo na realidade existente”, em que o indivíduo deve aprender a se resignar e a formar-se nas relações sociais constituídas – e assim a avaliação hegeliana segue a lógica da conciliação, ainda que problemática. Demonstrando preocupação quanto à definição dos limites e a respectiva classificação dos romances, estudos do início do século XX tentaram diferenciar o Bildungsroman de seus “primos”, o romance de educação [Erziehungsroman] e o romance de desenvolvimento [Entwicklungsroman]. Ludwig Stahl, em seu consagrado estudo de 1934, com essa intenção assevera que todos esses tipos representam o processo de transformação de um homem desde infância até a vida adulta. Para o autor, o romance de desenvolvimento narra o curso completo da vida até a morte do herói, já o Bildungsroman narraria as etapas do tornar-se do herói, desde a infância até o amadurecimento. O romance de educação, por sua vez, narra esse processo como educativo, isto é, o homem crescendo num mundo com todas as suas variadas influências é diretamente orientado por meio da influência de um ou mais mentores286. De acordo com os estudiosos (Köhn 1988), à Teoria do Romance, de Lukács (publicada em 1916), pertenceriam alguns dos poucos fundamentos sólidos já formulados sobre o tema, ainda que sob a denominação de romance de educação [Erziehungsroman]. Ironicamente, porém, justamente quem foi considerado um dos que melhor refletiu sobre o

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Novamente para assinalar o quanto são sempre precárias tais definições (que certamente se apresentam oportunamente úteis), mencionamos Hans Castorp, o herói de A Montanha Mágica classicamente incluído na tradição do Bildungsroman; ele tem dois tutores: Naphta e Settembrini (o romance surge em 1924, portanto, dez anos antes do livro de Stahl). Isso para não mencionar a História de Agathon (1774), de Wieland, tratado em detalhe por Stahl, em que o herói tem também dois mentores. Para a diferenciação entre Bildungsroman e Entwicklungsroman no primeiro quartel do século XX, ver também o estudo clássico de Mellita Gehard (1926).

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tema não pretendeu definir Erziehungs- e Entwicklungsroman – Lukács pressupõe um préentendimento desse tipo de romance287. As palavras Bildung e Ausbildung não são utilizadas pelo autor de forma categórica na classificação e definição de Wilhelm Meister, mas muito mais como questão da filosofia humanista que orienta a configuração da obra 288. Uwe Steiner (1997) considera que Lukács, ao falar em Erziehungsroman na Teoria do Romance, posiciona-se implicitamente com Novalis: contra a noção de Bildungsroman. De toda forma, também Lukács não deixa dúvidas de que o Erziehungsroman alcançou apenas uma vez, em Wilhelm Meister, um equilíbrio – e com isso se alinhou também à posição tradicional sobre o Bildungsroman. Apesar das críticas e dúvidas levantadas por Köhn, ele é um dos que considera que não se pode desistir dos conceitos Bildungsroman (como categoria histórica) e Entwicklungsroman (como tipo estrutural), não porque de algum modo eles se estabeleceram, mas porque, entendidos corretamente, eles abrangem um complexo de traços interpretativos. Köhn trata da dupla face do Bildungsroman: material e de conteúdo, de um lado, e formal-estrutural, de outro. Com isso, o autor tenta diferenciá-lo de outros gêneros e abre caminho para uma classificação tipológica e histórica do gênero na história do romance. Historicamente, ele seria um produto de Goethe e seus contemporâneos; tipologicamente, pode ser tanto “gênero concreto da história do gênero ou tipo de poesia” do Entwicklungsroman quanto um “quase supra-histórico tipo de construção”. Contrariamente ao nosso ponto de vista, Köhn vê que exatamente a “abertura definidora” do complexo Bildungsroman, como disse Selbmann (1988: 30), é o “pressuposto de sua utilidade hermenêutica”, tornando-se por isso um conceito indispensável à ciência da literatura. Mas reforça: “categorias estruturais” para a análise do Bildungsroman ainda não

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É possível que Lukács, ao preferir o termo Erziehungsroman, quisesse se diferenciar de Dilthey. Embora não seja seu foco, Lukács mantém essa designação também na sua fase posterior marxista, veja-se seu ensaio sobre Wilhelm Meisters Lehrjahre, de 1936: “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é um Erziehungsroman: seu conteúdo é a educação do homem para a compreensão prática da realidade” (1994: 604), formulação que se aproxima quase literalmente da de Hegel. 288 Jacobs e Krause (1989) consideram, porém, que o mais importante reconhecimento de Lukács sobre o Bildungsroman deve-se à precisão conceitual do problema fundamental do gênero expresso como a “busca de um sentido de vida em um mundo experienciado como estranho e hostil” pelo “herói problemático”.

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foram suficientemente desenvolvidas. Neste contexto, a posição de Martini deve ser lembrada, pois em sua pesquisa sobre a história do conceito e da teoria sobre Bildungsroman ele prova que a fixação do conceito e a história recente do Bildungsroman estão intimamente ligadas (distanciando assim o conceito, portanto, de Wilhelm Meister). Ele afirma que o Bildungsroman não é uma “forma categorial estética”, mas uma “forma histórica”, cujos pressupostos repousam mais em materiais, temáticas e sua intenção de resultado e função do que em leis estruturais formais. Somente com a consciência da historicidade do Bildungsroman e do conceito de Bildung as investigações sobre a estrutura tornar-se-iam razoáveis – e talvez por não constatar esse preceito no seu presente, tornou-se Martini cético em relação ao conceito como veremos adiante. Jacobs e Krause (1989), por sua vez, diferenciam o Bildungsroman como gênero histórico da época de Goethe [Goethezeit] do termo anistórico Entwicklungsroman. O livro destes autores, como o relatório de Köhn, é uma tentativa de somatória dos resultados de pesquisas anteriores sobre o Bildungsroman. Embora apresentem úteis estudos da bibliografia de referência, eles não têm a intenção de relatá-las e problematizá-las detalhadamente, posto que a ideia que orienta Jacobs e Krause é a de que Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é a norma para Bildungsroman não alcançada por mais ninguém, e, por isso, é um “gênero não realizado”; de todo modo, ele prossegue sendo a referência para o alinhamento de outros romances, e por isso é tão caro à literatura comparada. Mas de que serve um conceito de gênero, perguntamos criticamente com Selbmann (1988: 34), se a rigor ele serve para definir apenas um romance? O conceito Bildungsroman no Brasil: acima de qualquer suspeita Dentre os estudos brasileiros voltados para a questão do Bildungsroman merece destaque o trabalho de Maas, O Cânone Mínimo. O Bildungsroman na História da Literatura (2000), pois se volta às possíveis definições do gênero e alguns dos problemas aí envolvidos segundo a tradição crítica. Nesse trabalho de divulgação científica sobre a 355

temática do Bildungsroman que foi pioneiro no Brasil, a autora rastreia as definições do conceito e as obras que passaram a ser consideradas romances de formação, evidenciando, em suma, como o termo foi vastamente disseminando na literatura e na crítica literária. Sua intenção é empreender “uma investigação que se baliza pelo reconhecimento da historicidade do Bildungsroman” (2000: 17), assim, a posição da autora no que concerne à aceitação da existência desse tipo de romance parece clara, já que pressupõe como dado o conceito na própria formulação da investigação a ser empreendida. É bem verdade que o estudo procura se distanciar de qualquer ortodoxia quando prefere a expressão “instituição literária e cultural”289 a termos como “gênero”, “tipo”, “subgênero” para tentar definir o conceito; contudo, ao falar de “instituição”, Maas pretende realçar o Bildungsroman não como sendo “propriamente literário”, mas sobretudo formado por “manifestações discursivas” extra-literárias (2000: 25) – e assim cai por terra a fundação do conceito, ou ao menos sua explicação por meio da exclusiva análise textual dos romances. Dentre as “aparentes contradições” que o conceito carrega e que poderiam ser solucionadas com os “estudos de cultura” está o fato de que o Bildungsroman, na opinião de Maas, é historicamente circunscrito (tanto no que concerne à época de seu surgimento quanto ao conceito tradicional de formação), mas serve para todas as épocas. Ao mesmo tempo, com o conceito entendido dessa maneira, a autora desloca a explicação da obra (e, portanto, do conceito na obra), como afirmamos acima, para a explicação da relação entre arte e sociedade, explicando a primeira pela última 290 – método predileto, aliás, na teoria da literatura de diversas vertentes, como as marxistas e as da

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“Ao lado do mapeamento da crítica dirigida ao gênero e à obra considerada seu paradigma, procurou-se delimitar as inflexões históricas e literárias que possibilitaram sua gênese e desenvolvimento. Assim, as condições em que se deu a criação do termo Bildungsroman, o projeto pedagógico que se delineia durante a Aufklärung, a vertente de uma literatura educativa, bem como o conceito temporal da Bildung no âmbito da sociedade e cultura alemãs da segunda metade do século XVIII atuam como núcleos formadores do discurso, como projeções constituintes do Bildungsroman como instituição literária e cultural” (Maas 2000: 17). 290 Assim, tornando-se “um mecanismo de legitimação de uma burguesia incipiente, que quis ver refletidos seus ideais em um veículo literário (o romance) que apenas começara a se firmar”; ou ainda, “o Bildungsroman mostrou-se a contrapartida estética de acontecimentos que, na França, se davam no plano político” (Maas 2000: 17).

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chamada estética da recepção. Esta última, na qual o trabalho da autora se ancora, conforma-se quase perfeitamente ao fenômeno Bildungsroman criado discursivamente, já que é parte de seu pressuposto teórico explicar a obra pela inter-relação autor-obra-leitor. Inexplicado resta, porém, o que vem a ser essa “instituição” na própria obra se a despirmos dos “discursos” externos. Já que até hoje os críticos não concordaram nem ao menos sobre uma definição do conceito que seja suficientemente específica para designá-lo com precisão, sem confundi-lo com outros tipos de romance ou mesmo com o romance em geral, e ampla o bastante para que supra uma função epistemológica, isto é, para que sirva para designar uma família de romances da mesma natureza, é compreensível que num primeiro momento a autora não tenha se apropriado da polêmica. Assim, entendemos que a autora, na medida em que analisa “discursos” de fato existentes sobre o Bildungsroman, desviou necessariamente o foco das questões que discutimos aqui: não apenas a validade do conceito para a conceituação de obras particulares, mas, principalmente, para Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. A finalidade central de Maas não foi propriamente a de abordar o romance de Goethe, embora tenha se disposto a fazê-lo, mas sim a de nos dar a conhecer prováveis fontes do Bildungsroman, bem como sua fortuna crítica e os romances posteriores que passaram a constituir essa tradição, e por ter realizado esses propósitos o trabalho da autora tornou-se uma referência. Apesar do intuito de seu estudo não ser o questionamento da validade do conceito, é intrínseco à questão tomar sobre ela algum posicionamento, tanto mais quando se reconhece que “a grande circulação do termo Bildungsroman pelas literaturas nacionais europeias, e, mais recentemente, também pelas americanas, levou a uma superexposição do conceito. O recurso ao Bildungsroman passou a ser uma estratégia teórica e interpretativa capaz de abarcar toda produção romanesca na qual se representasse uma história de desenvolvimento pessoal” (Maas 2000: 24). Especificamente no que diz respeito ao romance goethiano, a constatação da autora que citamos acima já seria suficiente para explicitar a urgência de uma revisão do conceito a fim de evitar sua cega perpetuação inercial. E a forma mais rigorosa de se começar essa tarefa, de acordo com a perspectiva 357

que propomos neste ensaio, exigiria a análise interna detalhada do romance que se qualifica como o modelo do Bildungsroman, investigação, entretanto, incipiente no citado trabalho de Maas. Com enquadramento semelhante, isto é, tomando como dado um conceito do qual cada crítico oferece uma definição particular (sem analisar profundamente o cânone, portanto), Bolle argumenta em seu livro, ademais bastante original e influente, que Grande sertão: veredas é o romance de formação do Brasil, isto é, da nação e não apenas do herói individual (2004: 375 sq..). Bolle considera que a concepção que valoriza o indivíduo à custa da vida social “está impregnada pela sua época” (2004: 380), e contrapõe-se à perspectiva dos formuladores do conceito (Morgensten e Dilthey), para os quais o romance de formação seria restrito à história individual e não à de um povo, como ocorre na epopeia antiga. Para Bolle, a obra-prima de Rosa retomaria a ideia original de Goethe (a qual portanto não teria sido apreendida pelos primeiros teóricos) quanto ao sentido mais geral de formação: a meta não seria representar a luta das classes, mas o diálogo entre elas. Mazzari (1999) pressupõe igualmente um conceito firmemente estabelecido ao reputá-lo como “gênero literário que representa a mais significativa contribuição alemã à história do romance europeu” (p. 49) – posição que, como mencionamos anteriormente, é também discutível entre os críticos. Em seu livro, o autor investiga com muita propriedade a relação paródica do romance de Gunter Grass com a “tradição do romance de formação em geral” e em especial “com o protótipo goethiano” (1999: 11). Mesmo com Grass declarando que O Tambor de Lata situa-se numa relação “irônico-distanciada” em relação ao romance de formação, existe a necessidade entre os intérpretes – que justamente vem sendo cada vez mais debatida – de filiá-lo à tradição e de situá-lo de algum modo na constelação do Bildungsroman: O Tambor seria então um anti-romance de formação. Assim, nos três trabalhos citados acima, as respectivas análises comparativas utilizaram o conceito Bildungsroman da mesma forma que o fez boa parte da tradição crítica, contribuindo, ainda que involuntariamente, para reforçar uma inexatidão que beira dois séculos de existência. Ao se tirar o foco do Meister e não se propor uma abrangente revisão crítica do conceito, o romance de Goethe é referido apenas no intuito de dar uma 358

origem ao Bildungsroman, ao mesmo tempo em que a abstração de seu significado conceitual permanece291. Sobre as críticas ao conceito Bildungsroman, especialmente quando aplicado a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: uma tarefa vacilante e inacabada Na vasta discussão sobre o Bildungsroman é também interessante avaliar a repercussão que o conceito teve sobre a criação de obras literárias – isto é, em que medida os próprios escritores procuraram, deliberadamente, produzir romances que se adequassem a essa noção (aspecto ressaltado por Martini). Em que medida o conceito Bildungsroman foi aceito como rótulo e sob esse signo foi reproduzida uma tradição literária? E mais, se os próprios escritores criaram suas obras com tal intenção, quem é o crítico literário que há de divergir? 292 Esse é um problema antigo e complicado entre o artista e o esteta. Os teóricos que defendem o conceito a toda prova podem recorrer aos escritores para ratificar sua posição a favor do Bildungsroman – ou mesmo o defenderão à revelia das explícitas intenções autorais. É preciso reconhecer que a pertinência e a persistência da denominação Bildungsroman é também justificada pela própria “escola” constituída pelo romance de

291

Esse costuma ser o procedimento em geral adotado nas pesquisas brasileiras. Supondo o conceito de Bildungsroman como dado e, principalmente, sem analisá-lo a fundo no romance tido como exemplar do gênero, foram entendidos sob esse paradigma obras de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Raul Pompéia e outros. Além dos autores que abordamos neste tópico, poderíamos citar ainda: PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1990; DUARTE, Assis Duarte. Jorge Amado e o Bildungsroman proletário. In Revista da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), 1994; RIBEIRO, Amanda do Prado. A representação da formação do indivíduo na literatura. Uma análise dos discursos sobre aprendizado nos romances de Machado de Assis. Dissertação, 2008. Niterói, UFF. Note-se que este último trabalho amplia o uso do conceito oriundo da teoria do romance para a investigação de contos, deixando bem claro que a análise de “discursos” não tem nenhuma vinculação obrigatória ao que diz respeito à identidade material-conteudística ou à identidade formal-estrutural da obra. Entre os estudos que partem do pressuposto de que o Bildungsroman é “um dos conceitos basilares para a compreensão da época goethiana (Goethezeit) e a própria poética do autor” (HEISE, E. Orelha de livro. In: MAAS, Wilma Patrícia. Op. Cit.), podemos citar também: FONTANELLA, Marco Antônio. A Montanha Mágica como Bildungsroman. Dissertação, 2000. Campinas, Unicamp; NETO, Artur Bispo Santos. A Fenomenologia do Espírito de Hegel e o Romance de Formação de Goethe. Revista Urutágua, n.17 – dez.2008/jan/fev/mar.2009. Maringá – Paraná. 292 Embora críticos possam afirmar que este processo está fora do alcance de qualquer autor, lembremos de Thomas Mann, que pretendeu criar conscientemente com A Montanha Mágica (1924) um Bildungsroman.

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Goethe, romancistas alemães que direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente filiam-se a essa tradição (como Thomas Mann). Não menos certo, todavia, é o impacto causado pelo romance goethiano na sua recepção internacional desde o século XIX, que não pouca influência teria tido sobre O vermelho e o negro, de Stendhal, Ilusões perdidas, de Balzac e Educação sentimental, de Flaubert, os quais podem ser lidos todos como “histórias de educação do indivíduo na realidade existente”, nas palavras de Hegel293. Mas, mesmo levando em conta as posições mais decididas dos próprios escritores e dos críticos literários, persiste o problema teórico: qual a definição unívoca do gênero ou do tipo de romance denominado Bildungsroman? Falando mais concretamente, uma análise que pretende colocar o Bildungsroman como conceito diretor vê-se diante de problemas que se tornaram clássicos, tais como: ele pode aplicar-se a um determinado ângulo de um romance (por exemplo, ao não menos discutível “processo de formação”), no entanto, se considerado, por exemplo, o “destino” do herói, ele é totalmente inapropriado. Nesse caso, está-se frente a um Bildungsroman? Mesmo que se tenha tentado precisar o conceito investigando se havia um tipo de herói próprio à ideia de formação (um Bildungsheld) e tudo que implicaria sua existência, que se tenha perguntado sobre os conceitos de história de formação [Bildungsgeschichte], trajetória de formação [Bildungsgang / Bildungsweg], objetivo de formação [Bildungsziel], que poderiam estar presentes isoladamente ou em conjunto em diferentes obras, nunca se conseguiu chegar a uma resolução satisfatória que os unificasse em um mesmo conceito. O movimento de negação do Bildungsroman surge primeiramente como contestação do mesmo e, portanto, continua obrigatoriamente ligado às questões suscitadas por anos de tradição interpretativa. Como parte do problema de sua determinação concentra-se sobre o conceito de Bildung de Goethe e seu círculo, principalmente Herder e Wilhelm von Humboldt, indagou-se por muito tempo se um Bildungsroman teria sempre de ser radicado nessa concepção de Bildung, pois se consideramos a existência de uma tradição romanesca

293

Contudo – e essa é mais uma das muitas polêmicas – Jacobs e Krause (1989) ponderam que, se esses romances do século XIX contam as histórias dos irmãos fracassados de Wilhelm Meister, então podemos designá-los muito mais como romances de desilusão [Desillusionsromane].

360

do Bildungsroman posterior a Wilhelm Meister, é bem claro que o conceito original de Bildung não é inerente a essa tradição. No contexto de uma sistematização do romance alemão dos séculos dezenove e meados do vinte, o conceito Bildungsroman é usado discretamente (Köhn 1988: 351), voltando-se muito mais para sua aplicação (mais do que para a investigação) a Wilhelm Meister e à época de Goethe. Autores como Günther Weydt, Rudolf Majut e Fritz Martini são exemplos de teóricos mais ou menos céticos frente à categoria Bildungsroman, principalmente contra agrupamentos de romances sob essa denominação, pois logo que normas de representação artística são ligadas ao conceito, a interpretação, que deveria ser com isso facilitada, fica, na verdade, obstruída. Martini, que utiliza o conceito com reservas294, nega a possibilidade de renovação do Bildungsroman. A “consciência da liberdade”, “a força para a autodeterminação” do indivíduo na ação recíproca entre “eu e mundo”, que seriam para ele pressupostos essenciais da Bildung e do Bildungsroman, são destruídas nos romances do século XX (que aparecem comumente definidos com expressões como: fuga para a interioridade e ânsia por uma extinção da consciência do isolamento; destruição da unidade transcendental do eu etc.). O estranhamento [Entfremdung] do homem na realidade social, política, técnica tornada superpoderosa torna uma Bildung autêntica impossível (para Martini, Kafka, em O Castelo, O Processo, América, configurou a forma mais radical de aniquilamento desse tipo de romance). Werner Welzig (cf. Köhn: 1988) considera, igualmente, que conceitos como Bildungsroman, romance de caráter etc., não são suficientes para a compreensão moderna desse tema – e aqui se liga a Melitta Gerhard (1926), embora o trabalho dela tenha elegido outro conceito para substituir a função do Bildungsroman, o de Entwicklungsroman, que segundo a autora permitiria maior abrangência de análise (Köhn 1988: 366)295. No que se refere ao estudo de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Kurt

294

Em Deutsche Literatur im bürgerlichen Realismus 1848-1898 [Literatura alemã no realismo burguês] (1974), (cf. Köhn 1988: 352). 295 No entanto, o estudo de Melitta Gerhard não diferencia visivelmente Entwicklungsroman de Bildungsroman.

361

May (1957), em resposta a Schlechta, modificou, sem conseguir resolver as contradições que surgiram, o “programa de formação” de Wilhelm Meister. O objetivo do romance não seria então o “completo desenvolvimento da individualidade do herói, mas a educação de Wilhelm para uma ‘postura socialmente ética’” (p. 5). Não aquilo que o próprio Wilhelm ambiciona, mas sim o que as máximas da Torre estabelecem como ideal. May indicou como o tema da formação interior, espiritual e universal é na verdade repetidamente atacado em Wilhelm Meister, e conclui: “de modo algum é um Bildungsroman no sentido do humanismo clássico e de sua ideia de humanidade harmônica e universal” (p. 33). De acordo com May, ou Goethe não conseguiu representar esse objetivo de formação em Wilhelm ou os bens de formação que deveriam reunir-se em uma pessoa exibem-se na repartição em uma linha de representantes. De todo modo, a formação é e permanece um processo a se realizar. Ainda assim, porém, May considera que Wilhelm Meister é um Bildungsroman. Para ele, o ideal de vida de Wilhelm desenvolve-se continuamente na direção de uma sociabilidade eticamente prática, posição que ele fundamenta principalmente nos dois últimos livros do romance. Karl Otto Conrady, em 1994, já sem causar estrondo pôde se desprender da linha interpretativa que permanecia dominante, embora em franca decadência há pelo menos duas décadas, e comentar o conceito ligeiramente, lembrando as palavras finais do personagem Friedrich sobre Wilhelm Meister 296, para em seguida perguntar: “este é o final de um Bildungsroman?” Tornou-se Wilhelm de aluno em mestre? Ou seja, foi ele conduzido “para o reconhecimento das possibilidades e tarefas de sua existência e aos correspondentes modos de existência?” (p. 639). E conclui: não há um único conceito de Bildung, ao contrário, há várias contradições. Menos cético e radical que Schlechta, KlausDieter Sorg (1983) antecipou essa avaliação de Conrady: “Para o desejo de formação de Wilhelm não há uma solução satisfatória na forma de um determinado modo de vida, ao contrário, sua Bildung pode representar-se apenas como problema” (citado em Seitz 1997:

296

“/.../ tu me lembras Saul, o filho de Quis, que foi à procura das jumentas de seu pai e encontrou um reino” (Goethe, 1994: VIII 10, p. 586).

362

122-123). Portanto, para Conrady seria errôneo fazer o que muitos defensores do conceito fizeram, isto é, interpretar o expresso na carta de Wilhelm a Werner 297 como uma afirmação diretora do romance e fazer disso o fundamento de uma interpretação – ou seja, o autor dirige sua crítica à interpretação do “discurso” (o expresso pelo próprio personagem, neste caso) como fundamento de um conceito de gênero romanesco. Para o autor, os personagens mostram concretamente que não há um modelo para a Bildung. O romance desdobra um panorama de destinos humanos de talhes muito diversos, e ademais, a configuração dos personagens dá um não como resposta a uma possível Bildung como um equilíbrio bemsucedido de eu e mundo. Conrady defende a opinião de que Wilhelm Meister não ofereceria “um modelo para uma formação na qual é indicada uma determinação visível e traduzível, como ela aconteceu e como pode ser felizmente completada” (citado em Seitz, 1996: 123). Klaus Gehrt (1996), Hans-Egon Hass (1963) e Gerwin Marahrens (1985) também são contra o conceito de Bildungsroman na análise de Wilhelm Meister. Assim como Erwin Seitz, que pondera: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são apenas condicionalmente um Bildungsroman. Por certo, Wilhelm vive ricas experiências, ele percorre o mundo dos burgueses, dos artistas, da nobreza, e passa a conhecer algumas das tarefas que se colocam nas diferentes áreas da vida; ele vivencia a felicidade e a infelicidade no amor, e enxerga o mundo com olhos mais abertos no final do romance. Porém, o que há de ser dele, ele não sabe. Ele não mostra de modo algum uma estatura interior fortalecida. O Goethe clássico não escreve um romance de felicidade romântica. Ele escreve um romance de época e um moderno e complicado romance de artista. O herói com seu ‘talento como poeta e ator’ torna-se enfeitiçado, parte para sua felicidade e parte para sua infelicidade (1996: 137).

Por fim, Steiner (1997) considera que um desvio produtivo da pesquisa orientada pelo Bildungsroman foi o importante impulso do estudo de Lukács de 1936, pouco citado

297

“Para dizer-te em uma palavra: formar-me a mim mesmo, tal como sou [mich selbst, ganz wie ich da bin, auszubilden], tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância” (Goethe, 1994: V 3, p. 286).

363

entre os comentadores justamente porque saiu da esfera do Bildungsroman (sem, contudo, polemizá-la). A interpretação de Lukács coloca o romance no contexto da história da Revolução Francesa, cujos conteúdos sociais e humanos concordam com os ideais de formação da Weimar clássica. Ao mesmo tempo, a oposição entre os ideais do humanismo e da realidade da sociedade burguesa transformou a Sociedade da Torre numa ilha, já tornada utópica na configuração romanesca. Tão difícil é definir o conceito que muitos teóricos, ao invés de levar a cabo essa tarefa, passaram a se concentrar sobre outros aspectos do romance goethiano (enquanto outros resistiram e continuaram tentando298). Hans-Jürgen Schings, um dos mais renomados teóricos do Meister, temendo a ameaça da colagem de etiquetas como Bildungsroman e Sozialroman, ainda que assuma a denominação Bildungsroman sem maiores definições delimitadoras e críticas (provavelmente no intuito de debruçar-se sem alarde em seu próprio trabalho que em nada se liga a essa tradição crítica), fala do efeito estimulante das recentes pesquisas e perspectivas de análise do romance goethiano, citando abordagens simbólicas, psicoanalíticas, epistemológicas e mitológicas299. A partir da década de 1970, principalmente, surgiram frutíferos estudos sobre o romance de Goethe que procuraram avançar em diferentes frentes e descobrir outras perspectivas de compreensão que ele oferece, sem a preocupação, portanto, de entrar na discussão sobre o Bildungsroman. Na pesquisa mais recente, os trabalhos de Felicitas Igel (2007) e Dirk Kemper (2004) são exemplos excelentes da ampliação do foco de pesquisa sobre Wilhelm Meister. Igel não se envolve na discussão sobre Bildung e muito menos na do Bildungsroman ao investigar as raízes do romance goethiano no alto romance barroco. Note-se que Kemper faz um estudo precisamente sobre a “problemática da individualidade” em obras de Goethe, inclusive em Wilhelm Meister, e nesse contexto a questão da Bildung não pôde deixar de ser abordada, mesmo de modo subjacente – porém, questões em torno do Meister ser ou não ser um Bildungsroman ficam completamente de fora.

298

Vide os trabalhos de Jürgen Jacobs ao longo das décadas: 1972, 1988, 1999 – este último: “Reine und sichere Tätigkeit. Zum Bildungskonzept in Goethes Wilhelm Meister. In: Pädagogische Rundschau 53, H. 4. 299 Cf. Wilhelm Meisters schöne Amazone, p. 144. Schings cita os trabalhos de Ivar Sagmo (1982), Hannelore Schlaffer (1982), Ilse Graham (1977).

364

* Se a ciência constitui-se baseada em métodos e classificações, com a ciência da literatura (pensamos aqui na Literaturwissenschaft alemã, solo em que o Bildungsroman frutificou)

não

haveria

[Gesellschaftsroman],

de

romance

ser de

diferente. artista

Conceitos

como

[Künstlerroman],

romance

romance

social

individual

[Individualroman] e tantos outros subtipos de romances ajudam a ciência literária a trabalhar com seus objetos, facilitando seu acesso a eles e, em certos casos, permitindo um melhor entendimento dos mesmos. Essa mesma intenção científica fundamenta a maioria das tentativas de estabelecimento do conceito Bildungsroman. Porém, o que pode ter se mostrado um instrumento útil de classificação naqueles outros casos, tornou-se aqui um complicador. Nascido já bastante alargado, o conceito serviu para denominar praticamente qualquer romance – e exatamente essa “versatilidade” foi tão apreciada pela literatura comparada. Assim, o que se constata ao longo da história do conceito é que a problemática do Bildungsroman envolve principalmente a questão da tradição, da continuidade e, particularmente, a capacidade ou possibilidade do conceito ser estendido a outros romances para além de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de maneira a tornar-se um gênero romanesco ou, ao menos, definir um determinado tipo de romance. No entanto, diferentemente de conceitos da teoria literária que reportam incontestavelmente ao conteúdo ou à forma dos romances (epistolar, de viagem, de aventura, de artista etc.), o conceito Bildungsroman não pode ser inequivocamente “aplicado”. Isto porque, a rigor, o único romance que se encaixaria plenamente no gênero, o único que atingiu a forma plena do romance de formação, aquele que seria seu primeiro autêntico exemplar, o criador do “gênero” e seu modelo máximo são Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. De acordo com esse critério, alguns romances poderiam de fato ser considerados Bildungsromane sob certos aspectos, porém, outros tantos elementos os descaracterizariam como tal. O conceito mostra-se, no fim das contas, bem pouco funcional e não resiste a uma consideração mais apurada. 365

Por causa da diversidade de associações que a noção suscita para além de sua conexão específica com Meister, o Bildungsroman parece ter sido usado como chavemestra para a compreensão e interpretação do romance moderno em geral; ora, isso aconteceu porque a história do que veio a se chamar Bildungsroman confunde-se com a própria história do romance moderno. E assim, sem que se percebesse, a imprecisão da denominação Bildungsroman e a consequente amplitude a que essa indeterminação leva conduziram constantemente as definições de romance de formação a considerações sobre a natureza do romance em geral e ao seu principal assunto: a relação entre o indivíduo e a sociedade, a qual, por sua vez, remete às raízes épicas do romance. Como vimos, entre as definições clássicas do conceito que pretendem se sustentar em Meister estão aquelas que, sob o escopo do “desenvolvimento individual” estabeleceram como critério definidor desse tipo de romance o que corresponderia ao cerne de todo romance, ou seja, a luta entre sociedade e indivíduo; ou aquela que o justifica mediante o amadurecimento do herói em suas diversas etapas (ideia bastante simplificada da história de Wilhelm). Tudo isso, ademais, pode ser facilmente confundido com os chamados romance de educação, romance de desenvolvimento e outros. Então, em Wilhelm Meister e nos seus “sucessores”, qual seria a temática exclusiva do Bildungsroman? O processo de disseminação do conceito percorreu diferentes caminhos, e no que diz repeito a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister a ausência de uma análise estrita do romance (este que, inequivocamente, teria fundado o conceito Bildungsroman) foi o principal modus operandi para a divulgação do termo romance de formação, de modo que muitas análises do Meister foram orientadas para que se encaixassem no conceito previamente articulado. Com poucas exceções, os perpetuadores da noção pouco se detiveram na demonstração do mesmo mediante uma análise profunda de Wilhelm Meister, procedimento a nosso ver obrigatório se considerarmos que esse romance seria de fato o criador da “tradição” do Bildungsroman. Com o passar dos anos, as sucessivas tentativas malogradas de uma fixação inequívoca do conceito Bildungsroman acabaram por colocá-lo progressivamente sob suspeita, uma vez que ele foi abundantemente usado pelos críticos mesmo sem nunca ter 366

tido uma definição consensual (o que, repetimos, pode ser comprovado pelo desenvolvimento da crítica literária sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister). Dentre os críticos do conceito, ou dentre aqueles que simplesmente o menosprezam, constata-se, curiosamente, um esforço maior na análise do romance de Goethe, e uma coincidência: depois desse procedimento, eles geralmente reconsideram a classificação da obra como um Bildungsroman ou, no mínimo, passam a encará-la com grandes reservas. Certamente a pesquisa brasileira se beneficiaria se também arriscasse passos nessa direção, inclusive indagando a si mesma sobre a pertinência de consolidar uma tradição desde sempre problemática e já há algumas décadas cambaleante nos estudos literários. Propomos como alternativa, ao menos num primeiro momento, retornar a Wilhelm Meister tentando lê-lo sem os óculos do Bildungsroman, para em seguida julgar com mais acuidade as definições provisórias tentadas pela tradição interpretativa. Só a partir desse momento se pode arriscar uma definição unívoca – pelo menos uma delimitação precisa da questão – ou então renunciar por completo ao conceito. Se no início deste ensaio nos perguntávamos sobre a pertinência de um conceito literário específico, o Bildungsroman, especialmente para a interpretação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, indagamos por fim: Por que, ao invés do encerramento em grades conceituais, não optamos pelo desbravamento de novos horizontes que não cansam de vicejar em Wilhelm Meister e em outros grandes clássicos? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOLLE, Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. 2004. CONRADY, Karl Otto. Ein Schüler, der kein Meister wurde. Wilhelm Meisters Lehrjahre. In Leben und Werk. München, Zurich: Artemis und Winkler. 1994. p.623-649. DILTHEY, Wilhelm. Der Bildungsroman (1906). In Selbmann, Rolf (Org.): Zur Geschichte des deutschen Bildungsroman. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft. 1988. p. 120-122. 367

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II Asserções de Lukács (1914-15/1932/1936) sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe300 RESUMO Nesta comunicação pretendemos examinar, comparar e discutir algumas asserções de Lukács a respeito do romance de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1795-96), especificamente suas análises sobre como se configura ali a representação da sociedade. Os ensaios selecionados para esta discussão são os seguintes: “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister” como tentativa de uma síntese (1914-15); Goethe e a dialética; A visão de mundo de Goethe; O que é Goethe para nós hoje? (1932); Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1936). Decerto, como veremos, há uma significativa mudança no pensamento de Lukács no período considerado, mas constataremos também algumas continuidades. PALAVRAS-CHAVE: Lukács. Goethe. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. A dialética, o realismo e a história na literatura de Goethe No ensaio Goethe e a dialética, Lukács afirma que “a luta em torno da formação da dialética é o problema teórico central da época clássica da filosofia e literatura alemãs, da época de Lessing até Hegel” (1932a: 406), e Goethe participou desse embate tanto no âmbito das realizações literárias quanto nas suas pesquisas inovadoras nas ciências naturais. Com a ressalva de que o conflito filosófico entre idealismo e materialismo ainda não havia se estabelecido claramente à época, Lukács considera que se pode dizer que para Goethe se trata de encontrar um caminho entre materialismo e idealismo (1932a: 409). Explicando as posições em disputa e situando Goethe nesse contexto, Lukács chega até a filosofia

300

Comunicação apresentada no V Colóquio Marx e os Marxismos, outubro de 2013.

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hegeliana, na qual o método dialético teve sua forma mais desenvolvida e que, por isso mesmo, representa um progresso em relação aos antecessores por oferecer uma nova versão da unidade das contradições como princípio motor da realidade (ainda que fosse uma solução idealista, na medida em que para Hegel se trata do “automovimento do conceito”, 1932a: 417). A dialética hegeliana liga-se intimamente aos acontecimentos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial inglesa: ainda que com limitações, ambas são incorporadas por Hegel na construção da filosofia da história e entendidas como momentos necessários do desenvolvimento. Goethe e Hegel, que se estimavam muito e eram pessoalmente próximos, posicionaram-se da mesma maneira sobre o chamado “período napoleônico” e sua queda (este período começa propriamente já antes da tomada de poder por Napoleão e abrange, na fragmentada Alemanha da época, os anos de 1794-1814): Ambos viam na França napoleônica o ideal de estado e sociedade que correspondia à posição de classe deles (a grande burguesia como líder de um movimento burguês de conjunto); ambos rejeitaram friamente a ‘Guerra de Libertação’ alemã com seu impulso nacionalista; ambos se colocaram basicamente contra as ideologias de restauração dos românticos – porém, não sem que eles tivessem assimilado muito do romantismo em seus pensamentos (1932a: 417). A diferença entre Goethe e Hegel é que o primeiro foi apaixonadamente contra a Revolução Francesa, enquanto para o segundo ela era um estágio necessário da história. Malgrado a concepção problemática de Hegel, ele incorpora a revolução como parte de sua dialética. Segundo Lukács, é possível entender melhor os limites da dialética de Goethe por meio da concepção goethiana da revolução e seu contraste com as ideias Hegel. Goethe e Hegel possuem métodos e sistemas diversos: enquanto as discordâncias de Goethe recaem sobre aspectos centrais da filosofia hegeliana, especialmente sobre as categorias decisivas de transição, Hegel, de sua parte, salienta muito diplomaticamente a incapacidade de Goethe em apreender as contradições vivas, pertencentes à unidade dos objetos, como algo imanente (principalmente em relação ao fenômeno primordial [Urphänomen], cujo entendimento está na base da teoria goethiana sobre a metamorfose das plantas). Goethe, ao permanecer no círculo místico-agnóstico e transcendente, por negar a “súbita” transição de 372

quantidade em qualidade (que persiste para ele como dois polos do ser aparente), bloqueia o caminho que leva do abstrato ao concreto. No âmbito histórico, isso significa não apenas que Goethe “tira do caminho todas as conexões históricas e considera apenas o homem individual” (1932a: 421), mas que ele “quer sempre dissolver em harmonia as contradições, cujo caráter fundamental reconhece, e não como Hegel que nelas enxerga o princípio motor do desenvolvimento” (1932c: 436). Entre os pensadores contemporâneos de Goethe, foi do pensamento de Schelling que ele mais se aproximou, precisamente no que respeita à unidade dos contrários apreendida por meio da mística “intuição intelectual” 301. Lukács menciona que a simpatia e a “concordância frequente” de Goethe com Schelling são impossíveis de tratar no espaço do ensaio em questão, e opta por deter-se no problema filosófico da apreensão da realidade (1932a: 413-414). A indicação de Lukács, no entanto, leva-nos a mencionar a posição de Schelling sobre a história, extraída de um escrito de juventude que teve enorme influência sobre o futuro movimento romântico. Em Tentativa de explicação crítica e filosófica dos mais antigos filosofemas de Gênesis III sobre a origem primeira da maldade humana [Antiquissimi de prima malorum humanorum origine philosophematis Genes. III. explicandi tentamen criticum et philosophicum], de 1792, Schelling busca uma explicação histórica para as “origens da maldade humana”, sustentando que o homem vivia originariamente feliz, mas por causa de um deslize caiu em infelicidade. Fica evidente, portanto, como o filósofo herda a incapacidade kantiana de apreender a história302. É um fato amplamente sabido e reconhecido que Goethe (1749-1832), mesmo tendo testemunhado alguns dos mais decisivos eventos da história moderna, deixa claro em inúmeras passagens (conversas, cartas, recensões etc. nas quais ele fala diretamente sobre o

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Notadamente no Sistema do idealismo transcendental (1800). Certamente, podemos incluir este escrito de Schelling no que Marx denominou de “robinsonadas do século XVIII”, teorias que supunham o indivíduo isolado e sua necessidade de intercâmbio com outros indivíduos livres, iguais e igualmente isolados; de modo que a economia política explicou a origem da acumulação primitiva como proveniente de uma situação longínqua e lendária, na qual uma “elite laboriosa, inteligente e, sobretudo, econômica” convivia com uma população de “vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham” (MARX, 1975: 829). 302

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tema) que reconhece o princípio do movimento apenas nas pessoas e em seus destinos pessoais, e não em instituições, no estado, na sociedade – estes estariam sob os poderes imutáveis do destino303. Observando apenas os indivíduos envolvidos numa totalidade insondável, torna-se compreensível que para Goethe a própria historiografia estaria essencialmente impregnada por um subjetivismo intransponível 304; por outro lado, se não subestimamos afirmações tais como: “Sem meus esforços nas ciências naturais, eu /.../ nunca teria conhecido os homens como eles são” (Conversas com Eckermann, 13.02.1829), poderíamos pensar que Goethe, por outros caminhos, de algum modo percebeu dialeticamente os homens tanto quanto o fez nas ciências naturais. Em 1932 Lukács parece não acreditar nisso, e explica a aparente incongruência entre realismo e dialética em Goethe como se segue: Esse realismo é de uma grande liberdade e generosidade nos princípios configuradores. Exatamente porque Goethe “nunca observou a natureza em razão de suas finalidades políticas”

303

A esse respeito, disse Walter Benjamim: “Para Goethe, a história representava uma sequência incalculável de formas de dominação e culturas em que os grandes indivíduos, César ou Napoleão, Shakespeare ou Voltaire representam o único ponto de referência” (2009: 141). Essa é, aliás, a opinião de Goethe também sobre a ciência: “Em todos os tempos apenas os indivíduos agiram para a ciência, não a época” (Máximas e Reflexões). A capacidade produtiva de combate do indivíduo com “a experiência imediata e a tradição mediada” é para Goethe o que cria a possibilidade para uma história progressiva das ciências: é sempre o indivíduo que deve oferecer “peito e cérebro” diante de uma ampla natureza e uma tradição ainda mais ampla. Para uma introdução à concepção de história de Goethe: DAHNKE, 1998. 304 A seguinte anedota ilustra bem o que estamos falando: “Numa conversa de 19 de agosto de 1806 com Heinrich Luden, recém-chegado para lecionar História na Universidade de Jena, Goethe, após discorrer longamente sobre Fausto, e já enveredando pelo assunto que o pusera em contato com o jovem docente, expressa opiniões que embaraçam o seu interlocutor. Ante a dúvida expressa por Luden, sobre ser capaz de ser um verdadeiro historiador, Goethe pergunta-lhe o que o impediria de tanto. Pois, para lecionar história, bastarlhe-iam boas maneiras, boa voz, e saber contar uma boa estória. Como Luden insistisse sobre as dificuldades oferecidas pela pesquisa histórica, Goethe expressa uma clara crítica aos que pretendem que os seus achados históricos sejam mais relevantes que os dos outros, e mostra-se bastante cético quanto à possibilidade de se relatar algo historiograficamente novo. As fontes, já descobertas e exploradas, não teriam mais nada de novo a revelar, e seriam como águas que, ao serem revolvidas por outros, mostram-se além de tudo turvas. Em seu entender, já seria trabalho suficiente ter acesso a essas fontes, e tal configurar-se-ia já num grande mérito do historiador. Pois, afinal, mesmo que se sondassem fontes inéditas, todos chegariam às mesmas conclusões históricas de fundo, quais sejam, à infelicidade que os homens infligem uns aos outros ao longo do tempo, o medo da morte, etc.” (MONTEZ, 2005: 40). Portanto, Goethe entende a história como passado que não pode ser objetiva e completamente captado pela historiografia; ele despreza, ao menos teoricamente, a imanência ontológica do passado no presente enquanto relações materiais e espirituais transmitidas e reproduzidas socialmente.

374

(Eckermann, 18.01.1827), mas possuía uma riqueza de conhecimentos sistemáticos e livremente dirigidos da realidade objetiva, advindos de seus estudos naturais, de suas ambições na pintura etc. /.../ ele pôde se movimentar aqui bem livremente na matéria, reproduzir o movimento, o automovimento da matéria, ao mesmo tempo essencial e evidente, como automovimento. /.../ Quando Goethe é tematicamente forçado, porém, esse método criativo excepcional tem de renunciar continuamente a entrar em conteúdos aos quais sua dialética e seu realismo renunciam por razões ideológicas (1932b: 431). De fato, no âmbito poético “Goethe representa – com eventuais oscilações – uma linha realista. Ele quer, portanto, manter distância das exigências poéticas do idealismo (Schiller, românticos)” (1932a: 411). Apesar da problemática concepção histórica de Goethe, portanto, Lukács identifica em suas criações artísticas um “saudável realismo”: o princípio que o guia é a representação do universal no particular305, e reside aí a grandeza incontestável de Goethe. Apesar disso, em 1932, o julgamento final de Lukács sobre Goethe é que: Ele, o perspicaz observador das relações dialéticas na natureza, no homem individual, na vida privada do homem individual, inclusive no fundamento social de seu ser privado, fecha-se durante sua vida para o conhecimento da dialética da história, da sociedade em sua totalidade. Ele tomou sociedade e história como dados, mistificou – “cientificamente” – como “demoníaco” etc. um “eterno tornar-se”, uma evolução no interior dela; mistificava também o destino individual tão logo fosse necessário para o conhecimento das relações sociais em seu movimento. /.../ A economia, em toda sua universalidade, foi para ele um livro fechado a sete chaves, e mesmo que ele também descreva bem, aqui e ali, a penetração do capitalismo na propriedade feudal (p.ex., em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister), isso tudo é apenas possível enquanto não ameaça romper suas fronteiras evolucionistas: a pacífica fusão de nobreza e aristocracia (1932a: 421). Goethe leva adiante a herança da literatura realista-revolucionária da burguesia ascendente, ainda que não seja “capaz de configurar consequentemente com meios realistas o movimento dialético do conteúdo que ele concebe” (A visão de mundo de Goethe, p.

305

E disso tem clara consciência o próprio poeta (cf., p. ex., Conversas com Eckermann, 11.6.1825).

375

440). Para que isso ocorresse na literatura, Lukács pondera que Goethe deveria configurar a totalidade da sociedade, e isso ele não faz ou faz de maneira parcial, estática, como exemplificam Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister; por isso, a esse respeito o poeta alemão estaria abaixo dos grandes realistas dos séculos XVIII e XIX, como Defoe, Fielding e Balzac (1932b: 432). Diante dessa oposição entre um realismo visceral e verdadeiro e a visão de mundo de Goethe orientada por sua posição de classe, não poderia sair incólume, por fim, até mesmo aquilo em que ele foi reconhecidamente excelente: Pois a dialética do individual magistralmente observada e configurada por Goethe, cedendo ao próprio automovimento dialético, seguiria para consequências que seriam ideologicamente (ou às vezes: meramente publicamente) intoleráveis para Goethe. Em tais casos insere-se então um mecanismo de correção: o movimento dos personagens é artificialmente ajustado à fixidez não dialética e moldável do meio social geral e com isso feito rígido, convencional, não verdadeiro. (O início de Afinidades eletivas, também muito em Hermann e Dorotea, Wilhelm Meister etc.) (1932b: 432). Reavaliação da potência crítica de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Se na questão dialética e histórica Lukács parece posicionar-se com Hegel em suas censuras contra Goethe, poucos anos mais tarde ele não mais insistirá nessa problemática concepção goethiana, preferirá, isto sim, ressaltar a profunda sabedoria do escritor alemão. Ao observar que a nobreza valia somente como trampolim para Wilhelm, Lukács assente que o herói “– para não se falar do próprio Goethe – vê com clareza que esse trampolim não produz necessariamente e por si mesmo os saltos, e que essas condições favoráveis não se transformam de modo algum por mesmas em realidade” (1936: 597). Lukács parece deixar de lado qualquer crítica ao romance e prefere enfatizar a qualidade artística da literatura de Goethe: /.../ a totalidade da sociedade configurou-se antes e especialmente depois dessa obra com um realismo mais abrangente, mais extensivo, e que envolve com maior energia as profundidades últimas. Sob esse ponto de vista, não se pode comparar o Wilhelm Meister com Lesage ou Defoe, nem com Balzac ou Stendhal. Pois 376

Lesage parece seco, e Balzac, confuso e sobrecarregado, comparados com a clássica perfeição da arte de escrever, com a rica e impressionante elegância da composição, da caracterização (1936: 612). A forma de configuração da sociedade neste romance goethiano é completamente reavaliada – mesmo onde Lukács procura continuar determinando se ela é total ou não. Assim, por exemplo, o autor delineia o teor da mudança de A missão teatral de Wilhelm Meister (Urmeister) para Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister: A exposição da vida teatral, que constituía todo o conteúdo da primeira versão, não ocupa aqui senão a primeira parte do romance /.../. A nova versão amplia-se, portanto, para uma representação de toda a sociedade (1936: 594). Ou ainda: O salto goethiano, tanto de conteúdo quanto de forma, em direção à configuração objetiva da sociedade burguesa inteira, só se completa portanto em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1936: 594). O que em 1932 foi interpretado como limitação insuperável oriunda da visão de classe de Goethe que o limitava à representação da esfera privada, foi reapreciado quatro anos mais tarde. O que antes era restrito à vida individual do protagonista e sua correlata existência social (o teatro) sofre um alargamento para englobar um universo social que vai muito além de Wilhelm e suas ambições. Essa posição parece concordar com aquela expressa anteriormente em A teoria do romance: “o herói [Wilhelm] é selecionado entre o número ilimitado dos aspirantes e posto no centro da narrativa somente porque sua busca e sua descoberta revelam, com máxima nitidez, a totalidade do mundo” (1914/15: 140). Também em outras passagens desse mesmo ensaio Lukács supõe que tal representação se fez efetiva, tal como: “A estrutura dos homens e destinos do Wilhelm Meister define a construção do mundo social que os circunda” (1914/15: 144). No entanto, neste escrito nenhuma palavra é proferida sobre uma possível crítica social presente no romance, uma vez que a ênfase do autor ao analisar o romance recaiu na constatação da “adaptação à sociedade na resignada aceitação de suas formas vida”, já que a “discrepância entre interioridade e mundo” é ao herói inescapável. Muito diferente da contundência – que 377

também não se encontra em 1932 – do escrito de 1936: A verdadeira descrição da sociedade, a crítica à burguesia e à nobreza, a configuração da exemplar vida humanista só podem na verdade se desenvolver depois de superada a concepção do teatro como caminho para a humanização (1936: 595). Tornou-se evidente que Os anos de aprendizado proferem uma crítica à divisão capitalista do trabalho bem como a suas classes (1936: 596), e justamente, como notou Schiller a Goethe – e lembrou Lukács – por considerá-las em sua nulidade: a nobreza, analogamente ao teatro, tem na obra a função de trampolim para a “formação da personalidade”306. A nulidade das classes no romance, criticada no ensaio de 1932, é desta feita nuançada – senão elogiada – por colocar em primeiro plano os ideais humanistas: “A realização dos ideais humanistas é neste romance não só o parâmetro para julgar as diversas classes e seus representantes como também a força propulsora e o critério da ação de todo o romance”, é a “mola propulsora mais ou menos consciente de suas ações” (1936: 598), isto é, da vida de Wilhelm e de outros personagens. Até mesmo na relativização do protagonismo de Wilhelm Meister houve tal reavaliação da potência crítica do romance por Lukács, mas, desta vez, do texto de 1936 comparado ao de 1914/15 (e não aos de 1932, nos quais pouco se fala detidamente de Wilhelm Meister). Em A teoria do romance Lukács reconhece que “o robusto e seguro sentimento básico dessa forma romanesca vem da relativização de seu personagem central” (1914/15: 142), mas ainda assim o filósofo examina as obras da perspectiva dos heróis que seriam mais ou menos “problemáticos”, de maneira que o tema de Wilhlem Meister “é a reconciliação do indivíduo problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta” (1914/15: 138). No longo ensaio de 1936 dedicado inteiramente ao romance de Goethe, Lukács trata do protagonista Wilhelm Meister apenas na medida em que é necessário para deter-se, isto sim, na concepção mais geral que orienta a obra. Com isso, o protagonismo de Wilhelm é atenuado. Esse modo de tratar o protagonista guarda

306

Como grande parte da crítica, Lukács enfatiza a personalidade, não a individualidade de Meister, ou porque destaca a personalidade no âmbito da individualidade ou porque toma uma pela outra indistintamente. Compare-se também a A teoria do romance, em que dentre outras passagens o autor fala de “possibilidade de atuação da personalidade” (1914/15: 144).

378

semelhanças com a opinião de 1914/15, e que foi partilhada por grande parte da crítica posterior, sendo pronunciada primeiramente por Schiller em carta a Goethe (28.11.1796): Wilhelm Meister é na verdade a pessoa mais necessária, mas não a mais importante; justamente nisso se encontra uma das peculiaridades do seu romance: que ele não tenha e não precise de tal pessoa mais importante. Ao lado e em torno dele acontece tudo, mas não propriamente por sua causa /.../ (SCHILLER: 651). Essa descentralização do protagonismo no romance não conflita, para Lukács, com a ideia de que Goethe – partilhando de uma visão dominante na literatura europeia desde o Renascimento, bem como de toda a literatura do Iluminismo – coloque “no centro deste romance o ser humano, a realização e o desenvolvimento de sua personalidade” (1936: 599), justamente porque a busca dos ideais humanistas centrados na realização da “personalidade humana” é observada não apenas no herói, mas em diversos personagens. Contudo, novamente alinhando-se à crítica literária, Lukács não tem como desprezar efetivamente o protagonismo de Wilhelm, uma vez que por esses caminhos nosso autor acaba por enredar-se na concepção de que nesse romance também Goethe, “como todo grande escritor de romances, se propõe como tema principal a luta dos ideais com a realidade” (1936: 604), oposição que na obra goethiana é representada pela crítica aos falsos extremos do sentimentalismo e do praticismo (1936: 613). O que resulta, como já vimos, na conclusão de que Wilhelm deve afastar-se do extremo subjetivo (caracterizado tipicamente na bela alma), da pura interioridade vazia e abstrata (1936: 602). E assim Lukács retorna à opinião expressa em A teoria do romance orientada pela necessidade de renúncia de Wilhelm ou, nas palavras de Lukács, “experiência compreensiva” (1914/15: 143): “o ponto de transição decisivo para a educação [Erziehung] de Wilhelm Meister consiste precisamente em que ele renuncie a sua atitude puramente interior, puramente subjetiva para com a realidade, e chegue à compreensão da realidade objetiva, à atividade na realidade tal como ela é” (1936: 604)307. E daí decorre o alinhamento de Lukács à

307

Lukács deixa que Hegel fale por ele. A afirmação hegeliana que diz que o “sujeito tem de se tornar comedido” é estendida por Lukács para Afinidades Eletivas e Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister: a eles “aplica-se pois em tudo essa afirmação de Hegel a respeito do desfecho da luta entre poesia e prosa, entre ideal e realidade” (1936: 605). O mesmo se lê em A teoria do Romance, em que a “comunidade” da Sociedade

379

tradição da interpretação do romance de Goethe como Bildungsroman, mas sob a denominação de Erziehungsroman: “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é um romance de educação: seu conteúdo é a educação dos homens para a compreensão prática da realidade” (1936: 604). Em A teoria do romance Lukács já expressava a mesma opinião: “Chamou-se essa forma de romance de educação. Com acerto, pois sua ação tem de ser um processo consciente, conduzido e direcionado por um determinado objetivo: o desenvolvimento de qualidades humanas que jamais floresceriam sem uma tal intervenção ativa de homens e felizes acasos /.../” (1914/15: 141)308.

Considerações finais O cotejamento de alguns momentos das interpretações de Lukács sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister realizadas em 1914/15, 1932 e 1936309 evidencia que Lukács mudou reiteradamente sua percepção do romance. Nos textos de 1932, ele critica-o abertamente em todas as vezes que o menciona; embora o filósofo não tenha abordado

da Torre, da qual o herói passa a fazer parte, consiste em “um lapidar-se e habituar-se mútuos de personalidades antes solitárias e obstinadamente confinadas em si mesmas, o fruto de uma resignação rica e enriquecedora, o coroamento de um processo educativo, uma maturidade alcançada e conquistada. O conteúdo dessa maturidade é um ideal da humanidade livre” (1936: 140). 308 Romance de formação, de educação ou de desenvolvimento [Enwicklungsroman] foram conceitos tentados pela crítica para classificar famílias de romances. Uma vez que nenhum deles possui uma definição consensual e são muito parecidos entre si, são frequentemente confundidos uns com os outros. Como procuramos discutir no nosso ensaio “Crítica ao conceito Bildungsroman” (2013), a insistência nesta classificação do Meister, que embora se preste bem a diversos exercícios de “literatura comparada”, ainda não foi suficientemente definida, de modo que não é claro até hoje o que é e abrange exatamente o termo/gênero/tipo/conceito Bildungsroman, pôde sustentar-se ao longo das décadas principalmente porque suas principais definições remontam àquelas sobre o romance moderno em geral, baseadas nos antagonismos real/ideal, indivíduo/sociedade, interior/exterior, subjetivo/objetivo etc. A tradição do Bildungsroman (que inclui também as denominações acima citadas) apropriou-se dessas definições do romance moderno, o que é tanto mais facilitado pela origem comum de “ambos” (como explicitam as teorizações de Blanckenburg e Hegel). 309 É mais comum encontrar estudos que relacionam os ensaios de Lukács sobre Wilhelm Meister de A teoria do romance e o posterior, de 1936 (por exemplo: CASES, 1986), mas não comparações que envolvam os ensaios de Lukács de 1932 sobre Goethe.

380

exclusivamente o romance, exatamente por estar voltado à concepção de mundo goethiana suas críticas à obra tornaram-se bastante ácidas nos três ensaios daquele ano. As críticas de Lukács ao Meister não haviam aparecido antes, no ensaio de 1914/15, e nem reaparecem depois, no ensaio de 1936, escritos dedicados somente ao Meister. Vimos que houve uma mudança de foco na análise de Wilhelm Meister entre os textos de 1932 e o de 1936. Se nos primeiros interessava a Lukács posicionar Goethe no principal problema filosófico de seu tempo, a dialética, e então demonstrar como seu pensamento, oriundo de sua posição de classe, contaminou suas obras impedindo o florescimento realista; em 1936, ao contrário, Lukács, ao destacar o humanismo como a perspectiva central, elogia exatamente o rico realismo presente no romance, realismo que se evidencia na bem-sucedida configuração da totalidade social e, por extensão, na crítica de Goethe à sua época. No que concerne à configuração da totalidade da sociedade, constata-se uma reaproximação de Lukács, no ensaio de 1936, das ideias sobre o Meister expostas em 1914/15 (notadamente em aspectos que remontariam igualmente à estética hegeliana), por outro lado, aqui não esteve presente a percepção de uma crítica goethiana à sociedade, como ficaria claro para o autor em 1936.

BIBLIOGRAFIA: BENJAMIM, Walter. Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2009. Tradução de Mônica Bornebusch, Irene Aron e Sidney Camargo. CASES, Cesare. “Gerog Lukács und Goethe”. Goethe Jahrbuch, Weimar, n.103, 1986. pp. 138-151. DAHNKE, Hans-Dietrich. Geschichte. In: Goethe-Handbuch. Dahnke, Hans-Dietrich; Otto, Regine (Org.). Band 4/1. Personen Sachen Begriffe A-K. Stuttgart; Weimar: J.B. Metzler, 1998. ECKERMANN, Johann Peter. Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines 381

Lebens. Insel Verlag: Frankfurt, 2006. GOETHE, Johann Wolfgang von. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Werke, Kommentare und Register. Hamburger Ausgabe in 14 Bänden. Bd. 7. Romane und Novellen II. Erich Trunz (Org.). München: C.H. Beck, 2002. ____________________________. Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ensaio, 1994. ____________________________. Goethe Werke - Hamburger Ausgabe, 12: Schriften zur Kunst. Schriften zur Literatur. Maximen und Reflexionen. München: C.H. Beck, 2008. LUKÁCS, Georg. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister como tentativa de uma síntese”. In:____. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. pp.138-150. [1914/15] _______________. “Goethe und die Dialektik”. In: KLEIN, A. Georg Lukács in Berlin: Literaturtheorie und Literaturpolitik der Jahre 1930/32. Berlin; Weimar: Aufbau, 1990. pp. 406-422. Publicado originalmente em Der Marxist, 5/1932. [1932a] _______________. “Was ist uns heute Goethe?” In: KLEIN, A. Georg Lukács in Berlin: Literaturtheorie und Literaturpolitik der Jahre 1930/32. Berlin; Weimar: Aufbau, 1990. pp. 423-432. Publicado originalmente em Linksfront, 5 e 6/1932. [1932b] _______________. “Goethes Weltanschauung”. In: KLEIN, A. Georg Lukács in Berlin: Literaturtheorie und Literaturpolitik der Jahre 1930/32. Berlin; Weimar: Aufbau, 1990. pp. 433-441. Publicado originalmente em Illustrierte Neue Welt, 2/1932. [1932c] _______________. “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”. In: GOETHE, J. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Ensaio, 1994. pp. 593-613. [1936] _______________. “Wilhelm Meisters Lehrjahre”. In: Goethe und seine Zeit. Faust und Faustus. Neuwied-Berlin: Luchterhand, 1964. pp. 30-46. MARX, Karl. O Capital. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. MONTEZ, Luiz Barros. “A obra autobiográfica de Goethe como relato autobiográfico”. Itinerários, Araraquara, n.23, 2009, pp. 39-48. 382

SCHILLER, Friedrich von. “Briefwechsel Goethe – Schiller”. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Werke, Kommentare und Register. Hamburger Ausgabe in 14 Bänden. Bd. 7. Romane und Novellen II. Erich Trunz (Org.). München: C.H. Beck, 2002.

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384

[GOTTHOLD EPHRAIM LESSING:] "DÉCIMA SÉTIMA CARTA", DAS CARTAS SOBRE A LITERATURA MAIS RECENTE (FEVEREIRO DE 1759) 310 [LESSING'S] "SEVENTEENTH LETTER" OF LETTERS ON THE MOST RECENT LITERATURE (FEBRUARY 1759) Tradução e comentário Dr. Diego Baptista (PD-FAPESP/USP-FUBerlin) Dra. Manoela Hoffmann Oliveira (Unicamp/FU-Berlin) Resumo Esta contribuição traz a tradução de um pequeno texto de Lessing cuja discussão teórica, além de ser uma referência fundamental na história da estética teatral, é ao final acompanhada de uma primorosa cena do "Fausto". A tradução foi realizada a partir do fac-símle digital da publicação original e é seguida de um detalhado comentário elaborado pelos tradutores. Palavras-Chave | filologia gemânica | Lessing | teatro alemão | teoria do drama | Shakespeare | Fausto Abstract This contribution brings to translate a short text Lessing's that besides being an key reference in the history of theatrical aesthetic, the theoretical discussion is the end accompanied by an exquisite scene of "Faust". The translation was made from the digital facsimile of the original publication and is followed by detailed comments elaborated by the translators. Keywords | germanic philology | Lessing | german theater | theory of drama | Shakespeare | Faust Diego Baptista é Bacharel em Filosofia (USP), Doutor em Sociologia

310

Artigo publicado na revista O percevejo on line, v.5, n.2, 2013.

385

(Unicamp). Atualmente é bolsista FAPESP de pós-doutorado (DS/USP) e pesquisador convidado do Institut für Philosophie/FU-Berlin. Traduziu textos de Marx, Lukács, entre outros. Manoela

Hoffmann

Oliveira

é

Bacharel

em

Ciências

Sociais

(USP),

doutoranda em Ciências Sociais (Unicamp) com período sanduíche no Institut für deutsche und niederländische Philologie/FU-Berlin. Traduziu textos de Goethe, Schiller, entre outros. Diego Baptista is Bachelor of Philosophy (USP), PhD of Sociology (Unicamp). It is currently a post-doctoral FAPESP Fellowship (USP/FU-Berlin) and guest researcher at Institut für Philosophie/FU-Berlin. Translated texts by Marx, Lukács, among others. Manoela Hoffmann Oliveira is Bachelor of Social Science (USP), doing PhD in Social Sciences (Unicamp) with period at Institut für deutsche und niederländische Philologie/FU-Berlin. Translated texts by Goethe, Schiller, among others.

386

Cartas SOBRE A LITERATURA MAIS RECENTE. _________________________

VII. 16 de fevereiro de 1759.

Décima Sétima Carta.

“Ninguém, dizem os autores da Biblioteca,* contestará que o teatro alemão deve agradecer ao senhor professor Gottsched por uma uma grande parte do seu primeiro melhoramento.” Eu sou esse ninguém; eu contesto-o sem rodeios. Seria desejável que o senhor Gottsched nunca tivesse se envolvido com o teatro alemão. Seus supostos melhoramentos ou concernem a ninharias dispensáveis ou são verdadeiros pioramentos. Quando a sra. Neuber florescia e tantos sentiram o chamado para se colocarem a serviço dela e do teatro, nossa poesia dramática se afigurava de fato muito miseravelmente. Não se conhecia regras; não havia preocupação com modelos. Nossas representações cívicas e heroicas eram completo

*

Do terceiro volume, primeira parte, p. 85.

387

absurdo, celeuma, sordidez e piada chula. Nossas comédias consistiam em fantasias e truques; e cacetadas eram seus incidentes mais engraçados: para constatar essa deterioração não era preciso ser exatamente o mais refinado e vasto espírito. E o senhor Gottsched também não foi o primeiro que a teria constatado; apenas foi o primeiro que julgou ter forças o suficiente para obviála. E como ele procedeu para tanto? Compreendia um pouco de francês e pôsse a traduzir; incentivou todos que soubessem rimar e comprender Oui

Monsieur, indistintamente, a traduzir; como diz um crítico de arte suíço, ele montou seu Catão com tesoura e cola. Mandou fazer sem tesoura e cola Dario e As ostras, Elise e o Bode no processo, Aurélio e O engraçadinho, a Banise e O hipocondríaco; ele lançou sua maldição sobre o improviso; mandou escorraçar solenemente do teatro o Arlequim – algo que, por sua vez, foi a maior arlequinada que já representada; em suma, ele não só desejava melhorar nosso antigo teatro quanto ser o criador de um totalmente novo. E que tipo de novo? Um afrancesado; sem investigar se esse teatro afrancesado seria ou não ajustado à mentalidade alemã. Ele teria podido averiguar suficientemente em nossas antigas peças dramáticas (as quais ele rechaça) que nós pendemos mais para o gosto dos ingleses que dos franceses; que nós, em nossas tragédias, queremos ver e pensar mais do que há para ver e pensar nas receosas tragédias francessas; que o grandioso, o terrível, o melancólico agem melhor sobre nós que o maneiroso, o terno, o enamorado; que a simplicidade em demasia nos causa mais enfado que a complicação em demasia etc. Ele deveria então ter permancido nesse rastro, e este o teria conduzido diretamente ao caminho do teatro inglês. – Ora, não digam vocês que ele também procurou tirar proveito disso; como o demonstra seu Catão. Pois exatamente o fato de tomar o Catão de Addinson pela melhor tragédia inglesa mostra, nitidamente, que aqui ele viu somente com os olhos dos franceses e que, naquela época, não conhecia Shakespeare, Johnson, Beaumont e Fletcher, etc., dos quais ele, por orgulho, também não quis tomar conhecimento depois.

388

Se

se

tivesse

traduzido,

para

nossos

alemães,

com

discretas

modificações, as obras-primas de Shakespeare, eu tenho certeza que isso teria dado melhores resultados que se lhes ter tornado tão conhecidos Corneille ou Racine. Em primeiro lugar, o povo teria encontrado naquele muito mais gosto que o que nestes não pode encontrar; e em segundo, aquele teria despertado entre nós cabeças bem diferentes do que destes se pode exaltar. Pois um gênio só pode ser pode ser inflamado por um gênio; e tanto mais facilmente por um que pareça dever tudo à natureza e não intimide em virtude das custosas perfeições da arte. Inclusive

a

decidir

as

coisas

segundo

o

modelo

dos

antigos,

Shakespeare é um trágico infinitamente superior a Corneille; embora este conhecesse muito bem os antigos, enquanto aquele quase não os conhecia. Corneille se aproxima deles no arranjo mecânico; Shakespeare, no essencial. O inglês atinge a meta da tragédia quase sempre, mesmo que ele escolha vias tão peculiares e próprias dele; já o francês não a atinge quase nunca, embora trilhe as sendas abertas pelos antigos. E depois do Édipo de Sófocles nenhuma peça no mundo deve exercer mais violência sobre nossas paixões que Otelo, rei Lear, Hamlet etc. Tem Corneille uma única tragédia que nos cause apenas metade da comoção da Zaira de Voltaire? E a Zaira de Voltaire, quão abaixo está do Mouro de Vezeza, de que ela é uma débil cópia, e do qual foi emprestado todo o caráter de Orosman? Que nossas antigas peças continham porém muito de inglês eu poderia demonstrar-lhes amplamemte com pouco esforço. Para mencionar apenas a mais conhecida delas, Doutor Fausto tem uma porção de cenas que só um gênio shakespeareano seria capaz de pensar. E quanto a Alemanha foi e em parte ainda é apaixonada por seu Doutor Fausto! Um amigo meu conserva um antigo rascunho dessa tragédia, e compartilhou comigo uma cena na qual há certamente algo de extraordinariamente grande. Vocês estão ansiosos para lêla? Eis! Fausto solicita o espírito mais rápido do inferno por seu empregado. Ele faz suas invocações; aparecem sete deles; tem início então a terceira cena do

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segundo ato.

FAUSTO E OS SETE ESPÍRITOS

FAUSTO: Vocês? São vocês os espíritos mais rápidos do inferno? TODOS OS ESPÍRITOS: Nós. FAUSTO: Vocês sete são igualmente rápidos? TODOS OS ESPÍRITOS: Não. FAUSTO: E qual de vocês é o mais rápido? TODOS OS ESPÍRITOS: Sou eu! FAUSTO: Que milagre! Entre os sete diabos só seis são mentirosos – eu preciso conhecê-los melhor. PRIMEIRO ESPÍRITO: Você vai! Um dia! FAUSTO: Um dia? O que você está pensando? Os diabos também pregam penitência? PRIMEIRO ESPÍRITO: É, aos renitentes. – Mas não nos atrase. FAUSTO: Como você chama? E quão rápido você é?

390

PRIMEIRO ESPÍRITO: Você poderia ter uma prova antes de ter uma resposta. FAUSTO: Então tá. Olhe aqui; o que estou fazendo? PRIMEIRO ESPÍRITO: Passando seu dedo rapidamente na chama da luz. – FAUSTO: E não me queimo. Então vai e passe sete vezes bem rápido pelas chamas do inferno sem se queimar também. – Ficou mudo? Está aí? Assim que os diabos se gabam? Sim, sim; nenhum pecado é tão pequeno que vocês deixem passar. – Segundo, como você chama? SEGUNDO ESPÍRITO: Chil; em sua enfadonha língua: flecha da peste. FAUSTO: E quão rápido você é? SEGUNDO ESPÍRITO: Você pensa que eu carrego meu nome em vão? – como a flexa da peste. FAUSTO: Pois que vá servir a um médico! Para mim você é muito devagar. – Ei, terceiro, como você chama? TERCEIRO ESPÍRITO: Chamo Dilla; pois a asa do vento me carrega. FAUSTO: E você, quarto? – QUARTO ESPÍRITO: Meu nome é Jutta, pois eu viajo nos raios da luz. FAUSTO: Ó, vocês, que exprimem sua rapidez em números finitos, seus coitados –

391

QUINTO ESPÍRITO: Não os digne de seu mau-humor. Eles são só mensageiros de Satanás no mundo físico. Nós o somos no mundo dos espíritos; você nos achará mais rápidos. FAUSTO: E quão rápido você é? QUINTO ESPÍRITO: Tão rápido quanto o pensamento do homem. FAUSTO: Isso lá é alguma coisa! – Mas nem sempre os pensamentos do homem são rápidos. Não quando exigem verdade e virtude. Como eles são lerdos então! – Você pode ser rápido quando quiser ser rápido; mas quem me garante que você vai querer o tempo todo? Não, em você eu poderia confiar tão pouco quanto em mim mesmo. Ah! – (para o sexto espírito) Diga, quão rápido você é? – SEXTO ESPÍRITO: Tão rápido quanto a vingança do vingador. FAUSTO: Do vingador? De qual vingador? SEXTO ESPÍRITO: Do violento, do terrível, aquele que reserva a vingança só para si, pois a vingança lhe compraz. – FAUSTO: Diabo! Blasfemando, pois eu vejo que você está tremendo. – Rápido, você diz, como a vingança do – breve teria eu o nomeado! Não, ele não é nomeado entre nós! – Rápida seria sua vingança? Rápida? – E eu ainda estou vivo? E ainda pecando? – SEXTO ESPÍRITO: Que ele ainda o deixe pecar já é vingança! FAUSTO: E que um Diabo tenha de me ensinar isso! – Mas só hoje mesmo! Não,

392

sua vingança não é rápida, e se você não é mais rápido que sua vingança, então agora vá. – (para o sétimo espírito) – Quão rápido você é? SÉTIMO ESPÍRITO: Desprazivelmente mortífero até quando não sou rápido o bastante para você. – – FAUSTO: Então diga; quão rápido? SÉTIMO ESPÍRITO: Nem mais e nem menos que a passagem do bem ao mal. – FAUSTO: Aha! Você é o meu diabo! Tão rápido como a passagem do bem ao mal! Sim, essa é rápida; nada é mais rápido que isso! – Fora daqui, suas lesmas de Orcus! Fora! – Como a passagem do bem ao mal! Eu descobri o quanto ele é rápido! Descobri! etc. – – O que vocês dizem dessa cena? Vocês queriam uma peça alemã que tivesse mais cenas ruidosas como essa? Eu também!

Fll.

393

COMENTÁRIO À "17ª CARTA" (1759), DE LESSING

Introdução "Eu sou esse ninguém". Formulação tanto mais curiosa considerando-se que o texto foi publicado anonimamente, não se sabe quem seria "esse ninguém" que se apresenta com tamanha firmeza. Poeta, teórico e crítico (erudito, entusiasta, tradutor e editor) em uma só pessoa, figura chave do Iluminismo alemão, “esse ninguém” é Lessing (1729-1781). O motivo da indignação: terem admitido uma alegada importância histórica de Gottsched (1700-1766) para o aprimoramento do teatro alemão. Gottsched, que gerações antes de Lessing já havia feito era como reformador do teatro alemão, defendia e praticava um classicismo mecânico de inspiração francesa, tendo por base a apropriação de dramaturgos como Racine e Corneille, teóricos como Boileau e, na tradição alemã, Christian Wolff (1679-1754). Lessing, por seu turno,

em contraposição ao afrancesamento prescritivo como meio de

melhoramento do deplorável teatro alemão em questão invoca Shakespeare – referência que, ao lado dos antigos, da teoria aristotélica, da valorização da comédia, compõe um dos eixos fundamentais do seu próprio pensamento sobre o teatro. Gênese, forma e contexto editorial A "carta" como gênero literário, filosófico ou crítico e a publicação de cartas de diferentes tipos era algo bastante comum à época. As Cartas sobre a literatura mais recente são missivas fictícias. Foi o recurso imaginado por Lessing e Nicolai, a dada altura, para a difusão regular anônima de críticas da literatura

contemporânea

segundo

objetivos

394

gerais

pré-definidos

pelos

idealizadores. Apesar de endereçadas a um certo oficial da Guerra dos Sete Anos (1756–1763),

as

cartas

jamais

foram

efetivamente

enviadas,

foram

diretamente publicadas, semanalmente, entre janeiro de 1759 e julho de 1765311. As carta publicadas avulsamente foram sendo desde o início coligidas por Nicolai no periódico cuja coleção alcançou 23 volumes 312. A série das Cartas sobre a literatura mais recente constitui, portanto, um caso especial no universo do riquíssimo e diversificado publicismo filosófico, literário, político e científico da "impresa" alemã de então. Em meio a milhares de títulos e milhões de páginas, essa pequena pérola estabeleceu-se como um texto clássico, referência obrigatória nas coletâneas de escritos de Lessing sobre teatro e nas antologias de estética do teatro e teoria do drama. Aspectos do conteúdo: debate estético e contexto teatral da época Apesar de diminuta, a "17ª Carta" concentra uma impressionante gama de conexões com a configuração social do período e questões candentes à época, articulando muitas dimensões e referências históricas e filosóficas. Não é possível apresentar aqui, nem mesmo sumariamente, uma sistematização desse quadro; pretendemos apenas desenvolver algumas considerações que Em uma categoria específica de periódico chamada Semanário Moral. “De acordo com o modelo inglês, surgem na Alemanha no início do século XVIII os Semanários Morais, que tinham por tarefa popularizar temas e alvos da Aufklärung para um público burguês. Entre participações redacionais e literárias de destacados [führend] autores da Aufklärung alemã (Gottsched, Bodmer, Breitinger, Lessing) essas revistas formaram um importante meio para discutir sobretudo ideias de educação e virtude e apresentálas a um amplo público” (Barbara Beßlich, 2011). 312 No total, dentre as contribuições Lessing é responsável por pouco mais de cinquênta cartas (a maioria nos dois primeiros anos da série), montante próximo ao redigido por Nicolai, enquanto a Mendelssohn são atribuídas em torno de uma centena de cartas – além deles, contam-se mais alguns colaboradores regulares – em regra com as identidades mantidas em sigilo por meio de iniciais (Lessing, por exemplo, assina como Fll). 311

395

ajudam a situar o texto. É preciso ter em mente que a virulenta investida de Lessing contra Gottsched não se dá por discordância pontual ou ataque pessoal; a crítica literária tem aqui, isto sim, um conteúdo político, representa uma disputa de posições estéticas com alcance prático, aspira intervir na realidade da prática teatral. E o debate com os gosttschedianos em particular é um ponto fulcral do programa do empreendimento: definida a forma de carta anônima como o meio retoricamente mais favorável para levar a cabo a polêmica de modo aberto e intenso, "em relação ao conteúdo trata-se", segundo Nicolai, "de superar a estagnação em que a literatura alemã se via metida em razão da contenda entre o partido dos suíços e o de Gottsched" (cf. Bender: 1972). Em linhas gerais: em contraposição ao racionalismo estético gosttschediano "os suíços aproximam-se da ideia de legalidade própria [Eigengesetzlichkeit] da arte, acentuando fortemente os componentes expressivos, e colocam o 'deleite' [Vergnügen] (delectare) acima do proveito [Nutzen] (prodesse) e do ensinamento [Belehrung] (docere)" (cf. Fischer: 1990). Lessing representa uma terceira posição, que busca constituir um ponto de vista independente na luta entre Gottsched e os suíços. Este seria "seu objetivo político-literário (o enterro da autoridade de Gosttsched e dos suíços)" (cf. Nisbet: 2008). Mesmo da perspectiva do debate estético mais amplo, o posicionamento de Lessing determina-se no exercício da crítica de arte. "A capacidade de Lessing como crítico reside em que ele não julga por muito tempo segundo a instrução [Vorgabe] da poética normativa [Regelpoetik], mas considera a obra como um todo e desenvolve dela os critérios de avaliação. A 'evidência estética' assume o lugar das regras da poética"; constata-se uma "mudança na crítica literária desde Gosttsched, Bodmer e Breitinger, passando por Klopstock até Lessing e Mendelssohn (superação da orientação pela regra)" (cf. Fischer: 1990). Klopstock (1724-1803), sob certos aspectos, leva adiante a linha dos suíços, considerando que a expressão poética supera a discursividade da

396

linguagem, ao mesmo tempo em que relativiza a importância das regras, colocando em lugar delas o modelo. "De todo modo, Klopstock ainda não conhecia a evidência estética da obra singular, que se revela independente de sua exemplaridade [Musterheftigkeit]. Esse passo será consumado nos escritos de Mendelssohn sobre estética e na critica literária de Lessing" (cf. Fischer: 1990). Entretanto, noções e terminologias substanciais utilizadas por Lessing (como obra e todo) não eram em si totalmente novas, podem ser remontadas a Baumgarten (1714-1762) e sucessores seus 313, e em parte "pertencem ao senso-comum e ao repertório regular da época. Eram correntes a exigência segundo a concordância interna das partes, o convencimento de que a obra poética perfaz um mundo próprio fechado em si, bem como a ideia de que essa unidade e particularidade estariam fundadas nas qualidades sensíveis da linguagem poética" (cf. Guthke: 2010). Em conexão com o embate de posições no quadro de uma crítica literária ativa e o debate estético mais amplo, deve-se considerar ainda que a ofensiva de Lessing contra Gottsched é atravessada pela questão do teatro nacional alemão, uma demanda já estabelecida e que perduraria nos próximos anos, como mostram desde a Dramaturgia de Hamburgo (1767-69) de Lessing até o motivo do teatro na história de Wilhelm Meister, que na juventude teve a aspiração de ser “o criador de um futuro teatro nacional, pelo que tanto ouvira as pessoas suspirarem”314. Goethe

deixa

claro

que,

na

época

da

juventude

de

Wilhelm,

Shakespeare ainda era pouco conhecido na Alemanha – como mostram tanto o fato de o protagonista ter entrado em contato com o poeta apenas tardiamente quanto as considerações junto com as quais Shakespeare é apresentado ao heroi. Mas uma vez que Wilhelm leu o autor foi imediatamente arrebatado; considere-se agora o fato de o mesmo Wilhelm, um pouco antes de tal Como o escrito de Jakob Immanuel Pyra, de 1743/44: Mostra de como a seita gottschediana deteriora o gosto [Erweis, dass die Gottschedianische Sekte den Geschmack verberbe]. 314 Goethe: Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, I 9. 313

397

descoberta, adular simpaticamente o príncipe com elogios a Racine e Corneille e então vemos configurada no romance a oposição lessiniana!315 E coadunando com a valorização de Shakespeare defendida pioneiramente por Lessing, o ponto mais alto da trajetória teatral de Wilhelm resulta na cuidadosa montagen de Hamlet. Após Hamlet, a companhia leva à cena um autor alemão contemporâneo, com a "tragédia burguesa" Emilia Galotti (1772), de Lessing... Na Alemanha do século XVIII havia duas modalidades de teatro profissional, o de corte e as trupes itinerantes. O teatro de corte tinha um financiamento dispendioso, desde a construção de edifícios luxuosos até a contratação de companhias – via de regra francesas (para as peças) e italianas (para as óperas), o que por sua vez correspondia ao gosto refletido na programação baseada em autores franceses e italianos (cf. Maurer-Schmoock: 1982). O público civil-burguês [bürgerlich] tinha acesso restrito ao teatro de corte. Já o teatro para um público mais amplo e de entretenimento popular era o

praticado

pelas

trupes

itinerantes,

cujos

saltimabancos

não

tinham

rendimento assegurado, não gozavam de boa reputação moral nem de boa condição social. Essas trupes eram dirigidas pelo "principal" (também chamado "entrepeneur" ou "empresário"), que, além de ator, é dono dos apetrechos e equipamentos, financia a trupe, fecha contratos com atores, trata com as autoridades, indica o repertório, enfim, opera "o teatro como negócio" (Barner: 1987). Os itinerantes necessitam de uma permissão específica para se apresentar [Privileg], e havia uma série de restrições (de data, duração, locais, feriados religiosos, luto, etc), sendo que autorização para apresentação em períodos de feiras eram as mais vatajosas. Evidentemente, dentro dessa categoria de companhias havia também distinções, assim, "se a permissão fosse emitida por um monarca [Landesherr] a trupe podia se chamar de Comediantes

da

Corte,

embora

apenas

muito

Goethe: Op. Cit., III 8. Ver também a nota 10 adiante.

315

398

raramente

tivessem

a

oportunidade de representar na corte” (Finck: 2010 p. 313)316. "O que havia para se ver nesse teatro itinerante? Qual era o repertório? Não se trata do teatro literário tal como hoje conhecemos: um teatro para o qual a apresentação interpretada exige um texto fixado por escrito. Os dramas barrocos [Barrockendram] de autores como Gryphius ou Lohenstein não eram passados; fala-se da existência de um 'abismo' [Kluft] entre literatura e artes cênicas. As representações dos teatros itinerantes viviam do jogo de improvisação, as partes baseadas em textos eram entrecortadas pelo improviso. Até o tempo de Gottsched (e Lessing) uma sessão de teatro consistia, em regra, de diferentes partes. A chamada representação cívicoprincipal317 e o epílogo cômico318 (às vezes chamado de 'comédia final extraengraçada') formavam a 'estrutura', e podia haver um prelúdio 319 (alegórico), como um prólogo, uma pantomina, um balé. Frequentemente, as diferentes partes e até mesmo os atos de um drama eram ligados por intermezzos musicais, bem como, em geral, elementos operísticos permeavam o teatro falado. A representação cívica e principal, como indica o nome, é a parte principal da sessão, com ações sérias tomadas da esfera política. Criava-se a partir do arcabouço da tragédia barroca [Barrocktragödie]. Também obras de Shakespeare, trazidas para a Alemanha por saltimbancos [Komödianten] ingleses sobreviveram, naturalmente de modo totalmente tranfigurado, na repertório das trupes itinerantes" (Finck: 2010 p. 315). Na condução de todo esse espetáculo, além da música, os efeitos e as decorações também eram importantes. Quando Lessing, no início do texto (3° parágrafo), descreve a situação do teatro alemão de algumas décadas antes e diz que Gottsched não foi o primeiro que percebeu sua deterioração, podemos enxergar aqui

uma

Entende-se o porquê de Meister ficar tão satisfeito com a permanência da trupe por algum tempo no castelo dos condes, podendo apresentar-se para a corte. 317 Haupt- und Staatsaktion. (Na carta, Lessing refere-se a “ações cívicas e heroicas”. Do mesmo modo Gottsched, conforme citamos logo abaixo). 318 lustige Nachspiel 319 Vorspiel 316

399

referência ao "Prefácio crítico" do Catão morrendo, de Gottsched (1732), em que o autor, rememorando sua apreciação do teatro de "comediantes da corte", afirma: "contudo, igualmente eu divisei, rapidamente, a grande barafunda em que esse teatro se encontrava. Representações cívicas e heróicas ruidosas, bombásticas e entrelaçadas com divertimentos de Arlequins, ruidosas travessuras romanescas [Romanstreich] e confusões amorosas, ruidosos trejeitos chulos e piadas obcenas era o que se recebia para ver" (Sttutgart, Reclam, 1997). No intuito de voltar-se contra essa situação e valorizar o teatro, a chamada "reforma teatral" de Gottsched baseia-se em dois pilares: a criação de uma nova programação e o desenvolvimento de um novo estílo de interpretação, juntamente com a orientação pelo caráter educativo ou moralisante da arte. O problema básico da formação de um repertório de textos escritos será retomado nas notas adiante; já a questão do estilo interpretativo não tem lugar na discussão da "17ª Carta". Fontes e apresentação do texto A presente tradução foi realizada com base no fac-símile do volume Briefe, die Neueste Litteratur betreffend. Iter Theil. Berlin 1759. Bey Friedrich Nicolai320. Cotejamos com a transcrição editada pela Berliner Bibliophilien Abend. Berlin, 1988. Herausgegeben und eingeleitet von Wolfgan MILDE. Para

a

elaboração

do

comentário

recorremos

principalmente

ao

compêndio de Monika FICK, Lessing-Handbuch. Verlag Metzler, Stuttgart, Weimar, 2010 (pp. 192-200, 212-216, 312-327) de onde também extraímos os trechos em que remetemos outros comentadores. Examinamos ainda as notas das seguintes edições do texto de Lessing: Werke, Bd 4. Herausgegeben von 320

http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/brieneulit/brieneulit.htm É o que temos em vista quando referimos a “publicação original”, visto que a edição avulsa provavelmente não foi conservada, em razão do próprio perfil do tipo de veículo em que apareceu (ver acima: nota 1 e sequência do texto).

400

Gunter E. GRIMM. DKV, Frankfurt am Main, 1997. Literaturtheoretische und ästhetische Schriften. Herausgegeben von Albert MEIER und Maike SCHMIDT. Reclam, Stuttgart, 2006. Arbeitstexte für den Unterricht: Theorie des Dramas. Herausgegeben von Ulrich STAEHLE. Reclam, Stuttgart, 1973. Dentre as traduções devemos registrar a de J. GINSBURG na coletânea Lessing: De Teatro e Literatura (org: A. Rosenfeld). Herder, São Paulo, 1964. Além de apresentarem pequenas discrepâncias no cabeçalho, estas edições não reproduzem integralmente o original, excluindo a cena do Fausto que aparece no final. As edições alemãs, porém, informam sobre a cena desmembrada, já a citada tradução brasileira infelizmente se interrompe pouco antes do anônimo autor, dialogando habilmente com o leitor, introduzir, a título de exemplo sobre o ponto ao qual a discussão havia chegado, uma cena do Fausto – extraída de uma versão cujo antigo manuscrito fora conservado por um amigo do crítico e de onde será compartilhado um trecho com o leitor... Buscamos a reproduzir com a maior fidelidade possível e livre de acréscimos a forma de apresentação do texto tal como no fac-símile – visto que as transcrições consultadas não o fazem com total precisão (nem mesmo Milde); deste modo, foram mantidas desde as informações e disposição do cabeçalho até a ocorrência de variação de tipo e a assinatura em sigla ao final. A única mudança que efetuamos (que de resto as demais edições também fazem, porém sem informar) foi excluir as aspas que Lessing coloca no início de cada linha da cena do Fausto a fim de indicar de tratava-se de citação. Ademais, o que no fac-símile aparece em negrito no corpo do texto (como era o uso para o destaque à época) é aqui grafado em itálico.

401

Notas VII. 16 de fevereiro de 1759. ] O número VII indica que esta é a sétima semana da série das Cartas; a cada semana era publicada mais de uma carta, sendo que na sétima semana foram publicadas as cartas 17ª e 18ª. os autores da Biblioteca ] O periódico Biblioteca das belas ciências e artes livres foi editado por Friedrich Nicolai (1733-1811) e Moses Mendelssohn (1729-1786) entre 1757 e 1759 (primeiros 4 volumes, 6 partes). Nicolai e Mendelssohn são companheiros com os quais Lessing colabora e se corresponde regularmente. Muitos dos textos da Biblioteca são artigos assinados pelos próprios editores além de recensões redacionais e artigos assinados, entre os quais há diversas contribuições do próprio Lessing. A nota indica especificamente a seguinte contribuição de Nicolai, de 1758: “Gottsched, J. C.: Nöthiger Vorrath zur Geschichte der deutschen dramatischen Dichtkunst. Leipzig: Teubner 1757: Rezension.”321 sra. Neuber ] Friedericke Caroline Neuber (nascida Weißenborn) (1697-1760). Famosa atriz cuja trupe colaborou com Gottsched no seu intento de reforma do teatro alemão. No início da década de 1730 atuou ao lado de seu marido como Prinzipal da trupe em Leipzig (um ótimo lugar em razão das feiras), onde obteve dos príncipes da Saxônia o Privileg de “comediantes da corte de Dresden”, além de ter se apresentado em diversas outras cidades alemãs e também ter conseguido o Privileg de “comediantes da corte” em Braunschweig. Lessing não só teve a 321

http://www.ub.uni-bielefeld.de/diglib/aufkl/bibschoewiss/bibschoewiss.htm

402

oportunidade de conhecê-la em Leipzig como sua trupe encenou uma comédia do jovem autor. Foi também a trupe de Neuber que estreiou o Catão morrendo, de Gottsched. A sra. Neuber foi de fato muito importante para a valorização do teatro e dos atores. Excepcionalmente, ao contrário do que ocorria com os atores na época, que gozavam de péssima reputação e baixo status social, foi permitido que ela fosse enterrada em um cemitério cristão. representações cívicas e heroicas ] Em alemão: Staats- und Helden Actionen; referência específica a tipos de drama histórico-político do século XVII e primeira metade do XVIII. "A caracteristica distintiva da representação cívico-principal é a acoplagem, ou, a confrontação da ação séria com a entrada do palhaço1. (Fick: 2010 p. 314). "O contraste entre ação séria e palhaçadas [Hanswurstiade] é o elemento estrutural da ação cívicoheroica" (cf. Meyer: 1990). Ver nota 7 e sequência acima (p. 15). um crítico de arte suíço ] Johann Jacob Bodmer (1698-1783). Alusão de Lessing ao artigo de Bodmer: „Sinnliche Erzählung von der mechanischen Verfertigung des deutschen Originalstücks, des Gottschedischen, 'Catos'”, publicado no periódico Sammlung Critischer, Poetischer, und anderer geistvollen Schriften: Zur Verbesserung des Urtheiles und des Witzes in den Wercken der Wolredenheit und der Poesie (1741-44; vol. 2, tomo 8, 1743, pp. 80-96)322, em que Bodmer troça do Catão morrendo (1732), de Gottscehd, como adaptação da tragédia de Joseph Addison (16721719). Como vimos na Introdução, Lessing pretende constituir uma terceira posição, superando a dicotomia existente entre o partido de 322

http://vd18.de/de-sub-vd18/periodical/structure/44240817

403

Gottsched e o dos suíços; porém não se furta em ecoar o perspicaz escárnio de Bodmer na caracterização do mecanicismo tosco de Gottsched. mandou fazer sem tesoura e cola ] ao contrário da adaptação acima mencionada, aqui Lessing cita uma série de peças originais alemãs, escritas sob a influência de Gottsched. As referências completas são as seguintes (note-se que os autores são aproximadamente entre 15 e 20 anos mais novos que Gottsched): Dario, tragédia de Friedrich Lebegott Pitschel (1714-1785); as comédias As ostras, O Bode no processo [Der Bock im Prozesse], O Hipocondríaco e a tragédia Aurélio, todas de Theodor Johann Quistorp (1722-1776); a pastoral Elise, de Adam Gottfried Uhlich (1718-1753); a comédia O engraçadinho [Der Witzling], de Luise Gottsched (1713-1762), esposa de Gottsched; a tragédia de Friedrich Melchior von Grimm (1723-1807) Die Banise, adaptada do romance de Heinrich Anselm von Ziegler und Klipphausen (1663-1697). Juntando peças originais alemãs como estas, mais as traduções de autores franceses que Gottsched fez e que incentivou que fizessem, ele logrou reunir um repetório relativamente grande de textos – o que pode ser considerado um grande êxito no contexto de sua reforma teatral. Assim, entre 1741-1745 Gottsched editou O Teatro Alemão [Der Deutsche Schaubühne], uma coletânea de 38 peças que se tornou muito popular à época323. Os seis volumes são compostos por obras originais alemãs (como por exemplo as citadas acima, entre outras) e por traduções de peças francesas (Corneille, Racine, Voltaire, Destouches etc.), além do autor dinamarques Holberg. Por suposto não há traduções de Shakespeare.

323

O título é inclusive citado como uma das leituras de juventude de Wilhelm Meister.

404

ele lançou sua maldição sobre o improviso ] em alemão: auf das extemponieren. (origem: ex tempore; sinônimo: aus dem Stegreif). Um dos eixos da reforma teatral de Gottsched era justamente o estabelecimento de uma programação baseada em textos escritos;

o

Arlequim (que será mencionado logo em seguida) é uma figura de improvisação

cômica.

Não é

possível abordar aqui as

raízes

e

especificidades do Arlequim no teatro popular alemão de então; apenas registramos que "na visão de Gottsched, o Arlequim atentava contra o princípio da verossimelhança; na ação trágica, como elemento cômico perturbava o princípio da pureza; e com suas bricadeiras de improviso opunha-se ao empenho de valorizar artisticamente o teatro por meio de textos fixados" (Meier e Schmidt: 2006). mandou escorraçar solenemente do teatro o Arlequim ] Lessing refere-se a um episódio que se deu em Leipzig em 1737, em que a trupe de Neuber, numa peça alegórica, queimou no palco um boneco do palhaço. Pondera-se que "embora Gottsched encarasse criticamente a figura do Arlequim", o referido episódio "não remonta à sua iniciativa" (Grimm: 1997 p. 1149), que o banimento "não teve perticipação direta de Gottsched" (Meier e Schmidt: 2006 p. 246). Entretanto, há quem vincule Gottsched ao banimento, na medida em que o evento se deu já no contexto da colabaração entre a trupe de Neuber e Gottsched (Staehle: 1973 p. 26). É a posição mantida pelo próprio Lessing quase dez anos mais tarde, na "18ª Seção" da Dramaturgia de Hamburgo (30. Junius 1767) em que retoma a discussão sobre a figura do Arlequim, e lembra: "Desde que a sra. Neuber, sub auspiciis de Vossa Magnificência o senhor Prof. Gottsched, baniu publicamente o Arlequim de seu teatro /.../" (Sttutgart, Reclam, 1995).

405

tomar o Catão de Addinson pela melhor tragédia inglesa mostra, nitidamente, que aqui ele viu somente com os olhos dos franceses ] a tragédia de Addinson teria se originado do modelo do drama francês clássico;

segundo

Voltaire

(Discours

sur

la

tragédie

à

Mylord

Bolingbroke), este seria o único drama inglês bem escrito do início ao fim. Johnson, Beaumont e Flechter ] Ben Jonson (1573-1637); Francis Beaumont (1584-1616); John Fletcher (1576-1625). Costuma-se apontar que a avaliação de Lessing sobre esses autores ingleses e sobre Shakespeare seria tributária de John Dryden (1631-1700), cujos ensaios de Of Dramatic Poesie Lessing traduzira para o tomo 4 da Biblioteca Teatral (editada por C. F. Voß), que apareceu em 1758324 – portanto no ano anterior da presente carta. Zaira de Voltaire ] a tragédia apareceu em 1732. Abaixo Lessing refere-se ao personangem Orosman, comparando-o ao Mouro de Veneza, isto é, Otelo. A representação da peça de Voltaire é comentada quase dez anos mais tarde na "15ª Seção" da Dramaturgia de Hamburgo (19. Junius 1767), em que Lessing reafirma temas da carta 17: a comparação acima ("ora, explicitamente, é Otelo o modelo de Orosman"); a questão da tragédia (em relação à qual o tema do amor Lessing avalia com base em Romeo e Julieta); seu topos da contraposição entre Shakespeare e os franceses; menciona novamente o Catão de Addison, além de "Jonson, Dryden, Lee, Otway, Rowe." (Sttutgart, Reclam, 1995) Doutor Fausto ] 324

http://reader.digitale-sammlungen.de/de/fs1/object/display/bsb10574233_00048.html

406

O personagem teria sido inspirado em uma figura real que viveu de fins do século XV a meados do XVI. A primeira versão da história do Dr. Fausto em livro apareceu na feira de Frankfurt do outono de 1587 (editado por Spies). No livro, o autor anônimo reúne versões orais e escritas até então existentes. A história do Dr. Fausto teve diversas reelaborações e reedições na Alemanha; das mais disseminadas na época de Lessing foi a de Meynenden (1725). No presente contexto, é importante lembrar que a edição de Spies logo atingiu a Inglaterra, onde foi fixada como drama por Christopher Marlowe (A história trágica do Dr. Fausto, 1590), em seguida “as trupes itinerantes levaram a versão dramática para a Alemanha. O textos das montagens da época não foram conservados. Provavelmente, na passagem para o século XVIII a peça foi adaptada para o teatro de marionetes. (Goethe conheceu o drama como teatro de bonecos). Não se sabe qual versão do livro do Fausto [Faustbuch] Lessing leu”, embora se saiba que ele tomara contato com o tema no teatro, ainda jovem, em Leipzig (Fick: 2010 p. 212). Um amigo meu conserva um antigo rascunho dessa tragédia, e compartilhou comigo uma cena ] Na verdade, Lessing é o próprio autor da cena. Do "Fausto" de Lessing foram transmitidos, além de testemunhos de contemporâneos, apenas dois fragmentos, um deles a cena do Fausto e os sete diabos ora traduzida, e um outro, escrito pouco antes e igualmente curto, intitulado Das Berliner Szenarium (ver Milde: 1989). Não podemos entrar aqui na discussão sobre o tema, a tradição e o significado do Fausto e sua apropriação por Lessing

(algo que

demandaria entrar na relação da Aufklärung com a Renascimento e a Reforma). Mencionaremos apenas um problema estrutural do projeto de composição do drama e uma divisão da presente cena.

407

A concepção lessiniana do drama atravessou três fases, segundo o dilema da manutenção ou exclusão do elemento sobrenatual, mágico e de bruxaria. Inicialmente, e por fim novamente, Lessing teria se decidido

pela

integração

dos

diabos.

Para

Fick,

a

dificuldade

composicional em relação à essência e à função dos diabos não era propriamente a aparição poética dos mesmos e da magia. Tanto que na Dramaturgia de Hamburgo Lessing justificaria em diversos momentos a entrada de espíritos em cena. "No palco conta apenas a força de convencimento poético-teatral. A fantasia afirma sua lei própria. A figura do diabo torna-se problemática então, quando, como em Lessing, não é mais consentida a maldade metafísica no mundo" (Fick: 2010 p. 214-15). A oscilação na concepção do Fausto, com a tentativa de adaptação da história tradicional para um contexto puramente prosaico, reflete um problema geral da tragédia, quando esta depara com o obstáculo

"de

conteúdo"

(mas

com

função

formal-composicional

essencial) que é a dificuldade de substituição da intervenção divina, do oráculo, do destino etc., isto é, o problema da configuração da chamada "tragédia

burguesa".

E

a

"épica

burguesa"

nascente

enfrenta

dificuldades análogas. Com relação à estrutura da presente cena do Fausto e os sete diabos, chamamos atenção apenas para uma divisão estrutural. A intervenção de Fausto: "Ó, vocês, que exprimem sua rapidez em números finitos, seus coitados" (p. 7), marca a separação entre as falas do grupo dos quatro primeiros diabos e os três últimos. Com estes, o diálogo é mais desenvolvido, e os personagens um pouco melhor caracterizados que os primeiros. Note-se que os quatro primeiros diabos têm todos seu nome próprio (e ao mesmo tempo simbólico) – o que os define em traços rápidos, porém, exteriores e gerais –, ao passo que os demais definem-se mais exprimindo suas respectivas peculiaridades pessoais. Em particular nas falas do quinto e do sétimo reside a porção

408

mais autoral da cena, enquanto o início estaria mais ligado a versões tradicionais. etc. – – ] indica que a citação da cena terminou e o texto supostamente seguiria adiante. Fll. ] sigla com a qual Lessing assinava suas contribuições para a série das Cartas. Posteriormente a assinatura foi decifrada como advinda da palavra latina flagello. Consistentemente com a retórica empregada pelo crítico, a imagem de alguém que açoita com a chibata é decerto indicativa da atititude que Lessing pretendia assumir em relação a seus inimigos.

409

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