A sociedade em transformação -o consumo como elemento transformador

May 22, 2017 | Autor: P. de Andrade Porto | Categoria: Cultura E Sociedade, DESENVOLVIMENTO HUMANO SOCIAL
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A sociedade em transformação transformador.

o consumo como elemento

Paola de Andrade Porto1 – [email protected] Universidade Federal Fluminense UFF-RJ Mariana Devezas Rodrigues Murias de Menezes 2 - [email protected] Universidade Federal Fluminense UFF-RJ

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Autora – Mestre e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense -UFF 2 Coautora - Professora Assistente da Universidade Federal Fluminense. Doutoranda em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (2013). Mestre em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense, especialista em Direito Processual pela Universidade Federal Fluminense.

RESUMO

É latente na dinâmica da sociedade atual o protagonismo que exerce o consumo para a configuração das regras de reprodução social, o que se vislumbra em ambientes vários, a exemplo das instituições familiares, das artes, religião, estando, ainda, seu espectro presente nos mais variados setores da comunidade global. O presente texto pretende tecer uma análise sobre a transformação da sociedade de produtores, e os valores que a compunham, com o culminar da sociedade de consumo, sob a égide da construção de novos paradigmas impostos não apenas pelo capitalismo, mas pelo substrato social resultante deste com o discurso que propulsiona a reprodução de valores que incorporam inovações tecnológico-científicas, imposições econômicas, formação de identidade individual e coletiva e que resultam no novo molde por qual se define a liquefeita sociedade contemporânea.

Palavras-chave: sociedade, transformação, consumo

1. Introdução O presente trabalho tem por escopo analisar algumas características elementares da sociedade tradicional e do que se tem referido correntemente como sociedade moderna. A forma pela qual se procedeu essa transição, especialmente a partir do incremento do capitalismo, consiste no enfoque central que se pretende abordar o tema do consumo no contexto da sociedade moderna, visto também como pano de fundo para as mudanças estruturais que ocorreram na referida sociedade ao longo do tempo. Este estudo contará com a contribuição de alguns autores para conceituação dos tipos de sociedade a que se busca analisar, apoiando-se principalmente nas teorias de Zygmunt Bauman e Habermas para a configuração da ideia central da abordagem em voga. 2. Sociedade em transformação: da ótica da produção à necessidade do consumo em massa. Inicialmente, necessário se faz explicitar o conceito do que se entende por sociedade tradicional no presente trabalho e, para isso, encontra-se em Habermas, no livro Técnica e Ciência como Ideologia, o significado que se melhor se adequa ao perquirido contexto: A expressão “sociedade tradicional” relaciona-se à circunstância de que o quadro institucional repousa sobre a base legitimatória não questionada das interpretações místicas, religiosas ou metafísicas da realidade em seu todo – tanto da sociedade como dos cosmos. (HABERMAS, 2014. p. 95)

Em outras palavras, a sociedade tradicional para Habermas seria aquela que seguiria espécies de dogmas (elementos irracionais) que pudessem explicar as questões da sociedade e da natureza. Sendo assim, esses dogmas (ou verdades) legitimavam determinados comportamentos sociais que, praticados de forma reiterada ao longo do tempo, tornar-se-iam as chamadas tradições sociais. Nesse diapasão, a manutenção dessas tradições acabaria por gerar nessas sociedades a supremacia de um específico quadro institucional. Determinadas

pessoas, ou um grupo seleto de pessoas, detinham legitimação para estar em uma posição de supremacia de modo diverso aos demais membros do grupo, o que se daria por justificativa mística ou dogmática. E por se tratar de elementos irracionais, baseados em simbologias e questões culturais, a reestruturação dessa supremacia institucional seria dificultada pela própria manutenção da tradição que a legitima, como que um círculo auto-referencial. O “critério de supremacia” é aplicável, consequentemente, a todas as condições de uma sociedade de classes estatalmente organizada que se caracteriza pelo fato de a validade cultural das tradições intersubjetivamente partilhadas, que legitimam uma ordem de dominação continuada, não ser questionada de modo explicito e rico em consequências segundo os critérios de uma racionalidade universalmente válida das relações de meios e fins, seja de caráter instrumental ou estratégico (HABERMAS, 2014. p. 96).

Válido ressaltar que o sentido do termo tradição aqui empregado é trazido diretamente dos ensinamentos do historiador inglês Eric Hobsbawm quando a sintetiza como “elementos ‘irracionais’ na manutenção da estrutura e da ordem social” (HOBSBAWM, 2014. p. 343), daí que podemos explicar a existência de um rei e de súditos, dos que comandam e dos comandados. A legitimidade para comandar surge a partir de interpretações antológicas metafísicas (místicas ou religiosas). Hobsbawm ainda traz o conceito de “tradição inventada”, práticas novas, criadas como se fossem algo antigo ou praticado de forma reiterada ao longo do tempo, na intenção de que efetivamente essa prática se prolongue por mais tempo, sob a legitimação da tradição (neste caso, falsa tradição) e da perenidade. Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas, tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade com um passado (HOBSBAWM, 2014. p. 8).

Essa sociedade, dita tradicional, em cuja base legitimadora encontravam-se conceitos antológico-metafísicos, reproduzia-se com o apoio de verdadeiras crenças, localizadas fora do âmbito da racionalidade, ou seja, conceitos esses ancorados em divindades ou misticismos, e que buscavam explicar as questões da natureza, do homem e da sociedade através de pressupostos considerados sagrados. A justificativa que norteava a conduta do homem estava na purificação da alma, da vida eterna e da

paz post mortem. Ressalta-se, então, que a vida terrena era regulada, por assim dizer, de forma a obter frutos em uma vida posterior, sem uma recompensa imediata, pautada no agora. Todas essas questões gradativamente foram sendo substituídas por uma nova ordem social, pautada na racionalidade, que se tornou a pedra angular do entendimento humano e resultou, por conseguinte, no elemento norteador da passagem da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Sair de um organismo social que acreditava serem todos os acontecimentos orquestrados por uma Lei Maior, divina e sem exteriorização definida, para um sistema em que a razão passou a necessitar de justificativas, explicações e, sobretudo, comprovações dos argumentos de dominação, fez com que a dinâmica social se alterasse drasticamente. E quando se fala em transformações de uma sociedade, referem-se aqui aos mais variados fatores que assim o determinaram, tais como artes, religião, história, política, ciência, filosofia, economia, dentre outros. Isto é, não se pode atribuir a mudança de paradigmas de uma sociedade somente a um determinado fato isolado, mas sim a uma série de acontecimentos concatenados ocorridos num mesmo espaço de tempo, que justamente irão culminar na verdadeira transformação do coletivo social. Em outra obra de Habermas escrita em 1992, o filósofo alemão vislumbra essa passagem da sociedade dita tradicional rumo a modernidade, e discorre em nuances de como tais mudanças influíram na sociedade, alterando, sobretudo, concepções de vida nos mais diversos aspectos sociais. A modernidade inventou o conceito de razão prática como faculdade subjetiva. Transpondo conceitos aristotélicos para premissas da filosofia do sujeito, ela produziu um desenraizamento da razão prática, desligando-a de suas encarnações nas formas de vida culturais e nas ordens da vida política (HABERMAS, 2010. p. 17).

A modernidade a que se refere, portanto, é analisada a partir de uma perspectiva europeia ocidental, ou seja, a partir de uma dinâmica precipuamente ocidental, tal qual fora utilizado como parâmetro das demais sociedades nas américas. Partindo da conjectura de que a modernidade seria o resultado de vários fatores que culminaram numa racionalidade prática, não se pode deixar de mencionar

no capitalismo histórico universal que, dentre outras razões, contribuiu como elemento determinante às mudanças estruturais que ocorreram na sociedade. Após as referidas mudanças, a justificativa da base institucional da sociedade não se dava mais pela tradição sagrada, uma vez que o poder econômico começou a ditar as regras e assumir o controle da sociedade, especialmente o controle político. E por uma reação em cadeia, ou seja, um efeito dominó a atingir toda uma estrutural social, as mudanças se tornaram cada vez mais presentes e puderam e podem ser percebidas a cada dia com maior intensidade, como se crescessem em verdadeira progressão geométrica. O sociólogo inglês Anthony Giddens (GIDDENS, 1991. p. 15), identifica três fatos que classifica como “transições descontinuístas”, isto é, características identificáveis como principais diferenças entre a sociedade tradicional e a sociedade moderna. A primeira delas é o ritmo de mudança, que enquanto nas civilizações mais tradicionais o ritmo da mudança era lento, nas sociedades modernas a rapidez das mudanças é mais extrema e nítida, especialmente na área tecnológica. A segunda transição de descontinuidade é o escopo da mudança tendo em vista a interconexão das áreas do globo terrestre a qual as transformações são sentidas, vividas e penetradas virtualmente na superfície da terra. E a última característica refere-se à natureza intrínseca das instituições modernas. Nesta característica Giddens assevera que algumas instituições são necessariamente próprias da modernidade, não encontrando referência em sociedades precedentes, tais como o sistema político do estado-nação, dependência da produção de fonte de energia inanimadas, transformação dos produtos em mercadoria e trabalho assalariado, dentre inúmeras outras, sobretudo ao se considerar um novo ambiente virtual em que a sociedade atual se desenvolve. Nesse diapasão, Giddens menciona que o capitalismo foi um dos grandes elementos institucionais que orientou a aceleração e expansão das demais instituições modernas e, por outro lado, o estado-nação surgiu como uma forma de manutenção de um poder administrativo que se mostrava mais eficiente que os anteriores modelos de estado tracionais (GIDDENS, 1991. p. 66). Ainda citando o sociólogo inglês, de todas essas mudanças que a modernidade trouxe, extrai-se um elemento moderno o qual o autor conceitua como “desencaixe”, que em outras palavras poderia ser explicado como ruptura de uma continuidade.

Que me seja permitido agora considerar o desencaixe dos sistemas sociais. Por desencaixe me refiro ao “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço (GIDDENS, 1991. p. 67).

Um homem em determinada sociedade tradicional nascia, crescia e morria sabendo seu papel (sua função) na sociedade. Estava implicitamente estabelecido pelo código social vigente que lugar o ator ocuparia naquele palco, ou seja, não havia mudanças abruptas no amanhã, o futuro era “certo” (um destino pré-estabelecido). As relações estruturais da sociedade estavam mais ou menos definidas e não se alteravam. Tal encaixe ou “certeza” não estão presentes na sociedade moderna, não se pode prever, não se pode esperar um acontecimento futuro. A sociedade está em constante mudança em tempo e espaço. Esse desencaixe já identificado por Marx na célebre frase: “tudo que é sólido desmancha no ar”, demonstra como as relações sociais moderna são fluidas. A burguesia não pode existir sem continuamente revolucionar os instrumento de produção, ou seja, as relações de produção, e, portanto, todos os relacionamentos sociais. A manutenção inalterada do antigo modo de produção, ao contrário, era a condição primária para a existência de todas as classes industriais anteriores. A revolução constante da produção, a perturbação ininterrupta de todas as relações sociais, a incerteza e agitação permanentes distinguem a era burguesa de todas as anteriores. Todos os relacionamentos estabelecidos e fixados, com sua série de ideias e pontos de vista veneráveis, estão sendo destruídos; todos os novos tornam-se obsoletos antes de poderem se fixar. Tudo o que é sólido dissolve-se no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente obrigadas a enfrentar com racionalidade as condições reais de suas vidas e de suas relações com seus semelhantes (MARX; ENGELS, 1991. p. 22).

A partir dessa premissa trazida por Marx, vários autores discorreram sobre o tema e, dentre eles, destaca-se Zygmunt Bauman, sobretudo com a obra Modernidade Líquida, na qual desenvolve significativa teoria a respeito dos parâmetros de reprodução da sociedade moderna numa comparação metafórica com elementos da natureza, isto é, sólido, líquido e gasoso. Caracteriza, sob esse contexto, a sociedade moderna como fluida, à medida em que, diferente dos sólidos que conservam facilmente suas formas, os líquidos não se firmam no espaço, não se atam no tempo.

Os líquidos, na verdade, adequam-se à forma do recipiente em que são colocados, donde se conclui que são facilmente moldados e alterados de acordo com o interesse da forma em que se veem colocados. A sociedade dividida em estamentos com definições e funções prédeterminadas por convenções sociais ou tradições do antigo regime se deterioraram com a chegada da modernidade. Em outras palavras, o autor classifica a sociedade moderna como espécie de zumbi, cujo conceitos das instituições sociais estão mortos e vivos ao mesmo tempo. Éstas y otras objeciones son justificadas, y parecerán más justificadas aun cuando recordemos que la famosa expresión “derretir los sólidos”, acuñada hace un siglo y medio por los autores del Manifiesto comunista, se refería al tratamiento con que el confiado y exuberante espíritu moderno aludía a una sociedad que encontraba demasiado estancada para su gusto y demasiado resistente a los cambios ambicionados, ya que todas sus pautas estaban congeladas. Si el “espíritu” era “moderno”, lo era en tanto estaba decidido a que la realidad se emancipara de la “mano muerta” de su propia historia… y eso sólo podía lograrse derritiendo los sólidos (es decir, según la definición, disolviendo todo aquello que persiste en el tiempo y que es indiferente a su paso e inmune a su fluir). Esa intención requería, a su vez, la “profanación de lo sagrado”: la desautorización y la negación del pasado, y primordialmente de la “tradición” es decir, el sedimento y el residuo del pasado en el presente-. Por lo tanto, requería asimismo la destrucción de la armadura protectora forjada por las convicciones y lealtades que permitía a los sólidos resistirse a la “licuefacción” (BAUMAN, 2010. p. 9).

Nesta fase da modernidade, o motor propulsor que move a sociedade é o capitalismo. Produzir mercadorias e capital, consumir produtos e dinheiro, num processo que se retroalimenta, que se repete para tentar se manter, apesar da fluidez das relações, mesmo com o fantasma da incerteza, produzir é necessário. Só estará autorizado a não produzir aquele que já detém o capital, e somente terá essa autorização enquanto o detiver, enquanto estiver consumindo, no momento em que cessar esse consumo, não será mais aceito na sua comunidade e terá que produzir novamente mais mercadorias e mais dinheiro sob pena de exclusão da vida social. Mesmo ao se levar em consideração a existência de alguns países no século passado com outros modelos econômicos, a produção e o consumo eram presentes, ainda que com intensidades diversas no volume de consumo, ou no controle de outras entidades que não a privada (ao menos teoricamente), o que não se admitia era um

país isolado no mundo sem produzir, sobretudo por questões de segurança ou sobrevivência num mundo globalizado. Nesse sentido, afirma Bauman, “O “país”, assim como os mercados, precisa de mercadorias; (BAUMAN, 2008. p. 89). Permanecendo na teoria de Bauman, verifica-se que o autor divide a modernidade em duas fases, as quais são identificadas por suas sociedades. Assim, para o autor, a idade moderna iniciou com uma fase “sólida” (ou seu resquício de solidez do antigo regime), sendo denominada sociedade de produtores. Em tal sociedade, o presente era um meio para se atingir um fim, um futuro ainda distante. Primeiro se produzia, acumulava mercadorias e dinheiro, para ao final poder usufruir das benesses do capitalismo. Enquanto na sociedade tradicional a busca do ideário de vida, da felicidade, estava em atingir a paz, uma felicidade eterna, post mortem, na primeira fase da modernidade, a felicidade poderia ser alcançada em vida, ainda que não no agora, mas num momento postergado. Renunciar à satisfação ou retardá-la, num conceito de sacrificar recompensas para um futuro, mesmo que esse futuro seja incerto. De igual forma, a sociedade de produtores ainda estava presente o sentido do “nós”, do coletivo social, sacrificar recompensas individuais em benefício dos demais (a comunidade em geral, Estado, nação etc), garantia de que a longo prazo esse sacrifício seria revertido para o bem de todos. Não significa dizer que na sociedade de produtores não havia consumo, por certo produzia-se com fito de consumir, entretanto, as características que a definem estão aquém desse conceito. Numa perspectiva freudiana, esta sociedade estaria adstrita ao princípio da realidade, isto é, só alcançaria o prazer após determinados esforços e, assim, tolerar frustações fazia parte do aprendizado e aumentaria a expectativa da recompensa, do prazer almejado. Os produtos a serem consumidos tinham uma espécie de função social ou coletiva nesta sociedade. A exemplo, Bauman utiliza as refeições, que somente podiam ser encontradas na sua forma “pronta” para comer na mesa. O consumo era compartilhado entre os demais membros, seja de uma família, seja de um refeitório de uma fábrica, a comensalidade (o consumo em conjunto) fazia com que essas relações sociais fossem mais próximas, momento em que se reuniam para conversar, discutir assuntos aleatórios do cotidiano (diferente do atual fast food que preenche o vazio dos consumidores solitários). Podese dizer que a vida social era realizada precipuamente em torno de uma refeição, e que esta tornava-se o liame de integração social naquele momento.

Em uma etapa posterior dessa grande era moderna, de acordo com Bauman, a fase sólida da sociedade dos produtores começou a ser substituída pela fase líquida encontrada na sociedade dos consumidores. Nesta sociedade sim, o conceito de consumo se encontra latente, uma sociedade que se retroalimenta no consumo. Uma sociedade em que o individual se sobrepõe ao coletivo, em que o princípio da realidade de Freud é preterido pelo princípio do prazer. O imediato, o atual, o presente desta sociedade de consumidores não admite espera. Nessa sociedade o objetivo é aproveitar o hoje. O sacrifício de economizar para no futuro adquirir a mercadoria objeto do desejo perde a vez para consumo efêmero. Compre agora e pague depois, a poupança dá lugar ao crédito. Ressalta-se, ainda, o caráter de “descartáveis” que às coisas passou-se a atribuir. Ou seja, o valor atribuído a algo não é mais a durabilidade, mas a possibilidade da troca, da substituição e, por conseguinte, de aumentar o consumo. O que se verifica em passagem de Bauman ((BAUMAN, 2008. p. 112). Consumidores plenos não ficam melindrados por destinarem algo para o lixo (...). Como regra, aceitam a vida curta das coisas e sua morte predeterminada com equanimidade, muitas vezes com um prazer disfarçado, mas às vezes com a alegria incontida da comemoração de uma vitória.

Passa-se, ainda, a obter uma nova dicotomia presente na sociedade entre consumo versus consumismo, este último caracterizando-se pelos excessos, exageros e desperdícios inerentes ao novo contexto, que ultrapassam à atividade de meramente consumir, ou seja, adquirir o que é necessário ao subsídio da sobrevivência. No campo do direito o consumismo cria um novo argumento para justificar o contexto da regulamentação social. Por um lado, negando as premissas de regramento absoluto, que constitui verdadeiro limitador do mercado e, assim, amarra as potencialidades de realização de excessos e quiçá, da própria concorrência. Por outro ângulo, esse regramento há de ser suficiente para garantir que o mercado se mantenha e que seus excessos ocorram dentro de uma ordem preordenada. Em síntese, é dizer: o capitalismo se mantém porque existe o Estado que o garante, e o mesmo Estado deve atuar livremente com sua soberania desde que não interfira na autonomia do mercado. Um dos paradoxos menos contraditórios da atualidade. Na sociedade de consumidores a mercadoria tem que circular, ser consumida, afinal o PIB oficial de uma nação se mende na quantidade de dinheiro que troca de

mãos. Daí que os produtos que antes eram fabricados para durar, nesta sociedade são produzidos com um “certo prazo de validade”, a perfeição dá a vez a multiplicidade de objetos de desejo. A variedade vem colorir o anterior consumo em preto-e-branco. O excesso, a extravagância e o desperdício pródigo com os produtos são características marcantes nesta sociedade. Use e jogue fora, uma vez que os objetos foram feitos para a rápida e profusa circulação. O desapego aos produtos está em voga, seja um consumidor pleno, consciente da “vida” curta dos bens numa obsolescência programada, especialmente na área tecnológica e científica - compre, use e direcione ao lixo - caso contrário como manter esse consumo desenfreado? Na referida sociedade ser feliz é consumir. O liberalismo de tal organização social autoriza cada um a produzir, a fazer o que quiser, cada um por si, desde que consuma. Não ser um potencial consumidor te exclui da vida social. O sucesso pessoal está atrelado diretamente à capacidade de consumo. Não basta ser potencial consumidor, possuir recursos e não os utilizar. Em conformidade com a ditadura do consumo, o ato de abster-se de consumir o posicionará numa morte social tal qual os desprovidos de capital. Frugalidade não está definitivamente presente na ordem do dia. E por se tratar do “aqui e do agora”, na sociedade que vive para o consumo o estado de emergência se mostra sempre presente. O espaço de tempo entre a vontade e a realização não pode ser longo e, assim, reduz-se o espaço de tempo entre o aparecimento de uma novidade e a sua permanência. Ter tempo, faltar tempo, ganhar tempo, o tempo passa ser o inimigo. O fracasso não está associado somente à falta de dinheiro, como também se refere à falta de tempo de gastá-lo. Há um desencaixe entre o esforço e a recompensa nesse complexo inadequado do tempo. A culpa assombra a sociedade de consumidores, inquieta com suas aflições. Indivíduos treinados para o consumo não admitem o adiamento das satisfações, ao contrário, esperam sempre que sejam imediatas, se tornam intolerantes a toda e qualquer frustração. Impõe-se que a dinâmica do consumo seja a cada dia mais célere, donde se tem instrumentos como a “compra com um clique”, logística de entrega internacional cada vez mais tendente a agilizar o espaço entre o clique da compra e a obtenção do objeto do consumo, dentre tantas soluções engenhosas que o mercado encontra para alimentar a roda do consumo, ainda que em âmbito internacional. Como não poderia deixar de ser, todas essas características prementes da sociedade de consumo acabariam por alterar as demais estruturas, parafraseando

Harbermas, as estruturas do mundo da vida. Os conceitos de família, de trabalho, arte, religião, e demais sistemas que compõem esse mundo da vida, mesmo com bases alicerçadas ao longo de séculos, tiveram que se readequar as novos reclamos sociais do consumo. O que demonstra, novamente, uma sociedade que se vê diante do sólido que se liquefez. Sobre um outro aspecto, ainda que um pouco mais ousado, Ulrich Beck entende que atualmente vive-se sob a égide de uma nova transformação ocorrida na sociedade moderna, uma nova forma social (ou ordem), o que o autor denomina como Modernidade Reflexiva: Assim, em virtude do seu inerente dinamismo, a sociedade moderna está acabando com suas formações de classe, camadas sociais, ocupação, papais dos sexos, família nuclear, agricultura, setores empresariais e, é claro, também com os pré-requisitos e as formas continuas do progresso técnicoeconômico. Este novo estágio, em que o progresso pode se transformar em autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro e o modifica, é o que eu chamo de etapa da modernização reflexiva (GIDDENS; LASH; BECK, 2012. p. 13)

Para o autor, essa nova ordem social na sociedade moderna não estaria relacionada com a crise do capitalismo, especialmente ao recordar Marx quando explanava que o capitalismo seria seu próprio coveiro. Na verdade, a vitória do capitalismo na sociedade que estaria ditando essas novas formas sociais. A modernidade reflexiva seria uma mudança na sociedade industrial, uma mudança não revolucionária, mas silenciosa, muitas vezes desapercebida por sociólogos. Da liquidez ou sociedade fluida de Bauman, nesta nova forma social de Beck encontra-se a ambivalência, o reino da incerteza. Ambos os autores trazem o individualismo como elemento marcante desta nova sociedade (consumidores e reflexiva). Em todas as áreas a individualização ganhou novos contornos, seja como forma social ou forma política. Para se ter um vislumbre real dessa restruturação das relações por conta da individualização, Beck cita a instituição do casamento, que detinha certos status, tais como a indissolubilidade do casamento, deveres da maternidade, da manutenção econômicofinanceira, dentre outros, que acabavam por “forçar” que os indivíduos ficassem juntos. Na contramão dos “modelos tradicionais de casamento”, surgiram vários outros modelos, atualmente a mulher deve construir e manter suas próprias carreira

educacional e profissional para que caso seja sobrevenha um divórcio não enfrente a ruína financeira ou ficar dependente dos recursos do ex-cônjuge. Por certo, tal preceito se aplica a ambos os sexos, direcionando assim, a qualquer um dos cônjuges tanto dentro, como fora da instituição do casamento, operar e persistir como agente individual e planejador de sua própria biografia (GIDDENS; LASH; BECK, 2012. p. 33). Com relação as mudanças ocorridas no campo do direito, pega-se, por assim dizer, uma carona nas análises de José Eduardo de Faria (FARIA, 2008. p. 11), que enumera cinco consequências que começaram a ser percebidas na sociedade a partir do que denomina como “restruturação do capitalismo”, em especial sob uma perspectiva do impacto da globalização sobre o direito. A primeira das consequências diz respeito ao desenvolvimento científico, que devido a sua velocidade e intensidade acabam por surgir novos produtos, mercadorias ou serviços sem as devidas normas que o regulem, isso porque a elaboração das regras pelas vias tracionais não conseguem acompanhar essa velocidade técnico-cientifica. O tempo e o espaço influindo diretamente nas relações jurídicas, de modo que nos eventuais conflitos de interesses há a necessidade de se recorrer ao conhecimento de especialistas cujo interesses normalmente estão voltados para resultados a curto prazo e dividendos imediatos. A segunda idéia-chave é de que a velocidade de criação e distribuição de novos bens e serviços no mercado globalizado vem intensificando e acelerando o chamados processo de destruição criadora, levando a substituições cada vez mais rápidas na gama de bens e serviços existentes. “Não há razão para esperarmos um ritmo mais lento da produção em virtude do esgotamento das possibilidades tecnológicas”, dizia Schumpeter ao analisar a velocidade desse processo no século XVIII (...). (FARIA, 2008. p. 13)

A segunda característica seria a diminuição da margem de autonomia dos governos nacionais (característica mais visível nos países periféricos) no que se refere as políticas macroeconômicas (aspectos gerais) e nas políticas monetárias e cambial (aspectos específicos). Conforme dito, o capitalismo precisa que o Estado o regule e o garanta, entretanto, suas regras não podem ser criadas a ponto de engessar as práticas usuais do mercado. É dizer: as regras precisam corroborar e até incentivar a dinâmica do mercado. E justamente por depender desse mercado, o Estado tem cedido às

pressões para flexibilizar sua autonomia buscando se manter competitivo neste mundo globalizado. Na terceira caraterística o autor ressalta um processo de distanciamento do sistema financeiro do qual a riqueza abstrata dos mercados de capitais se sobrepõem de modo expressivo sobre a riqueza concreta dos setores produtivos da economia real. Metaforicamente pode-se dizer que a riqueza abstrata desta nova ordem social perde o endereço ou o rosto, diferentemente ocorria nas sociedades tradicionais, as quais estava muito definido o papel de cada classe e eram mais facilmente identificáveis. Sobre a quarta característica verifica-se o fenômeno da “relocalização industrial”, novamente recorrendo à comparação da sociedade de produtores com a atual sociedade, ou seja, enquanto antes existia operários que realizavam no espaço de uma única fábrica todo o processo de fabricação de um bem (ou em pequenas fábricas dentro de um mesmo Estado, próximas umas das outras), num sistema de produção denominado como fordista, atualmente todos os componentes que constituem esse bem podem ser produzidos nos mais diversos pontos do planeta. A produção passou a ter uma escala global. A informatização e a flexibilidade do processo permitem essa fragmentação da produção do bem, de modo que podem ser facilmente substituídos. A peça de um telefone celular, por exemplo, que hoje é fabricado no Brasil pode amanhã deixar de ser fabricado, caso não atenda às necessidades do mercado, e passar a ser produzida em Singapura, e tal mudança não alterará o resultado final no processo de produção, ao contrário, o que se visa sempre é tornar seu custo mais barato, possibilitando o aumento de consumo e lucros. Até bem pouco tempo, há cerca de duas décadas, seria inimaginável mudar a produção de lugar dessa forma, tendo em vista a dependência da estrutura montada em torno de um espaço físico que a fábrica abrigava. E por conta dessa flexibilidade é que a segunda característica vai se aproximar desta, isto é, caso as políticas econômicas de um determinado país sejam contrárias aos interesses do mercado, simplesmente esse capital irá se alocar nos países que assim o atendam. E como o Estado precisa desse capital externo, ele acaba por flexibilizar suas regras para atrair empresas estrangeiras, o que impacta em normas das mais variadas naturezas, não apenas às atinentes diretamente ao mercado ou às empresas, mas também às normas trabalhistas, diplomas consumeristas e, ainda, na facilidade e agilidade com que os processos judiciais encontram seu fim.

Essa facilidade de transferir ou “relocalizar” plantas industriais e unidade de trabalho intensivo conforme sues interesses estratégicos e cálculos de retorno financeiro confere, assim, a empresas mundiais e conglomerados transnacionais um extraordinário poder para barganhar – e até leiloar – o lugar de sua instalação com os distintos setores e instâncias dos poderes públicos de qualquer Estado, independentemente do continente onde esteja localizado. (FARIA, 2008. p. 28)

A última característica está circundada justamente na questão da soberania do Estado conforme acima descrito, o autor denomina como empalidecimento da ideia de Estado-nação, todavia, o viés aqui analisado será a atuação de diversos organismos multilaterais, conglomerados mundiais, organizações não governamentais (ONGs) nas decisões políticas sobre a macroeconomia. Por certo, essas características dizem respeito a questões sociais mais globalizadas, especialmente sob os aspectos políticos e macroeconômicos, que os difere das análises dos dois primeiros autores, entretanto, o que está em jogo nesse estudo é a capacidade de interferência que o capitalismo (o consumo como um todo) pode influir para modificar estruturas de uma sociedade seja nas áreas sociais, políticas, econômicas. Conclusão Não tendo a pretensão de esgotar o tema, o consumo foi trazido como objeto de estudo para a análise de algumas mudanças estruturais que ocorreram ao longo dos anos, tanto na sociedade quanto nas instituições que a compõem. Através da utilização dos citados autores que, apesar de analisarem sob óticas distintas o mesmo fenômeno social, inclusive os conceituando de forma diversa, o que se pode verificar ao final é que a sociedade moderna, classificada por esses autores como sociedade de consumidores, sociedade reflexiva ou como o substrato da restruturação do capitalismo, mesmo com diferentes nomenclaturas e perspectivas espaciais, todas possuem como ponto de partida para seu surgimento e manutenção o consumo, ou ainda, a forma intensa de realizar o consumo e suas posteriores e inevitáveis consequências. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e cada “agora” sucessivo. (BAUMAN, 2008. p. 60)

Inicialmente, a sociedade tradicional encarava como seu ideário de vida, isto é, o valor que a norteava, a busca pela paz eterna, o sagrado, o post mortem. Em seguida, a dita sociedade de produtores, primeira fase da modernidade na concepção de Bauman, tinha como meta a recompensa no futuro, ainda em vida, só que eram postergados ao longo do tempo, sendo resultado de esforços pessoais e coletivos. Daí que se culmina em uma transformação da dinâmica teleológica social na sociedade de consumidores e sua busca de felicidade, que devido a necessidade do mercado capitalista (para sua manutenção e perpetuação), acaba por ser convencida que a recompensa deve ser imediata. A felicidade está no hoje, mesmo sendo efêmera e momentânea, mesmo que essa felicidade seja substituída simultaneamente pela sensação de vazio logo após o consumo. Compre agora, seja feliz agora e aguarde os próximos comerciais. Assim, foi possível demarcar os principais aspectos da transição pelas quais passou a sociedade, a fim de compreender em cada período os valores que nortearam as formas de realização social e como se chegou ao atual contexto da sociedade de consumo, imediatista, ansiosa por consumir, frustrada porque o que consumiu ontem já não tem significado hoje e precisa novamente sair à luta pelo bem de consumo que irá trazer e manter a sua concepção de identidade. A inserção social é promovida e reiterada pela prática do consumo, bem como o ator faz parte da dinâmica da sociedade uma vez que consegue ser percebido como um consumidor pleno. Diante do atual contexto, portanto, não há que se falar em um estudo da sociedade senão pela ótica do consumo e da percepção individual não do “ser”, mas sim do “ter” que o representa.

REFERENCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. __________________. Modernidad liquida. 1. ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2010. FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: direito e conjuntura. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 11. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1991. GIDDENS, Anthony, LASH, Scott, BECK, Ulrich. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. 2.ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler – Vol. I Rio de Janeiro, 2010. ___________________. Técnica e ciência como “ideologia”. Trad. Felipe Gonçalves da Silva. 1.ed. São Paulo: Editora Unesp, 2014. HOBSBAWM, Eric J e RANGER, Terence. A Invenção das tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcante. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. MARX, Karl, ENGELS, Friederich. Manifesto do partido comunista. 2. ed. São Paulo, Global Editora, 1991.

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