A SOCIOLOGIA DA MÚSICA: DIREITOS AUTORAIS E HIBRIDISMO MUSICAL EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

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A SOCIOLOGIA DA MÚSICA: DIREITOS AUTORAIS E HIBRIDISMO MUSICAL EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

Osmário Estevam Júnior

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Programa de Pós-graduação à distância em Sociologia da Universidade Estácio de Sá. Orientador: Professor Márcio Rodrigues Alves

Rio de Janeiro 2016

DEDICATÓRIA Este trabalho é dedicado a memória de todos os trabalhadores da música que colaboraram, anonimamente ou não, para a construção da identidade cultural da música popular brasileira.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à natureza, fornecedora da matéria-prima de todos os papéis, tintas e demais utensílios usados em toda a minha formação, e a todos os trabalhadores envolvidos no processo de produção destes. Agradeço a todos os professores do curso de pós-graduação à distância da Universidade Estácio de Sá e a todos os intelectuais, professores e pesquisadores que são citados neste trabalho.

RESUMO

A sociologia da música se desenvolveu unida as teorias de pensadores como Dahlhaus, Weber e Adorno. Todavia, estudos recentes da musicologia, como o de Freitas e Travassos, abordam questões de direitos autorais e analisam o distanciamento ideológico da contracultura e da tradição com a Indústria Cultural. A pergunta de Hesmondhalgh (2000), sobre como conceber as diferenças na música, remete a análise destas para compreender o hibridismo musical contemporâneo e a sua influência nas questões de autoria. Sendo assim, o texto a seguir aborda questões de sociologia da música e seus desdobramentos nos tempos atuais, analisando referenciais clássicos e atuais para compreendermos a relação entre música, criação artística e mercado.

PALAVRAS CHAVE: sociomusicologia, direitos autorais, contracultura, tradição e hibridismo.

LISTA DE IMAGENS

1. Carl Dahlhaus (1928–1989) ...........................................................................................04

2. Theodor W. Adorno (1903–1969) .................................................................................07 3. Cena do filme “Eles Vivem” de Jonh Carpenters ...........................................................11

4. Cartaz da “Terceira Conferência Internacional sobre Abordagens Analíticas para a Word Music”............................................................................................................................13

5. Exemplo de análise Schenkeriana ..................................................................................16 6. A Teia Cultural ..............................................................................................................17 7. Arte de J. Borges presente na contracapa do LP Nordeste, Cordel, Repente e Canção, de Lula e Zé amalho............................................................................................................21 8. Cartaz da Novela Xica da Silva ......................................................................................23 9. Cartaz do Woodstock (1969) .........................................................................................24 10. Cena do YTP Seu Madruga Will Go On ........................................................................26

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 01 1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIOLOGIA DA MÚSICA ..............................03 2. MUSICOLOGIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO ......................................09 2.1. A teoria crítica e as obras de arte .............................................................................09 2.2. A ideologia na construção de relações ......................................................................12 2.3. Considerações sobre a Nova Musicologia................................................................14

3. DIREITOS AUTORAIS E HIBRIDISMO CULTURAL .......................................19 3.1. Um caso de repente ....................................................................................................20 3.2. Uma história de novela ..............................................................................................22 3.3. Na contramão da contracultura ...............................................................................24 3.4. As possibilidades da internet ....................................................................................26 3.5. O hibridismo sócio cultural ......................................................................................28 CONCLUSÃO..................................................................................................................32 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................33

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INTRODUÇÃO

A sociologia da música e a etnomusicologia se tornaram essenciais para o desenvolvimento da Nova Musicologia. Diante disso, a grande preocupação que os musicólogos tinham com a análise musical aos moldes da música europeia, foi substituída por uma visão mais hermenêutica e mais provida de crítica e de contextualização sócio cultural. De tal modo, a análise musical tradicional abandona suas características mais positivistas e estruturalistas, amparando-se na sociologia, na historiografia, na filosofia e na antropologia para se aproximar da compreensão real uma obra musical. O diálogo com as outras disciplinas se torna essencial para os novos musicólogos darem conta de todo o hibridismo cultural que caracteriza a música dos tempos atuais. Neste trabalho serão abordadas questões relacionadas ao hibridismo cultural diante de problemáticas relacionadas ao mercado da música, em especial a questões de direitos autorais e de legitimação cultural. Serão analisados alguns casos onde os problemas de autoria e legitimidade se fizeram presentes, mostrando os modos como o mercado e a indústria atuaram diante das características de cada autor e dos intérpretes. As análises dos problemas apresentados neste trabalho são fundamentais para a compreensão da realidade dos autores e intérpretes. Algumas questões aqui levantadas podem ficar sem respostas, pois a limitação da visão estruturalista não dá conta de toda a divergência existente na produção cultural contemporânea. Não se pretende responder até onde a análise musical tem a capacidade de legitimar uma obra, ou de que modo o mercado e até mesmo o estado tem a capacidade de intervir em tal legitimação. A proposta é que cada caso seja analisado dentro de suas peculiaridades, sem que uma estrutura pré-definida deva ser encaixada a todo custo para explicar uma obra de arte. Os autores citados neste trabalho fazem análises diversas, diante de variados problemas relacionados a questões de autoria. De um modo geral, todos abordam a relação dos artistas criadores com seus intérpretes, com o mercado fonográfico e com a indústria cultural. Mostram os conflitos existentes nestas relações e apontam para algumas soluções, nem sempre bemsucedidas. Este tema é importante não apenas na música, mas também na literatura, cinema e demais artes. É com frequência que vemos casos polêmicos onde processos judiciais são abertos

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quando uma pessoa ou determinado grupo se sente prejudicado pela apropriação comercial de sua cultura por terceiros. O objetivo deste texto é confrontar diferentes casos relacionados a questões de autoria, mostrando que a visão multicultural da Nova Musicologia pode superar as limitações da análise estruturalista, mantendo sempre o diálogo com outras disciplinas para a compreensão contextualizada de uma obra musical e de sua cultura. Este trabalho apresenta uma estrutura simples, com a introdução e conclusão em torno de três capítulos. No primeiro capítulo é dada uma explicação sobre a Sociologia da Música. O segundo capítulo trata da Musicologia em tempos de globalização, passando pelo surgimento da Nova Musicologia. O terceiro capítulo trabalha textos de outros autores sobre questões de hibridismo cultural e de autoria. A metodologia aplicada é feita com base no levantamento bibliográfico de autores clássicos da sociologia da música e na crítica textual de artigos de musicólogos atuais dedicados a problemática aqui abordada.

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1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOCIOLOGIA DA MÚSICA

Frequentemente, quando refletimos sobre música, nós pensamos sobre estilos, sobre compositores e intérpretes. Este tipo de relevância foi muito comum no período da dita “música clássica”, especialmente entre os séculos XVIII e XIX. As análises estruturais das peças vinham a demonstrar o quanto estas estavam sujeitas a limites severos definidores de sua qualidade estética. Para Dahlhaus1 (2009, p. 69), a conceituação da música boa ou má depende de aspectos técnicos de composição, assim como estéticos, morais e sociais. Todavia, é inevitável não analisar estas qualidades de maneira separada na tentativa de compreender todas as suas interações. Notamos a seguir.

A boa e a má música, na linguagem corrente – cujo testemunho não deve ser subvalorizado pelo historiador – não correspondem de modo algum às obras ou às criações musicais conseguidas ou malogradas. Uma canção de sucesso que, segundo as normas da indústria do espetáculo, é uma ‘peça bem feita’, pode ser igualmente incluída, do ponto de vista da cultura estética, na ‘má música’; e, inversamente, na estética, que foi marcada pela burguesia culta do século XIX, uma ópera fracassada, mas sem mácula enquanto composição pertence, sem mais, à ‘boa música’, embora tenha errado o seu alvo. Por outro lado, no século XIX, frente ao êxito teatral, embora pretendido, tinha-se uma atitude de cepticismo estético, pelo menos na Alemanha, e tendia-se por isso a contrapor a um fiasco no teatro uma qualidade abstrata, demasiado refinada para o grosseiro mundo da ribalta. (DAHLHAUS, 2009, p.69)

Percebe-se através do escrito de Dahlhaus, a relatividade da valorização de determinada peça musical devida ao seu contexto sócio cultural. A carência de coerência interna de muitas obras se deve à falta de relação entre a sua estrutura e a severidade dos limites estéticos a que cada compositor está sujeito. Diante disso, podemos afirmar que música também é sociológica, principalmente quando pensamos em música popular. Ou seja, ela, a música, caracteriza-se pela colaboração entre pessoas inseridas em um determinado movimento social.

1 Dahlhaus, Carl (Hanover, 10 jun 1928) Musicólogo alemão. Estudou em Göttingen e Freiburg, trabalhando depois como assessor de produção do Deutsches Theater, Göttingen (1950-58), para o Stuttgart Zeitung (1960-62) e em seguida na Universidade de Kiel. Em 1967 tornou-se professor de história da música na Universidade Técnica de Berlim. Seus textos cobrem um amplo espectro, incluindo teoria, análise e estética. Escreve sobre a música do séc. XV aos tempos atuais, especialmente sobre Josquin e Wagner. O alcance e a profundidade de suas obras fazem dele um dos pensadores musicais mais influentes de nossa época. (SADIE, 2000, p. 244)

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Ela é parte essencial deste movimento, atuando nas construções de identidades individuais e sociais, e envolvendo-se em contextos políticos e culturais.

Imagem 1: Carl Dahlhaus (1928–1989).

Fonte: Disponível em “https://en.wikipedia.org/wiki/Carl_Dahlhaus”.

O termo Sócio Musicologia, ou Sociologia da Música, pode ser considerado tanto um subcampo da musicologia como da sociologia. A abordagem dos estudiosos da sociologia da música pode ser semelhante à dos etnomusicólogos, porém, a sócio musicologia não se limita à metodologia da etnografia e usa uma ampla gama de métodos de investigação, se interessando sobre comportamentos observáveis e interações musicais manifestadas dentro dos limites da estrutura social. Logo, os sociomusicólogos se concentram mais nas práticas sonoras em sociedades musicais contemporâneas e industrializadas, o que fornece à música dita popular um papel central no desenvolvimento e na compreensão da sociologia da música. Foi por isso que Max Weber2, um dos precursores da sociologia, escreveu sobre os fundamentos racionais 2

Weber, Max (1864-1920) Sociólogo e filósofo alemão. Weber nasceu em Berlim, numa família liberal de juristas, e estudou direito e história do direito em diversas universidades. Teve uma breve carreira acadêmica, como professor de economia, em Freiburg e Heidelberg, até se aposentar por motivos de saúde, em 1897. Filosoficamente, weber é conhecido sobretudo por insistir que a forma como as ciências sociais se conduzem deve ser isenta de valor. Além disso, Weber é conhecido por ter aderido à tradição da verstehen de Dithey. Quanto ao primeiro tema, Weber argumentava que as análises científicas, históricas ou filosóficas de um dado período nunca poderiam fornecer, por si sós, os critérios necessários para uma solução definitiva de questões de valor, entre elas as de natureza política. O cientista social deve distinguir rigorosamente aquilo que é daquilo que deve ser: a importância que Weber atribui a este princípio reflete as suas próprias preocupações quanto ao crescente poder de uma burocracia impessoal, que toma decisões valorativas baseando-se em critérios puramente “científicos” e tecnológicos. Quanto ao segundo tema, relacionado a esse, Weber afirmava que um estudo sociológico deve reconhecer que as ações têm sentido para os seus agentes, considerando que nenhuma perspectiva científica sobre esses agentes que ignore esta dimensão poderá ser adequada. O sociólogo deve conseguir se colocar na mente daqueles que estudam. Evita-se a subjetividade que isso parece envolver através da disciplina da descrição de “tipos ideais”, que encarnem o espírito objetivo da burocracia, do calvinismo, do capitalismo etc. Weber sempre

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e sociológicos da música, numa obra que foi lançada postumamente por sua esposa, mas que se constitui como um marco da sociologia da música. Nesta obra, contextualizada em torno de 1910, Weber salienta que o problema básico da sociologia de qualquer tipo de arte é a dependência de uma arte de seus meios técnicos. Ou seja, o desenvolvimento de uma arte está correlacionado com o desenvolvimento dos meios técnicos que lhe são próprios, sendo assim, é essencial a relação entre “volição artística” e o “meio técnico”. Weber analisa, por exemplo, o papel do piano como definidor de padrões sociais.

A ideia de construir pianos com 24 teclas na oitava, tal como por exemplo Helmhotz propôs, não é por agora muito auspiciosa, por razões econômicas. Em comparação com o cômodo teclado de 12 teclas, ele não teria mercado entre os diletantes e permaneceria um mero instrumento de virtuoses. A construção do piano é condicionada pela venda em massa, pois o piano também é, de acordo com sua essência musical, um instrumento doméstico burguês. (WEBER, 1995, p.150)

O exemplo do piano pode ser estendido a praticamente todos os instrumentos musicais ocidentais, levando-se em conta à construção de suas oitavas e a formação dos intervalos e escalas, mas também à notação musical e às formas de registro formal, desde o fonógrafo da época de Weber, até o MP3 atual. Tudo isso mostra para Weber o quanto a racionalização se projeta sobre os próprios meios artísticos. Tal concepção modela o problema do racionalismo estudado por Weber em outros campos, como a da religião, da economia, da política e do direito. Na música popular do século XX, a sociedade acompanhou diversos grupos musicais se movimentando em meio ao “espírito de seu tempo” (Zeitgeist)3, caracterizado pela forte intromissão do mercado no trabalho artístico. Logo, muitas bandas seguiram os caminhos da audiência para se estabilizarem, sendo naturalmente seguidas por outras. A audiência é um fator essencial para o desenvolvimento do que conhecemos por música pop, ou música de consumo. insistiu no fato de que nenhuma compreensão está completa se não incluir a dimensão religiosa, política e moral das atividades dos agentes humanos. Sua obra mais famosa, “A ética protestante e o espírito do capitalismo” (1922), estabeleceu a ligação entra a ascensão do capitalismo e o desejo de ver no sucesso mundial um sinal da salvação predestinada. Weber percebeu que este tipo de estudo requer análises comparativas com outras culturas e épocas, e grande parte de sua obra é sobre este problema. Wirtschaft und Gesellschaft (1922) e a compilação de ensaios e artigos traduzidos em The Methodology of the Social Sciences (1949) são algumas das suas obras teóricas mias importantes. (BLACKBURN, 1997, p. 408-9) 3

Zeitgeist – palavra em alemão que traduzida pode ser entendida como espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. Zeitgeist representa o conjunto do “clima” intelectual e cultural do mundo em uma determinada época, ou seja, é uma palavra usada para tratar das características gerais de um determinado período de tempo.

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Diante disso, notamos a criação de vários estilos híbridos, muitos baseados na pura imitação de grupos mais bem-sucedidos, mas outros mais autênticos e experimentais, baseados na busca de uma contracultura, porém, todos visando a audiência e a conquista do mercado para se estabelecerem e para influenciarem gerações. Naturalmente, diversos movimentos sociais influenciam as sonoridades que vão se alterando diante da pluralidade estilística da música popular. Sendo assim, o hibridismo das relações musicais cria novos estilos que muitas vezes podem ser relacionados com contextos históricos, grupos culturais e acontecimentos sociais bem definidos. Apesar disso, para filósofos sociais como Adorno4, a música popular não serve para ser usada como protesto, ou na tentativa de criar uma revolução, pois a sua qualidade de mercadoria contradiz a seriedade necessária para isso.

Imagem 2: Theodor W. Adorno (1903–1969).

Fonte: Disponível em “http://www.konstnarsnamnden.se/default.aspx?id=16189”.

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Adorno, Theodor W. (1903-69) Sociólogo e pensador político alemão. Adorno foi um dos principais membros da Escola de Frankfurt, partilhando sua postura geral. Os trabalhos de Adorno pertencem sobretudo à sociologia, ocupando-se especialmente das contradições e distorções impostas às pessoas pela sociedade. Sua obra de caráter geral mais conhecida é The Authoritarian Personality (1950), que descreve o tipo de personalidade conformista e rígida, submissa à autoridade superior, mas arrogante com os inferiores. A apologia que Adorno fez do paradoxo e da ambiguidade também teve influência na crítica literária e cultural pós-modernista. (BLACKBURN, 1997, p. 6)

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A questão colocada por Adorno se refere ao que é boa música, se está é apenas a música que é aceita de acordo com padrões correntes, ou se estes padrões apenas seguem às regras de comercialização do mercado, o que tira da música toda a sua espontaneidade. Adorno entende que as formas musicais são interiorizações do social e que, como toda arte, a música é tanto um fato social como algo realizado em si mesmo, sendo que mesmo a música que não se integra socialmente é de essência social. Para Adorno:

A liberdade da arte, sua independência daquilo que se lhe exige, funda-se na ideia de uma sociedade livre e, em certo sentido antecipa sua efetivação. Por esse motivo, a esfera da produção não constitui, sem maiores ressalvas, a base da Sociologia da Música do mesmo modo como a esfera produtiva está à base do processo material de vida. Como algo espiritual, a produção musical é, já de si, socialmente mediada e de modo algum imediata. Em um sentido rigoroso, a força produtiva é, em si mesma, apenas a espontaneidade inseparável das mediações. Sob a ótica social, a força seria aquilo que vai além da mera repetição das relações de produção emergentes dos tipos de gêneros. Tal espontaneidade pode tanto estar em sintonia com a marcha social – como ocorre no jovem Beethoven, ou, então, na canção de Schubert – como lhe fazer resistência: Bach, e, uma vez mais, a nova música, contra a submissão ao mercado. Seria então o caso de perguntar: ‘Como é socialmente possível, em todo caso, a espontaneidade musical?’ Nela sempre se escondem forças produtivas sociais que ainda não foram absorvidas em suas formas reais pela sociedade. Mas, em termos sociais, aquilo que hoje significa reprodução musical, isto é, o canto e a execução de música, antecede a produção, a fabricação reificante de textos musicais. (ADORNO, 2011, p. 403)

Todavia, é fato que os precursores da sociologia da música não puderam deslumbrar os

avanços da tecnologia, em especial a internet. Entretanto, suas teorias podem ser transplantadas para tempos atuais e nos levam a questionamentos sobre a produção e a intenção por trás das mudanças que a música e o mercado musical têm sofrido nos últimos anos. Adorno acreditava que vivemos em uma sociedade de mercadorias e que o processo industrial de produção musical, com seus produtores, editores, escritores, técnicos de mixagem, críticos de estilos, entre outros, apenas transformam a música em um produto. Sua teoria fica bastante atual ao analisarmos como ídolos da música pop se transformaram em verdadeiras marcas, apresentando produtos sonoros padronizados pelas estruturas similares de suas canções, melhoramentos digitais das composições e desvirtuamento do som através do visual, sejam por clipes ou shows. Contudo, diante disso vemos algumas transformações que afetaram diretamente as sonoridades, como a passagem do rádio para o computador, ambos tratados aqui como mercadorias. Tal transformação representa como as mercadorias surgem orientadas pelo mercado e como este se

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mobiliza para manter o seu poder baseado na relação entre indústria e sociedade. Para Adorno, o poder ideológico do rádio nem sempre tem o efeito esperado, mas na maioria dos casos o objetivo é manter a estrutura de poder na sociedade, através de um efeito narcotizante típico da cultura de massa que cria uma falsa noção de individualismo cultural. Assim, ele analisa os estilos, a seguir.

Os estilos, enquanto reconhecem o guia de lemas culturais de grande ressonância, deixam o caminho aberto, em seu caráter geral, precisamente a essas mitigações desnaturalizadas que impedem a coerência da ideia não programática, imanente à própria coisa. Mas o tratamento filosófico da arte se refere à arte e não aos conceitos de estilo, por mais contatos que tenha com estes. A verdade ou a falta de verdade de Schoenberg ou de Stravinsky não pode ser estabelecida na simples discussão de categorias como atonalidade, técnica dodecafônica, neoclassicismo, mas somente pela cristalização concreta de tais categorias na estrutura da música em si. (ADORNO, 2002, p.14)

É evidente na música atual as mensagens implícitas e a programação de conteúdo. Na maioria dos casos os conteúdos trabalham com muita sexualização da mulher, com os glamoures das elites, do dinheiro e das mercadorias, encorajando a bebidas e drogas numa generalizada cultura de festa. Todo este conteúdo influencia diretamente na normatização dos comportamentos sociais, criando a cultura de massas e gerando a narcotização da sociedade. Foi diante disso que Adorno refletiu frente aos antagonismos sociais e escreveu sobre a música moderna séria e sobre o que ele chama de “regressão da audição”, pois diante dos padrões rítmicos, das combinações de som, das estruturas melódicas e harmônicas, mesmo com escolas divergentes de música popular, tais músicas são essencialmente as mesmas e são para crianças.

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2. MUSICOLOGIA EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO

No campo da música popular e da world music, estudos recentes da musicologia abordam questões de direitos autorais. Tal assunto remete a uma análise do processo de reificação das obras de arte, quando a sociedade capitalista começou a atribuir valores financeiros a cultura, onde bens começaram a ser fabricados em grandes quantidades dentro de um processo de produção em série. Apesar de existirem músicos e artistas profissionais desde a antiguidade, foi a partir da revolução industrial que a indústria cultural definiu o lucro como principal objetivo da produção artística. A partir dela, a produção artística se tornou algo rentável e o autor deveria provar a legitimidade de sua criação para poder lucrar com sua obra. Neste meio surgiram os direitos autorais, visando assegurar benefícios para o criador da obra, muitas vezes explorado por editores, empresários e produtores. O profissionalismo musical ganhou facetas industrializadas, logo, muitas questões morais, éticas e econômicas são levantadas ao debatermos sobre este assunto. Questões sobre até onde vai a originalidade de uma obra, ou como atribuir valor financeiro a uma determinada peça, são até hoje causadoras de grandes polêmicas entre os profissionais da música.

2.1. A teoria crítica e as obras de arte Para a compreensão dos valores que geralmente são atribuídos às obras de arte, o que remete diretamente as questões relacionadas aos direitos autorais, é necessário fazer referência aos pensadores que pesquisaram as relações comerciais durante o começo da indústria cultural. Para Benjamin5, um pensador muito preocupado em contar a história dos derrotados, dos esquecidos e dos trabalhadores, a obra de arte perde a sua “aura” quando reproduzida em grande quantidade, o que só é possível devido ao uso da tecnologia em larga escala. A essência de uma “obra prima” não pode ser medida em valores, mas a partir de sua “reprodutibilidade técnica” os custos de produção irão se agregar ao seu valor final e lhe atribuir o status de mercadoria. A obra de arte produzida tecnicamente se torna um objeto de consumo descartável e sem aquilo que Benjamim chama de “aura”. No contexto das duas primeiras guerras mundiais, a 5

Benjamin, Walter (1882 – 1940). Importante crítico literário, membro da escola de Frankfurt. Benjamin é conhecido por suas análises das condições materiais que regulam a produção literária e artística. (BLACKBURN, 1997, p. 40)

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reprodutibilidade técnica também foi capaz de produzir todo o arsenal da propaganda nazista, assim como fez o mesmo na produção de armamentos e até mesmo de soldados. Sendo assim, o pessimismo dos adeptos da Escola de Frankfurt6 é compreensível quando verificamos o modo como a tecnologia foi usada em sua época, aliada ao racionalismo exagerado e mecanicista, ambos responsáveis pela perpetuação da frieza em toda uma sociedade entretida com a propaganda nazista e a usufruir de diversos bens de consumo. Como a “teoria crítica” dos frankfurtianos pretendia deixar certas questões em aberto para serem explicadas por pensadores contextualizados em sua própria época, como é o nosso caso em pleno século XXI, ficamos a imaginar como o filósofo Adorno analisaria a indústria cultural atual, consequência daquela que ele viu começar, mas certamente com uma característica hibrida e eclética devido à internet, o que era praticamente inimaginável nos meados do século XX. O medo dos frankfurtianos, em especial o de Adorno, era o retorno de Auschwitz7, logo, o regresso à barbárie, que em outras palavras pode ser entendido como o embrutecimento do ser humano através do consumismo e da manipulação em massa pelos meios de comunicação controlados por uma elite dominante e socialmente descomprometida. Essa manipulação usa a tecnologia e a arte para preencher o vazio existencial dos indivíduos, sendo capaz de transformar pessoas comuns em seres incapazes de sentir respeito a vida humana, isso graças ao mau uso da racionalidade e da falta de sensibilidade estética. Para isso

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Escola de Frankfurt. Escola crítica marxista surgida em Frankfurt nos anos 20 e 30 e sediada no Instituto de Investigação Social, fundado em 1923. Seus principais membros foram, na filosofia, Max Horkheimer (diretor, de 1931 a 1958), Adorno, Marcuse e Benjamin. Numa fase posterior, seu representante mais significativo tem sido Habermans. A perspectiva da escola de Frankfurt é algumas vezes conhecida como teoria crítica. Seu objetivo era proporcionar uma versão do marxismo depurada de positivismo e de materialismo, que desse o devido valor à influência da superestrutura – ou seja, da cultura e da imagem que as pessoas fazem de si próprias – como um fator de mudança social. A Escola de Frankfurt confrontou-se com duas situações: a degeneração do marxismo soviético no stalinismo e o fracasso do comunismo na tentativa de inspirar as classes trabalhadoras do ocidente. Em resposta, combinou uma preocupação kantiana com as condições de possibilidade da razão e do conhecimento, com uma ênfase hegeliana no condicionamento histórico de todo o pensamento; esses elementos levaram a uma atitude cética quanto às ideologias dominantes, vistas como distorções intelectuais geradas por desigualdades sociais concretas, que as dissimulam. A escola de Frankfurt enfatizou as interações entre a estética, a psicanálise e a cultura popular no reforço de uma atitude, preponderante no ocidente, de aceitação despersonalizada do status quo (“O sistema”), com o correspondente fetichismo da mercadoria, o fascismo e o nacionalismo. Dado o fato de a maior parte dos indivíduos estarem à mercê dessas forças, não há motivos para prever a inevitabilidade de uma revolução como no marxismo clássico, e assim o papel de uma liderança iluminada na luta pela emancipação adquire uma maior importância. Do mesmo modo, uma vez que se enfatiza a necessidade da transformação através de uma compreensão das coisas cada vez maior, a psicanálise proporciona um modelo de emancipação, visto que nos dá a esperança de, ao ganharmos consciência dos aspectos ocultos de nossas psicologias, adquirimos a capacidade de vendê-los. A escola exerceu grande influência na nova esquerda e em outros movimentos radicais dos anos 60. (BLACKBURN, 1997, P. 121) 7

O Campo de Concentração de Aushwitz ficou conhecido por ser o local de extermínio dos judeus, praticado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. (Disponível em: http://www.infoescola.com/historia/campo-de-concentracao-de-auschwitz/)

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a educação deveria ter um direcionamento contrário ao condicionamento consumista pregado pela indústria cultural, sendo menos técnica, menos mecânica e menos racional, sendo mais filosófica, criativa e artística, ensinando o respeito desprovido de interesse aos seres humanos. É difícil discordar de que é preciso humanizar a sociedade coisificada para que se evitem as barbáries frequentes na história humana, mas no momento não há como deslumbrar qualquer realidade desprovida de comunicação em massa e manipulação para o consumo, tão pouco é viável conceber soluções que englobem revoluções, pois o uso de violência não é uma opção, assim como nunca haverá um sistema de pensamento único capaz de englobar todas as questões pertinentes. Imagem 3: Cena do filme “Eles Vivem” de J. Carpenters.

Fonte: Disponível em “http://www.cinemadebuteco.com.br/criticas/terror/vivem/”.

A reificação, conceito marxista que aponta para a definição de valores financeiros para cada trabalho realizado, transformando-os em objeto através do dinheiro, também atribui valor financeiro às produções artísticas, logo, temos um cenário a ser vislumbrado e trabalhado, ao invés de ser repelido a todo custo, em outras palavras, o tema a ser analisado é justamente este processo de reificação. Sendo assim, já que o capitalismo exerce uma plena influência em tudo o que vai ser produzido e consumido, conseguindo se adaptar a diversas situações e sempre se apropriando de culturas que surgem muitas vezes como uma contraproposta à hegemonia do status quo dominante, mas que acabam sendo englobadas pela mídia, a dialética negativa8

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A Dialética Negativa é uma obra de Adorno lançada em 1966. Nela, o autor trabalha a emancipação do homem diante dos mecanismos opressivos da sociedade moderna, retornando assim ao método filosófico dialético, apresentado por Hegel, mas com a diferença de que Adorno não pretende ignorar as diferenças

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adorniana surge se opondo à teoria positivista no intuito de evitar que esta última confirme a legitimidade do sistema através da ideologia9.

2.2. A ideologia na construção de relações Um importante pensador que analisou obras de Marx, Habermans, Weber, entre outros, no que diz respeito à ideologia, foi Paul Ricoeur10. Ele produziu uma série de ensaios que envolvem as questões de ideologia e de utopia, mostrando as suas relações com as questões de legitimações de autoridades. A seguir, Ricoeur explica como estas relações podem ser compreendidas. Nenhum sistema de dominação, por mais brutal que seja, governa somente pela força, pela dominação. Cada sistema de dominação exige não somente a nossa submissão física, mas o nosso consentimento e a nossa cooperação. Cada sistema de dominação quer, a partir de então, que o seu poder não repouse unicamente na dominação; quer também que o seu poder esteja fundamentado porque a sua autoridade é legítima. O papel da ideologia é legitimar a autoridade. Mais precisamente, enquanto a ideologia serve, como acabamos de ver, de código de interpretação que assegura a integração, ela o faz justificando o sistema presente de autoridade. (RICOEUR, 2015, p. 29)

Apesar disto, para Adorno, a emancipação do homem passa pelo reconhecimento da não identificação entre sujeito e objeto, sendo que, mesmo com o reconhecimento desta diferença, nota-se que é impossível abraçar o todo através do simples pensamento, como os ultra racionalistas acreditavam.

entre as consciências humanas, o que para ele impossibilita abarcar o todo por meio de um único sistema de pensamento. 9 Dentro dos fundamentos da teoria crítica, o termo positivismo pode ser compreendido de modo difuso e com amplo significado. Os filósofos frankfurtianos tentavam efetuar uma teoria crítica da tendência desenvolvimentista da cultura ocidental desde o iluminismo, sendo que suas perspectivas tentavam desencantar o mundo ao substituírem o mito pelo conhecimento de bases sólidas diante de um mundo onde a racionalidade técnica predomina na cultura moderna. “O que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de todo ente ao formalismo lógico, tem por preço a subordinação obediente da razão ao imediatamente dado” (HORKHEIMER & ADORNO, 1985, p. 38). 10

Ricouer, Paul (1913 -). Existencialista, teólogo, filósofo e crítico literário francês. Nasceu em Valence, formando-se nas tradições existencialista e fenomenológica. Foi capturado durante a Segunda Guerra Mundial, familiarizando-se então com a obra de Husserl, Heidegger e Jaspers. Em 1948, Ricouer obteve o posto de professor em Estrasburgo e a partir de 1957 foi professor na Universidade de Paris x, de nanterre, e entre suas viagens ao estrangeirismo conta-se uma estadia na Universidade de Chicago. Como é típico da tradição francesa, a obra de Ricouer é bastante abrangente e de difícil compreensão, embora contenha uma louvável ênfase na humildade necessária à procura da verdade. Suas obras incluem a série sob o título geral Philosophie de la volonté: vol. I, Le Volontaire et l’ involontaire (1950) vol. II, Finitude et culpabilité, parte I, L’ Homme faillible e a parte II, La Symbolique du mal. (BLACKBURN, 1997, p. 344)

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Uma esperança um tanto quanto ingênua de afastamento da indústria cultural aconteceu quando músicas não ocidentais começaram a se difundir pelas rádios de todo mundo, mas rapidamente a indústria fonográfica criou classificações inventando denominações genéricas como música popular e world music, rotulando com facilidade os novos gêneros que surgiam através do avanço da tecnologia e da globalização. Para Erlman11 (1996), o termo world music, surgido nos anos 1980, seria usado para definir músicas heterogêneas, como a lambada, por exemplo, mas até os anos 1990 serviu inclusive para englobar músicas como o jazz avant garde. Imagem 4: Cartaz da “Terceira Conferência Internacional sobre Abordagens Analíticas para a Word Music” (1-4 de julho – Universidade de Londres).

Fonte: Disponível em “http://aawmconference.com/aawm2014/index.htm”.

Diante disto, ele não acredita que a world music tenha se tornado um “antídoto para o veneno da cultura de consumo ocidental e do imperialismo cultural” (Erlman, 1996, p. 468), sendo que a reflexão sobre ela não deve ser direcionada para as questões estratégicas de venda 11

Erlman, Veit. Professor de Etnomusicologia e de Antropologia na Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos. (Disponível em http://www.veiterlmann.net/)

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e comércio das grandes empresas, mudando o foco para os problemas da construção da historicidade, vendo a influência da world music no ocidente pela visão de um ocidental e buscando analisar as maneiras como as ideologias são produzidas no ocidente. É esta produção de ideologia que deve ser alvo das investigações dos pensadores atuais, pois leva-se em conta as narrativas múltiplas e parciais que revelam grandes dificuldades metodológicas diante das inúmeras músicas locais existentes por todo o planeta e que estão em constante transformação. Erlman (1996, p. 473) afirma que a relação entre os diferentes subsistemas musicais pode ser entendida como circuitos por onde “os estilos e o modo como eles se relacionam são reproduzidos dentro de uma variedade de circunstâncias locais”. A produção das diferenças, para McLuhann12 (apud Erlman, 1996, p. 474), não é suficiente para gerar algo realmente diferente, mas a globalização da produção artística pode influenciar na mitificação de talentos locais. Sendo assim, temos um sistema excêntrico onde a diferença já não é a antítese ao sistema, sendo atraída para dentro dele. Portanto, grande parte da etnografia musical, da sociologia da música e da crítica cultural tem examinado cada vez mais as escolhas que artistas fazem ao se movimentarem por todo o sistema fonográfico globalizado, sempre reavaliando suas posições em constante mutação estética e diante da “indiscutível onipresença do mercado”.

2.3. Considerações sobre a Nova Musicologia A Nova Musicologia veio à tona nos anos de 1970, influenciada por estudos culturais, pela filosofia estética e pela crítica musical. Ele se apresenta como uma reação à tradição positivista que dominava a musicologia até então. A Nova Musicologia, de Joseph Kerman13,

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McLuhan, Herbert Marshall (Edmonton, 21 de julho de 1911 - Toronto, 31 de dezembro de 1980). Foi um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense. Conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada. Famoso também por sua máxima de que “O meio é a mensagem” e por ter cunhado o termo “Aldeia Global”. McLuhan foi um pioneiro dos estudos culturais e no estudo filosófico das transformações sociais provocadas pela revolução tecnológica do computador e das telecomunicações. (Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Marshall_McLuhan) 13

Kerman, Joseph (Wilfred) (Londres, 3 abr 1924). Erudito e crítico norte-americano. Estudou na Universidade de Nova York e em Princeton, tendo começado a ensinar em 1951, na Universidade da Califórnia em Berkeley. Suas principais áreas de interesse são a ópera, música elisabetana (especialmente Byrd), Beethoven e Verdi. Tem expressado vigorosamente (seus textos o exemplificam) o ponto de vista controvertido de que a musicologia deveria participar da crítica. (SADIE, 2000, p. 493)

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Rose Rosengard Subotnik14, Susan McClary15, entre outros, mantém um constante diálogo interdisciplinar com a história, a antropologia e a sociologia. Além disso, é influenciada por estudos de gênero (Teoria Queer16), estudos culturais e estudos pós-coloniais. Contém em si uma certa tendência anti alemã, rejeitando tanto a teorias de Adorno, mas também de Hanslick17, Dahlhaus e especialmente Schenker18.

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Subotnick, Morton (Los Angeles, 14 abr 1933). Compositor norte-americano. Aluno de Milhaud e de Kirchner na Universidade de Denver e no Mills College, ensinou em várias instituições, sendo que desde 1969 no California Institute of the Arts. Compôs principalmente música eletrônica executada em sintetizadores Buchla e em estúdios de computação. Inclui-se entre suas obras Silver Apples of the Moon (1967); com Two Life Histories (1977) deu início a uma série de obras “fantasma” para orquestra, conjunto, vozes e fita magnética. (SADIE, 2000, p. 914) 15 McClary, Susan Kaye (St. Louis, 2 out 1946). É uma musicóloga associada a “Nova Musicologia”. Notável por seu trabalho que combina musicologia com crítica musical feminista. McClary é graduada na Universidade de Harvard e atua como professora de Musicologia na Case Western Reserve University. (Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Susan_McClary) 16

A Teoria Queer, oficialmente queer theory (em inglês), é uma teoria sobre o género que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de género dos indivíduos são o resultado de um constructo social e que, portanto, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. (Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_queer) 17

Hanslick, Eduard (Praga, 11 set 1825; Baden, 6 ago 1904). Crítico de música esteta alemão, pioneiro da avaliação crítica musical. Estudou música com Tomásek e direito na Universidade de Praga, escrevendo seus primeiros ensaios para o jornal Ost und West, de Praga, e para o Wiener Musikzeitung, o Sonntagsblätter e o Wiener Zeitung. De 1849 a 1861 foi funcionário público, em particular do Ministério da Cultura, escreveu para o Die Presse, publicou seu importante livro Vom Musikalisch-Schönen (1854) e proferiu palestras na Universidade de Viena, tornando-se professor catedrático em 1870. Exerceu também atividade como divulgador musical e ajudou a promover a padronização dos sistemas de afinação na música. Entre seus amigos de longa data contaram-se Brahms e o filósofo Robert Zimermann. Apesar de sua estética cultuar os ideais os ideais clássicos de ordem e perfeição formal, seus interesses limitavam-se à música de sua própria época. É talvez mais conhecido por sua posição antiwagneriana e pela controvérsia que isso provocou; seu argumento básico era que o valor da música residia em suas relações formais autônomas, e não em sua expressividade. Uma percepção aguda dos detalhes técnicos, uma abordagem sistemática e uma prosa nítida e viva contribuíram para tornar respeitados os seus textos. (SADIE, 2000, p. 406) 18

Schenker, Heinrich (Wisniowczyki, 19 jun 1868; Viena, 13 jan 1935) Teórico austríaco. Estudou com Bruckner em Viena e tornou-se acompanhador de lieder, intérprete de música de câmara, crítico, editor e professor particular. Seu interesse nas obras primas e nos processos criativos dos grandes compositores motivou toda a sua obra teórica e editorial. Entre suas edições mais significativas estão as cinco últimas sonatas de Beethoven (1913-21). Sua primeira obra teórica foi Harmonielehre (1906); esses trabalhos culminaram em Der Freie Satz (1935). Também editou dois periódicos. A teoria de Schenker para a música tonal pode ser descrita em termos de Urline (linha melódica fundamental), Ursatz (composição fundamental) e – o conceito mais genérico – Schichten (camadas estruturais: plano de fundo, plano médio e primeiro plano). A Urlinie abrange, efetivamente, a voz superior de uma composição inteira, e coordenase com um Bass-brechung (“baixo arpejado”) estrutural em ampla escala, subindo da tônica à dominate e retornando à tônica; a estrutura contrapontística resultante é o Ursatz. Assim, harmonia e contraponto se combinam ao nível estrutural mais profundo, onde Ursatz representa o auskomponierung (“processo de desenvolvimento compositivo”) em grande escala da harmonia fundamental, a tríade tônica. O conceito de níveis estruturais proporciona uma diferenciação hierárquica dos componentes musicais, que estabelece uma base para a descrição e interpretação das relações entre os elementos de qualquer composição. Segundo o ponto de vista de Schenker, a obra total em todos os níveis, não apenas no nível do plano de fundo, é

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A Nova Musicologia utiliza metodologias e definições amplas e em constante variações. Seus representantes se dedicam ao estudo de gêneros não canônicos, como o jazz, a música popular, música regional e tradicional, entre outros. São feitas sínteses e se estabelecem relações entre análise musical e significado social, objetivando sempre a busca de autenticidade. Os processos históricos de canonização são sempre questionados pelos novos musicólogos. Entre os principais nomes da Nova Musicologia está o de Robert Morgan19, que, por exemplo, propôs o desenvolvimento da teoria Schenkeriana para que esta dê conta da visão multi canônica e ganhe maior utilidade social. Imagem 5: Exemplo de análise Schenkeriana.

Fonte: Disponível em “https://heinrichschenker.files.wordpress.com/2012/02/cropped-bandeau.jpg”.

Lawrence Kramer20 por sua vez, acha necessária a desmitificação da experiência estética, enquanto ela estiver consciente de seu significado. Ele trabalha com a intersecção entre teoria literária e música. Outro importante representante da Nova Musicologia é Gary Tomlinson21 com a sua busca dos significados diante da série de narrativas históricas que cercam o tema musical. Em

objeto de estudo e da sensibilidade estética. Suas teorias exerceram enorme influência, principalmente nos EUA. (SADIE, 2000, p. 831) 19

Morgan, Robert P. Historiador, compositor e teórico, recebeu seu Ph.D. pela Universidade de Princeton e está atualmente na faculdade de música na Universidade de Yale. Autor dos livros: Anthology of Twentieth-Century Music e Twentieth-Century Music: A History of Musical Style in Modern Europe and America. (Disponível em http://books.wwnorton.com/books/Author.aspx?id=11140) 20

Kramer, Lawrence (Filadélfia, 1946). É um musicólogo e compositor norte americano. Seu trabalho acadêmico está intimamente associado com o humanismo como orientação cultural da Nova Musicologia. Estudou na Universidade da Pennsylvania e na Universidade de Yale. Mudou-se para Universidade de Fordham, em Nova York, onde leciona desde 1978 e agora ocupa o cargo de professor de inglês e música. (Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Lawrence_Kramer_(musicologist)) 21

Tomlinson, Gary. É um musicólogo e teórico cultural conhecido por sua amplitude interdisciplinar. Seu ensino, palestras e estudos têm variado através de um conjunto diversificado de interesses, incluindo a história da ópera, o pensamento musical europeu do começo da era moderna, as práticas, as culturas

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sua obra, “A Teia da Cultura: contexto para a musicologia”, Tomlinson une a história e a antropologia, sendo influenciado por Clifford Geertz22, importante estudioso da antropologia simbólica e da interpretação das culturas, onde existe a necessidade do antropólogo saber entender seu objeto de estudo “sobre os ombros daqueles a quem tal cultura pertence” (GEERTZ, -1973/2015, p. 212). Imagem 6: A Teia Cultural.

Fonte: Disponível em “http://cliffordgeertz.tumblr.com/”.

Geertz compartilha seu conceito de semiótica com Weber, acreditando que "o homem é um animal suspenso em teias de significado que ele mesmo teceu" (GEERTZ, 2015, p. 5). musicais das sociedades indígenas americanas, jazz e música popular, teoria crítica e da filosofia da história. Seu livro mais recente, A Million Years of Music: The Emergence of Human Modernity (Zona / MIT, 2015), leva a coalescência evolutiva das capacidades musicais humanas como o ponto de ancoragem para uma investigação sobre a formação de nossa modernidade. Ele se troneou Ph.D. em 1979 pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Atuou como professor na Universidade da Pensilvânia e faz parte do corpo docente em tempo integral na Universidade de Yale. (Disponível em http://yalemusic.yale.edu/people/gary-tomlinson) 22

Geertz, Clifford James (São Francisco, 23 de agosto de 1926 — Filadélfia, 30 de outubro de 2006). Foi um antropólogo estadunidense, professor emérito da Universidade de Princeton, em Nova Jérsei, nos Estados Unidos. Seu trabalho no "Institute for Advanced Study" de Princeton se destacou pela análise da prática simbólica no fato antropológico. Foi considerado, por três décadas, o antropólogo mais influente nos Estados Unidos. (Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Clifford_Geertz)

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No Brasil, a Nova Musicologia vem se desenvolvendo ao lado dos estudos sobre a música popular, que hoje em dia ultrapassam em quantidade àqueles dedicados à música dita erudita, porém são muitas vezes feitos por sociólogos, filósofos e antropólogos, mais do que pelos próprios musicólogos, ainda muito atrelados aos padrões eurocêntricos dos cursos de graduação em música no Brasil. Entre os musicólogos brasileiros se destaca o professor Régis Duprat23, que tem formação em história e desenvolve um intenso trabalho para o desenvolvimento do enfoque hermenêutico nas análises musicais. Duprat comenta a seguir: A concepção dualista de teoria e prática vem sendo superada como resíduo neokantiano desde o início do século XX, quando tendências constituídas pelas filosofias intuicionista (Bergson), fenomenológica (Husserl) e existencial (Kierkegaard) passaram a cultivar a indissociabilidade do universo categorial (propositivo) e existencial (compreensivo-interpretativo). Já passado um século, ainda nos vemos envolvidos, especialmente nos campos artísticos, por tendências obsoletas. Vinculadas a essas concepções dualistas que, inclusive, têm sustentado as matrizes curriculares dos cursos de música nas universidades. (DUPRAT, 2007, p. 08)

Por fim, Duprat termina seu artigo valorizando a capacidade de interpretação e de adaptação estrutural para cada caso a ser estudado, pois nenhuma estrutura fixa consegue dar conta de tantos objetos diferentes, multiculturais e híbridos, logo, estaríamos “condenados à interpretação, à Hermenêutica”.

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Duprat, Régis. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1961) e doutorado em Música pela Universidade de Brasília (1966). Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo (USP). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Música, atuando principalmente nos seguintes temas: história da música brasileira, musicologia, brasil período colonial, história da cultura e hermenêutica. (Disponível em https://uspdigital.usp.br/tycho/CurriculoLattesMostrar?codpub=57A2D5A035C5)

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3. DIREITOS AUTORAIS E HIBRIDISMO

No campo dos direitos autorais dentro do mercado fonográfico, questões como originalidade e autenticidade entram em um conflito direto com a padronização da música feita pelo mercado. A partir disso, muitas confusões e disputas pela posse legítima dos direitos de determinadas expressões artísticas acabam vindo à tona, especialmente quando vemos um hibridismo entre música dita pop e músicas regionais tradicionais, ou ultra vanguardistas, no campo da contracultura. O fato é que o mercado fonográfico atual não apenas engloba todo que é tipo de manifestação sonora, mas também dita os seus padrões estéticos, qualificando as manifestações sonoras de acordo com a sua capacidade de venda. Sem dúvida alguma, a quantidade de fonogramas vendidos é a principal característica que o mercado analisa para decidir o que é bom ou o que é ruim para o consumidor. Tudo isso ocorre num sistema onde a reprodução em massa, seja pelas rádios, pela TV e atualmente pelas mídias eletrônicas, influencia diretamente nesta venda excessiva. Em outras palavras, as qualidades que fazem uma música dar lucro, o grande objetivo do capitalismo, não mais remetem exclusivamente à criatividade do compositor e ao talento dos músicos executantes, ela depende primordialmente da capacidade dos empresários e produtores de tornarem tal manifestação sonora num objeto de consumo rentável. Sendo assim, os produtores da indústria fonográfica acabam buscando nivelar e padronizar as músicas para o que acreditam ser o mais facilmente assimilável pelo público. Cabe aos produtores atuais tornarem as músicas fáceis de serem escutadas e reproduzidas. Para isso, eles usam o padrão estético da música comercial, muito baseado nos recursos eletrônicos dos modernos estúdios de gravação, e com isso conseguem assimilar as mais variadas manifestações culturais, sejam elas orientalistas, folclóricas regionais, religiosas e até mesmo música de protesto ou que vão de enfrentamento ao mercado. Tudo isso acaba sendo absolvido pela indústria cultural, sendo que tais expressões sonoras mais autênticas são analisadas, qualificadas e adaptadas para adquirirem capacidade de oferecer lucro aos produtores, adequando tudo o que lhes é oferecido para os padrões do mercado. Apesar da força dos grandes produtores fonográficos, muitos artistas tentam fugir das regras pouco definidas do mercado, por outro lado, outros artistas autênticos mais isolados nem sequer tem a consciência de como esta indústria funciona, mas invariavelmente todos estes acabam no anonimato, caso se recusem a submeterem suas obras aos grandes produtores. Num primeiro momento, a internet parecia oferecer a possibilidade plena de um artista mostrar seu

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trabalho sem os ditames do mercado fonográfico, mas vemos no momento atual um grande domínio da rede por grandes corporações que já se apropriam da nova forma de comunicação. Sendo assim, muitos artistas independentes que começam a se destacar no meio virtual, rapidamente são englobados por uma grande gravadora e colocam a sua obra ao controle do mercado. Isso acontece de uma maneira geral com quase toda a produção alternativa que vemos eclodir na internet, mas invariavelmente a maioria acaba sendo englobada por uma corporação maior que fará da obra de arte um objeto capaz de ser reproduzido em massa para gerar lucro. As grandes gravadoras podem até ter sofrido com o começo da era digital, mas rapidamente se adaptaram ao mercado virtual e estão novamente a prosperar, assediando os artistas, agregando valores e definindo gêneros, muitas vezes aleatórios ou fantasiosos, para todo o conteúdo que está disponível online.

3.1. Um caso de repente Sobre a questão dos direitos autorais, alguns trabalhos escritos por musicólogos mostram o quão complicado é esta valoração da obra de arte, assim como é complexo atribuir a autenticidade de fenômenos musicais a determinadas pessoas. No caso de fenômenos mais tradicionais, como os da música de raiz, Travassos24 (2013) mostra uma disputa legal onde músicos repentistas, portadores de uma cultura oral legítima, mostram-se incomodados por verem os símbolos de suas representações sonoras tocadas por um artista engajado com a indústria cultural. No caso, trata-se do cantor Zé Ramalho usando a cultura dos repentes em sua música altamente lucrativa. Travassos procura mostrar o ponto de vista dos cantoresrepentistas, que são adeptos das melodias cantadas e do improviso, e o ponto de vista dos músicos ligados ao mercado da música popular, que fazem uso da legislação relativa à autoria. No primeiro caso, é importante destacar que a performance dos repentistas só pode ser feita ao vivo para poder ter o seu verdadeiro significado mantido, pois envolve improvisação e

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Travassos, Elizabeth. Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1977), obteve o mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1984) e o doutorado em Antropologia Social na mesma instituição (UFRJ, 1996). É professora associada do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde ministra disciplinas, orienta e desenvolve pesquisas em etnomusicologia e antropologia da música. Realizou pós-doutorado na Queen's University Belfast (2008). Desde o início dos anos 1980 dedica-se, principalmente, aos estudos antropológicos da música. Suas principais linhas de pesquisa são: a etnografia das músicas de tradição oral no Brasil, os estudos da oralidade, as políticas de documentação e patrimônio cultural, as coleções e acervos relacionados à música popular, as ideologias da arte e o pensamento sobre música e cultura. Foi Secretária da Associação Brasileira de Etnomusicologia entre 2002 e 2004. (Disponível em http://www2.unirio.br/unirio/cla/ivl/professores/elizabeth-travassos)

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adaptação ao meio. Já no caso do Zé Ramalho, apesar da similaridade melódica e harmônica com a música dos repentes, a sua música é gravada e reproduzida em massa, logo é desprovida de improviso e mesmo em performances ao vivo ela é repetida. Acusado de plágio, a cantor se defende argumentando de que ouvia tais melodias na infância, pois aquele meio estava em volta dele, o qual admirava. Imagem 7: Arte de J. Borges presente na contracapa do LP Nordeste, Cordel, Repente e Canção, de Lula e Zé Ramalho.

Fonte: Disponível em “http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=40065”.

Como os repentistas executam a sua música em uma coletividade, a legislação não conseguiu dar conta do caso deles, pois não é capaz de definir uma autoria específica. Travassos (1996, p. 14) chama de “contradição insolúvel” a tentativa, por parte dos repentistas tradicionais, de resolver o paradoxo existente entre a incorporação do discurso dominante da autoria e direitos recorrentes, com a tentativa de “jogar o jogo da indústria fonográfica e do mercado da música popular”, pois fica a dúvida de que isso seria uma estratégia ou uma

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rendição. Para Bourdier25 (apud Travasso, 1996, p. 14), “ a resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora. Tal é o paradoxo dos dominantes, e não há escapatória. ” Sendo assim, fica claro para nós a dificuldade em interpretarmos a cultura popular sem ocorrer em erros que foram muito comuns nas pesquisas feitas sobre folclore. Além disso, fica claro de que nós só tomamos conta de determinados valores inconscientes que possuímos quando nos deparamos com a legislação que rege nossas práticas artísticas, mas que pouco conhecemos, pois só a encontramos no contato direto com estas questões de práticas culturais e musicais.

3.2. Uma história de novela Outro trabalho similar ao de Travassos foi feito por Camp26 (Revista USP - 2008) ao analisar o uso da música tradicional de um grupo afro brasileiro por parte de uma telenovela. Trata-se da música ritual Kuenda, usada na abertura da novela Xica da Silva. De acordo com Camp (2008), “Kuenda é uma das várias expressões comunicativas usadas nas canções rituais cuja origem não é portuguesa, e que são conhecidas quase que apenas pelos habitantes do distrito”. No caso, trata-se do distrito de Milho Verde, em Minas Gerais, sendo que a Kuenda tem uma relação ritual com o festejo católico de Nossa senhora do Rosário. Este caso é diferente do anterior, sobre os repentistas, pelo fato da música Kuenda não ser improvisada, pois não se altera a cada apresentação, sendo uma música que pouco mudou com o tempo, sofrendo apenas pequenas adaptações feitas pelos líderes do grupo ritual. Como a canto ritual Kuenda remete a africania, sendo este um termo relacionado ao hibridismo entre a cultura bantu com a cultura indígena e europeia no Brasil, acabou sendo usado na abertura de uma novela que trata do tema dos negros escravizados no Brasil. Levando-se em conta que a Kuenda é um canto ritual, sem autor definido, a legislação de direitos autorais não consegue garantir nenhum

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Bourdieu, Pierre Félix (Denguin, França, 1 de agosto de 1930 — Paris, França, 23 de janeiro de 2002) foi um sociólogo francês. De origem campesina, filósofo de formação, foi docente na École de Sociologie du Collège de France. Desenvolveu, ao longo de sua vida, diversos trabalhos abordando a questão da dominação e é um dos autores mais lidos, em todo o mundo, nos campos da antropologia e sociologia, cuja contribuição alcança as mais variadas áreas do conhecimento humano, discutindo em sua obra temas como educação, cultura, literatura, arte, mídia, lingüística e política. Também escreveu muito sobre a sociologia da Sociologia. O mundo social, para Bourdieu, deve ser compreendido à luz de três conceitos fundamentais: campo, habitus e capital. (Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Bourdieu) 26

CAMP, Marc Antoine. Estudou musicologia histórica, antropologia e Etnomusicologia na Universidade de Zurique. Ele continuou seus estudos no Brasil (Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, Universidade de São Paulo USP). Suas publicações abrangem questões de educação musical e a troca de património cultural imaterial. (Disponível em https://www.hslu.ch/de-ch/hochschule-luzern/ueberuns/personensuche/profile/?pid=782)

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direito para os participantes desta tradição, pois além disso, eles são caboclos, brancos e mulatos, não são índios legítimos, geneticamente falando, o que lhes garantia uma proteção legal, já que há legislação brasileira clara neste caso. Sobre isso, Camp afirma a seguir. A noção de ‘conhecimento tradicional’, conforme se apresenta na lei dos direitos autorais, pode ser interpretada de várias maneiras. Em relação ao conhecimento das populações indígenas brasileiras, o termo pode ser entendido de maneira extensa, pois, no que se refere à proteção constitucional especial dada a elas, determinou-se que suas expressões musicais fossem protegidas de todo e qualquer uso não-autorizado por pessoas de fora da comunidade indígena. No caso de ‘Kuenda’, seus portadores não pertencem a nenhuma comunidade indígena; portanto, não tem direito à proteção. Em suma, a legislação brasileira atual não dá nenhuma proteção efetiva às canções como ‘Kuenda’. Embora o uso desta em espaços públicos locais seja restringido e delimitado pela lei costumeira, a lei dos direitos autorais torna essa canção disponível a todos fora de sua tradição local por julgá-la de ‘domínio público’. Dessa forma pode ser apropriada por quem quer que seja e também perturbar a estabilidade do sistema cultural local. (CAMP, 2008, 84)

Apesar disso, Camp mostra que existe, desde a década de 60, uma parcial defesa internacional da música tradicional por parte da UNESCO e da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). Imagem 8: Cartaz da Novela Xica da Silva.

Fonte: Disponível em “http://centauroalado.blogspot.com.br/2013/08/xica-da-silva-verdadeira-historia.html”.

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Na Convenção de Berna foram tomadas ações para proteger parcialmente a música tradicional, ela definiu que “uma nação signatária pode, por meio de uma agência nacional competente, exercer os direitos relativos aos ‘trabalhos’ anônimos e não publicados, caso se presuma que a nacionalidade do autor é daquele país” (CAMP, 2008, p.84). Seria necessário que todos trabalhassem o conceito de “Consentimento previamente informado” (CAMP, 2008, p.85) e que este seja aplicado por instituições autônomas relacionadas a proteção das “expressões tradicionais autônomas” (ECTS). O empasse não está apenas na atribuição de autoria, mas está no reconhecimento do trabalho cultural, estando este de acordo com as convenções da Unesco sobre patrimônio cultural intangível e diversidade cultural, e no melhoramento econômico dos representantes legítimos e praticantes destas culturas tradicionais, ou seja, no direito dos intérpretes. Por estes motivos, Camp (2008, p. 89) propõe uma reavaliação da legislação dos direitos autorais, especialmente no que diz ao prazo de 70 anos após a morte do criador para definir o que é ou não domínio público, que para ele poderia ser diminuído no intuito de que os portadores das tradições não considerassem a cessão de suas músicas para “transformações criativas” tão injusta. Porém, ele mesmo afirma que as forças econômicas e políticas envolvidas neste processo tornam esta opção irrealizável.

3.3. Na contramão da contracultura Longe do campo da música tradicional estão várias outras manifestações sonoras, a maioria situada em espaços urbanos e que podem entrar dentro de um conceito de “contracultura”. Imagem 9: Cartaz do Woodstock (1969).

Fonte: Disponível em “http://mundodoshippies.blogspot.com.br/”.

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Este termo, contracultura, é oriundo dos anos 50 e 60 e abrange a geração Beat, o movimento Hippie, o estilo musical rock e chega até o movimento punk, além de estar associado com liberdade sexual, uso de psicotrópicos, contestação ao consumismo, pensamento crítico, entre outros. Para Pereira (1992, p. 20) contracultura é um “fenômeno datado e situado historicamente” sendo que ela contesta e enfrenta a ordem vigente, mostrando um “caráter profundamente radical e bastante estranho às forças mais tradicionais de oposição a esta mesma ordem dominante. ” Tomando a forma de “crítica anárquica”, a contracultura “rompe com as regras do jogo”, fazendo oposição a determinada situação, aparecendo rotineiramente na história e sempre representando um papel de “revigorador da crítica social”. Um artigo realizado por Freitas (2013) analisa um fenômeno contra cultural onde um compositor, chamado Vinicius Enter, busca uma identidade sonora que não lhe remeta aos padrões da Indústria Cultural. Portador de uma técnica de composição apurada, que utiliza bem os recursos tecnológicos modernos, Enter lançou seu disco, chamado Dedo Indicador, apenas no meio virtual, inicialmente pelo site My Space. Ele usou recursos da Lei de Incentivo à Cultura, mas mesmo assim enfrentou problemas financeiros para a finalização do disco que nunca foi lançado em formato CD. Apesar da internet oferecer muitos recursos alternativos e coletivos para a divulgação de obras musicais, o compositor não investe na autopromoção de forma eficaz. Além disso, seu processo de composição é constante e a mixagem e edição das partes gravadas por músicos é essencial para a sua concepção criativa, como veremos a seguir. Vinicius Enter explica que não usou samplers e quase nenhum efeito eletrônico, todos os instrumentos foram captados de forma acústica, depois processados no computador. A inumanização através do reprocessamento de sons orgânicos é uma maneira de borrar a identidade performática dos demais participantes do disco. Portanto, no instante em que o autor manipula os sons gravados com intuitos estéticos para além do idealismo sonoro comum desde o sistema elétrico de gravação, dando a sensação de que os sons foram produzidos por máquinas em vez de humanos, o trabalho dos músicos vira matéria prima de sua arte. (FREITAS, 2013, p. 312)

Para Feitas, Enter trabalha com uma música com características de trilha sonora, como se estivesse a construir imagens sonoras. Além disso, revela-se uma “tendência ao atonalismo, entendido aqui como conceito de descentramento da escuta musical. ” (FREITAS, 2013, p. 314). Para definir o processo de criação de Enter, Freitas utiliza o conceito de “ultra autor” que seria aquele que “encara os papéis dos demais participantes não como interferências de uma espécie de parceria, na qual o grupo de apoio exercesse seus próprios interesses, mas como peças do seu jogo”. (FREITAS, 2013, p .315). Assim, ser um ultra autor parece oferecer ao compositor a segurança da posse de todos os direitos autorais relacionados, mas para Freitas, no momento atual da pirataria online, isso seria incoerente.

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3.4. As possibilidades da internet Dentro da contracultura do ambiente online, existem manifestações moldadas pelas características do meio virtual. Entre elas, tem se destacado um tipo de áudio visual especificamente feito para o youtube e chamado de YTP (Youtube Poop) ou YTPBR (Youtube Poop Brasil). Este tipo de linguagem se caracteriza por montagens de áudio e vídeo, misturando cenas e imagens colhidas da televisão, como programas de auditório, telejornais, propagandas, filmes e desenhos animados. Uma das características destes áudios visuais chamados de poop (cocô em inglês) é o humor. A técnica usada é a de programação por computador, usando vários tipos de softwares específicos para edição audiovisual, sendo que a maioria dos autores não tem formação na área musical, mas sim na de ciências da computação. Um dos maiores nomes deste tipo de linguagem no Brasil publica seus vídeos sob o pseudônimo de Mestre 3224, sendo que o seu principal “sucesso”, é o YTP Seu Madruga Will Go On, que possui mais de um milhão e meio de visualizações. Imagem 10: Cena do YTP Seu Madruga Will Go On.

Fonte: Disponível em “http://2013.olhardecinema.com.br/movie/seu-madruga-will-go-on/”.

O Mestre 3224 já chegou a ser considerado morto após ter tirado todas as suas publicações da internet, inclusive apagando seu perfil nas redes sócias, porém, reapareceu, para alívio de seus fãs que achavam que ele havia se suicidado. Tal suicídio foi apenas virtual, e desta maneira ele reencarnou online para mais novos vídeos. Em entrevista cedida para o blog Ainda estou aqui, em 30/08/2012, os Mestre 3224 afirma que tomou está atitude apenas por achar engraçado. Nesta entrevista ele fala de sua relação com outros poopers, deixando claro que é um dos mais velhos da turma e que o anonimato também é por pura diversão. Sobre a linguagem do YTP do Mestre 3224, em especial ao já clássico Seu Madruga Will Go On, que deu fama ao seu autor, ele afirma o seguinte. YTP para mim, serviu para ocupar uma parte do meu cérebro, que era preenchida antes pelas brincadeiras de criança. Ficar velho inclui “parar com brincadeiras”, e eu não acho

27 legal a ideia de parar de brincar. Eu respeito quem analisa YTP num ponto de vista mais técnico, mas não me meto com isso. Na época em que eu comecei, quando um pooper postava um vídeo bem trabalhado, isso era comemorado e todos celebravam aquilo. Hoje em dia, cresceu muito o número de poopers. Cada um compensa suas faltas da forma que pode. Por exemplo, eu antigamente não sabia bem bolar piadas em poop, então compensava com efeitos visuais e montagens... Ultimamente, surgiu um novo gênero de pooper, que compensa suas faltas com “discurso”. Alguns nem fazem poop, mas sempre dizem o que pensam sobre os mesmos. E isso ecoa como se fosse um vídeo postado. Mas enfim, eu reconheço que tive sorte, e que meus vídeos tiveram acessos, etc, isso foi muito leal; mas superioridade é um sonho. Todo mundo sonha em ser superior em alguma coisa. E eu não tenho sonhos. (Mestre 3224 - entrevista disponível em http://aindaestaaqui.blogspot.com.br/2012/08/entrevista-com-mestre3224.html).

Diante disto, a princípio podemos constatar o fato de que as recentes tecnologias de programação, aliadas ao ambiente virtual, ajudam a criar novas linguagens que atingem um público grande, porém, muito específico no que diz respeito ao uso das tecnologias. Os vídeos YTP costuma incomodar, quase causando náuseas nas pessoas que entram em contato com eles pela primeira vez, mas para aqueles que entendem o funcionamento de softwares e estão familiarizados com a linguagem da computação, tais vídeos geram um verdadeiro fascínio técnico e estético. O humor destes é muito sutil, quase subliminar, pois são usados centenas de arquétipos tirados da televisão, a grande fornecedora de matéria prima. No mais, inicialmente considerado Naif (ingênuo) por seus primeiros analistas, atualmente o YTP é uma grande fonte de renda para os seus autores descompromissados, sendo também uma febre mundial entre jovens, nerds ou não, mas que são ligados ao mundo da computação de alguma maneira. Por incialmente o YTP se tratar de pura diversão, aliada a exercícios de programação, pode-se considera-los como uma contracultura orgânica, relativamente ingênua, quase sem intenção, mas evidentemente provida de crítica política e social, sendo que esta é presente mais na matéria prima usada nos vídeos, do que na intenção humorística dos autores. Bem, o humor sempre acompanha crítica social e vice e versa. O simples uso de símbolos como o “Seu Madruga” e demais personagens do seriado Chaves, já representam um pouco da crítica social contida no próprio seriado. Também existem sátiras com outros personagens reais e muito conhecidos, como o Silvio Santos, o Faustão, a jornalista Raquel Scherazade, a Xuxa, além de muitos políticos e celebridades vítimas de bulling virtual pelos “jovens” com menos de 40 anos (nerds ou não) programadores dos YTP’s. Apesar disto, este tipo de bulling virtual parece ser bem visto por todos os fãs desta linguagem e críticos dos meios de comunicação em massa, pois trata-se da essência contracultural do YTP. É interessante que os benefícios financeiros destes não vem através dos direitos autorais, e sim devido ao número de visualizações de seus vídeos, que são uma verdadeira febre mundial,

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um fenômeno novo, típico do início deste século e que já possui uma marca história para as primeiras décadas da era digital. Seus autores produzem a mais pura e legítima arte contemporânea, tocando a fundo nos sentimentos de milhões de pessoas por todo o planeta. Enquanto a academia ainda discute e tenta entender a vanguarda de mais de cem anos atrás, tentando repeti-la com ar de novidades em eventos como a Bienal de Música Contemporânea, naifs não músicos e anônimos como o Mestre 3224 dão uma aula de vanguarda para compositores experimentais, raramente ouvidos, e isto tudo deve-se à simples e pura busca de diversão.

3.5. O hibridismo sócio cultural

A pergunta de Hesmondhalgh27 (2000), sobre como devemos conceber as diferenças na música, nos remete a entender que a análise destas pode nos aproximar mais da compreensão do hibridismo musical contemporâneo e da sua influência nas questões de autoria. Hoje em dia, um ouvinte pode ser fã da mais tradicional música de repente, ao mesmo tempo que admira linguagens de programação para computador. Isto deve-se ao nosso hibridismo cultural contemporâneo, gerado pela era da informação, onde podemos ter acesso a quase tudo através de um computador pessoal. Compositores como Luciano Berio, em suas sinfonias, faz do plágio a sua matéria prima, colando excertos orquestrais famosos e criando obras complexas extremamente artísticas. O mesmo fazem compositores ditos comerciais ou Pop’s, como o Zé Ramalho, mas a condição social dos plagiados, que são pobres, cria um empasse ético diante do lucro que o famoso cantor obtém graças a indústria cultural. Já no caso dos Kuenda, o plágio realizado ajudou a comunidade a ganhar visibilidade, o que gerou um pequeno lucro para eles. Por outro lado, Vinicius Enter, em sua postura como ultra autor, força uma contracultura, mas não consegue se desapegar de seus direitos dentro da indústria cultural, o que o deixou totalmente à margem da própria contracultura. Por outro lado, os falsos Naifs Poopers vivem à margem da cultura e da própria contracultura, pois lucram graças a absoluta falta de intenção 27

Hesmondhalgh, David. Professor de Mídia e Cultura na Universidade de Leeds (Inglaterra). Autor de diversos livros como: Western Music and its Others: Difference, Representation and Appropriation in Music (2000), Popular Music Studies (2002), The Cultural Industries (2012) e Culture, Economy and Politics: The Case of New Labour (2015).

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com o lucro, o que não significa que eles não queiram lucrar, mas nenhuma pressão capitalista os impediria de criarem as suas obras, pois é uma brincadeira, ou até mesmo um exercício, mas que atingem milhões de pessoas. Todo este hibridismo tem revolucionado o pensamento de muitos analistas culturais, cada vez mais perdidos devido aos seus padrões ainda fixados no racionalismo do século XX. Diante disso, penso no que Adorno diria após observar um YTP, ou após a audição do disco Dedo Indicador de Enter, ou mesmo diante de um repentista a improvisar com seu pandeiro, ou quem sabe o que ele discutiria com o brasileiríssimo Zé Ramalho em um bate papo informal. Acredito que Adorno ficaria um tanto confuso, mas talvez pudesse associar a mistura de todas estas linguagens com uma certa capacidade de tolerância que um ouvinte eclético pode ter. Se entendermos que a tolerância evita a barbárie, a discussão estimulada por Hesmondhalgh sobre ética e problemas estéticos suscitados pelo uso de amostragem digital de músicas não-ocidentais e étnicas no trabalho de dança contemporânea, parece ficar cada vez mais paradoxal. Talvez, insistir nos conceitos éticos herdados de tempos anteriores à globalização seja um tanto quanto ingênuo, sendo que compositores como Debussy, ao usar o orientalismo em sua música, ou artistas plásticos como Pablo Picasso, ao se inspirar nas máscaras africanas, já tiveram estes insights criativos cheios de hibridismo logo nos primórdios da Indústria Cultural. Talvez o situacionista Guy Debord28 tivesse sido um pouco mais otimista se tivesse tido acesso à internet, pois assim veria a Indústria Cultural virando contra si mesma, produzindo uma contracultura dentro da sua mais pura essência, a exemplo dos poops virtuais, que satirizam quase sem querer a toda esta Sociedade do Espetáculo. Cada vez mais o dito “experimental” se torna menos racional e mais intuitivo, pois o hibridismo sócio cultural induz a isso devido aos milhares de símbolos, signos e arquétipos aos quais os jovens atuais são diariamente submetidos através da mídia. Sobre isso, Hesmondhalgh afirma: Estudos de música popular, em contraste com seu tratamento crítico de empréstimo por astros pop ocidentais de estilos não-ocidentais, tendem a celebrar a proliferação de novas formas musicais, baseados no encontro dos migrantes não-ocidentais com linguagens musicais ocidentais e tecnologias. Aqui, o pressuposto é que no mundo, nas últimas décadas, pelo menos, criatividade musical tem sido marcada pela atividade 28

Debord, Guy. (Paris, 28 de dezembro de 1931 — 30 de novembro de 1994) foi um escritor francês. Foi um dos pensadores da Internacional Situacionista e da Internacional Letrista e seus textos foram a base das manifestações do Maio de 68. A Sociedade do Espetáculo é o trabalho mais conhecido de Guy Debord. Em termos gerais, as teorias de Debord atribuem a debilidade espiritual, tanto das esferas públicas quanto da privada, a forças econômicas que dominaram a Europa após a modernização decorrente do final da segunda grande guerra. Ele faz a crítica, como duas faces da mesma problemática, tanto ao espetáculo de mercado do ocidente capitalista (o espetacular difuso) quanto o espetáculo de estado do bloco socialista (o espetacular concentrado). (Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Guy_Debord)

30 frenética e incessante de diálogo musical e sincretismo. As palavras-chave são "diferença, diversidade e diálogo" (HESMONDHALGH, 2000, p. 25)

Diante disto, diferença, diversidade e diálogo são palavras que todos os cidadãos do atual mundo globalizado deveriam ter na ponta de suas línguas, superando assim os limites criativos impostos por nações e instituições religiosas. Hesmondhalgh cita Stokes devido a sua preocupação e desconforto ao analisar música e violência juntas diante das questões de etnicidade e identidade, sendo que a “música tem desempenhando um papel de liderança na socialização disciplinar e no condicionamento ideológico promovido por regimes extremistas” (STOKES apud HESMONDHALGH, p.31). Apesar de existirem pontos de vista prevalecentes, onde a música é principalmente um meio de imaginação dos emergentes, ela “reforça e marca os limites das categorias sócio culturais existentes, evolvendo-se nas classificações dominantes de etnia, classe e gênero, em particular na articulação cultural do nacionalismo. ” (IDEM). Porém, existem várias perspectivas complexas que tentam distinguir a música de identidade pessoal da música de identidade coletiva. Sendo a música onipresente no mundo e divulgada em massa, é comum hoje em dia que várias identidades musicais abitem um mesmo indivíduo, o que pode gerar várias contradições, mas estas já não são recebidas com tanta estranheza como em tempos anteriores. Hesmondhalgh (p.34) criou algumas categorias para distinguir articulações estruturais. A primeira trata de quando a música funciona para ‘criar uma identificação puramente imaginária’, que só existe na ‘fantasia coletiva ou individual e assim age sorrateiramente’, podendo ou não construir novas identidades. Outro tipo de articulação estrutural é quando o “imaginário musical funciona para prefigurar, cristalizar ou potencializar culturas emergentes e formas reais de identidades socioculturais ou alianças.” Além desta, ele fala de quando a música pode “reforçar, realizar ou memorizar indentidades sociculturais” de maneira muitas vezes limitada e redundante, enganjando-se com a promiscuidade do hibridismo. Por fim, a quarta articulação proposta por Hesmondhalgh trata de quando as representações musicais de identidade sociocultural chegam para serem reinterpretadas e debatidas discursivamente, sendo reinseridas como modos para formar mudanças sócio culturais. A intenção do autor é expandir teoricamentea as noções de indentificação, sendo estas não apenas como algo sempre imaginário. Revela-se a intenção de distinguir os tipos de indentificação imaginária e discursivas através da própria música, suas diferentes articulações e efeitos. Uma das principais questões que surgem nestas análisas de identidades musicais e seus possíveis efeitos sócio culturais é se a apropriação musical é uma forma de dominação. Também ficam em aberto as questões relativas à recepção e formas como os significados são ancorados

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pelos ouvintes. Dificilmente um ouvinte vai assimilar a música da maneira que o compositor gostaria. Na maioria das vezes, isso nem chega perto de acontecer, pois os criadores fazem parte de apenas um fragmento de todo o processo que implica na “imaginação, composição, produção, divulgação, desempenho e recepção” (IDEM, p. 45). Sendo assim, a globalização, aliada às novas tecnologias de produção e divulgação, equilibra as diferenças entre várias culturas e grupos sociais, levando os estudiosos a análises mais abertas e híbridas, buscando o não fechamento de questões a cerca das variadas possibilidades de escuta. Resta sabermos até que ponto o hibridismo musical e cultural pode ajudar a diminuir a bárbarie, tão temida pelos pensadores da década de 60. O fato é que a globalização parece ser uma viagem sem volta e os humanos estão se dando conta tardiamente e a passos de tartaruga que são todos moradores do mesmo planeta, sendo que cada vez mais os diferentes serão iguais e os iguais serão autêncios em suas individualidades. O coletivo nada mais é do que a soma de individualidade e toda manifestação autêntica deve ser respeitada para que aja paz entre os humanos.

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CONCLUSÃO

Após a análise destes diversos casos, podemos perceber a importância de superarmos os limites das estruturas de pesquisa conhecidas para desenvolvermos novas abordagens que deem conta do aspecto hibrido e multicultural da sociedade atual e de suas produções artísticas. Cada caso deve ser analisado com parâmetros próprios, pois só assim um objeto de estudo será compreendido em nosso atual contexto hibrido e plural. A hermenêutica pode ser importante aliada para a adaptação das estruturas tradicionais de análise de uma obra musical, assim como é indispensável a abordagem interdisciplinar, pois o excesso de especialização, tão importante no começo do século XX e na era do positivismo, atualmente não dá conta da compreensão de um objeto de estudo marcado pelo hibridismo estético e pelo multiculturalismo. Sendo assim, é necessário individualizar os objetos de estudo, compreendendo a sua importância social para determinada comunidade, sem preterir ou exaltar culturas por um impulso legitimador. Não há mais base filosófica para determinarmos se uma cultura é superior ou inferior a outra, tão pouco seria correto dizer que são todas iguais. Cada cultura tem as suas características e seus estudos devem se embasar muitas vezes em estruturas que ainda não foram definidas e devem ser construídas através do exercício hermenêutico e da pratica interdisciplinar. Como diz um jargão popular, “cada caso é um caso”. Todas as culturas são legítimas e não cabe os musicólogos, ao estado, ao setor privado e nem aos meios de comunicação definirem atributos qualitativos para julgar obras de arte e manifestações culturais autênticas.

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