A sociologia do campo jurídico de Pierre Bourdieu: aspectos estruturais e psíquicos envolvidos na produção do direito enquanto ciência dogmática

June 1, 2017 | Autor: G. Eidelwein Silv... | Categoria: Habitus, Legal Sociology, Legal Field, Libido Sciendi, Cathexis
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A SOCIOLOGIA DO CAMPOO JURÍDICO DE PIERRE BOURDIEU: ASPECTOS ESTRUTURAIS E PSÍQUICOS ENVOLVIDOS NA PRODUÇÃO DO DIREITO ENQUANTO CIÊNCIA DOGMÁTICA Álvaro Filipe Oxley da Rocha1, Gabriel Eidelwein Silveira2 RESUMO. A sociologia do campo jurídico de Pierre Bourdieu: aspectos estruturais e psíquicos envolvidos na produção do Direito enquanto ciência dogmática. Trata-se de um esforço no sentido de sistematizar os principais conceitos da teoria social de Pierre Bourdieu – espaço social, capital, habitus, campo e poder simbólico –, demonstrando algumas das principais relações conceituais entre esse autor e Freud, principalmente a relação entre illusio e libido, e a comparação da “função simbólica” nesses autores. Por fim, essa mesma teoria é defendida como um marco teórico adequado para revelar as “razões práticas” – interesses pessoais dos quais muitas vezes não se tem a consciência – que engendram a concorrência interna do campo jurídico, cujo efeito principal é a produção de um Direito com pretensão de cientificidade, de pureza e de plenitude conceitual. Palavras-chave: sociologia do direito; campo jurídico; habitus; illusio; catexia. ABSTRACT. Pierre Bourdieu´s sociology of the Law field: structural and psychic aspects involved in Law production as dogmatic science. It´s an effort in the direction of systemizing the main concepts of Pierre Bourdieu´s social theory – social space, capital, habitus, field and symbolic power –, demonstrating some of the main conceptual relationships between the author and Freud, mainly the relationship between illusio and libido, and the comparison of the "symbolic function" in these authors. Finally, the same theory is defended as a theoretical landmark appropriated to unmask the "practical reasons" – many times, unconscious personal interests – produced by the internal competition in the Law field, whose main effect is the production of the Law with the pretension of being scientific, pure and conceptually auto sufficient. Key Words: Law and sociology; Law field; habitus; illusio; cathexis. INTRODUÇÃO Esse artigo é o resultado de um esforço para sistematizar os conceitos fundamentais da teoria sociológica de Pierre Bourdieu e suas implicações para o caso do Direito. Bourdieu elaborou a maioria de seus conceitos, notadamente “habitus” e “campo”, para dar conta da lacuna teórica existente entre os clássicos (Marx, Durkheim e Weber), desenvolvendo uma teoria unificada e consistente, sem compromissos ecléticos e empiricamente sustentada (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003). Desde o



Este texto foi publicado originalmente no Livro “Aprendizado, Descoberta e Inovação em Iniciação Científica”, FEEVALE, 2005. 1 Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Ciência Política pela UFRGS. Professor e pesquisador da UNISINOS. Endereço: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Centro de Ciências Jurídicas. Av. Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo. CEP 93022-000. E-mail: [email protected]

início, Bourdieu recusou a “figura do intelectual” – como “filósofo rei”, teórico puro que identificava na figura de Sartre (BOURDIEU, 2005) –, esforçando-se para romper com as divisões fictícias entre o trabalho teórico e o trabalho empírico, assim como entre as abordagens subjetivistas e objetivistas (BOURDIEU, 2004c) O próprio conceito de habitus surgiu de uma inquietação empírica, a partir das dificuldades de Bourdieu para compreender, através das abordagens consagradas, as estratégias matrimoniais dos cabilas (BOURDIEU, 2000). O refinamento gradual dos conceitos, é certo, levou a uma teoria bastante geral do mundo social. As análises que Bourdieu realizou a respeito da sociedade francesa dos anos 70, segundo ele próprio, podem ser generalizadas aos Estados Unidos e ao Japão, pois tais sociedades possuem os mesmos critérios fundamentais de estruturação de seus respectivos espaços sociais, a saber, o capital econômico e o capital cultural (BOURDIEU, 1996). Sabe-se, contudo, que Bourdieu recusava a idéia da “grande teoria” (BOURDIEU, 2005). Concede-se também que seus conceitos não podem ser concebidos ou aplicados diretamente em contextos diversos daqueles nos quais e para os quais os mesmos foram construídos. Mas não se ignora que, em muitos aspectos, o seu modo de proceder científico – e nem tanto os conceitos – possam ser aplicados mais ou menos universalmente (tal ponto foi muito bem elaborado por SILVA, 1995). Ainda assim, iminentes estudiosos de Bourdieu não deixaram de utilizar expressões como “teoria geral dos campos” (CHAMPAGNE in BOURDIEU, 2004e) ou “teoria do mundo social” (PINTO, 2000). É conhecida a concepção de Bourdieu sobre a pedagogia da sociologia (veja-se a elucidativa palestra de SILVA, 1995): para ele dever-se-ia ensinar o ofício mostrando “como fazer”, de modo a inculcar o habitus sociológico – que, como tal, deve ser mais prático que teórico. Todavia, o objetivo deste trabalho é justamente o de sistematizar os principais conceitos dessa complexa teoria (capítulo 1) 2

No momento da apresentação do paper, o autor cursava o bacharelado em Direito da UNISINOS, o qual já concluiu. Atualmente é mestrando em Sociologia pela UFRGS. E-mail: [email protected] Site: www.gabrielsilveira.cjb.net

– demonstrando suas principais recusas teóricas, ainda que isso implique uma enunciação dogmática –, para, após, demonstrar as suas vinculações com a psicanálise (o problema da legitimação, tratado no capítulo 2) e suas implicações para o Direito (a teoria do campo jurídico, desenvolvida no capítulo 3). A enunciação mais ou menos dogmática dos conceitos, no capítulo 1, não constitui, em si, uma violação do pensamento do autor, pois ele próprio procedeu desse modo, por exemplo, nos textos Espaço social e espaço simbólico (in Bouridieu, 2006), Espaço social e poder simbólico (in BOURDIEU, 2004c), ou ainda em Os campos como microcosmos relativamente autônomos (in BOURDIEU, 2004e). Além disso, a reconstituição da dinâmica real de um campo jurídico específico, histórica e geograficamente situado, não é a intenção aqui, já que não se trata de um estudo empírico – mas sim da apresentação de uma teoria. As considerações a esse respeito, no capítulo 3, referem-se às elaborações de Bourdieu (2004d) sobre o campo jurídico abstratamente concebido, suficientemente autonomizado e polarizado, tal como ele funciona na França (que é quase o seu “tipo ideal”). No Brasil, esse tema foi tratado empiricamente por ROCHA (2002) e ENGELMANN (2001 e 2006), dentre outros – porém, esses trabalhos não serão analisados aqui. Por fim, o capítulo 2 desenvolve uma possibilidade que Bourdieu (2006) meramente indica, mas não aprofunda, que é a aproximação dos conceitos sociológicos e psicanalíticos. Tal foi analisado em detalhe em outro lugar (SILVEIRA, 2005). Os estudos de Bourdieu acabaram desvendando a realidade arbitrária de espaços culturais (como os “campos” do Direito, da ciência, do jornalismo, etc.) que se estruturam a partir de “consensos arraigados”, ainda que pouco razoáveis ou até irracionais, sobre os quais não se pode falar, sob pena de pôr em questão, bem ao modo do psicanalista, o sentido da existência dos agentes que não são nada

fora desses espaços. Não é sem motivo que Bourdieu causou tantos “inconvenientes” e fez tantos “inimigos” em nome da “petição de princípio” característica de uma ciência rigorosa.

1. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA SOCIOLOGIA DE BOURDIEU

1.1. Espaço social. BOURDIEU (1996 e 2004c) concebe a sociedade como um “espaço social” semelhante a um espaço geográfico, sob a forma de uma estrutura de posições relativas, que só podem ser definidas umas em relação às outras, pela sua exterioridade mútua (“o real é relacional”; “as relações são mais reais que os sujeitos”). Mas as distâncias entre as posições no espaço social não são distâncias geográficas; são distâncias propriamente sociais, quer dizer, “distinções socialmente significantes”. Numa primeira dimensão, o espaço social é estruturado e hierarquizado pelo volume “global” de capital nos patrimônios específicos (BOURDIEU, 1996). Dizer que alguém possui grande volume de capital eqüivale a dizer que essa pessoa ocupará uma posição na parte superior do espaço; e, inversamente, dizer que alguém é pobre em capital significa dizer que este alguém ocupará uma posição social inferior. Nas sociedades mais desenvolvidas, como os Estados Unidos, o Japão ou a França, o espaço social é estruturado, numa segunda dimensão, segundo dois princípios de hierarquização principais, o “capital cultural” e o “capital econômico” (idem, ibidem). O maior peso relativo ou importância do capital cultural em relação ao capital econômico, em um patrimônio específico, significa uma maior proximidade com a região “esquerda” do espaço. Assim também, ao contrário, o maior peso relativo do capital econômico, num patrimônio, leva a uma maior proximidade da parte “direita” do plano

(idem, ibidem). Para os fins de constituição do espaço social, “direita” e “esquerda” são meramente convenções (equivalem mais ou menos a “esquerda” e “direita” no sentido político dessas posições).

Figura 1 – Diagrama estilizado do “espaço social”, cujo original é detalhado em BOURDIEU (1996). 1.2.Capital. O “capital” que estrutura a sociedade hierarquicamente pode ser definido como “qualquer propriedade” a qual os homens reconheçam “valor”. Ele pode existir tanto no “estado objetivado”, como no caso do capital econômico, das credenciais, dos certificados de competência e demais títulos escriturais; como no “estado incorporado”, que é o caso do capital cultural, em suas diversas espécies, artístico, científico, lingüístico, jurídico, etc. O capital funciona para os agentes como “trunfos” dos quais os seus detentores podem se utilizar para “jogar”, mediante suas estratégias, frente às situações socialmente definidas (BOURDIEU, 2004d). Mas a eficácia dos tipos de capitais não se restringe ao poder estrito que as suas espécies particulares lhes conferem estritamente. O “poder de compra”, por exemplo, não é o único nem o mais importante tipo de poder que o detentor de capital econômico exerce. (Ele não compra as pessoas que o admiram). Mais que isso, o capital econômico funciona como “capital simbólico”, quando é

percebido por agentes dotados de “categorias de percepção” capazes de fazer-lhes reconhecer “valor” nos detentores desse capital (idem, ibidem). É por isso que os ricos são considerados “os grandes”, e freqüentemente podem se apresentar como os mais “bonitos e inteligentes”. 1.3.Habitus. Os habitus são “sistemas de disposições” incorporadas a partir da pertença a posições no espaço social ou a universos sociais específicos que se podem isolar teoricamente do espaço social (“campos”). Tomando como base empírica a sociedade francesa dos anos 70, BOURDIEU (1996) conseguiu demonstrar estatisticamente a relação estrita que existe entre as práticas habituais prováveis e as posições específicas no espaço social.

Figura 2 – Diagrama estilizado do espaço das práticas relacionadas às posições relativas no “espaço social”. O original é detalhado em BOURDIEU (1996). “O espaço social tal como descrevi acima apresenta-se sob a forma de agentes dotados de propriedades diferentes e sistematicamente ligadas entre si: quem bebe champanha opõe-se a quem bebe uísque, mas estes também se opõe , diferentemente, a quem bebe vinho tinto; mas quem bebe champanha tem muito mais chances do que quem bebe uísque, e infinitamente mais do que quem bebe vinho tinto, de ter móveis antigos, praticar golfe, equitação, freqüentar teatro de bulevar, etc. (...). (...) O espaço social tende a funcionar como um espaço simbólico, um espaço de estilos de vida e de grupos de estatuto, caracterizados por diferentes estilos de vida” (BOURDIEU, 2004c, p.160).

Os habitus funcionam como princípios práticos estruturadores da ação e do pensamento sobre o mundo social e natural e, como tais, são categorias de classificação e, assim, de divisão. Dizer que as pessoas agem por habitus significa dizer que a sua ação social é movida por um princípio “interno”, mas que foi “socialmente constituído”, e é inconsciente de si (BOURDIEU, 2004d). Com a noção de habitus, BOURDIEU (2004d) pretende demonstrar que o agir social não é movimentado imediatamente por um “arbitrário social externo”, como sugeria DURKHEIM. (2001). Tampouco a ação social seria movimentada pelo “sentido visado interno” que o ator social atribui a sua própria ação, conforme pensava WEBER (1999). Na verdade, o arbitrário social é incorporado sob a forma de habitus, que funcionam autonomamente no “nível prático” (BOURDIEU, 1996), sem serem conscientes de si, e que são capazes de produzir práticas objetivamente ajustadas às diversas posições sociais ou aos diversos campos, sem que exista uma intenção consciente de atingir esses resultados (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003). O habitus funciona autonomamente quando encontra as condições sociais ideais de sua realização, isto é, as mesmas condições sociais que o produziram (BOURDIEU, 2004c), desenrolando-se em práticas que tendem a reproduzir a estrutura social objetiva de que ele é o produto (DOMINGUES, 2001). Por fim, dizer que o habitus funciona no nível prático é dizer que ele é mais como um “senso prático” ou como um “sentido do jogo” do que como um cálculo racional. As práticas que o habitus produz são mais próximas da jogada intuitiva do tenista que da explicação “racional” produzida pelo seu técnico para dar-lhe inteligibilidade (BOURDIEU, 2004c). Com essa sensível distinção, foi possível superar o equívoco de WEBER (1999) de atribuir o sentido da ação social à representação consciente do agente. Do mesmo modo, ainda que admitida a origem social ou externa do habitus, bem ao modo de DURKHEIM (2001), não mais se poderia ignorar o seu funcionamento interno e autônomo. Na maior parte dos casos, o agente é inconsciente das condições sociais da produção de

seus habitus; e o “sentido subjetivo” que ele atribui a sua ação oculta um “sentido objetivo” que ele não pode nem quer conhecer. O primeiro sublima o segundo. Voltaremos a esse ponto no capítulo 2. 1.4.Campo. No interior do espaço social é possível recortar “regiões” que se estruturaram em torno de algum tipo de capital especializado, sendo que a essas regiões BOURDIEU (1996) chamou “campos”. Assim, existem os campos econômico, artístico, científico, religioso, político, jurídico, etc. Todo campo é um espaço estruturado de acordo com o maior ou menor volume do “capital específico do campo” existente nos patrimônios particulares dos agentes que a ele pertencem. Os ricos no capital específico do campo ocupam as melhores posições; e os pobres, as piores. O “campo” é um lugar de hostilidades, de concorrência pela apropriação do capital específico do campo, que se produz e se valoriza na e pela própria concorrência (BOURDIEU, 2004b). Os vários agentes que concorrem e lutam, uns contra os outros, por um objetivo comum a todos eles, estão de acordo pelo menos quanto ao objeto da luta e a existência do campo (ROCHA, 2005). Todos almejando as mesmas coisas, acabam por “valorizar” as coisas almejadas por um efeito típico de mercado “simbólico”. Além disso, a noção de campo desconstrói a distinção meramente formal entre o “conflito” e o “consenso” (BOURDIEU, 2004c), paradigmatizados pelas perspectivas de Marx e de Durkheim respectivamente. O conceito de “campo” faz lembrar de todas aquelas situações em que o consenso se constrói a partir de uma situação de conflito, na medida em que o dominante se sobressai ao dominado, impondo-lhe os pensamentos (“ideologia”). O funcionamento desse mecanismo será analisado no capítulo 2. “Uma das minhas intenções, no uso que faço desses conceitos, é abolir a distinção escolar entre o conflito e o consenso, que nos impede de pensar todas as situações reais em que a submissão consensual se realiza no e pelo conflito (...). Mas, numa certa época, foram tão exaltadas as lutas dos dominados (...) que acabou sendo esquecida uma coisa que todos aqueles que viram de perto sabem perfeitamente, isto é, que os dominados são dominados também em seu cérebro” (BOURDIEU, 2004c, p.36).

A eficácia simbólica da luta que se trava no campo é justamente a de legitimar o produto interno do campo perante os seus concorrentes (ROCHA, 2005). No caso do campo jurídico, o “capital jurídico”, que é o “discurso jurídico dominante”, é gerado e legitimado pela própria estrutura do conflito. E os juristas passam a pensar o mundo social e natural em temos “estritamente jurídicos”, porque é essa a illusio que o campo produz e inculca (BOURDIEU, 2004d), constituindo-se no preço do “direito de entrada” no campo (ROCHA, 2005). Estabelecido que os habitus dos agentes são produzidos a partir da pertença às diversas posições hierárquicas do campo, pode-se compreender as suas estratégias: os ricos no capital específico tendem a ser conservadores; e os pobres, subversivos. Em todos os campos, os dominantes estão comprometidos com a continuidade, a identidade, a reprodução e assim por diante. Os dominados, por sua vez, são como recém-chegados que estão interessados na descontinuidade, ruptura, diferença, revolução (BOURDIEU, 2004b) e que muitas vezes precisam contar com apoio de poderes externos, como a mídia, para se legitimar (ROCHA, 2005). O pólo de concentração do capital específico do campo, onde ficam os “ricos”, é aquele que valoriza e defende os “princípios internos” da profissão, sendo chamado por isso de pólo “cultural” ou “puro”. Ao contrário, o pólo dos “pobres”, onde se engendram estratégias voltadas à “legitimação externa”, é chamado pólo “comercial” (BOURDIREU, 1997). Mas a lógica de oposição entre os veteranos consagrados e os novatos pretendentes não é absoluta. Os pretendentes sabem que precisam provar sua competência (“confiabilidade”) para os superiores, que um dia irão promovê-los, nomeálos, aceitá-los, enfim consagrá-los. Por isso, a maioria deles esforça-se em “imitar” as atitudes dos membros mais antigos do campo, reproduzindo suas práticas, até adquirirem os habitus (construídos através de um trabalho intenso, mas vividos como “dons naturais”) que o campo exige, contribuindo assim para a “reprodução” do próprio campo na história.

Por fim, a noção de campo, como microcosmo relativamente autônomo, escapa às alternativas das leituras externalistas (pelo contexto econômico, por exemplo) e internalistas (hermenêuticas, por exemplo) (BOURDIEU, 2004e). Como visto, tal noção realmente reclama a sua sistematização em uma “teoria geral”. 1.5.Poder simbólico. Para superar o conceito weberiano de “poder”, que identificava as causas da obediência na representação consciente do sujeito dominado (WEBER, 1999), BOURDIEU (2004d) propõe o conceito de “poder simbólico”, pretendendo referir “um poder que supõe o reconhecimento, isto é, o desconhecimento da violência que se exerce através dele” (BOURDIEU, 2004c). O poder simbólico “é uma forma transformada, irreconhecível, transfigurada e legitimada das outras formas de poder” (BOURDIEU, 2004d) e sua eficácia reside especificamente no fato de que ele é capaz de realizar uma função de dissimulação e de transfiguração, numa palavra, de eufemização, que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força, fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente” (idem, ibidem). Nesse sentido, a violência simbólica “é a forma branda e enrustida assumida pela violência quando esta não pode manifestar-se abertamente” (BOURDIEU, 2004b). Ela é, enfim, “uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la” (BOURDIEU, 1997). A “eficácia simbólica” de todos os tipos de capitais, essa eficácia de dissimular a arbitrariedade de sua distribuição desigual, se efetiva sempre que o habitus reencontra as condições sociais do seu campo de produção, fazendo com que os agentes percebam e reconheçam os capitais em questão, atribuindo-lhes “valor” (BOURDIEU, 1996). Por esse mecanismo, todas as construções sociais arbitrárias se apresentam aos principais interessados, sejam eles beneficiados ou prejudicados, como

“evidentes”, “óbvias”, “naturais”, portanto, justas e legítimas. O mecanismo sócio-psíquico, pelo qual essa naturalização é colocada em funcionamento, constitui o objeto do capítulo seguinte. 2.RELAÇÕES CONCEITUAIS ENTRE BOURDIEU E FREUD

2.1.Libido, cathexis, interesse e illusio. BOURDIEU (1996) sustenta que todos os campos engendram um tipo de “interesse” particular, ligado ao fato de se pertencer ao campo e associado a uma forma de conhecimento prático interessada que aquele que não faz parte do campo não possui (BOURDIEU, 2004c). O interesse é o “investimento”, no sentido psicanalítico do termo, nos jogos de um campo qualquer, mesmo naqueles que aparentam, segundo o ponto de vista dos espectadores externos, serem os espaços mais desinteressados ou desinteressantes do mundo. “Ao contrário do interesse natural, aistórico [sic.] e genérico dos economistas, o interesse é para mim o investimento em um jogo, qualquer que seja ele, que é a condição de entrada nesse jogo. Há, portanto, tantos campos quantas são as formas de interesse. O que explica que os investimentos que alguns fazem em certos jogos, no campo artístico, por exemplo, apareçam, como desinteressados quando percebidos por alguém cujos investimentos, cujos interesses estão aplicados num outro jogo, no campo econômico, por exemplo (esses interesses econômicos podem ser vistos como desinteressantes por aqueles que colocaram seus investimentos no campo artístico). Em cada caso, é preciso determinar empiricamente as condições sociais de produção desse interesse, seu conteúdo específico, etc.” (BOURDIEU, 2004c, p.65).

Tendo defendido o seu uso da noção de interesse, BOURDIEU (1996) sustenta a possibilidade de substituí-la por noções mais rigorosas, como a de illusio, investimento, ou até libido. O interesse nos jogos do campo, ou a illusio, de que Bourdieu fala, é a “atribuição de importância” ao jogo – isto é, o próprio conceito freudiano de “catexia” (BRENNER, 1975) –, que só pode ocorrer na prática quando dadas as suas condições sociais, quer dizer, quando exista um campo de jogo, que fomente o interesse nesse jogo, que é a condição de existência do jogo. “Em seu famoso Homo ludens, Huizinga observa que, a partir de uma etimologia falsa, illusio, palavra latina que vem da raiz ludus (jogo), poderia significar estar no jogo, estar envolvido no jogo, levar o jogo a sério. A illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar. De fato (...) a palavra interesse teria precisamente o significado que atribuí à noção de illusio, isto é, dar importância a um jogo social, perceber que o que se passa aí é importante

para os envolvidos, para os que estão nele (...); é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos (...)” (BOURDIEU, 1996, p.139).

Quando Freud estudava a mecânica dos processos psíquicos, percebeu que a libido poderia se ligar (“ser investida”) à imagem mental de objetos externos (BRENNER, 1975). É exatamente o que acontece quando os agentes investem cateticamente nos jogos de um campo qualquer. Conforme CABRAL e NICK (2003), ao definir a libido, Freud viria a aproximar-se bastante do “conceito energético” defendido por Jung, que considerava a libido como sendo a “energia psíquica”, isto é, a intensidade do processo psíquico ou o seu “valor” psicológico, definido por certos “rendimentos” psíquicos. Essa energia psíquica, chamada aqui de libido, é armazenada no id no período anterior ao desenvolvimento do ego (FREUD, 1975b). No entanto, FREUD (1975a) alerta ao fato de que é muito difícil saber algo sobre o comportamento da libido no id e no superego, pois tudo o que sabemos sobre ela relaciona-se com o ego, onde ela se concentra já nos primeiros estágios da vida (catexia “do ego” ou “narcísea”). A libido, enquanto energia psíquica, pode vincular-se a objetos específicos, através de um tipo de canal, assim como, analogamente, as amebas lançam seus “pseudópodos” para englobar as partículas que são o seu alimento (FREUD, 1975b). O “vínculo” estabelecido entre a libido (“energia psíquica”) e a imagem de objetos externos contida no ego é chamado por Freud de “catexia”. Quanto mais forte for a catexia, mais “importante” será o objeto, do ponto de vista psíquico, para o sujeito (BRENNER, 1975). Segundo CABRAL e NICK (2003), “catexia” significa literalmente “canal”; e remete à idéia de que “determinada pulsão é canalizada para um objeto específico” (idem, ibidem). O maior emprego do termo verifica-se na psicanálise, para designar o depósito da libido no próprio ego (“libido narcísea” ou “catexia do ego”) – que corresponde ao processo mais evidente nas crianças, mas que perdura por

toda a vida –, bem como o vínculo da libido com a imagem mental de objetos externos (“catexia objetal”) (idem, ibidem) – que corresponde ao processo mental típico do adulto desenvolvido. BOURDIEU (1996) sustenta a possibilidade de se aproximarem os conceitos da sociologia e os conceitos da psicanálise, para demonstrar que a “libido biológica”, de que fala Freud, pode diferenciarse em “libido social”. Ao que parece, a libido social é a mesma libido objetal, quando o objeto a que ela se vincula não são meramente “pessoas” (como no caso do “amor” ou da “paixão”, em seu sentido vulgar), nem sequer “objetos” (como o ídolo ou o totem), mas sim os “jogos sociais” que se engendram num “campo” específico. Em última análise, é o investimento catético nos jogos do campo que vai fazer com que o sujeito “incorpore” os habitus que o campo inculca, permitindo que ele reconheça seus “capitais”, seus “discursos” e sua ideologia específica, enfim, tudo o que ele precisa para desenvolver o “senso prático” da dinâmica interna do jogo e participar satisfatoriamente do mesmo. 2.2.A função simbólica. A legitimação de uma realidade arbitrária é a eficácia propriamente simbólica que só pode ser obtida na medida em que uma visão de mundo, que é a visão de mundo de uma “classe” dominante, seja generalizada, isto é, tomada como sendo a visão de mundo de todas as classes. É a essa idéia simples que Marx pretendia remeter quando sugeria a noção de “ideologia” (ARON, 2000). BORUDIEU (2004a), porém, dá um tratamento diferenciado à questão da legitimação das desigualdades sociais. Para ele, uma “chamada à ordem” (“isso não é para nós” ou “isso é coisa de intelectual” ou “de burguês”) só é recebida e aceita como legítima porque ela é “ambivalente” o suficiente para ocultar o fato de ser uma “chamada à ordem”. A fórmula de Bourdieu poderia ser enunciada nos seguintes termos: o reconhecimento da legitimidade de uma ordem qualquer deriva do desconhecimento de sua arbitrariedade (BOURDIEU, 2004b).

Para explicar esse fenômeno, BOURDIEU (2004c) utiliza referido conceito de “poder simbólico”, poder desconhecido enquanto tal e, portanto, reconhecido como legítimo (ver ponto 1.5). Em relação a esse conceito e a tudo que diz respeito às “eficácias simbólicas” é possível fazer uma segunda aproximação com conceitos freudianos. Em primeiro lugar, Bourdieu tem presente a idéia, tomada de CASSIRER (apud AUGRAS, 1980), de que a cultura só existe efetivamente sob a forma de símbolos, isto é, de um conjunto de significantes/significados (MICELI in BOURDIEU, 2004a). Em segundo lugar, a “função” propriamente simbólica, tanto em Freud quanto em Bourdieu, não é meramente a função de “representação” dos objetos simbolizados, mas primordialmente a função de “ocultação” desses mesmos objetos, porque, por algum motivo, é necessário que o indivíduo os desconheça.

“Bem no início de seus estudos sobre os sonhos e os sistemas neuróticos, Freud (1900) descobriu que alguns elementos dos sonhos ou dos sintomas tinham um significado relativamente constante de um paciente para o outro, significado diferente do habitualmente aceito, e, mais estranho ainda, desconhecido para o próprio paciente. Por exemplo, duas irmãs quase sempre representavam nos sonhos alguns pensamentos por seios, uma viagem ou ausência significava morte, dinheiro simbolizava fezes, e assim por diante. Era como se houvesse uma linguagem secreta que as pessoas usassem inconscientemente, sem serem capazes de compreendê-la conscientemente; ao vocabulário dessa linguagem, por assim dizer, Freud denominou de símbolos. Em outras palavras, no processo primário dinheiro pode ser empregado como um símbolo, isto é, como equivalente total de fezes, viagem pode ser utilizada como morte, etc. Essa é, na verdade, uma situação notável e não é de surpreender que tal descoberta tenha suscitado grande interesse, bem como grande oposição. É possível, certamente, que tanto o interesse quanto a oposição se devessem em grande parte ao fato de muitos objetos e idéias representados simbolicamente serem proibidos, isto é, de natureza sexual ou “suja”” (BRENNER, 1975).

Decorre que os símbolos, tanto em Freud quanto em Bourdieu, têm três características principais: (a) significado estruturado; (b) objeto arbitrário; e (c) ignorância quanto à realidade arbitrária do objeto. Vejamos: (a) Os símbolos são estruturados no sentido de que seu significado é constante “de pessoa para pessoa”. “O símbolo é independente dos fatores condicionantes individuais. O indivíduo não pode investir no símbolo um significado diferente do que é atribuído por qualquer outra

pessoa” (NAGERA, s.d.), pois o sistema simbólico reconhecido pelos habitus é gerado a partir da pertença a uma posição social semelhante ou a um mesmo campo social (BOURDIEU, 1996). (b) A essência do objeto simbolizado é arbitrária, no sentido de que ela é “diferente da aceita”, “torpe”, “suja”, etc. Essa é uma das razões pelas quais o símbolo precisa dissimular a realidade do seu objeto, para não ferir o ego ou para não tocar nos fundamentos do campo, que é o seu “pedestal das crenças últimas” (BOURDIEU apud ROCHA, 2005). Na psique, por exemplo, os “mecanismos de defesa”, como a “repressão” ou a “negação”, ocultam e fazem esquecer “conteúdos julgados inconvenientes” (AUGURAS, 1980, p.53). A coisa esquecida é representada por símbolos, ocultando desejos recalcados no inconsciente, por não serem aceitos no consciente (idem, ibidem). Na sociedade, os símbolos ocultam a verdade arbitrária de uma “ordem” qualquer, fazendo-a reconhecer como legítima (BOURDIEU, 2004b). (c) Por fim, o significado dos símbolos é inconsciente, desconhecido pelo próprio sujeito interessado. Os símbolos são usados para “representar na mente consciente conteúdos mentais que, de outro modo, não seria consentido o ingresso na consciência (...). A simbolização é um meio final de expressão do material reprimido” (NAGERA, s.d.). Para maior detalhamento sobre o conceito de “função simbólica”, vide ROCHA e SILVEIRA (2006).

3.DISCUSSÃO: POR UMA SOCIOANÁLISE DO JURISTA PROFISSIONAL

É possível se aplicar toda a teoria precedente ao caso do Direito, para traçar um marco teórico adequado a socioanálise do jurista profissional. O objetivo do presente capítulo é justamente o de apresentar tal marco teórico, tal como concebido pelo autor. O processo de formação do campo jurídico está associado ao processo de autonomização do corpo de juristas em relação ao príncipe (BOURDIEU, 2004c). Na medida em que surge e se mobiliza um corpo de profissionais socialmente autorizados para o trabalho de interpretação do Direito, são dadas as condições sociais para o estabelecimento do campo jurídico. Como todo campo, o jurídico se estrutura em torno de um “núcleo duro” de sentido (ROCHA, 2005), segundo a mesma lógica da ortodoxia da Bíblia (idem, ibidem), ao qual os agentes devem se devotar “religiosamente”, pois constitui o preço do “direito de entrada” no campo. O “investimento” num campo qualquer é vinculante o bastante para criar as “ilusões” sem as quais o agente não poderia funcionar dentro do campo; e a concorrência pelo monopólio da competência jurídica pressupõe a fé na existência e no valor dessa competência como “capital jurídico”; por fim, a existência de um campo, em que se concorre pela obtenção de posições às quais estão associadas vantagens sociais específicas (no caso do Direito, o reconhecimento popular aos títulos de “doutor” ou de “excelentíssimo senhor”), é o bastante para que os agentes se “interessem” em participar do jogo. Ao pagarem o direito de entrada, passando pelos rituais de passagem específicos do campo (curso de Direito, exame da ordem, concurso para função jurídica pública, etc.) os agentes adquirem lentamente o “senso prático” do jogo, em razão do qual podem fazer exatamente o que se espera deles, ainda que não sejam “cínicos” ou “calculistas” (BOURDIEU, 2004b). Eles geralmente não o são, pois agem movidos por seus habitus (vide ponto 1.3). O campo jurídico é definido abstratamente por BOURDIEU (2004d) como o lugar da concorrência pelo monopólio de dizer o Direito, entendido como a boa distribuição, o nomos ou a boa

ordem, onde se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar de maneira mais ou menos livre ou autorizada um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social, segundo a crença interna do campo, que os seus agentes se esforçam para inculcar mesmo externamente. Esse campo se estruturou como tal a partir do empenho de todo o corpo de juristas no sentido de criar um conjunto de doutrinas com uma racionalidade e uma linguagem próprias, com pretensão de autonomia em relação à lógica da política ou da moral (idem, ibidem). Segundo ROCHA (2005), o treinamento específico dos juristas reforça a sua crença na possibilidade de existência de um espaço social e mental onde se efetive a imparcialidade, aonde não cheguem as pressões externas, sendo que a tentativa de Hans Kelsen de criar uma “teoria pura do direito” não passa do limite ultra-consequente do esforço nesse sentido (BOURDIEU, 2004d). A teoria do campo jurídico implica em duas recusas teóricas muito importantes (BOURDIEU, 2004d), a saber, a do “formalismo” (leitura internalista) e a do “instrumentalismo” (leitura externalista). Os juristas em geral são adeptos do “formalismo” e concebem o Direito a partir de seus conceitos e métodos internos, decorrendo daí a “ilusão da pureza” das formas jurídicas (idem, ibidem). Já os “sociólogos” de tradição marxista são adeptos do “instrumentalismo” e tendem a ver no Direito um “reflexo direto” das relações de força existentes (idem, ibidem), como se o Direito fosse uma máquina (“superestrutura”) colocada à disposição da “classe dominante” para oprimir a “classe dominada”. Ambas essas leituras ignoram a realidade do “campo jurídico”, como espaço relativamente autônomo dentro do qual se produz o Direito enquanto “sistema simbólico” e “capital de autoridade” específico, um lugar que não é mecanicamente determinado, e onde se produzem efeitos “sociais” dos quais não se tem a consciência – já que o “racionalismo formal” do jurista profissional dificilmente

coloca o problema dos efeitos. Sobre o “campo” como microcosmo relativamente autônomo, vide BOURDIEU (2004e) A pertença ao campo jurídico faz com que os agentes adquiram, mais cedo ou mais tarde, os habitus (“sistemas de disposições incorporados”) sem os quais não poderiam “funcionar” no campo. Os habitus jurídicos são como “atitudes comuns, afeiçoadas, na base de experiências familiares semelhantes, por meio de estudos de direito e da prática das profissões jurídicas”, as quais “funcionam como categorias de percepção e de apreciação que estruturam a percepção e a apreciação” dos problemas que são colocados diante dos juristas (BOURDIEU, 2004d). Frente a um problema prático qualquer, os juristas logo tratarão de verificar se o mesmo pode ou não ser colocado em termos jurídicos ou, dito em linguagem jurídica, se o problema cabe ou não nas “molduras” do “suporte fático”. Essa postura “faz com que conflitos e argumentos de toda a espécie permaneçam aquém da lei como demasiado triviais, ou fora da lei como exclusivamente morais” (idem, ibidem). A forma dogmática caracteriza-se por ser uma forma que “diz sempre a verdade” (LEGENDERE, s.d.). “Há uma virtude na própria forma. E a maestria cultural é sempre uma maestria das formas (...). Todos esses jogos de formalização, os quais, como se vê pelo eufemismo, são igualmente jogos com a regra do jogo e, desse modo, jogos duplos, são obra de virtuoses. Para ficar em regra, é preciso conhecer a regra, os adversários, o jogo como a palma da mão. Se fosse preciso dar uma definição transcultural da excelência, eu diria que ela é o fato de se saber jogar com a regra do jogo até o limite, e mesmo até a transgressão, mantendo-se sempre dentro da regra” (BOURDIEU, 2004c, p.99).

Em princípio, todo o campo tem dois pólos, sendo um deles o mais “cultural”; e o outro, o mais “comercial” (BOURDIEU, 1997). No pólo “cultural” autônomo situam-se os “produtores” que recriam o Direito segundo as fórmulas reconhecidas internamente ao campo (“ortodoxia”), tendo por “consumidores” os seus próprios “colegas” (idem, ibidem): é o caso da “maioria” dos magistrados dos Tribunais Superiores, dos grandes mestres, dos advogados reconhecidos como “exemplares”, dos promotores mais antigos, etc. No pólo “comercial” heterônomo situam-se os produtores que, não possuindo os códigos e os capitais “habituais” exigidos pelo campo, tendem a buscar a notoriedade

externa com uma probabilidade sensivelmente maior que os primeiros (idem, ibidem). Essa tensão é clara, em analogia, na oposição que existe entre a música “erudita” e todas as formas de música comercial; entre a alta costura e a grife de street wear; entre os jornais que produzem views e os jornais que produzem news; entre a arte de vanguarda e a arte clássica; entre o teatro de vanguarda e o teatro de bulevar; entre a vanguarda consagrada e a nova vanguarda; e assim também, no caso específico, entre o Direito dogmático e o Direito chamado “alternativo”; entre o direito civil e o direito do trabalho; entre os juizes e os professores; e assim por diante. Em todos os campos, os dominantes são defensores da autonomia e estão comprometidos com a continuidade da ordem estatuída (BOURDIEU, 2004b) sobre a qual está assentado o seu poder. Os dominados, por sua vez, são mais subversivos (idem, ibidem), chegando muitas vezes a “expor” a verdade intocável do campo, tipicamente, através da mídia (ROCHA, 2002). Mas a estratégia mais comum é a do “silêncio cúmplice”, em busca do reconhecimento dos superiores, tendo em vista ser aceito entre eles, o que equivale à promoção social (idem, 2005). Obter e utilizar externamente instrumentos de pressão ou mesmo de abalo das hierarquias internas ao campo significa ser o agente excluído pelos demais, interessados em conservar os mecanismos conhecidos e por eles acessíveis de distribuição do capital do campo. No caso do campo jurídico, a intromissão de pressões externas do campo político, freqüentemente veiculadas via mídia, por exemplo, tende a ser ignorada pelos agentes, pois o acesso ao campo não está disponível para agentes que não disponham das condições exigidas pela lógica interna para reconhecimento e interação, o que significa o mesmo que se submeter aos interesses e à avaliação pelos integrantes do campo (idem, ibidem). Em decorrência desse mecanismo autopoiético, os juristas só percebem como “sérias” ou “dignas de respostas” as críticas dirigidas contra as suas teses jurídicas “em si” e “por si”, tomando por

“inconcebível” a idéia de se colocar o problema da moral, da economia ou da política nas discussões, por exemplo, de um processo judicial. Para o jurista profissional, o “sentido de equidade dos nãoespecialistas” aparece como “desqualificado” em face de suas construções puras (BOURDIEU, 2004d). Segundo Bourdieu, “(...) os juristas, para se livrarem da justiça fundada no sentimento de eqüidade (...) devem estabelecer leis formais, gerais, fundadas em princípios gerais explícitos, e enunciadas de modo a fornecer respostas válidas para todos os casos e para todo mundo (para qualquer x) (...). Um direito formal assegura a calculabilidade e a previsibilidade (ao preço de abstrações e simplificações que fazem com que o julgamento formalmente mais conforme às regras formais do direito possa estar em total contradição com os juízos do senso de eqüidade: summum jus summa injuria)” (BOURDIEU, 2004c, p.105).

A questão de saber o porquê da tendência “conservadora” dos juristas mais bem colocados dentro do campo deve ter em conta que a ocupação dos melhores postos pressupõe o “engajamento na tarefa de manter e valorizar a força do campo específico” (ROCHA, 2005). É por isso que “esses agentes não podem ser pessoalmente acessíveis, e suas manifestações serão raras, ambíguas e lacunosas” (idem, ibidem). Os discursos desses agentes, por isso mesmo, devem ser “ortodoxos” o bastante para se conservarem como “capitais” de autoridade capazes de manter as posições dos agentes que neles se ancoram (idem, ibidem). As investidas contra a “ortodoxia”, ainda que baseadas em teses muito mais razoáveis, mais racionais ou até mais “justas”, são percebidas dentro do campo como “heresias”. Uma aproximação propriamente sociológica revela que os atos de jurisprudência só podem distinguir-se dos atos de pura força dos políticos na medida em que se apresentem “como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos” (BOURDIEU, 2004d), segundo um pensamento jurídico puro, conforme uma lógica subsuntiva, que é sem dúvida uma ilusão provocada e reforçada pelo investimento no campo. “Para quem não participe da adesão imediata aos pressupostos inscritos no próprio fundamento do funcionamento do campo que a pertença ao campo implica (illusio), é difícil crer que as construções mais puras do jurista, sem mesmo falar dos atos de jurisprudência,

obedeçam à lógica dedutivista que é o “ponto de honra espiritualista” do jurista profissional” (BOURDIEU, 2004d, p.222).

O Direito consagra uma ordem de distribuição ao consagrar uma visão desta ordem, que é a visão do Estado, garantida pelo Estado, atribuindo aos agentes, com uma probabilidade muito desigual, uma identidade garantida, um estado civil e, sobretudo, poderes ou capacidades socialmente reconhecidos, mediante a distribuição dos direitos de utilizar esses poderes, títulos escolares ou profissionais, certificados, etc., e sanciona todos os processos ligados à aquisição ou à retirada desses poderes (BOURDIEU, 2004d), transformando diferenças de fato em distinções oficialmente reconhecidas (BOURDIEU, 2004b), quer dizer, em desigualdades de direito. Mas jamais ocorre aos juristas profissionais colocarem seus problemas nesses termos: para eles, será sempre uma questão de “aplicação” de um Direito abstrato, concebido a priori e impessoalmente, conforme o paradigma da “teoria do fato jurídico” (MELLO, 2001). Numa palavra, será sempre um trabalho baseado nessa ilusão. Por fim, uma última ressalva: cumpre destacar que a teoria dos “campos” de Bourdieu – conforme elaborada acima –, não pode ser aplicada diretamente ao caso brasileiro sem algumas precauções prévias, tendo em vista que o autor desenvolveu seu aparato conceitual tomando por objeto a realidade empírica específica da sociedade francesa dos anos 70. Em primeiro lugar, em países como o Brasil, em que há ainda o predomínio de um ranço da moral medieval (da fidelidade pessoal), ainda é decisivo o peso do “capital social” em face dos capitais “específicos” produzidos pelos campos “específicos”. Em segundo lugar, ainda não há uma diferenciação e uma polarização acabadas dos diferentes campos – conforme ocorre na França – e, portanto, em muitos casos, não há um fechamento da dinâmica de produção do campo sobre si mesma, em razão do que é questionável a possibilidade de tratarmos certos espaços de interação como “campos” propriamente ditos. O capital específico do “campo jurídico” (“capital jurídico”), aqui, recebe algumas pitadas dos capitais “social” e “político”.

Por último, alguns autores têm sugerido a adoção de um “enfoque de redes” para objetivar a dinâmica das fronteiras ainda indefinidas dos campos em formação, onde o peso do “capital social” é sentido mais fortemente. Para uma críticadas dificuldades da aprendizagem do referencial de Bourdieu no Brasil, vide Coradini (1995).

CONCLUSÃO

O campo jurídico é o lugar da produção de um consenso sobre a maneira de realizar o trabalho jurídico, um consenso que se produz na própria concorrência para impor esse consenso. O ensino jurídico e a prática das profissões jurídicas, forçosamente, ajudam a criar a ilusão da plenitude conceitual do Direito, inculcando no jurista profissional a crença, da qual ele se regozija, na possibilidade de se resolver todo e qualquer problema social através das “formas” jurídicas. As tomadas de posição teóricas dos juristas, ao menos em tese, estão relacionadas às posições dos diversos juristas nas hierarquias internas do campo jurídico. Por isso, não se deve esperar que os juristas mais iminentes levem a sério ou contribuam para o desenvolvimento de uma ciência cujo objetivo é justamente o de demonstrar o funcionamento dos processos psíquicos e dos movimentos sociais através dos quais um Direito de conteúdo moralmente insubsistente se perpetua no tempo. A consolidação dessa ciência era a intenção declarada de Pierre Bourdieu e a justificativa de todos os seus trabalhos, razão pela qual ele próprio definia a sua sociologia como “uma ciência que perturba”.

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