À sombra de Goethe, à luz da revolucao científica. As leituras pessoanas de Goethe

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À sombra de Goethe, à luz da revolução científica. As leituras pessoanas de Goethe Carla Gago

"Die Natur hat nur eine Schrift" [A natureza só tem uma escrita] Goethe

Foi profunda a reprecurssão deste triângulo Nietzsche - Pessoa - Freud na cultura ocidental. Sendo filhos do mesmo século não coabitam, contudo, o mesmo tempo, pelo que os seus efeitos são diversos. Pode-se dizer que o primeiro pro­ voca uma explosão, o segundo tenta recolher os estilhaços e o último trata de os analisar, poetica ou teoricamente. Os três autores encontram-se, contudo, filiados a uma figura tutelar e omnipresente no contexto da modernidade: Johann Wolfgang von Goethe. No caso de Pessoa, esta é uma questão que ocupa os estudos pessoanos há algumas décadas: porque razão pertence Goethe ao grupo diminuto de autores, pelos quais Pessoa, de um modo constante ao longo da sua vida, assumiu a sua admiração? A relação que é estabelecida entre Pessoa e Goethe vem sobretudo da única ligação literária visível: a escrita do Fausto, uma das tentativas poéticas mais interessantes e ambiciosas de Pessoa, que constitui a primeira parte de um projecto de três Faustos, segundo planos encontrados no espólio pessoano. Neste plano megalómano de construção de três faustos, presente-se não só a vontade de inscrição do mito fáustico na sua contemporaneidade, mas a ânsia, a vertigem da obra plena. Na verdade, Goethe percebeu como ninguém que a literatura não pode ser dissociada do problema do conhecimento e tal responsabilidade tê-la-á transmitido à literatura moderna. Na questão do conhecimento, que é o fio condutor no texto seminal de Fausto, reside também a afinidade com Pessoa. Segundo Eduardo Lourenço, nada parece mais dificil de explicar do que a escrita i do Fausto, pois é dif cil de imaginar que Pessoa se tenha comparado a Goethe e à cultura alemã' (estando ele mais próximo da cultura inglesa). Mas apesar do interesse óbvio de Pessoa pelo tema do Fausto, este não é tão frequentemente citado nos seus escritos como o próprio Goeth�. Na biblioteca privada de Pessoa existem três

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Eduardo Lourenço, "Fausto ou a Vertigem Ontológica", Fausto. Tragédia Subjectiva, ed. Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Ed. Presença, pág. l. NIETZSCHE, PESSOA E FREUD, Lisboa, CFUL, 2013, pp. 301-310

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traduções do Fausto de Goethe, uma em francês2 e duas em inglês3• Mas nenhum destes volumes contêm

margina/ia, alguns até se encontram pouco manuseados, pelo

que se impõe a pergunta: que leitura fez Pessoa do Fausto de Goethe? Não cremos que o caso de Pessoa difira muito do de Byron e do de outros autores e intelectuais do espaço anglo-saxónico1 cuja versão que leram do Fausto foi a abreviada que constava no best-seller de Madame de Stael

De l 'Allemagne, livro

que oferece pela primeira vez em Inglaterra a imagem de uma Alemanha espiritual e intelectualmente rica. Na biblioteca privada do autor encontramos uma recensão

à obra em Early Reviews of Great Writers. 1786-18244 e num outro volume, La littérature française au XIX eme siécle de Charles Le Goffic5, são dedicadas três páginas a Madame de Stael, nas quais Pessoa destaca dois livros da autora: de la Littérature considérée dans ses rapports avec les instituitions sociales e o já referido De l 'Allemagne. Madame de Stael e Pessoa parecem ter algo em comum: se em De líAllemagne, ela discorre mais sobre as suas conversas e as suas impressões do poeta alemão do que propriamente sobre as obras literárias de Goethe, também Pessoa se parece interessar mais pelo que designa de "Mestre de Weimar". Não são só os volumes do Fausto goethiano que se encontram pouco manuseados. Também os outros volumes de Goethe que se encontram na biblioteca privada de Pessoa estão praticamente virgens de comentários.

É

interessante, contudo, notar

uma excepção na página da tábua bibliográfica de uma compilação de várias obras de Goethe,6 na qual Pessoa, a partir da data da obra em questão, calcula a idade de Goethe aquando da edição da obra em causa. Esbarramos aqui, uma vez mais, com uma questão recorrente nos escritos pessoanos, e que muitas das vezes envolve o nome de Goethe, nomeadamente a questão do cânone e da posteridade («a entrada nas mansões do futuro")7. Com efeito, parece ter sido de interesse para Pessoa 2

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Johann Wolfgang von Goethe, Werther. Faust. Hermann et Dorothée, Paris, Flammarion, [1907] (cota 8-225 BpFP). As duas edições são do mesmo tradutor - John Anster -, com a diferença que a edição de Cassell and Co. (8-224 BpFP) compreende o primeiro e o segundo Faustos. A edição de Bemhard Tauchnitz (Faust by Goethe, Leipzig: Bemhard Tauchnitz, 1867, 296 pág., "German authors, nº 5" - BpFP 8-222) parece ter sido adquirida em antiquário (na folha de ante-rosto do volume lê-se "Constance E. Matthey June 1 S80"). Ver imagem 1 referente a E. Stevenson, Early Reviews of Great Writers. 1786-1824, London, Walter Scott, [19-], (cota BpFP 8-169). Ver imagem 2 referente a Charles Le Goffic, La littérature française au XIX éme siécle: tableau général, Paris, Bibliotheque Larousse, [19--?], pág 17 (cota BpFP 8-305). Na folha de ante-rosto do volume encontramos a rubrica "F. Nogueira Pessoa". Ver imagem 3 referente a Johann Wolfgang von Goethe, Lieds; Ballades; Odes; Poésies; Diverses; Sonnets; Épigrammes; Élégies; Prométhée; Divan Oriental-Occidental, ed. Alphonse Séché, Paris, Louis-Michaud, 1907, pág. xii (cota BpFP 8-223). Para melhor compreensão desta questão, ver o ensaio Erostratus, no qual Pessoa se propõe examinar as condições que produzem a celebridade. Não consegue, contudo, contornar a questão central na sua vida - a literatura -, sendo assim reflexões sobre o processo de entrada no cânone literário. O ensaio foi publicado pela primeira vez em Páginas de Estética e Teoria e Crítica Literárias e, mais recentemente, por Richard Zenith na edição da Assírio e Alvim. .

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o facto de Goethe ter gozado de uma hiperpresença ainda em vida e preparado cuidadosamente a sua posteridade. Uma obra há, referente a Goethe, na sua biblioteca particular, para a qual Pessoa remete amiúde: Conversações com Goethe de Eckermann que Pessoa possui na sua tradução inglesa8, uma espécie de confirmação da genialidade de Goethe, repleta de máximas e de considerações sobre outros autores, muito ao gosto de Pessoa. 9 Também na opinião de Nietzsche, Conversações com Goethe seria o melhor livro alguma vez escrito em alemão. Uma das referências a Conversações com Goethe é a célebre passagem do ensaio "Erostratus": "Variety is the only excuse for abundance. No man should leave twenty different books unless he can write like twenty different men". Pessoa remete, aqui, para o juízo de Goethe sobre Victor Hugo (que na opinião de Pessoa, também não prezava pela variedade): "he should write less and work more". Em Conversações com Goethe, Pessoa sublinha o original: "if he intends to live long in futurity, he must begin to write less and to work more"1º. Goethe, é assim, para Pessoa, para além de autor do Fausto, o paradigma do génio extemporâneo - "um homem de génio é da sua época só pelos seus defeitos'', u segundo uma máxima de Goethe que se encontrava bastante difundida à época e que Pessoa tanto aprecia12 - e a materialização do conceito de "universalidade", no sentido de "multiplicidade de interesses intelectuais". 8

Johann Wolfgang von Goethe, Conversations of Goethe with Eckermann, trad. John Oxenford, ed. J. K.. Moorhead, London/

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NY, J. M. Dent and Sons, 1930 (BpFP 8-376).

Como é sabido, a questão do "génio" e respectivas ramificações é um tema recorrente nas leituras de Pessoa, que também abarca Goethe. Um texto de 1932 sobre Goethe abre com a afirmação: "O homem de génio é um intuitivo que se serve da inteligência"; num outro texto, no qual Pessoa argumenta que a base do génio lírico seria a histeria, Shakespeare e Goethe são ambos apresentados

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como possuidores desta patologia. Ver imagem 4 do anexo referente a Johann Wolfgang von Goethe, Conversations of Goethe with Eckermann, trad. John Oxenford, ed. J. K. Moorhead, London/ NY, J. M. Dent and Sons, pág. 41 7

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(cota BpFP 8-376). "Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida. O segundo princípio da arte é a universalidade. O artista deve exprimir, não só o que é de todos os homens, mas também o que é de todos os tempos. O subjectivismo cristista, além do erro pessoalista, produziu esse outro erro, a preocupação de interpretar a época. A frase de Goethe, bastas vezes citada sobre o assunto, é de mestre; com efeito, um homem de génio é da sua época só pelos seus defeitos. A nossa época deduz-nos da humanidade. Como o artista deve procurar erguer-se acima da sua personalidade, deve procurar levantar-se fora da sua época. O terceiro princípio da arte é, finalmente, a limitação. Isto é, a cada arte corresponde um modo de expressão, sendo o da música diferente do da literatura, e o da literatura diverso do da escultura, este do da pintura, e assim com todas as artes. Erro crasso, mas recentemente vulgar, é o de confundir os limites das artes." Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, ed. Georg Rudolf Lind e Jacinto Prado Coelho, Lisboa,

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Ática, 1967, pág. 20. Tal como o próprio Pessoa afirma, esta é uma "frase de Goethe, bastas vezes citada sobre o assunto". Segundo Jerónimo Pizarro, teria sido no livro de William Hirsch, Genius and Degeneration: a psychological study (1897) que Pessoa leu por volta de 1908 e que manteve na sua biblioteca pri­ vada, que o poeta encontrou a referência à frase que citará várias vezes na sua obra. Com efeito, na

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Num texto em que Pessoa discorre sobre o que entende por cultura, estabelece uma classificação tripartida: a que resulta da erudição (e que associa a Milton), a que resulta da experiência translata (também designada de "ultra-assimilação", que veria em Shakespeare) e por último, a que resulta da multiplicidade de interesses intelectuais. Sobre este último e máximo tipo de cultura que se concretiza em Goethe, refere: Vemos a terceira em Goethe( ...) cuja variedade de interesses, abrangendo todas as artes e quase todas as ciências, compensava na universalidade o que perdia em profundeza ou absorção. Um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais probabilidades de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que o não saiba. Nem há nisto mais que um paradoxo aparente. Um poeta que se deu ao trabalho de se interessar por uma abstrusão matemática tem em si o instinto da curiosidade intelectual, e quem tem em si o instinto da curiosidade intelectual colheu por certo, no decurso da sua experiência da vida, pormenores do amor e do sentimento superiores aos que poderia ter colhido quem não é capaz de se interessar senão pelo curso normal da vida que o afecta ( ... ) . Um é um homem que é poeta, o outro um animal que faz versos.13

Goethe, enquanto membro da família daqueles grandes espíritos para os quais, na verdade, não existia uma arte no sentido isolado (Walter Benjamim), é uma referência também para Freud, cuja leitura do ensaio de Goethe "Sobre a natureza" ("Über die Natur") o leva a matricular-se em Medicina na Universidade de Viena. Goethe manter­ -se-á para Freud (tal como para Nietzsche e para Pessoa) uma referência incontornável ao longo da vida. Em O

Mal-estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur)

de 1930, no qual Freud critica a religião de um ponto de vista psicoanalítico, o 2º capítulo é iniciado com a citação de Goethe "Wer Wissenschaft und Kunst besitzt, hat auch Religion; Wer jene beide nicht besitzt, der habe Religion!" ["Quem tem ciência e arte, tem também religião; quem não tem nenhuma delas, que tenha religião!"],14 que Pessoa também demostra conhecer:

página 117 do volume pode-se ler: "Goethe pronounces that a genius is in touch with his century only by virtue ofhis defects, only in so far as he shares the weakness ofhis times". Mas nem esta passagem contém margina/ia que comprove a leitura de Pessoa como, por outro lado, esta máxima de Goethe, muito popular à altura, que cursava pela Europa na versão "genius is related to its time only by its defects", pode ser encontrada em diferentes volumes. Um deles é L'uomo di genio in rapporto alia psichiatria de CésareLombroso, no qual também consta a referida máxima. Na tra­ dução inglesa encontramos "Genius, wrote, Goethe, is only related to its time by its defects" e na tradução francesa, L 'Homme de génie, que Pessoa terá começado a ler a 10 de Julho de 1907: "Le génie, a écrit Gúthe, n'est en rapport avec son temps que par ses défauts". Estas traduções estão, visivelmente, mais próximas da versão de Pessoa "um homem de génio é da sua época só pelos seus defeitos". Num outro volume de psicofisiologia da mesma altura, The Caveman within us de William Fielding, pode-se também ler: "Genius, according to Goethe, is only related to its time by its defects", William Fielding, The Caveman within us,London, Routledge, 1999 [1922], pág. 277. 13

Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, ed. Georg RudolfLind e Jacinto Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1967, pág. 131.

14

Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur. Gesammelte Werke. Bd XIV, Frankfurt a.M., Fischer, 1930, pág. 432.

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de Goethe,

à luz da revolução científica.

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A frase profunda de Goethe - que pode dispensar a religião aquele que tem a ciência e a arte, mas não quem as não tem - tem, no fundo, esta significação muito simples: quem não pode ter uma arte superior, que tenha uma arte inferior.15

Vários autores16 apontam que Freud terá lido estes versos de 17

publicados postumamente entre

Zahmen Xenien, 1820 e 1827, não directamente de Goethe mas

a partir de volumes de um outro autor que também muito admira: Ernst Haeckel

(1834-1919), o pai do monismo e grande divulgador das teorias evolucionistas. Mas regressando à questão anterior, que se levanta igualmente no caso de Pessoa: como e onde acedeu o autor português a estes versos de Goethe?

Weltriitsel (Enigmas do Universo), a bíblia da filosofia monista, onde Haeckel apresenta os problemas gerais do universo enquanto problemas cosmológicos, e que Pessoa terá lido já em Maio de 190618 em tradução francesa (Les Énigmes de l'univers, 1902), é dos volumes com mais marginalia da biblioteca particular de Fernando Pessoa.19 Em Les Énigmes de l'univers, tal como acontece também com outros volumes de Haeckel2°, os capítulos são abertos com epígrafes dos seus autores de eleição: Huxley, Louis Büchner,21entre outros. A abrir o 15

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18º capítulo do

"No fundo, a religião é uma forma rudimentar do sentimento da beleza. Toda a arte não passa de um ritual religioso. A frase profunda de Goethe - que pode dispensar a religião aquele que tem a ciência e a arte, mas não quem as não tem - tem, no fundo, esta significação muito simples: quem não pode ter uma arte superior, que tenha uma arte inferior. (Ou, propriamente, não será a religião a base indiferenciada da arte, da ciência e da moral?) É tão absurdo querer que o povo deixe de ter religião, como o é que ele deixe de ter amor aos espectáculos teatrais, que são as formas indi­ ferenciadas da arte. A arte é insocial, a religião é a forma social da arte". Este "fragmento" foi atribuído ao heterónimo António Mora por Lind e Prado Coelho (pese embora a sua inclusão em "Regresso dos Deuses" aparecer com uma interrogação) em Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ed. Georg Rudolf Lind e Jacinto Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1966, pág. 283. Gerald Stieg, "Die Macht des Zitates. Freuds Umgang mit den literarischen Quellen in ,,Das Unbehagen in der Kultur"", ed. Jacques Le Rider, Adalbert Stifter: Études Université Rouen, Centre d'Études et de Recherches Autrichiennes, Mont-Saint-Aignan, 1999, pp.111-123. Zahme Xenien IX em Gedichte aus dem Nachlass. Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre génio e lo ucura, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2007, pág. 49. Para além da tradução para francês deste best-seller à altura (esgotou a l ª tiragem e a 2ª edição tirou 100.000 exemplares num ano), Pessoa possui na sua biblioteca Root-principles and Spiritual Things. lncluding an examination ofHaeckel s Riddle de Thomas Child (BpFP 1-22) que se debruça sobre aquele estudo de Haeckel. A partir da margina/ia do volume de Child, no qual constam vários comentários, como "marvellous" ou " Bravo!", pode-se constatar o precoce entusiasmo de Pessoa pelas teorias evolucionistas. De Haeckel constam quatro livros na biblioteca de Pessoa: Les Énigmes de l 'univers, Paris, Schleicher Freres, 1902 (BpFP 1-64); Les merveilles de la vie: études de philosophie biologique pour servir de complément aux énigmes de l'Univers, Paris, Schleicher Freres, 1904 (BpFP 1-65); Histoire de la création des êtres organisés d'aprés les fois naturelles, Paris, Schleicher Freres, 1903 (BpFP 5-16); Origine de l'homme, Paris, Schleicher Fréres, [19--?] (BpFP 5-17). Ludwig Büchner/ Louis Buchner (irmão e editor póstumo de Georg Büchner), de quem Pessoa possuía dois volumes na sua biblioteca, pertence, tal como Jakob Moleschott e Carl Vogt, a uma geração que emergiu em meados do século XIX e que pretendia rever a relação entre filosofia e

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volume, "Notre réligion moniste", encontramos, aqui, os referidos versos de Goethe: "Celui qui possede la science et l'art/ Celui-là possede aussi la religion!/ Celui qui ne possede pas ces deux biens,/ Que celui-là ait la religion."22 Pessoa faz as primeiras leituras de Haeckel quando ainda não tinha completado

18 anos,23 o que denota o interesse em Pessoa pelo mundo das ciências ainda em idade muito precoce24 (contrariamente a Nietzsche, cujo interesse pelas ciências naturais surgiu relativamente tarde).25 Hackel, por sua vez, afirma, por variadas vezes, que o monismo seria norteado pelo ideal de Goethe, que, na sua opinião, seria o maior filósofo naturalista alemão.

Morfologia geral dos organismos (Generelle Morphologie

der Organismen, 1866), no qual introduz o conceito de "ecologia'', é dedicado ao autor de Fausto, juntamente com Darwin e Lamarck, que designa de fundadores da « teoria da descendência»

(Descendenz Theorie). Nos livros de Haeckel abundam

as referências e citações de Goethe e nos volumes que possui do pensador monista, Pessoa assinala a maior parte do que encontra - e é muito - do autor do

Fausto.

Gostaria, aqui, de aventar, ainda, uma outra hipótese: a abrir a obra Les Merveilles

de la Vie (Die Lebenswunder, 1904) Haeckel usa, como epígrafe, alguns versos de

ciência. Em Kraft und Staff de1855 (que Pessoa pessuia na tradução francesa Force et matiere ou principes de l'ordre naturel mis a la portée de tous, 1-15 BpFP), tem o seu livro mais popular (em 1898 já tinha conhecido 19 edições), no qual se apresenta à imagem do Naturphilosoph. Na biblioteca de Pessoa consta ainda L'Homme selon la Science. San passé, son présent, son avenir ou d'on venons-nous? Qui sommes-nous? Ou allons-nous? (BpFP 1-16). 22 Imagem 6, Ernest Haeckel, Les Énigmes de l'univers, Paris, Schleicher Freres, 1902, pág. 377 (cota BpFP 1-64). 23 Em Maio e Junho de 1906 lê respectivamente Les Énigmes de l'univers de Haeckel e o estudo de Child sobre este mesmo volume. Em Agosto de 1906 lê Le Darwinisme de Émile Ferriere, em Abril/Maio de 1907 Scientific Phrenology de Bernard Hollander e Anthropogénie de Ernest Haeckel (Jerónimo Pizarro, Fernando Pessoa: entre génio e loucura, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2007, pág. 48- 49). 24 Contrariamente a Nietzsche, que na sua juventude não teve muito contacto com a área de ciências naturais (Nietzsche lamentaria mais tarde esta lacuna na sua educação), devido ao currículo específico em Schulpforta, com tónica nos estudos clássicos (ver Thomas Brobjer, "Nietzsche's Reading and Knowledge of Natural Science: An Overview", Nietzsche and Science, ed. Brobjer e Moore, Aldershot, Ashgate, 2004, pp. 24-25), os estudos de Pessoa, na Durban High School, compreendem Latim, Francês e Inglês mas também Geometria (disciplina na qual se destaca), Álgebra, Aritemética e Trigonometria (ver Alexandrino E. Severino, Fernando Pessoa na África do Sul. A formação inglesa de Fernando Pessoa, Lisboa, D. Quixote, 1983, pp. 43-67). A partir de um horário escolar referente ao ano lectivo de 1899, que se encontra afixado no livro Principia latina: part 1 de William Smith (cota 8-52lda BpFP), verificamos que, para além de algu­ mas das disciplina já referidas, Pessoa tem, pelo menos neste ano lectivo, a disciplina de Ciência (Science) três vezes por semana. 25 Thomas Brobjer, "Nietzsche's Reading and Knowledge of Natural Science: An Overview", Nietzsche and Science, Ed. Brobjer e Moore, Aldershot, Ashgate, 2004, pág. 21.

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Goethe26 que creio que poderão ter servido de inspiração a Pessoa para um poema muito conhecido (ver imagem

5):

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade Nem veio nem se foi: o Erro mudou. Temos agora uma outra Eternidade, E era sempre melhor o que passou. Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. Louca, a Fé vive o sonho do seu culto. Um novo Deus é só uma palavra. Não procures nel? creias: tudo é oculto. 27

O modernismo introduz um novo conceito de experiência - enquanto Erfahrung - e consequentemente, uma nova experiência da verdade, numa perspectiva da skeptis entendida como virtualidade (na qual os heterónimos pessoanos se poderão incluir) ou então como erro. Ambos os poemas andam à volta da dicotomia verdade/ erro, mas Goethe, enquanto autor de charneira, ainda crê na possiblidade de alcançar a verdade (a necessidade do espírito - que aspira sempre a mais - de chegar à verdade), enquanto em Pessoa só existe o "oculto" que condena ao erro eterno. No poema "Natal", Pessoa actualiza, de uma forma "moderna" o poema de Goethe e parece responder, de forma algo irónica, aos versos "attire,/ progressivement l' esprit,/ plus haut, vers la verité": "A verdade/ Nem veio nem se foi". A verdade, conotada com um plano transcendente - "hõher Bedürfnis" - a solução da tradução francesa de "désir ardent" não envolve esta significação, daí a inclusão de "plus haut" no último verso - é a "Eternidade", de que fala Pessoa nos seus versos. Mas a "Eternidade" em "Natal" é "uma outra Eternidade": o erro aqui já não é estático e o espírito já não se move em direcção à verdade. No poema "Natal" é notório o sentido de perda ("E era sempre melhor o que passou"), que é parte constituinte do trágico pessoano. Estes versos de Goethe, que Pessoa leu, poderão trazer certamente mais

luz ao poema "Natal" mas vêm sublinhar, também, o que temos vindo a afirmar, nomeadamente que, para Pessoa, Goethe estava intimamente associado à questão

da ciência e daí introduzir a segunda parte do seu poema com "Cega, a Ciência a inútil gleba lavra." ***

A partir da biblioteca privada de Pessoa é possível reconstruir indicações ln"bliográficas esbatidas ou esquecidas com o tempo e reconstituir um contexto intelectual mais vasto, permitindo um diálogo, por vezes inesperado, com áreas específicas do interesse dos autores. Este tipo de abordagem permite uma melhor - Ver imagem 8, Emest Haeckel, Les merveilles de la vie: études de philosophie biologique pour

JreTVir de complément aux énigmes de l'Univers, Paris, Schleicher Freres, 1904, pág. 1 (cota BpFP =-

1-65). Fernando Pessoa, Poesias, Lisboa, Ática,1942 (primeira publicação em Contemporânea, n.º 6, Lisboa, Dezembro de 1922), pág. 216.

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compreensão das práticas intelectuais de uma época (que ultrapassa os estudos de influência ou de posteridade), mas sublinha também em que medida o ambiente intelectual, no qual e em função do qual o autor teve uma determinada produção, é essencial para a compreenção da obra. Tal como, por exemplo, a questão de uma formação científica mais específica e especializada _em Pessoa. Se o interesse pelas ciências naturais já surpreende, a quantidade de volumes especializados na biblioteca particular de Pessoa denota uma reflexão mais profunda relativamente a temáticas de ciências naturais do que seria de esperar num poeta. Na biblioteca de Pessoa, somos confrontados com uma informação científica especializada, o que aos nossos olhos de hoje pode parecer invulgar. Mas seria, na verdade, inconcebível que Pessoa não tivesse acompanhado os avanços científicos do final do século XIX e início do XX. Nesta altura, nenhum intelectual que ambicionasse apresentar uma interpretação do mundo poderia dar-se ao luxo de ignorar o novo mundo das ciências. Como ele próprio afirmou, era um "poeta movido pela filosofia" e para se ser um filósofo no século XIX, tinha que se abraçar o mundo da ciência. Tal como George Henry Lewes, filósofo e crítico literário que combina os gostos científicos com os literários (daí o seu interesse por Goethe, sobre quem redige uma importante biografia, volume este que Pessoa também possui),28 que afirma em

Science and Speculation

que a

filosofia fornece a doutrina mas o conhecimento, esse é-nos dado pela ciência.29 Para Haeckel, "as ciências da natureza são filosofia e toda a verdadeira filosofia é uma ciência natural". 30 A prática da filosofia ia, nesta época, de mãos dadas com as ciências naturais (e até outras áreas afins), daí não ser de estranhar que os interesses de Nietzsche vão da termodinâmica à psiquiatria criminal. Poderíamos avançar que as leituras científicas de Pessoa representam pelo menos 10% da biblioteca (tal como no caso de Nietzsche), mas a verdade é que esta contabilidade é relativamente dificil de se fazer, pois a questão da "ciência" entra inevitavelmente (dada a permeabilidade entre as novas disciplinas científicas e áreas como a Literatura ou a Filosofia) em quase todos os livros desta altura. O trabalho mais árduo numa tarefa deste escopo arqueológico consiste em reconstituir o trilho de alguns conceitos disseminados pela obra de Pessoa e que remetem para várias e diferentes leituras efectuadas pelo autor. Tal como a insistência no conceito de instinto, que, à primeira vista, se poderá dizer nietzschiano ou bergsoniano, mas que,

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>0

G. H Lewes, The life and works of Goethe. With sketches of his age and contemporaries, London, J. M. Dent & Co., 1908, BpFP 8- 317. "Science furnishes the knowledge and Philosophy the Doctrine" in George Henry Lewes, Science and Speculation, London, Watts & Co., 1904, pág. 5, BpFP 1-98. "«Toute science de la nature est de la philosophie et toute vraie philosophie est une science natu­ relle». C'est en ces termes qu'en 1866 (dans le XXIX' chapitre de ma Generelle Morphologie, t. II, p. 447), j'exposais le résultat le plus général de mes étude monistes. J'avais posé comme príncipe fondamental moniste, que l'unité de la nature et l'unité de la science sont données avec certitude par l'étude philosophique modeme de la nature" Emest Hackel, Les merveilles de la vie: études de philosophie biologique pour servir de complément aux énigmes de l'Univers, Paris, Schleicher Freres, 1904, pág. 4 (cota BpFP 1-65).

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na verdade, poderá ser lido no sentido de uma moral evolucionista do seu tempo, e cujo substrato assenta, exactamente, em teorias evolucionistas. Gostaría de concluir com uma passagem de Goethe, mas desta vez do autor alemão feito personagem e introduzido, por sua vez, no Fausto de Pessoa: "Do fundo da inconsciência/ Da alma sobriamente l?uca/ Tirei poesia e ciência/ E não pouca".

Bibliografia BROBJER, Thomas. ''Nietzsche's Reading and Knowledge of Natural Science: An Overview" in Nietzsche and Science, ed. Thomas Brobjer / Gregory Moore, Aldershot, Ashgate, 2004, pp. 21-50. CAMPIONI, Guliano e Aldo Venturelli. "Vorwort" in Nietzsches personliche Bibliothek (Supplementa Nietzscheana, vol. 6), ed. Guliano Campioni / Paolo d'Iorio / Maria Cristina Fornari, Berlin/ NY, Walter de Gruyer, 2003, pp. 7-26. FIELDING, William. The Caveman within us. London: Routledge, 1999 [1922]. FREUD, Sigmund. Das Unbehagen in der Kultur. Gesammelte Werke. Bd. XIV. Frankfurt a.M., Fischer, 1930, pp. 323-380. LOURENÇO, Eduardo. "Fausto ou a Vertigem Ontológica" in Fausto. Tragédia Subjectiva, ed. Teresa Sobral Cunha. Lisboa, Ed. Presença, 1988, pp. I-XVI. PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ed. de Georg Rudolf Lind e Jacinto Prado Coelho. Lisboa, Ática, 1966. , Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, ed. de Georg Rudolf Lind e Jacinto Prado Coelho. Lisboa, Ática, 1967.

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, Poesias. Lisboa, Ática, 1942.

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, Escritos sobre Génio e Loucura, ed. Jerónimo Pizarro, Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, Volume VII. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2006.

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PIZARRO, Jerónimo. Fernando Pessoa: entre génio e loucura. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2007. SEVERINO, Alexandrino E. Fernando Pessoa na África do Sul. A formação inglesa de Fernando Pessoa, Lisboa, D. Quixote, 1983.

STIEG, Gerald. "Die Macht des Zitates. Freuds Umgang mit den literarischen Quellen in ,,Das Unbehagen in der Kultur"" in Adalbert Stifler: Études Université Rouen, Centre d'Études et de Recherches Autrichiennes, ed. Jacques Le Rider. Mont-Saint-Aignan, 1999.

Volumes citados da Biblioteca particular Fernando Pessoa GOETHE, Johann Wolfgang von. Werther. Faust. Hermann et Dorothée, col. «Les meilleurs auteurs classiques, français et étrangers». Paris, Flammarion, 1907, BpFP 8-225. , Lieds; Ballades; Odes; Poésies; Diverses; Sonnets; Épigrammes; Élégies; Prométhée; Divan

--

Oriental-Occidental, ed. Alphonse Séché, «Bibliotheque des poetes français et étrangers». Paris, Louis-Michaud, 1907, BpFP 8-223. , Goethe's Faust, trad. John Anster. London, Cassell and Co., 1909, BpFP 8-224.

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--, Faust by Goethe. Leipzig, Bernhard Tauchnitz, 1867, BpFP 8-222.

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Carla Gago

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