A sombra de Orfeu - Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera (LIVRO)

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A sombra de Orfeu O Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera

Chanceler

Dom Dadeus Grings Reitor

Joaquim Clotet Vice-Reitor

Evilázio Teixeira Conselho Editorial

Ana Maria Lisboa de Mello Elaine Turk Faria Érico João Hammes Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy – Presidente José Antônio Poli de Figueiredo Jurandir Malerba Lauro Kopper Filho Luciano Klöckner Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini Marlise Araújo dos Santos Renato Tetelbom Stein René Ernaini Gertz Ruth Maria Chittó Gauer EDIPUCRS

Jerônimo Carlos Santos Braga – Diretor Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe

A sombra de Orfeu O Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera

Ronel Alberti da Rosa

Porto Alegre, 2010

© EDIPUCRS, 2010 CAPA Produção Eletrônica:

Kromak Images Vanessa Fick REVISÃO DE TEXTO Patrícia Aragão EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Contexto Editoração Projeto Gráfico:

IMPRESSÃO E ACABAMENTO

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 e-mail: [email protected] - www.pucrs.br/edipucrs.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) R788s Rosa, Ronel Alberti da A sombra de Orfeu : o neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera / Ronel Alberti da Rosa. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010. 160 p. ISBN: 978-85-7430-990-3 1. Filosofia Renascentista. 2. Arte e Filosofia. 3. Neoplatonismo. 4. L’Orfeo (Ópera) – História e Crítica. 5. Música – Filosofia. I. Título. CDD 186.4 Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reporgráficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos direitos Autorais).

Este livro é dedicado ao meu professor de grego, Reinholdo Ullmann, que ensinou a mim e a todos nós o entusiasmo pela pesquisa e pela filosofia antiga.

Sumário

Introdução .................................................................................................... ........... 9 Os precursores .................................................................................................... .... 9 Renascimento ou Barroco? .................................................................................... 13 Striggio – o texto ................................................................................................... 16 Monteverdi – a música .......................................................................................... 20 L’Orfeo – a fusão .................................................................................................. 27 I. Os fabricantes de deuses: a síntese mágico-filosófica do Renascimento .......... 33 II. Striggio e a mitologia ........................................................................................ 51 III. Monteverdi, a Camerata e os gregos ............................................................... 61 IV. L’Orfeo, una favola in musica – um tratado neoplatônico .............................. 83 Referências .................................................................................................... ....... 155

Introdução

Os precursores A busca de mais de um século chegou ao termo quando, em 24 de fevereiro de 1607, os convidados do Conde Vicenzo de Gonzaga, um tanto apertados devido às dimensões modestas da Galleria delle Specchi, a Sala dos Espelhos, no palácio ducal de Mântua, começaram a ouvir os primeiros acordes da nova composição de Alessandro Striggio e Claudio Monteverdi. O evento todo foi um presente do conde para seus amigos intelectuais e membros da Accademia degli Invaghiti1. Foi o fim de uma longa busca, cujo início pode-se datar em 1483, quando se encenou – igualmente em Mântua – o primeiro drama profano em língua italiana, coincidentemente também uma fábula de Orfeu, da autoria de Angelo Poliziano. Da Favola di Orfeo de Poliziano até Striggio e Monteverdi, a busca passou por mascherate, balletti, intermezzi com ou sem prólogo, fábulas pastorais e comédias madrigalescas. Foram procurados nomes para o novo gênero, tais como dramma in musica, favola in musica ou opera in musica, e, no cadinho de influências estéticas e filosóficas tomaram parte filósofos gregos clássicos e helenistas, literatos e tragediógrafos romanos, teólogos medievais, escolásticos, historiadores, poetas que escreviam em italiano, compositores e teóricos da música, filólogos, alquimistas e nigromantes. O resultado foi a confluência de todas as correntes, do Neoplatonismo renascentista, do Aristotelismo, de teorias simpáticas acerca da ordem do universo e das leis das transformações alquímicas – tudo isso, bem entendido, harmonizado com a doutrina cristã –, resultando em apaixonadas discussões sobre qual deveria ser o papel da poesia, qual o da música e o da emoção em uma nova forma artística que, esperava-se, pudesse trazer de volta à vida a tragédia dos antigos gregos. E a questão a que se propunha resolver era: como restituir à música o mítico poder que, a julgar pelos documentos dos antigos, ela havia possuído em priscas eras? A resposta, contudo, poderia ainda ter demorado mais cem anos, não fosse a colaboração do poeta Alessandro Striggio com o compositor Claudio Monteverdi, “oracolo della musica”2. Monteverdi, com o libretto de Striggio na mão, realizaria uma síntese dessas correntes – algumas francamente antagônicas – e coroaria o humanismo do Renascimento com a obra paradigmática que iria definir um novo patamar para a relação do homem com a arte e consigo mesmo: o Orfeo é a vitória da forma, da articulação lógica e da simetria das partes. Como se não bastasse, o poema de Striggio recebe, com Monteverdi, um tratamento musical que não descarta as técnicas passadas, integrando o

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Academia dos Apaixonados. Expressão cunhada por Benedetto Ferrara (1604-1681).

antigo à nova estética musical do baixo Renascimento e produzindo uma fusão que vai potencializar a carga dramática de texto e de música, respondendo afirmativamente à pergunta tão amplamente discutida pela Camerata Fiorentina desde 1573: sim, a música tinha ainda o poder de mover os afetos humanos. O Orfeo foi precedido por experimentos notáveis, mas todos pendendo excessivamente para um ou outro lado. Nenhum atingiu o equilíbrio que Monteverdi, graças ao libretto de Striggio, conseguiu conquistar para o novo gênero de drama musical. Entre os precursores, três gêneros mais se aproximaram do resultado desejado: a favola pastorale, a commedia madrigalesca e o intermezzo, ricos em contribuições, mas incompletos para assegurar uma solução definitiva. Vejamos, primeiro, a Favola di Orfeo, de Angelo Poliziano (1483): como todas as outras fábulas pastorais, a obra de Poliziano tinha muito pouca música, apenas três canções e um coro final. Não havia como deduzir uma unidade musical a partir de material tão escasso: as poucas intervenções eram peças musicais breves que não possuíam um estilo homogêneo. Na França, mesmo obras de espírito análogo muito mais antigas, como o Jeu de Robin et Marion (1283), de Adam de la Halle, apresentavam bem mais números cantados e possuíam mais unidade musical, obtida esta unidade a partir da regularidade de suas fórmulas rítmicas e de padrões de repetições3. Na poesia, Poliziano foi mais exitoso: o seu Rusticus (1483) em hexâmetros latinos, sem calcar-se no modelo de Virgilio, faz uma descrição do ano do camponês italiano, ao longo das estações, que chega às raias do realismo no tratamento do tema. Porém, enquanto espetáculo teatral, a favola pastorale italiana estava ainda ligada em demasia à tradição da poesia latina clássica. Já desde Petrarca a emulação do estilo bucólico de Virgílio, porém carente de autenticidade, tentava os poetas italianos menores, e não importava se essas reconstruções se escreviam em italiano ou latim4. Os Idílios do grego Teócrito, criador do gênero bucólico, revividos em obras como as Metamorfoses de Ovídio e as Bucólicas de Virgílio, não se prestavam para um enredo com conflito dramático. Eram adequados, sim, para a descrição da vida no campo e de sentimentos pastoris. Partes cantadas eram requisitadas quando a metrificação dos versos e as rimas assim o exigiam. Mais que isso, não5. Outro gênero pioneiro, a commedia madrigalesca, apresentava um problema diferente: apesar de ser quase toda cantada, o que garantia também a unidade dramática, o estilo de composição dos madrigais era francamente polifônico, o que de per si impedia a compreensão, por parte do público, do texto e, consequentemente, de qualquer enredo

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Ver exemplos musicais em DELLA CORTE-PANAIN, I, 167-170. O romance pastoral de Boccaccio e a Arcadia de Sanazzaro surgiram paralelamente a essa atividade, até chegar-se à comédia pastoral de Tasso e Guarino. Aqui, aponta Burckhardt, a vida dos pastores não passa de um invólucro ideal a revestir um universo de sentimentos oriundos de meios culturais os mais diversos (ver BURCKHARDT, 320). 5 Outros exemplos de favola pastorale são: Il Paradiso, de Bernardo Belloccini (1483), Il Cefalo (1486), de Nicolò da Corregio, Il Timone (1492), de Matteo Maria Boiardo (MACHADO COELHO, 34) e Rappresentazione di Febo e Pitone (1486), de autor desconhecido (ver DELLA CORTE e PANAIN, 339). 4

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mais elaborado. O madrigal do Norte da Itália, herdeiro das tradições da frottola e da canzona, era uma peça curta, com duração máxima de cinco minutos. Sua estrutura incluía frequentemente, por exigência da forma, imitações entre as vozes, que, ocasionalmente, podiam estar cantando até textos diferentes – e em idiomas diferentes! A commedia madrigalesca, com seus experimentos de encadear vários madrigais inseridos em uma unidade temática, acarretava um esgaçamento do tecido dramático, que não tinha como sustentar um espetáculo coerente, já que era precária a compreensão do texto cantado. Dessa forma, a commedia madrigalesca acabou apelando para soluções cômicas rasas e personagens estereotipados, a única possibilidade que restou para uma empatia com a plateia6. Finalmente, os intermezzi não possuíam unidade dramática, já que nem tinham tal objetivo: visavam ser meramente uma ilustração musical inserida entre os atos de uma representação teatral, cujo objeto maior era entreter o público. Inseridos numa práxis teatral praticamente toda ela dedicada a celebrações dinásticas7, esses episódios eram quase invariavelmente extraídos da mitologia clássica, e uma das exigências mais importantes era que guardassem alguma relação com o evento festejado. Com a evolução do gênero, mais e mais instrumentistas e cantores começaram a ser empregados nos ditos intermezzi, que receberam a adição de máquinas, desfiles, luzes, espelhos e o que mais houvesse disponível de aparato de efeitos especiais, de sorte que assumiu proporções consideráveis, no que firmou-se como forma priscamente lúdica e decorativa. Vejamos na descrição de Burkhardt um destes episódios: Mundialmente famosas tornaram-se as festividades promovidas pelo cardeal Pietro Riario em 1473, quando da passagem por aquela cidade da noiva destinada ao príncipe Ercole de Ferrara, Leonora de Aragão. [...] as pantomimas, ao contrário, são mitológicas, exibindo Orfeu com os animais, Perseu e Andrômeda, Ceres puxada por dragões, Baco e Ariadne por panteras e a educação de Aquiles. Segue-se, então, um balé executado por amantes famosos de tempos imemoriais e por um grupo de ninfas, interrompido, por sua vez, por um ataque de centauros predatórios, aos quais Hércules vence e põe em fuga8.

6 Algumas comédias madrigalescas são: Il Cicalamento delle Donne al Bucato (1567) [Os mexericos das mulheres lavando roupa], com texto de Alessandro Striggio e música de autor desconhecido, Selva di Varia Ricreatione (1590), Le Veglie di Sienna (1604), La Barca di Venezia per Padova (1605) e L’Amfiparnasso ossia Li Disperati Contenti (1594), de Orazio Vecchi (MACHADO COELHO, 34), e a Comedia e farse carnevalesche nei dialetti astigiano, milanese e francese (1490?), de Giovan Giorgio Alione (DELLA CORTE e PANAIN, 339), estas duas últimas com elementos claramente emprestados da Commedia dell’Arte. 7 A pomposidade das celebrações andava pari passu com o luxo das montagens destinadas a entreter os convidados. Burckhardt escreve que, nas bodas do príncipe Alfonso de Ferrara com Lucrécia Borgia, o duque Ercole mostrou pessoalmente a seus ilustres convidados os 110 figurinos que seriam usados na encenação de cinco comédias de Plauto. Isso para que se visse que nenhum deles seria usado duas vezes. Apud BURKHARDT, 292. 8 BURKHARDT, 368-9.

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Sintomático para o caráter mais visual que musical dos intermezzi é que toda a concepção cênica do La Cofanaria (1565), de Alessandro Striggio9, um dos primeiros a se destacar10 nesse gênero, foi inspirada em um desfile de carnaval daquele mesmo ano e que apresentou um quadro genealógico dos deuses e deusas da Antiguidade. A Mascarata della Genealogia degli Dei de’ Gentili foi uma encenação carnavalesca de partes do livro praticamente homônimo (apenas sem a Mascarata, adicionada para o desfile de carnaval) de Giovanni Boccaccio, escrito nos anos 1370/74, que reunia o imaginário do italiano do Renascimento acerca da – como o nome diz – genealogia dos deuses dos gentios. Visto dessa forma, entendemos o quanto Monteverdi estava necessitado de um verdadeiro salto conceitual para resolver as carências que ora um gênero ora outro apresentavam. O mesmo se dava com o poeta Alessandro Striggio, que já tinha brilhado escrevendo textos para alguns intermezzi11, mas cuja obra permanecia no âmbito dos espetáculos de ocasião e de entretenimento. Os gêneros já existentes definitivamente não pareciam poder solucionar a questão da revivescência da tragédia grega. Finalmente, não apenas a união de compositor e librettista, mas uma nova concepção, possibilitou a verdadeira transmutação alquímica que é o Orfeo: da mesma forma que Apolo, unindo os opostos, L’Orfeo, una favola in musica toma e concentra em si 120 anos de história da música, desde o Orfeo original de Poliziano, superando polêmicas acerca da natureza do canto, do papel do texto, do lugar devido aos números instrumentais e do tratamento da dissonância. Essa solução, porém, foi possível graças a uma longa gestação na Accademia Fiorentina de Giuseppe Bardi, onde se discutiram à exaustão temas como a filosofia e o teatro gregos, as traduções e os comentários da Accademia Platonica de Marsilio Ficino aos textos de Platão e dos neoplatônicos, os novos tratados teóricos sobre a música e sua relação com a palavra e muitos outros. A fase experimental do teatro musical, assim, foi superada graças à consciência, primeiro do librettista Striggio, em seguida do compositor Monteverdi, de que um drama das proporções pretendidas só conseguiria manter-se em pé se, quanto ao tema, pudesse apresentar uma unidade calcada em um conflito dramático que mostrasse, através de uma linguagem simbólica e de metáforas, toda a riqueza da reflexão contemporânea acerca da relação do homem com a arte e desta em relação a todo o universo. Ademais, essa unidade teria de ser mostrada, em termos técnicos, fundada em uma concepção que perpassasse todos os estágios criativos. Para tal, deveriam ser guardadas proporções internas entre as partes individuais e destas para com o plano geral da obra. Em termos bem claros, isso significava retornar às raízes primeiras do humanismo renascentista: simplicidade, naturalidade e equilíbrio.

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Trata-se aqui do músico Alessandro Striggio (1537-1595), pai do librettista do Orfeo. La Cofanaria se distinguia por apresentar, para um intermezzo, uma trama dramática bastante trabalhada. O tema era o mito de Eros e Psiquê, transposto para a Itália de então, com casais de jovens apaixonados, encontros e desencontros amorosos, um criado astucioso e tudo isso em meio ao cerco de Florença de 1530. 11 Striggio teve textos musicados para intermezzi de Francesco Corteccia, Alfonso della Viola, Claudio Merulo e Andrea Gabrieli (ver MACHADO COELHO, 32). 10

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Assim, se tanto Striggio como Monteverdi parecem criar seu Orfeo com um plano tão claro que dão a impressão de serem suas ideias já de antemão conhecidas, não é por terem experiência em fábulas musicais, gênero que, de toda forma, era incipiente. Monteverdi era francamente inexperiente: tinha conhecido Il pastore Fido (1585), de Giovan Battista Guarini, e a Euridice (1600), de Jacopo Peri. Striggio tinha podido estudar os libretti de Francesco Ambra para La Cofanaria – que tinha sido musicada pelo seu pai – e de Ottavio Rinuccini para La Pellegrina (1589)12. O fato é que décadas de incontáveis reuniões, tanto na Camerata Bardi como em outras tantas no Norte da Itália, haviam preparado o terreno, com reflexões que buscavam uma via que se originasse no pensamento e na arte clássica, incluísse o humanismo desde Petrarca e o Neoplatonismo de Ficino e Pico della Mirandola e fornecesse uma resposta para o futuro da música italiana.

Renascimento ou Barroco? Entramos aqui no complicado tema da diferenciação das épocas históricas. Será imprescindível para este trabalho, porém, voltar uma vez mais à difícil tarefa de discutir as fronteiras de Renascimento e Barroco e, especificamente, mostrar por que motivos uma obra como a ópera L’Orfeo, devedora de todos os valores possíveis à ideia do Renascimento, é classificada como marco precursor do Barroco musical. Mas que Barroco seria esse? Raras são as épocas da história que apresentam expressão artística homogênea, e a era compreendida entre os séculos XVI e XVIII certamente não faz parte delas. Depois de passada a fase depreciativa, quando o termo foi aplicado pelo classicismo do século XVIII a qualquer obra reprovável que lembrasse a ornamentação e a arquitetura de um Borromini (isto é, toda a arte do século XVII), deu-se a historização13. Barroco, então, passou a ser uma qualificação neutra para designar o estilo que veio em seguida ao Renascimento, o que abriu um leque de possibilidades para o seu emprego. Em primeiro lugar, é necessário deixar claro que, isoladamente, nem a tese do historiador Paul Oskar Kristeller nem a do seu colega italiano Eugenio Garin conseguem 12 Cada intermezzo da Pellegrina foi musicado por um compositor diferente, entre eles Cristofano Malvezzi, Luca Marenzio, Emilio de Cavalieri, Giulio Caccini e Jacopo Peri (Cf. MACHADO COELHO, 33), procedimento que tinha se tornado quase tradição nesse gênero. O resultado foi, como frequentemente, que a comédia amorosa de dois casais trocados recebeu interlúdios musicais que nada tinham a ver com a representação. Os intermezzi abordavam temas extremamente variados: a Harmonia das esferas, o combate entre as Piérides e as Musas, a luta de Apolo com a serpente Píton etc. (ver DELLA CORTE-PANAIN, I, 347-8) Do primeiro intermezzo conserva-se um desenho de Agostino Carracci representando a Harmonia das Esferas. Todo o final da República de Platão, com o mito de Er e a visão da transmigração das almas, juntamente com os planetas, as irmãs Cloto, Láquesis e Átropos (deusas do destino) e muito mais desfilaram nesse espetáculo. Conserva-se o diário de um nobre que assistiu à representação e afirmou que estava muito bonita, mas ninguém conseguiu entender o que significava aquilo tudo (PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 87, 91). 13 No século XIX, a declaração de Ranke, de que “cada estilo responde imediatamente perante Deus”, deu o golpe de misericórdia no sistema classicista de valoração, invalidando qualquer tentativa de avaliar um estilo comparando-o com algum outro (ver PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 36).

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dar conta do fenômeno renascentista e suas metamorfoses internas como um todo. A linha de Garin, porém, é muito mais flexível na escolha dos objetos determinantes para o estudo histórico, o que a torna mais apropriada para uma aproximação justamente com o período que nos interessa, o Renascimento, visto que este é muito rico em manifestações heterodoxas tanto no campo das artes como no da filosofia. Já Kristeller, desconsiderando a influência mútua de filosofia e arte, não fornece ferramenta que nos seja suficiente para a leitura de uma obra que concentre múltiplos vieses do pensamento humanista, como é o Orfeo. Seu entendimento mais ortodoxo do que seja a história levou-o a afirmar que “o período do Renascimento trouxe consigo muitas mudanças importantes na posição social e cultural das várias artes, preparando o terreno para o posterior desenvolvimento da teoria estética. Porém, ao contrário da opinião largamente difundida, a Renascença não criou um sistema de Belas Artes ou uma teoria estética coerente”14. Para Kristeller, a arte do Renascimento – incluindo-se aí toda a produção literária dos humanistas – teria permanecido isolada em seu próprio âmbito, sem criar nem receber influências da filosofia e vice-versa. O processo evolutivo ocorrido com as artes teria sido decorrente da excelência técnica atingida e de correlações com ciências exatas, tais como a física e a matemática. Nessa ótica, toda a esfera artística da atividade do homem renascentista teria sido absolutamente não filosófica. O fenômeno renascentista como um todo seria devedor da sua sinergia interna ao pouco estudado Aristotelismo da época. Este sim, constituiria a metade filosófica do fenômeno renascentista, a metade perdida do quebra-cabeças. A ambição dos artistas de elevar o status da sua profissão foi o que, segundo Kristeller, prova que [...] mesmo o desejo dos escritores do Renascimento em relação aos pintores, de terem sua arte reconhecida enquanto liberal, ainda que contando com fraco apoio das autoridades constituídas, foi significativa enquanto tentativa de alcançar a posição social e cultural da arte da pintura e de outras artes visuais, e de obter o mesmo prestígio que a música, a retórica e a poesia vinham desfrutando há muito tempo. E considerando-se que era ainda evidente que em relação às artes liberais tratava-se, em primeira linha, de ciências, ou conhecimentos apreensíveis, podemos entender por que Leonardo da Vinci tentou definir a pintura como ciência, enfatizando sua estreita relação com a matemática15.

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“The period of the Renaissance brought about many important changes in the social and cultural position of the various arts and thus prepared the ground for the later development of aesthetic theory. But, contrary to a widespread opinion, the Renaissance did not formulate a system of the fine arts or a comprehensive theory of aesthetics” (KRISTELLER, 509). 15 “Yet the claim of Renaissance writers on painting to have their art recognized as liberal, however weakly supported by classical authority, was significant as an attempt to enhance the social and cultural position of painting and of the other visual arts, and to obtain for them the same prestige that music, rhetoric, and poetry had long enjoyed. And since it was still apparent that the liberal arts were primarily sciences or teachable knowledge, we may well understand why Leonardo tried to define painting as a science and to emphasize its close relationship with mathematics” (KRISTELLER, 512). 14 | Ronel Alberti da Rosa

Como veremos adiante, é excessivamente rígida a posição de Kristeller, para quem arte e filosofia ocupam âmbitos separados e não permeáveis. Todo o plano do poema de Striggio e sua consequente composição por Monteverdi seguem uma concepção cosmológica neoplatônica, tanto no fundamento de suas proposições quanto no tema, nas questões propostas e na forma escolhida para dizê-lo. Tanto mais incompreensível, para quem conhece esse contexto, uma afirmação como a de que “não parece que a visão de Plotino, de que o Belo resida nos objetos da visão, audição e pensamento tenham exercido qualquer influência especial, naquela época [no Renascimento]”16. O italiano Eugenio Garin foi defensor de uma linha oposta a essa, sendo ele um historiador da arte, devedor do pensamento de Hegel e da concepção de que o material da obra de arte é história sedimentada. Em Adorno (Filosofia da nova música) lemos que “as exigências do material para com o sujeito provêm muito mais do fato de o próprio material ser espírito sedimentado, socialmente pré-formado através da consciência dos homens”17. Nas Preleções de Estética hegelianas, encontramos que não é apenas o sensível que se manifesta na obra de arte, e sim o Espírito que se manifesta enquanto sensível18. Para Garin, as muitas manifestações artísticas não sistemáticas do Renascimento constituem uma nova forma de fazer filosofia. A filosofia, portanto, sem se restringir aos grandes sistemas, pode ser um tipo de especulação não sistemática, aberta, problemática e pragmática19. A filosofia hegeliana da história eleva a arte ao nível de teoria do conhecimento, uma espécie de caminho alternativo independente da filosofia. Garin trabalhou com essa mesma tese, valorizando a correlação de arte e conhecimento, em especial a correlação de arte e estudo reflexivo do espírito humano. Partindo do princípio de que a arte é uma das formas de expressão do espírito humano, entenderemos que, através dela, o espírito humano conhece a si mesmo. Estudar um determinado período da história, incluindo a arte e suas trocas materiais e formais com outras ciências do conhecimento, seria um caminho para investigar o homem. Dessa forma, a história da arte deve ser sempre pensada como uma faceta da história da filosofia. É isso que, para Garin, constitui a especificidade do pensar humanista daquele período histórico, “a atenção filológica para com os problemas particulares constitui precisamente a nova filosofia [do Renascimento], ou seja, o novo método de examinar os problemas, que, portanto, não deve ser considerado, ao lado da filosofia tradicional, um aspecto secundário da cultura renascentista, como acreditam alguns, e sim como o próprio filosofar efetivo”20.

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“It does not seem that Plotinus’ view that beauty resides in the objects of sight, hearing, and thought exercised any particular influence at that time” (KRISTELLER, 516). 17 “Die Forderungen, die vom Material ans Subjekt ergehen, rühren vielmehr davon her, dab das ‘Material’ selber sedimentierter Geist, ein gesellschaftich, durchs Bewubtsein von Menschen hindurch Präformiertes ist” (ADORNO: Philosophie der neuen Musik, 39). 18 “Manifestiert sich im Kunstwerk [...] nichts bloß Sinnliches, sondern der Geist als im Sinnlichen erscheinend” (HEGEL, G.W.F. Ästhetik. Bd. II., 255). 19 Ver REALI-ANTISERI, III, 7. 20 GARIN apud REALE-ANTISERI, III, 7. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 15

A partir daí, podemos reapresentar a pergunta acerca da pertença do Orfeo: Renascimento ou Barroco? Reconheçamos que o fundamento, isto é, o imaginário que move a arte na passagem do século XVI para o XVII, não se alterou substancialmente. A Reforma e a reação vinda de Roma expuseram, é certo, de que forma violenta o tecido social podia reagir às divergentes propostas estéticas, quando essas expressavam uma visceral ligação com a ideologia vigente. Ainda assim, se olharmos para a arte na Itália e sua evolução em meados do século XVI, veremos que o resultado efetivo do Concílio de Trento (1545-1563) foi apenas o de promulgar por decreto um sentimento que já estava maduro na intelectualidade artística ao Sul dos Alpes – o que confirma que o Renascimento constituiu-se num movimento cuja marca distintiva foi o de uma constante evolução das técnicas e das linguagens. O que o fez continuar a ser Renascimento através do tempo foi a ligação que manteve com as raízes do Humanismo latino, e não qualquer alteração na maneira de pintar a perspectiva, erguer uma colunata ou resolver uma dissonância musical. Robert Morey definiu o Renascimento como “o período que fez o homem e a natureza mais interessantes que Deus” para demarcar o seu final apenas quando do surgimento da estrada de ferro e das plantas industriais, isto é, o período em que o homem e a natureza tornaram-se menos importantes e menos interessantes do que essas forças “antinaturais e anti-humanas”. O surgimento dessas novas forças, e não o Barroco, significa o verdadeiro fim do Renascimento21. Nas próximas páginas, examinaremos em maior detalhe a contribuição de Striggio com o texto e a de Monteverdi com a música. Entenderemos, então, por que o Orfeo é uma síntese e que tipo de síntese ele é, em que medida é renascentista e o quanto de Barroco ele tem.

Striggio – o texto Os versos de Striggio atestam a mesma busca por clareza que orientou Monteverdi na parte musical. A variada metrificação que reuniu no Orfeo é superior a de seus predecessores na forma e no material. Comparando com algumas passagens do texto de Rinuccini para a Dafne (1597) de Gagliano, veremos como, ali, em vários pontos, o discurso dos personagens se alonga desnecessariamente. Como Striggio tinha podido estudar antes o libretto do La Pellegrina, aparentemente percebeu esse defeito no plano geral do poema. Na Dafne, por exemplo, Rinuccini sacrifica o equilíbrio formal e até a lógica dramatúrgica em prol das belas sonoridades e das rimas: A) no final da 1ª cena, Ninfas e Pastores agradecem a Apolo, depois de ele ter matado a serpente Píton (“Almo Dio, che l’carro ardente / per lo ciel volgendo intorno...”); B) na 3ª cena, a narrativa do pastor de como Apolo venceu a serpente Píton (“Febo, che fa nel’alto / rotar la face onde s’aggiorna il mondo...”); 21

Ver PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 107.

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C) na 4ª cena, novamente Ninfas e Pastores em diálogo com a deusa Vênus (“Non si nasconde in selva / sul dispietata belva...”); D) na 5ª cena, o pastor Tirse descreve às ninfas e aos pastores como a ninfa Dafne, perseguida por Apolo, se transformou em uma árvore de louro (“Quando la bella ninfa, / sprezzando iprieghi del celeste amante...”). Somados, esses poucos exemplos concentram em si uma parcela por demais extensa do poema, prejudicando o dinamismo da ação: são 155 versos de um total de escassos 440. Em Striggio, os monólogos, mais enxutos, não cedem à tentação do exercício puro da sonoridade: o Orfeo tem 678 versos, e não há personagem que tenha recebido alguma fala que ocupe um espaço proporcionalmente tão grande quanto os apontados na Dafne de Rinuccinni. Toda a atenção de Striggio estava voltada para o propósito de comover a plateia – isso era o que Caccini tinha exposto no Prólogo das suas Nuove Musiche (1602), ao afirmar que “dagli affetti nascono gli effetti”: os efeitos nascem dos afetos. Isto é, o efeito pretendido, que era o de emocionar – velha aspiração de ressuscitar o vigor mágico da tragédia grega – seria obtido através da expressão, pelo poema e pela música em conjunto, da comunhão de verbo e voz humana cantada. E, convencido de que esse efeito só se efetivaria plenamente se a obra obedecesse a um plano equilibrado de distribuição das ações nos diversos atos e de correspondências internas entre o tamanho dos versos, Striggio impôs freios à proverbial verborragia florentina. E ele não apenas arquitetou toda a sua obra obedecendo a um esquema de proporcionalidade: aproveitando-se do tema mitológico, semeou ao longo da obra boa quantidade de figuras neoplatônicas. O Apolo de Striggio não é meramente o deus Sol que aparece no final para consolar seu filho dileto: ele é o próprio espírito que move o universo, é o intelecto divino que anima a razão humana, o patrono da linguagem lógica e da consciência, e tudo isso ainda recebe contornos cristianizados, já que Apolo é apresentado como um deus que tudo vê e tudo sabe: “Sol, que tudo abarca e tudo vês”22. E esse deus está, efetivamente, em tudo o que é claro e luminoso, em todas as coisas boas e belas: ele está no dia claro, nos olhos de Eurídice, na tocha do Himeneu. Ele abençoa tudo o que toca, e até a noite transforma em dia. Sob a égide de Apolo, até a ignorância cede ao conhecimento, até o sofrimento (dos que creem apenas na matéria) dá lugar à felicidade (dos que conhecem as coisas eternas e divinas): “...beatificados pelo sol, / pelo sol que transforma minhas noites em dia”23. O Apolo de Striggio é quase um Platão ou um Plotino cantante, ao exortar à moderação e ao controle das emoções. Ele frisa que felicidade verdadeira não perdura aqui no mundo físico dos fenômenos (“Ainda não sabes / que nada embaixo é alegre e perene?”)24, mas assegura que ela é eterna lá no céu, onde não existe dor. Como Deus Pai enviou Cristo para convidar os fiéis a partilharem da beatitude celeste, assim Apolo oferece a Orfeu: “Se queres gozar vida imortal, / vem comigo ao céu, eu te convido”25. 22

“Sol, ch’il tutto circondi e ‘l tutto miri” (ORFEO, ATTO I). “...da quel sol fatte beate / per cui sol mie notti han giorno” (ORFEO, ATTO II). 24 “Ancor non sai come nulla qua giù diletta e dura?” (ORFEO, ATTO V). 25 “...se goder brami immortal vita / vientene meco al ciel ch’a sé t’invita” (ORFEO, ATTO V). 23

A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 17

A dualidade platônica recebe sua contrapartida em figuras de metáfora referentes à escuridão e relacionadas com a morte e o reino dos mortos do Hades. Só o pharmakon platônico pode curar o homem de suas incertezas e carregar “...para longe o horror e a sombra / das preocupações e das dores”26. Dores que preponderam neste mundo frágil, instável e entregue à corrosão do tempo: “...após nuvens escuras e furiosa / tempestade assustarem o mundo...”27. A mensageira, portadora da notícia da morte de Eurídice, que “obscureceu” a alegria luminosa dos pastores e das ninfas, compara-se a uma “infeliz ave noturna, do sol fugirei sempre...”28, e o Hades, o inferno dos que não buscam o conhecimento, é “reino triste e tenebroso / onde nunca batem raios de sol”29. Sol e escuridão representam aqui os dois planos da dualidade platônica: o efêmero mundo das aparências e o mundo ideal, perene e perfeito. Tudo o que existe no mundo das aparências são projeções que devem sua existência passageira ao mundo ideal e metafísico que constitui seu fundamento ontológico, pois, como atesta um pastor, “é do céu tudo o que aqui embaixo se encontra” 30. Só os que conquistam a virtude – o conhecimento de coisas verdadeiras – se elevam acima do mundo material: a virtude “não teme o ultraje do tempo, pelo contrário: ainda maior se torna, ao envelhecer, seu esplendor”31. Striggio trabalha o tempo todo com essa oposição, que só pode ser superada com a ajuda da arte: seja na forma de Música, no Prólogo, seja como o próprio Apolo, no Ato V, é sempre ela que vai socorrer Orfeu lá onde mesmo a Esperança não alcança, mediando entre os dois planos de existência. É ela quem transfere a Orfeu – ao homem, bem entendido – o poder de transcender a condição de mortal e finito e alçar-se ao céu e à eternidade: “subamos, cantando, ao céu, / onde a virtude verdadeira / recebe seu digno prêmio”32. Outro mérito de Striggio consiste em ter substituído o poder mediador do Eros pelo da Música, uma opção que se revelou plausível e adequada, considerando-se o tema da obra. O Amor como princípio cósmico de união dos planos de existência é o que Ficino tinha chamado de vis generandi, força geradora. Existe uma figuração muito ilustrativa desse princípio no quadro Amor sacro e amor profano, de Tiziano, hoje no museu da Villa Borghese: nele, um putto, um pequeno anjinho (Eros), brinca com a água de um sarcófago sobre o qual estão sentadas duas Vênus: uma vestida – representando o amor às coisas materiais – e outra nua – que corresponde ao amor às coisas divinas. Na Adoração dos Pastores, de Ghirlandaio (Santa Trinitá, Florença), é o menino Jesus que assume o papel do Amor transcendente, postado em frente a um sarcófago antigo (referência à morte das crenças pagãs) e cheio de água: o sarcófago que deveria abrigar

26

“... lunge omai disgombre / de gli affanni e del duol le nebbie e l’ombre” (ORFEO, ATTO I). “...poiché nembo rio gravido il seno / d’atra tempesta inorridito ha il mondo...” (ORFEO, ATTO I). 28 “Nottola infausta,/ il sole fuggirò sempre...” (ORFEO, ATTO II). 29 “...regni tenebrosi e mesti / ove raggio di sol giammai non giunse” (ORFEO, ATTO III). 30 “...è dal ciel ciò che qua giù s’incontra” (ORFEO, ATTO II). 31 “...di tempo oltraggio / non teme, anzi maggiore / divien se più s’attempa il suo splendore” (ORFEO, ATTO IV). 32 “Saliam, cantando al cielo, / dove há virtù verace / digno premio di sé...” (ORFEO, ATTO V). 27

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um cadáver está agora cheio da água da vida, graças a Jesus Cristo, que é o grande mediador entre céu e terra. No referente aos versos, Striggio evitou escrever apenas versos rimados e excessivamente cadenciados, como nos modelos que o precederam – isso forçaria a música a repetir melodias estróficas e transformaria o drama em um longo canto de roda. Desde o primeiro Renascimento que a Itália convivia com esmeradas reproduções de hexâmetros, pentâmetros e outros expedientes de técnica refinada da Antiguidade; a impressão, porém, não era a de imitação dos clássicos. Virgílio, Ovídio, Lucano, Claudiano e Estácio eram objeto de estudo acurado, não resta dúvida – mas, observa Burckhardt, “a forma antiga permanece mera questão de erudição, tanto quanto a temática antiga”33. Comparemos a seguinte passagem da Dafne de Rinuccini com os versos brancos escritos por Striggio para Proserpina pedir clemência por Orfeu a Plutão: Rinuccini Pastores Mira dal ciel, deh mira: nudi di fronde omai questi arboscelli, pallide l'erbe e torridi i ruscelli; mira dal ciel, deh mira: tra lagrime e lamenti tender le palme al cielo sconsolati pastor, ninfe innocent34.

Striggio Proserpina Deh, se da queste luci amorosa dolcezza unqua traesti se ti piacque il seren di questa fronte che tu chiami tuo cielo, onde mi giuri, di non invidiar sua sorte a Giove, pregoti per quel foco con cui già la grand'alma Amor t'accese, d'Orfeo dolente il lagrimar consola, e fa' che la sua donna in vita torni al bel seren dei sospirati giorni35.

Os versi sciolti36 (versos brancos), apesar de guardarem proporção métrica – são hendecassílabos –, não têm rima no final, sendo mais adequados para serem transpostos em música, e mais ainda em uma nova forma musical que se propunha a valorizar expressivamente o texto e a entonação das frases. Em outras palavras: restringindo o aparato formal, o artista pôde melhor dar vazão ao pathos do conteúdo que pretende 33

BURCKHARDT, 180. “Olhem para o céu, ah, olhem: / agora, estes pequenos arbustos têm as frontes nuas, / as campinas estão pálidas e tórridos os riachos; / olhem para o céu, ah, olhem: / entre lágrimas e lamentos, / estendam as palmas [das mãos] ao céu, / desconsolados pastores, / ninfas inocentes” (RINUCCINI: Dafne, Scena I). 35 “Vê: se alguma vez tu destes olhos meus / provaste doçura amorosa, / se a ti agrada a serenidade desta fronte / que chamas de teu céu, e me juras / não invejar a sorte de Júpiter, / peço-te pelo amor a esta chama / com a qual o Amor inflamou tua grande alma: / consola o pranto dolente de Orfeu, / e faz com que sua mulher retorne, viva, / à felicidade serena dos saudosos dias” (ORFEO, ATTO IV). 36 O italiano versi sciolti corresponde, em português, a versos brancos, como explicado no texto. Verso solto, em português, refere-se ao verso branco inserido entre versos rimados. 34

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comunicar. Mas nem todo o Orfeo está escrito dessa forma. Striggio combinou os versos brancos com passagens com metro e rima regulares, fornecendo ao compositor maior variedade de meios de expressão. Oggi fatt’è pietosa l’alma già sì sdegnosa de la bella Euridice; oggi fatt’è felice Orfeo nel sen di lei, per cui già tanto per queste selve ha sospirato, e pianto37.

Monteverdi – a música O Prólogo do Orfeo transmite ao ouvinte uma impressão completamente diferente da de um moteto como, por exemplo, o Pater Noster de Jacobus Gallus (Handl). No Prólogo da ópera, o personagem da Música, que abre a ópera, canta cinco estrofes sobre praticamente o mesmo baixo e a mesma harmonia, em uma linha melódica com figuração rítmica muito tranquila. Entre cada estrofe, ouvimos uma versão abreviada – e sempre a mesma – do Ritornello que precedeu a entrada da personagem. Muito diferente disso, Jacobus Gallus, que viveu de 1550 a 1591, compôs o seu Pater Noster para um coral de oito vozes mistas, em estilo polifônico imitativo. Ele inicia com as quatro vozes masculinas que entram cada uma em tempo diferente, algumas realizando figuras pontuadas e ornamentadas para serem, em seguida, respondidas pelas vozes femininas, que fazem o mesmo jogo florido de movimentos imitativos paralelos ou em espelho. O moteto não apresenta uma única repetição nem de frase nem de combinação das vozes; no desenvolvimento, o intervalo entre o tempo de entrada das vozes vai se tornando cada vez menor, até chegar a um clímax longo e bem calculado sobre a palavra Amen, no qual todas as vozes se imitam e se respondem. Ao primeiro olhar, a obra de Gallus é que deveria tratar-se de um exemplo de música barroca, muito mais que o Prólogo do Orfeo: no Pater Noster, nos deparamos com uma agitação constante, contrastes de timbres (entre vozes de homens e de mulheres) de efeito francamente dramático, além de variações incessantes na combinação e na forma de apresentar os temas. O Prólogo do Orfeo, a cargo da Música, pelo contrário, apresenta divisões claras, com cada estrofe sendo totalmente autossuficiente em seus movimentos de arsis e thesis, com repouso final muito bem marcado pela cadência. Não há confusão nem dúvida a respeito do início ou fim de cada seção, graças ao Ritornello instrumental, que fornece uma articulação muito clara ao conjunto das cinco estrofes. 37

“Hoje, foi feita piedosa / a alma outrora tão desdenhosa / da bela Eurídice;/ hoje foi feito feliz / Orfeu em seu regaço, pelo qual já tanto / havia suspirado e chorado nestes bosques” (ORFEO, ATTO I). 20 | Ronel Alberti da Rosa

O que não podemos esquecer é que uma obra como o Pater Noster de Jacobus Gallus se situa no ponto culminante do desenvolvimento da polifonia do século XVI, e, como tal, já apresenta sinais de fadiga estilística dentro da sua época. Recuemos a meados do Cinquecento e consideremos um compositor como o flamengo Josquin des Prés (14501521): veremos que o frescor da sua escrita não precisa de nenhum efeito espetacular. O contraponto de Josquin está sempre a serviço de uma máxima naturalidade no desenvolvimento da música, não há exageros nem movimentos que não cumpram um papel estrutural no plano da obra. Dieter de la Motte, em seu Kontrapunkt, descreve uma passagem técnica e o resultado expressivo resultante: “ocasionalmente [em Josquin], somos testemunhas da excepcional expressividade de uma passagem graças a uma única voz. No sereno Qui tollis da Missa De beata Virgine, a terceira voz começa de repente, com salto ascendente, em colcheias, cujo movimento cruzado de quintas e oitavos não tem igual em toda a Missa. É um Miserere Nobis como grito de socorro38. Em oposição a Josquin, um polifonista como Gallus, com seu emprego do contraponto à guisa de virtuosismo escolástico, pertence ao grupo de compositores do baixo Renascimento ao qual hoje alguns historiadores se referem como maneiristas. Apesar do tom algo exacerbado, é fácil compreender o espírito do maneirismo se atentarmos para a descrição de Hauser, para quem “uma obra de arte maneirista é sempre uma peça de bravura, um truque triunfante de prestidigitação, uma exibição de fogos de artifício com centelhas e cores volantes”39. Poderemos entender melhor o estilo de Gallus, de Palestrina (1525-1594), Luca Marenzio (1550-1599), e mesmo dos dois Gabrieli, Andrea (1510-1596) e Giovanni (1557-1612), se os compararmos com o ideário renascentista quando ainda relativamente intacto, no início do século XVI. Os primeiros polifonistas renascentistas aspiravam criar consoante a natureza e os limites inerentes ao homem; considere-se, daí, dado naturalmente o tamanho das frases (medidas pelo alcance da respiração humana), a dinâmica e os processos de variação e ornamentação. Já os polifonistas da segunda metade do século XVI passaram a privilegiar a riqueza – e a artificialidade – de detalhes isolados, valorizando mais a forma da representação que sua conformidade com o humano. Ao contrapormos uma composição como o Orfeo às missas e motetes de autores maneiristas, fica evidente que o que hoje chamamos de Barroco tinha como propósito, em um primeiro momento, reagir contra os artifícios exagerados e contra o tratamento escolástico do material – suas metas eram uma maior clareza, uma simplicidade natural e o equilíbrio40. Tudo isso não contradiz a teoria dos afetos de Caccini nem a forte carga dramática da música barroca. Pelo contrário: as emoções eram valorizadas como naturais

38

“Bisweilen sehen wir den besonderen Ausdruck einer Stelle in eine einzige Stimme gelegt. Im ruhigen Qui tollis der Missa De beata Virgine beginnt die dritte Stimme auf einmal (mit Aufwärtssprung!) eine steigende Viertelbewegung, deren Quint-Oktav-Zickzack in der ganzen Messe nicht seinesgleichen hat. Miserere nobis als leidenschaftlicher Aufschrei” (DE LA MOTTE, 122). 39 Ver HAUSER, Arnold. Maneirismo – a crise da Renascença e o surgimento da arte moderna. 40 Uma comparação análoga, feita entre o trono de São Pedro, de Bernini (Basílica de S. Pedro, Roma), e a tumba do cardeal Sforza, de Andrea Sansovino (Sta. Maria del Popolo, Roma), pode ser lida no artigo ¿Que es el Barroco?, 37-41, de Erwin Panofski. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 21

no homem, e, como tal, deveriam ser expressas de forma simples e direta em uma composição, sem rebuscamentos que obscurecessem seu verdadeiro sentido e importância. No fim do Seiscento, a sintaxe quase se dissolve – não apenas o encadeamento entre as diversas unidades temáticas perdeu a clareza originalmente pretendida, também o limite entre a obra de arte e o seu entorno vai se desfazendo: as imitações contrapontísticas são tantas que as vozes se confundem com o espaço, não permitindo distinguir o que é canto, o que é ressonância e o que é eco. No Barroco, teremos um retorno à autossuficiência da estrutura, graças à libertação da verdadeira compulsão ao virtuosismo que afligiu o maneirismo. O Orfeo pode ser compreendido – cada palavra – sem comentários adicionais, mas o mesmo já não ocorre em uma obra de Palestrina ou dos Gabrieli: não só o texto tinha se tornado incompreensível como a expressão dos afetos era sacrificada no altar da voluptuosa e escolástica exibição técnica. Esse quadro aponta para aspectos de um problema intrínseco ao Renascimento desde o princípio, que são suas contradições internas – contradições estas não existentes na Idade Média. As discrepâncias interiores do Renascimento devem-se à acomodação forçada de um naturalismo (supostamente) clássico dentro de uma civilização essencialmente cristã 41. Se tomarmos qualquer moteto polifônico do século XVI, observaremos que as linhas dialogam usando os artifícios da técnica – imitação, movimento paralelo, movimento contrário, aumento ou diminuição –, mas o material empregado é claramente medieval! Os temas tratados são ou extraídos diretamente do Liber Usualis ou de outro hinário medieval42, ou recriados com as mesmas fórmulas modais que imperaram na Europa nos primeiros mil anos depois de Cristo. A expressão que se pretendia era renascentista, mas o material e o fundamento, medievais. Uma reconciliação como a de Josquin43 não chega a durar, pois logo tem de haver-se com uma forte reação de tendência maneirista. O maneirismo, portanto, consegue a intensificação da expressão emocional e da espiritualidade, mas sacrifica o equilíbrio entre música e texto, que praticamente sucumbe em meio aos movimentos das vozes. Uma tensão nunca resolvida – e nunca resolvível – toma conta da obra, que se assemelha a um embate de forças desafiantes. A seconda pratica de Monteverdi e dos florentinos constitui-se, assim, mais em um movimento de reação ao maneirismo da polifonia tardia que contra o espírito original do Renascimento clássico. A promessa do Orfeo é de poder reconduzir aos ideais clássicos que nortearam o Renascimento, ao mesmo tempo significando um chamamento pelo resgate da natureza no que ela pode ser inspiradora de normas, estilos e de jogos de emoções. A partir desse ângulo, a atitude do Barroco pode ser definida como resultante de um conflito objetivo entre forças antagônicas, as quais, não obstante, fundem-se em um sentimento subjetivo

41

O tema da tensão interna na arte do Renascimento foi desenvolvido por Panofski, no seu ¿Que es el Barroco? 42 Isso vale especialmente para as numerosas e apreciadas missas cantus firmus, como as Da Pacem, De beata Virgine e Pange lingua (Josquin) e as Sanctorum meritis, Viri Galilaei e O Rex gloriae (Palestrina), para citar alguns poucos exemplos. 43 Outros mestres flamengos da mesma escola e que lograram um equilíbrio como o de Josquin foram Jacob Obrecht (1430-1505), Johannes Ockeghem (1430-1495) e Jean Mouton (1470-1522). 22 | Ronel Alberti da Rosa

de liberdade e, inclusive, de prazer: o paraíso da alta Renascença é recuperado depois das lutas e das tensões do período maneirista, mesmo que ainda apresente-se perturbado (e, inclusive, animado) pela intensa consciência de um dualismo subjacente44. A construção simétrica que domina todos os atos do Orfeo e permeia inclusive as relações tonais entre eles é a realização desta promessa:

“Ahi, caso acerbo!”

“Ahi, vista troppo dolce.”

A Mensageira traz a notícia

Despedida de Eurídice

Esses dois momentos, os mais dramáticos da obra, também são precedidos por episódios musicais análogos: nos dois casos, uma ária de Orfeu, estrófica e em forma de canzonetta, de caráter rítmico, em que a tônica – do ponto de vista dramático – é a alegria e o sucesso. Antes da Mensageira, Orfeu canta a alegria de não precisar mais lamentar-se por amor, já que conseguiu conquistar o amor da ninfa Eurídice. Antes de perder Eurídice pela segunda vez, no Hades, Orfeu canta o triunfo de sua música sobre os poderes infernais.

“Vi ricorda, o boschi ombrosi”

Orfeu

(Recordai, ó bosques sombreados)

Entrada da Mensageira

“Qual onor di te fia degno” (De que honra te fizeste digna)

Catástrofe

Perda definitiva de Eurídice

Coro

“Degno d'eterna gloria fia sol colui ch'avrà di sé vittoria.”

“...spesso a gran salita il precipizio è presso.”

(Muitas vezes, junto à maior das alturas, está o precipício.)

(Digno de eterna glória é apenas aquele que vence a si mesmo.)

44

PANOFSKI, ¿Que es el Barroco?, 67. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 23

Nas duas oportunidades, a quebra dramática é expressa musicalmente por um movimento harmônico inesperado; fazendo-os ser precedidos por uma canzonetta de caráter despreocupado, Monteverdi não apenas reforça a sensação de surpresa e de desamparo diante da catástrofe: ele traduz em sons o legado estético e filosófico que Striggio havia lhe confiado em seus versos. Da mesma forma, como se observa no esquema anterior, a conclusão musical dos episódios é feita por um coro – de pastores e, posteriormente, de espíritos – que, como na tragédia grega, comenta os acontecimentos e fornece a moral que finaliza a cena. Esse esquema francamente geométrico de ressonâncias pitagóricas tem como suporte a teoria platônica de que os modos – no caso da música do século XVII, as tonalidades – têm correspondência direta com o ethos do intérprete e dos ouvintes. Na República, no Livro III, Sócrates convence Adimanto de que nem todos os modos são apropriados para uma boa formação dos futuros governantes: - Quais são, pois, as melodias plangentes? Diz-mo tu, que és músico. - A mixolídia, a sintonolídia e outras mais. - Essas, portanto, devem ser suprimidas, não achas? Porque não são apropriadas nem sequer para mulheres de mediana posição, quanto menos para homens.[...] - Quais são, pois, as melodias moles e as dos banquetes? - Há variedades da jônia e da lídia que costumam ser qualificadas de frouxas – respondeu ele. - E teriam elas, meu caro, alguma utilidade para um público de guerreiros? - De modo algum – respondeu. – Mas me parece que omites a dórica e a frígia. - É que não entendo de harmonias – disse eu. – Mas quero uma que seja capaz de imitar devidamente a voz e os acentos de um herói na hora do perigo e da austera resolução, ou quando sofre um revés, um ferimento, a morte ou qualquer infortúnio semelhante [...] e outra que se possa usar em tempo de paz, quando, em plena liberdade de agir e sem sentir a pressão da necessidade, procura convencer a outrem de alguma coisa [...]. Essas duas harmonias são as que deves deixar: a voz da necessidade e a da liberdade, os acentos do homem infortunado e os do homem feliz, o canto da coragem e o da temperança [...]. - Pois essas – disse ele – não são outras senão a dórica e a frígia, de que eu falava há pouco45.

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República, III, 398c-399a.

24 | Ronel Alberti da Rosa

De acordo com o exposto, Monteverdi empregará conscienciosamente as tonalidades em sua composição: a) há uma clara opção pelo SOL maior nos episódios alegres e festivos (os conjuntos do Ato I e o coro final da ópera, no Ato V); b) onde quer que haja uma intervenção divina, o SOL menor é que se faz presente (o coro Vieni Imeneo [pedindo que o deus do casamento seja propício àquela união], a ária Rosa del ciel [onde Orfeu louva seu pai Apolo], o canto de Apolo, no Ato V; c) as duas perdas de Eurídice estão unidas por tonalidades vizinhas, MI menor e LA menor. Essas tonalidades escolhidas por Monteverdi correspondem às emoções – aos affetti – que devem ser despertados nos ouvintes, consoante a crença de que todo o Universo, com suas relações de medidas, pode – e até deve – ser reproduzido no microcosmo de uma obra de arte, seja ela um poema, uma composição, ou um projeto arquitetônico, que dão seguimento à tese de Palladio de que “a relação das notas entre si determina sua harmonia para o ouvido; a relação das medidas determina sua harmonia para os olhos; tais harmonias nos embevecem com frequência, sem que ninguém saiba dizer por que – ninguém salvo aquele que pesquisa a causa das coisas”46. Prólogo – La Musica

La Favola d’Orfeo ATO I: EXPOSIÇÃO FESTA DE CASAMENTO

Dal mio Permesso amato Introdução: reino terrestre e mortal Louvor aos governantes deste mundo

Nível de ação zero Introdução: explicação da situação Desenvolvimento: cena pastoril Conclusão: coro Ecco Orfeo ATO II: DESENVOLVIMENTO PRIMEIRA PERDA DE EURÍDICE DRAMA 1

Io la Musica son Desenvolvimento: Ascenção à esfera do espiritual O poder da Música

Introdução: laços de amizade Primeira canção de Orfeu: Ecco pur Progressão do conflito: cena da Mensageira Conclusão pelo coro: lamento ATO III: CLÍMAX O PODER MÁGICO DE ORFEU

Io su cetera d’or Referência à harmonia do Universo

Ponto Culminante Mais além do drama terrestre, o império da harmonia do Universo. Cerne Formal: o máximo da arte do canto, a ária de Orfeu – Possente spirto Conclusão: Coro – Nulla impresa per uom ATO IV: PERIPATIA SEGUNDA PERDA DE EURÍDICE DRAMA 2

Quinci a dirvi d’Orfeo Peripatia (destinos intercambiados): Retorno à esfera do espírito. Os poderes da Música agindo através de seu campeão, Orfeu

Introdução: notícia do retorno de Eurídice. Segunda ária de Orfeu: Qual onor Desenvolvimento/Conflito: desobediência de Orfeu Conclusão pelo coro: Moral ATO V: APOTEOSE DE ORFEU

Or mentre i canti alterno Conclusão: retorno ao reino terrestre e mortal. Descrição da natureza em paz

46

Nível de ação zero Introdução: lamentos Desenvolvimento/Epílogo: retorno à dimensão cósmica do Prólogo, como uma divindade de igual sabedoria que a Música  Apolo Conclusão: Coro Vane Orfeo

Apud JACOBS, 41. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 25

O esquema a seguir47 exemplifica plasticamente a estrutura concêntrica da obra e sua relação, estrofe por estrofe, com o Prólogo. O próximo esquema48 explicita o ponto central do drama, a ária Possente spirto, e sua relação com a organização dos affetti no Ato III:

Organização dos affetti no III Ato ESPERANÇA Orfeu e a Esperança

Estrutura musical do III Ato 1) Sinfonia III

2) Orfeu: Scorto da te 3) Esperança: Ecco l’atra palude 4) Orfeu: Dove te n’vai

DESESPERO Despedida da Esperança

5) Caronte: O tu, ch’innanzi morte

INSENSIBILIDADE Caronte

PODER MÁGICO DE ORFEU

6) Sinfonia IV 7) Orfeu: Possente spirto

INSENSIBILIDADE Caronte

8) Caronte: Ben mi lusinga alquanto

DESESPERO Orfeu

9) Orfeu: Ahi, venturato / rendetemi il mio ben 10) Sinfonia IV 11) Orfeu: Ei dorme / Rendetemi il mio ben

ESPERANÇA Orfeu faz Caronte dormir

12) Sinfonia III

CONCLUSÃO: Nulla impresa per uom

Finalmente, a mudança de estilo da prima para a seconda pratica, a troca da polifonia pela homofonia vem ainda, como podemos depreender dos quadros anteriores, revestida de um significado espacial e de profundidade, e pode ser entendida como uma troca da audição estereofônica – em que não acontece nunca um momento predominante, com as vozes em contraponto conduzindo o ouvinte sempre em círculos49 em torno da música – pela audição unidirecional e teleológica da monodia recitada. Sem negar o conflito subjacente à audição, por um único ouvinte, de várias vozes, o Barroco regressou

47

Cf. JACOBS, 44-5. Cf. JACOBS, 46. 49 Panofski faz essa comparação aplicada à escultura renascentista, contrapondo o Rapto das Sabinas, de Giovanni Giambologna (Loggia dei Lanzi, Florença) ao São Longinus, de Bernini (Basílica de S. Pedro, Roma). Para Benvenutto Cellini, “Uma boa escultura deve poder ser vista de cem ângulos diferentes” (ver ¿Que es el Barroco?, 64-75). 48

26 | Ronel Alberti da Rosa

ao princípio de uma só linha; a essa homofonia, porém, foram adicionadas distorções – dissonâncias não preparadas – e valores espaciais condicionados segundo o discurso do texto – com pausas expressivas e ritmização declamada, de forma que o ouvinte a percebe enquanto plano sonoro imaginário sobre o qual se projetam tanto os elementos puramente musicais quanto os verbais e dramáticos. Assim, as linhas da perspectiva (na pintura) correspondem à visão individual ou individualista do conceito de gênio e de genialidade, tão caro ao Renascimento e que, na esteira do movimento interno de recuperação dos seus valores, na passagem para o Settecento, encontrará, na música, sua expressão no herói solista da ópera.

L’Orfeo – a fusão A ópera de Striggio e Monteverdi não trouxe apenas inovações e ousadias, pois Orfeo é também devedor dos experimentos teatrais e musicais florentinos. Tudo o que vinha sendo experimentado pelo teatro musical do século transcorrido sedimentou-se, então, numa combinação de recursos novos e antigos. O nome L’Orfeo, una favola in musica já revela a inspiração de fábula pastoral dos autores, com a diferença de serem todos os versos musicados, ao contrário das pastorais antigas, em que a música apenas ilustrava uma ou outra passagem. Como aponta Machado Coelho50, é possível identificar vários elementos da tradição dos quais o Orfeo é devedor:

Intermezzo Tema mitológico Uma vez que o teatro musical do Renascimento ansiava reviver a tragédia grega, era natural que se buscasse inspiração na temática mitológica clássica. A Genealogia Deorum Gentilii (1374) de Boccaccio continuava sendo a fonte principal onde o imaginário dos autores dos séculos XV e XVI buscava informação e inspiração para tratar dos temas desejados. Figuras alegóricas Apresentar versões moralizadas, isto é, cristianizadas, dos mitos antigos, foi uma prática comum na Idade Média. No Renascimento, de certa forma, o caminho se inverte: a alegoria cristã era apenas um dos aspectos da filosofia renascentista. A mitologia da Antiguidade tinha se tornado o tema predileto dos intermezzi, e esta propiciava aos autores

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MACHADO COELHO, 59. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 27

renascentistas oportunidade para introduzirem, em linguagem poética e musical, símbolos e alegorias referentes ainda ao cristianismo e, principalmente, à filosofia neoplatônica51. Efeitos cênicos Máquinas de voar, jogos de espelho e outros não foram invenção do teatro renascentista – já estavam presentes na Grécia clássica. Mas o caráter lúdico e descompromissado dos intermezzi fez com que os efeitos especiais se transformassem em um dos quesitos mais aguardados e valorizados nas apresentações. No Orfeo, a descida ao Hades, a travessia na barca de Caronte, o coro dos espíritos infernais, a descida de Apolo em uma nuvem e a subida apoteótica de Orfeu e Apolo ao céu, no final, são momentos que oferecem régia oportunidade para exibição das máquinas de teatro. Valorização do instrumental Monteverdi não deixa a instrumentação à escolha dos intérpretes, como era ainda de praxe, na época; o diretor musical era quem, antes, decidia por qual instrumento seria executada uma linha que pudesse ser tocada por um instrumento de arco ou de sopro, por exemplo. A fanfarra inicial, que era habitualmente improvisada pelos instrumentistas, também foi toda escrita. A partitura prevê uma orquestra excepcionalmente grande para a época: 38 instrumentos52.

Tragédia Divisão dos atos O Orfeo é a primeira obra musical a apresentar divisão em 5 atos, divisão esta própria da tragédia clássica e, como tal, imitada pelo teatro trágico renascentista italiano em autores como Pietro Aretino (Orazia), Ludovico Ariosto (La tragedia de Tisbe), Gian Giorgio Trissino (Sofonisba), Torquato Tasso, Battista Guarini (Il pastore Fido) e Torquato Tasso (Aminta)53.

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Ver nota 12: “Cada intermezzo da Pellegrina...”. Da lista impressa na partitura de 1609 constam 14 instrumentos de corda, 11 instrumentos de sopro e 13 para fazer o Baixo Contínuo. Ei-la, como foi impressa, com os erros de tipografia: “Duoi Gravicembani, duoi Contrabassi de Viola, Dieci Viole da brazzo, Un Arpa doppia, Duoi Violini piccoli alla Francese, Duoi Chitarroni, Duoi Organi de legno, Tre bassi da gamba, Quattro Tromboni, Un Regale, Duoi Cornetti, Un Flautino alla Vigesima seconda, Un Clarino com tre trombe sordine” (Cf. WHENHAM, 140). 53 Várias dessas tragédias tinham música incidental e também cantada pelo coro ou até por solistas: a Sofonisba (1514 ou 1515) de Trissino possuiu um coro das mulheres cartaginesas, na Orazia (1546) de Aretino, o coro da Virtude intervém cantando breves números. Também a Aminta (1573) de Torquato Tasso tinha fragmentos musicais. Ver DELLA CORTE – PANAIN, I, 327-331. 52

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Prólogo Nas primeiras tragédias de Ésquilo, como Os Persas e As suplicantes, não há Prólogo, a ação começa a desenrolar-se sem caracterização de personagem nem explicação prévia. Esta seria provavelmente (Cf. SCHÜLER, 35) a forma original. Já em Sete contra Tebas, porém, há um Prólogo narrado por Etéocles, rei de Tebas. Temos Prólogo em Sófocles (Traquínias) e, a partir de Eurípedes, há sempre um Prólogo. Mensageiro Expediente dramático comum na tragédia clássica. Em Ifigênia em Áulis [Eurípedes], chega o Mensageiro e comunica que Clitemnestra, Ifigênia e Orestes estão chegando, no Édipo Rei [Sófocles] há dois, o mensageiro de Corinto e o criado do palácio. A mensageira de Striggio, ao anunciar que vai retirar-se para uma caverna, aplica a si mesma o castigo por trazer uma má notícia, seguindo a antiga tradição de sacrificar-se a vida do mensageiro de desgraças. Deus ex machina O expediente de introduzir na trama um deus que, baixado ao palco por uma espécie de guindaste, viesse dar a solução final e completar as partes obscuras do drama, tornou-se mais comum a partir das tragédias de Eurípedes. O Apolo de Striggio/Monteverdi tem a função de garantir um final feliz e uma alternativa ao final trágico com as Bacantes, como na primeira versão prevista por Striggio. A favola pastorale, como era geralmente apresentada em ocasiões de celebração festiva, passou a exigir um lieto finale, e a solução foi compor a tragicommedia: um espetáculo com forma de tragédia, mas com final feliz. Coro Os renascentistas sabiam que, na tragédia clássica, era muito estreita a ligação entre o coro e a ação que por ele era comentada. Originalmente, a própria tragédia tinha sido uma encenação religiosa em honra de Dioniso, nas quais homens com peles de bode entoavam, em coro, lamentos pelo deus morto. Conserva-se hoje um fragmento do coro cantado de Ifigênia em Áulis54.

Madrigal Polifonia Todo o arcabouço teórico do drama musical florentino é baseado na vantagem da homofonia sobre a polifonia. Ainda assim, Monteverdi mistura no Orfeo elementos da prima pratica, a polifonia empregada nos madrigais de Luca Marenzio, de Rore e

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“Nem a mim, nem aos filhos de meus filhos / a expectativa de tais coisas sobrevenha algum dia, / como a que as Lídias com / muito ouro e as esposas dos Frígios / terão, junto aos teares, / falando assim umas com as outras...”. Fragmento do papiro 510, 785-95, da Biblioteca de Leyden, conforme tradução de Wilson A. Ribeiro Jr. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 29

Palestrina: são o coro Lasciate i monti (Pastores e ninfas) e os dois coros dos espíritos, o Nulla impresa e o È la virtute un raggio.

Melodrama florentino Monodia Obras como La Dafne e La Flora, de Gagliano, e a Euridice, de Peri, atestam em que grau o ideal da melodia acompanhada triunfou em Florença, graças ao arcabouço filosófico e teórico que tinha sido formulado pela Camerata Fiorentina. O grande objetivo era mover os afetos tal como na tragédia antiga. Vincenzo Galilei, muito influenciado pelo humanista Girolamo Mei, constatava que a polifonia não apresentava efeito algum, já que, superpondo linhas melódicas diferentes, acabava gerando um caos de sentimentos contraditórios: “... se a contralto canta em modo hipermixolídio, e o baixo em hipodórico, como lógica consequência, os sentimentos correspondentes se anularão entre si.”55 Monteverdi emprega a monodia declamada nos recitativos, mas faz dela um uso bem próprio, com ornamentos e diminutiones tão ao gosto dos polifonistas e, antes dele, mais empregadas em instrumentos de corda ou de sopro.

No teatro propriamente dito, contudo, Burckhardt observa que a Itália do Renascimento só produziu tragédias menores. O drama enquanto forma só se cristaliza como manifestação tardia de uma cultura56 – assim, enquanto o século XVI apresenta-se pobre, o século XVII está em condições de colher – e com o acréscimo da música e do canto – a madura e nova forma de expressão que se constituirá na opera seria. Não é a primeira vez, porém, que monodia e polifonia convivem – essa convivência parece ter sido fundamento estético da transição do século XVI para o XVII. Em 1589, para celebrar as bodas de Fernando I de Medici com Cristina de Lorena, em Florença, dois intermezzi, um sacro e um profano, foram apresentados no dia 2 de maio. Graças ao testemunho minucioso de Baccio Cecchi (Descrizione dell’apparato e de gl’intermedj), sabemos que as duas representações eram uma mescla a mais “barroca” imaginável de estilos de composição. A sacra foi uma L’esaltazione della croce em 5 atos57, e o profano o já citado intermezzo La Pellegrina. Pelo relato de Cecchi, sabemos como coexistiam sem pruridos maiores polifonias do baixo Renascimento e a nova monodia florentina. Na Esaltazione della croce lemos:

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Apud COTELLO, 1. BURKHARDT, 290-1. 57 Significativa a divisão do drama da cruz em 5 atos, próprio da tragédia clássica. A música, de Luca Batti, foi perdida (Cf. DELLA CORTE – PANAIN, I, 343). 56

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No segundo intermezzo, Moisés apenas cantou um madrigal com voz de baixo, sendo as outras partes completadas pelos instrumentos musicais, e o povo, todo cheio de alegria, tributou as devidas graças a Deus, com uma canzona a dois coros, constituídos por oito vozes, e todas triplicadas, e com flautas transversas, cornetti com surdina, órgão, violino, alaúdes grandes e médios, fazendo um concerto pleno e suavíssimo58.

O mesmo ocorre no caso do La Pellegrina: Cecchi relata que, dos 32 intermezzi, apenas 6 eram peças monódicas, outras 26 polifônicas, de 3 a 33 vozes! Mas o La Pellegrina era uma colagem de muitos autores e de muitas temáticas – já o Orfeo consiste na fusão de linguagens em que os autores dos versos e da música reinterpretam e revalorizam a herança para melhor poder superá-la. Monteverdi, assim, apresenta-se como o artista que, voltado para o futuro, concilia homofonia e polifonia. Mas mesmo Vincenzo Galilei, ideólogo do novo estilo, compôs motetos polifônicos59. E, enquanto Galilei – com um pé na Renascença – e Monteverdi – com um pé no Barroco – testemunham suas soluções, cada um ao seu modo, não podemos esquecer o triunfo de Palestrina, conciliando estilos antagônicos do tratamento do texto litúrgico em um só corpo sonoro. E agora podemos nos perguntar: por que não aceitar a solução híbrida já apresentada por Palestrina e recriada com hábil equilíbrio por Monteverdi? Por que insistir em uma solução definitiva para o atrito dialético palavra versus música? Acontece que nos séculos que abordamos aqui só se tocava a música atual, a mais nova, a mais moderna técnica e estilisticamente. Por isso reveste-se de importância vital delimitar-se o que seja atual e o que seja antigo e ultrapassado. O que foi superado não se toca e não se ouve mais, está voltado ao esquecimento, já que só se executa música nova – uma considerável diferença para com a mentalidade atual das salas de concerto. Daí a importância de que se revestiam as disputas teóricas: tratava-se de um combate de vida ou morte para cada estilo. À luz da revalorização dessa herança, entendemos que o Barroco não é a decadência do Renascimento60, é o segundo grande momento desse período e a tomada de um novo fôlego. Muito mais coerente61 é considerá-lo como a fase em que a Renascença supera seus conflitos inerentes sem simplesmente superpô-los de modo forçado, e sim tomando deles consciência e transformando-os em energia emocional subjetiva.

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DELLA CORTE – PANAIN, I, 345. Ver moteto In exitu Israel, para coro duplo a 8 vozes. 60 O termo Barroco enquanto denominação pejorativa de uma Renascença decaída, obscura, irregular não é caso isolado. O mesmo aconteceu, por outras razões, com os termos Gótico e Rococó. 61 Ver PANOFSKI, ¿Que es el Barroco? 59

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I. Os fabricantes de deuses: a síntese mágico-filosófica do Renascimento

Se há uma imagem que pode bem ilustrar a surpreendente síntese que veio a se constituir no pensamento renascentista, esse é o caso do mosaico do pavimento da catedral de Santa Maria Assunta, em Siena. Em 1488, foi inaugurado, com grande ocorrência de público e toda a pompa devida, um baixo-relevo representando o mago Hermes Trismegisto, em uma cornija emoldurada por uma borla de cruzes suásticas entretecidas. Trata-se do mesmo deus Hermes dos gregos – o Mercúrio dos romanos –, uma personagem mítica que era considerada o inventor da escrita, da alquimia e da ciência da interpretação (que até hoje carrega seu nome: a hermenêutica). Esse Hermes seria a reencarnação do deus egípcio Thot, e o artista sienense Giovanni Di Stefano, que realizou a obra por encomenda, representou-o como um venerável ancião envolto em longo manto e usando um chapéu oriental. Com a mão esquerda, ele aponta para uma placa de mármore sustentada por duas esfinges de caudas entrelaçadas, onde se leem trechos esotéricos da sua obra. Mais surpreendente ainda é o escrito aos seus pés: HERMES MERCURIUS TRISMEGISTUS – CONTEMPORANEUS MOYSE (Hermes Mercúrio Trismegisto62, contemporâneo de Moisés)! O pensamento do homem renascentista é este grande cadinho de influências, do qual não podemos excluir os componentes helenísticos tardios (que os italianos dos séculos XV e XVI não diferenciavam em absoluto dos da Grécia clássica de Platão e Aristóteles) com influências orientais (estas já presentes em neoplatônicos como Proclo ou Jâmblico, mais devotados à astrologia babilônica que a estudar os textos originais dos filósofos atenienses), somados a práticas mágico-teúrgicas, estudos da cabala e de numerologia, e tudo isso integrado e conforme a teologia cristã. Também não se pode minimizar a influência que tiveram os textos herméticomágicos na formação desse imaginário tão peculiar, especialmente as três fontes que Cosimo de Medici repassou, no início da década de 1460, aos estudiosos da Academia Platônica com a ordem de traduzir e comentar: os Oráculos Caldeus, supostamente da autoria de Zaratustra, os Hinos Órficos, escritos presumivelmente por Orfeu em pessoa, e o Corpus Hermeticum, um conjunto de manuscritos esotéricos cujo autor teria sido o mago Hermes, o mesmo imortal Thot dos egípcios. Esses manuscritos, sabe-se hoje, não tinham nem de longe a procedência nem a antiguidade que lhes eram atribuídas: tratavase de falsificações de teólogos romanos pagãos do fim do Império, redigidas no intuito

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Τρισμεγιστος, o três vezes grande.

de tentar desestabilizar a crescente influência do cristianismo em Roma63. Como a falsidade dos documentos não foi percebida, os textos, que impressionaram os padres da Igreja pela similitude de algumas passagens com o Evangelho, ingressaram na corrente filosófica neoplatônica, influenciando também a teologia e as artes. Visto assim, é natural que a cidade de Siena entronizasse em sua catedral um sábio tão antigo, quase um profeta pagão, que, acreditava-se, tinha vivido na época de Moisés e que já sabia coisas que, mais tarde, foram confirmadas nas escrituras, crença que se solidificou graças a passagens dúbias como esta, extraída do Livro XII do Pimandro, e que falam de Pai, filho e do Logos: Parece-me, filho, que desconheces toda a virtude e grandeza do Logos. O bom Daimon, Deus bem-aventurado, disse: “A alma está no corpo, o intelecto está na alma, o Logos no intelecto, Deus é o Pai de todos”64.

A parte mágica, astrológica e teúrgica desses manuscritos foi, por assim dizer, aceita como verdadeira em vista da “autenticidade” da parte teológica e metafísica. O próprio Platão, no Fedro65, narra um episódio da vida do deus Thot, o que confirmou, na perspectiva dos crédulos florentinos, que essa personagem já existia em eras antiquíssimas. A partir daí, filósofos da Renascença passaram a se ocupar com a confecção de talismãs (Giordano Bruno), a interpretação do simbolismo da Cabala judaica (Pico della Mirandola) e a entoação de hinos astrológicos (Ficino). O trecho a seguir, extraído do De vita de Ficino, leva o subtítulo de “Como fazer tua vida concordar com os astros”: CAPÍTULO 2. Sobre a Harmonia do mundo, e sobre a natureza do homem de acordo com as estrelas – Como se é atraído por uma determinada estrela: Que ninguém duvide, nós e todas as coisas em torno de nós, dependendo de uma preparação correta, somos capazes de nos relacionar com os corpos celestes [...] Deste modo, assim como em nós a qualidade principal e o movimento de um membro sempre influencia aos outros, os atos dos membros

63 O Corpus Hermeticum não constituiu, de forma alguma, um episódio isolado: uma verdadeira indústria de produção de relíquias antigas, destinada a saciar o afã pela sabedoria clássica, estabeleceu-se a partir do século XV. Não meramente os campos da filosofia ou teologia foram invadidos por tais engenhosas recriações; cite-se apenas o caso do erudito Maffeo Veggio, que compôs um décimo terceiro livro para a Eneida de Virgílio! Apenas em 1614, o filólogo suíço Isaac Casaubon conseguiu determinar a real datação dos documentos herméticos (séc. II-III d.C.), o que representou um golpe mortal para a magia renascentista e o pensamento hermético-cabalístico. Porém, mesmo depois disso, hermetistas reacionários, como Robert Fludd e Athanasius Kircher, continuaram a trabalhar e a publicar obras fundamentadas nos escritos dos “profetas gentios”. 64 Pimandro, XII, 13. 65 “Pelo menos, posso te narrar uma tradição dos antigos. Eles conheciam a verdade. [...] viveu perto de Eucrates, no Egito, um dos antigos deuses daquele país [...] ele próprio era chamado Thot. Foi ele que inventou os números com o cálculo, a geometria, a astronomia e também o jogo de damas, os dados e, enfim, e, sobretudo, a escrita” (Fedro, 274c-d).

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principais do mundo movem tudo, e os membros inferiores cedem com facilidade ao comando dos superiores. Esta é a razão pela qual, quando um membro está preparado para agir, outro está inclinado a ceder. Por conseguinte, uma pequena preparação nossa em relação ao que está acima de nós é tudo o que se necessita para receber os dons dos corpos celestes66.

A antiquíssima crença de que microcosmos e macrocosmos tivessem suas existências interligadas e que, encontrando-se a passagem de uma para outra dimensão, seria possível ter ingerência direta nos acontecimentos do mundo, já tinha a sua “confirmação” a partir de uma leitura esotérica das escrituras, no episódio em que Cristo passou ao apóstolo Pedro a fórmula e o poder de realizar ações na physis: Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus67.

Crença que, agora, julgaram os filósofos do Cinquecento, tinha ficado definitivamente comprovada, graças aos recém descobertos textos de Hermes: O que está acima é como o que está abaixo, e o que está abaixo é como o que está acima, para que se realize o mistério da coisa única. Assim como todas as coisas vieram do UNO, através do UNO todas as coisas para o UNO retornam68.

Um pensamento análogo a esse já tinha sido, de certa forma, trabalhado por Nicolau de Cusa (1401-1464). Para aquele pioneiro do pensamento renascentista, não existia um “acima” ou “abaixo” em termos absolutos; assim, a influência entre as esferas de existência teria de ser recíproca, tudo agindo e interagindo de forma interconexa. A nova cosmologia de Nicolau de Cusa retomou e aperfeiçoou o princípio de Anaxágoras, segundo o qual “tudo está em tudo” – o Universo está presente, de forma contraída, em cada coisa ou ser vivo existente no mundo: Em toda criatura o universo é o ser daquela mesma criatura, e assim cada coisa recebe todas as coisas, de modo que nela esteja o ser delas, contraído69.

O pensamento da correspondência cósmica, por sua vez, nos remete às raízes mesmas do Humanismo renascentista: Petrarca (1304-1374) é o homem que vai marcar o caráter genuíno do pensamento humanista enquanto uma nova filosofia, uma filosofia 66

FICINO: De vita, II. MATEUS, 16, 19. 68 Tabla de Esmeralda, 13. 69 DE CUSA. 67

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que não deveria mais ser como a dialética (aqui uma crítica ao Aristotelismo e à Escolástica), “que leva à impiedade, não à sabedoria”. Nas artes liberais enquanto instrumento de formação espiritual é que estaria o sentido da vida, e não na resolução de silogismos70. Em Petrarca dá-se a virada do foco da filosofia, da metafísica para o homem, homem este que existe ligado aos astros do céu e a todos os eventos do Universo: na Epístola do Monte Ventoso, ele narra como ficou impactado, depois de escalar uma montanha, ao abrir ao acaso uma página das Confissões de Sto. Agostinho, para lê-las, e aí encontrar um comentário irônico sobre os homens que admiram os portentos do mundo natural e se esquecem de si: “... e lá se vão os homens a admirar altas montanhas, vastos mares, o ruidoso rugir dos rios, o oceano e o curso dos astros, e se esquecem de si mesmos”71. A isso escreve, então, Petrarca, o seguinte comentário: Há muito tempo eu deveria ter aprendido, inclusive com os filósofos pagãos, que nada é mais digno de admiração que a alma, que nada é grande demais para a sua grandeza72.

O homem e a sua alma são o grande milagre, não as montanhas e as estrelas. Sobre esse mesmo tema, também Pico della Mirandola dialoga com Hermes Trismegisto; no Asclépio, lemos Magnum miraculum est homo (Grande milagre é o homem). Para Pico, a posição do homem no cosmos é especialmente problemática: dividido entre ascender às esferas do verdadeiro conhecimento ou ceder a paixões animalescas, sua natureza não é predeterminada. Ele mesmo tem de ser o formador e escultor de sua existência. Chegamos ao ponto em que, para melhor compreensão, teremos que examinar mais detidamente a filosofia neoplatônica de Marsilio Ficino na Academia Platônica, pois esse foi um dos temas centrais daquele grupo de pensadores italianos: a natureza dual do homem, as energias que ora o puxam para baixo ora o fazem subir ao empíreo das coisas verdadeiras, e a força que medeia entre esses dois planos de existência, que é o amor73. O Neoplatonismo na Itália do Norte deve muito à Academia Platônica de Marsilio Ficino (1433-1499), aquele grupo de letrados e humanistas que, reunidos na Villa de Careggi, arredores de Florença, nutria uma veneração quase religiosa pelo filósofo grego e pela sua obra. A ideia de fundar uma accademia nos moldes da legendária agremiação ateniense foi mérito de Cosimo de Medici, o Velho, impressionado que tinha ficado com as aulas e conferências do erudito grego Gemisto Pletone. Pletone, que, junto com muitos outros historiadores, filósofos e filólogos, tinha abandonado Constantinopla na esteira

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Ver REALE – ANTISERI, III, 22. “...et eunt homines admirari alta montium et ingentes fluctus maris et latissimos lapsus fluminum et oceani ambitum et giros siderum, et relinquunt se ipsos” (AUGUSTINUS, Conf. 10, 8, 15). 72 “...qui iampridem ab ipsis gentium philosophis discere debuissem nihil praeter animum esse mirabile, cui magno nihil est magnum” (PETRARCA, Epistola, 28). 73 Apoio-me, aqui, em linhas básicas, da exposição de Erwin Panofski, em seu ensaio Die neoplatonische Bewegung in Florenz und Oberitalien. 71

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da tomada pelos turcos em 1453. Pletone – seu apelido já sugere a enorme admiração para com o filósofo ateniense – foi o primeiro a lecionar grego em uma universidade italiana. Sua presença na Itália contribuiu decisivamente para reavivar o interesse pelo grego clássico e, consequentemente, pela filosofia de Platão74. Convencido da viabilidade de seu plano de reviver a academia de Platão em Florença do século XVI, Cosimo de Medici escolheu Ficino para comandar a nova Accademia Platonica e presenteou o grupo de estudiosos com uma mansão, a Villa de Careggi. Lá, orientados pelo Philosophus Platonicus, Theologus et Medicus Marsilio Ficino, um seleto grupo de eruditos deu partida, em 1459, ao projeto de conhecer e fazer conhecida a filosofia de Platão e dos neoplatônicos na Itália do Renascimento. Naquele círculo seleto, estavam homens como: -

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Cristoforo Landino (1424-1498), comentador de Virgílio (Eneida), de Horácio e de Dante (Divina Comédia) e autor dos diálogos filosóficos De anima (1453), De vera nobilitate (1469), e das Disputationes Camaldulenses (1474); Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), que era, dentro do grupo, o que apresentava as maiores divergências filosóficas para com Ficino, mas seu pensamento ampliou o horizonte do grupo através do estudo de fontes orientais e da cabala, na Oratio de hominis dignitate 75 (1480), nas Conclusiones philosophicae, cabalisticae et theologicae76 (1486), e no De ente et uno (1480), onde analisa e compara Platão, Aristóteles e diversas passagens do livro do Êxodo; Francesco Cattani di Diacceto (1466-1522), o discípulo mais ligado a Ficino, autor dos Diálogos de amor (I tre libri d’amore, 1561) e de um estudo de estética filosófica sobre a natureza do Belo, o De pulchro (1499); Angelo Poliziano (1454-1494), um dos maiores poetas italianos do Quattrocento, além das Stanze per la giostra del Magnifico Giuliano (1478); sua Fabula di Orfeo (1483) foi o primeiro drama de temática profana redigido em italiano vulgar; Leon Battista Alberti (1404-1472), arquiteto, matemático e poeta, seu ensaio De pictura (1435) estabelece as normas da perspectiva científica e no De re aedificatoria (1450) eleva a arquitetura a uma arte, diferenciando-se da tradição meramente artesanal; a igreja de Santa Maria Novella, em Florença, é seu projeto mais destacado; Bartolomeo Scala (1430-1497), jurista e político; e mesmo membros da família Medici, tais como Giuliano de Medici (1453-1478), que dividiu o governo de

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Ressalte-se que a geração de exilados gregos oriundos de Constantinopla, a que pertencia Pletone, acabou se extinguindo com a vida de seus integrantes. Já por volta da segunda década do século XVI, não havia mais professores gregos originários do Leste. A partir daí, todo o estudo e as traduções tiveram que contar apenas com a habilidade dos europeus setentrionais que tinham aprendido a lingua enquanto ainda havia professores. 75 Discurso sobre a dignidade do homem. 76 Novecentas teses inspiradas na filosofia, na cabala e na teologia. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 37

Florença com seu irmão Lorenzo, na qualidade de príncipes de estado, e Lorenzo, o Magnífico (1449-1492), poeta e protetor das artes. Os objetivos da Accademia Platonica eram basicamente três: em primeiro lugar, tornar acessíveis os textos platônicos. Isso teria de ser feito por meio de traduções para o latim, às quais seriam adicionados comentários e notas explicativas. Vale aqui ressaltar que, para Ficino e seus colegas, os textos platônicos não se resumiam absolutamente à obra do filósofo ateniense: pensadores neoplatônicos helenistas como Plotino e outros muito mais tardios, tais como Proclo, Porfírio, Jâmblico e o Pseudo-Dionísio Areopagita, eram tratados com igualdade de relevância. Na verdade, era Platão que se constituía na grande novidade – Ficino, como os seus contemporâneos, teve que se aproximar da filosofia platônica original penosamente através do estudo dos neoplatônicos do classicismo tardio. Como observa Panofski, antes de Leibnitz não se fazia diferenciação entre o pensamento de Platão e o dos neoplatônicos. Ficino, que aos 22 anos já tinha traduzido para o latim Jâmblico, Proclo, o Pseudo-Dionísio e “Hermes Trismegisto”, apenas quatro anos mais tarde teve acesso, graças a Cosimo de Medici, aos textos de Platão no original grego. Em segundo lugar, os platônicos de Ficino se propunham a trabalhar o enorme cabedal de textos em um sistema filosófico. Esses textos, contudo, por serem de épocas e escolas bastante divergentes, frequentemente apresentavam francas contradições entre si. O objetivo era que, uma vez combinados em um sistema lógico, os autores antigos77, com sua inquestionável autoridade, confirmassem o acerto de todo o conhecimento amealhado ao longo dos séculos e que era agora reconhecido como legítimo e acertado pelos renascentistas, que se consideravam seus herdeiros. Incluam-se aqui poetas e humanistas latinos como Virgílio e Cícero, a obra de S. Agostinho, que cristianizou e reinterpretou Platão, Dante Alighieri e sua Divina Comédia, sem esquecer toda a mitologia antiga (cujo significado, começava a suspeitar-se, ia muito além de meras alegorias) e da ciência – Física, Astrologia e Medicina – da época. Por último, todo esse sistema deveria ser construído harmonizando-se com a fé cristã em um humanismo, contudo, que apresentava características francamente profanas. Uma síntese análoga já tinha sido tentada antes – veja-se Fílon de Alexandria e a fusão do Judaísmo e dos antigos cultos de mistérios sob a égide do Platonismo. Os pensadores cristãos que tentaram esse exercício de filosofia certamente sentiram o problema que significava a inserção cada vez maior de elementos gregos em seus sistemas. O projeto de Dante não tinha estado muito longe disso: os mundos do paganismo e do cristianismo são apresentados na Divina Comédia sempre de forma paralela. As comparações entre um e outro são inevitáveis, entretanto, ao trazer concomitantemente um exemplo da Antiguidade e um da tradição cristã para introduzir um conceito novo, o poeta sabia que as lendas da cristandade eram de domínio público, enquanto que as do paganismo 77 O único membro da Accademia que tentou incluir o pensamento de Aristóteles na síntese que estava sendo gestada foi Pico della Mirandola, que tinha estudado seus escritos em Pádua e defendia algumas conquistas da Escolástica, o que lhe rendeu atritos com Ficino, o diretor dos trabalhos de seleção e tradução.

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habitavam um limbo desconhecido e confuso no imaginário popular. O projeto, porém, não deixava de apresentar perigo: Galeotto Marzio, no fim do século XV, quase acabou na fogueira da Inquisição. Salvou-o sua amizade com Lorenzo de Medici78. A missão dos florentinos platônicos reunidos em torno de Ficino, portanto, era pioneira, já que se tratava, pela primeira vez, de tentar combinar a filosofia cristã no altíssimo grau de desenvolvimento em que se encontrava com um pensador pagão do porte de Platão, e isto sem fazer com que uma ou outra vertente perdessem suas características intrínsecas79. Ao publicar a Theologia Platonica (1482), Ficino pretendeu indicar, já no título, em que medida estava comprometido com a missão de integrar e harmonizar o pensamento de Platão com a fé cristã, juntamente com seu legado filosófico. Ficino ocupa uma posição intermediária entre os escolásticos – que pensavam Deus fora do Universo finito – e os panteístas tardios – para quem o Universo era infinito e idêntico com Deus. Em Ficino, temos um Deus muito semelhante ao Uno de Plotino. Para Ficino, Deus é uniformis e omniformis, Ele é actus, mas não motus. Duas possibilidades restariam aos finitos mortais para tentar compreender a infinitude divina: 1) a negação de qualquer proposição (Plotino); e 2) a assimilação de conceitos contraditórios (Nicolaus De Cusa e sua coincidência dos opostos). Deus criou o mundo ao pensar em si mesmo, pois, em Deus, coincidem ser, pensar e querer. O Universo, portanto, é distinto de Deus, mas não está divorciado dele. Ele se divide em quatro planos diferentes de perfeição: 1. Mente do Mundo (o Nous grego, em latim a mens mundana, intellectus divinus sive angelicus): um plano puramente inteligível e hipercelestial. Como Deus, é incorruptível e imutável, mas, ao contrário de Deus, é pluriforme, ao conter em si as ideias e as inteligências (anjos) que são os modelos para tudo o que existe nos planos inferiores. 2. Alma do Mundo (a Psiché grega, em latim anima mundana): incorruptível, mas não mais imutável, é motor do próprio movimento (per se mobilis) e não é um plano de formas puras, e sim de causas puras – daí ser idêntico com o mundo celestial ou translunar, dividido nas nove esferas ou céus conhecidos: o céu de fogo, a esfera das estrelas fixas e as sete esferas dos planetas. 3. Reino da Natureza: é o mundo sublunar, ou terrestre. É corruptível por ser feito de matéria e de forma, que podem desintegrar-se quando esses dois componentes se separam. Não se movimenta por si próprio, mas juntamente e 78

Galeotto escreveu, referindo-se à questão do livre-arbítrio, que quem procedesse corretamente e agisse de acordo com a sua lei interior, inata, iria para o céu, qualquer que fosse o povo a que pertencesse. Giorgio da Novara não teve a mesma sorte – cujo caso, provavelmente, tenha sido o de negar a divindade de Cristo – e foi queimado em Bolonha em 1500. BURKHARDT, 445-7. 79 Heller observa com propriedade que o esforço de Ficino estava todo ele concentrado em criar um sistema filosófico que, na verdade, deveria funcionar em um plano externo à ciência da Teologia. Mais que isso, sua aspiração era substituir a religião. Se fizermos uma comparação, veremos que, além da Theologia Platonica, não há lugar para nenhuma outra religião, nem mesmo para a cristã. Isso como consequência do fato de o Cristianismo estar sendo tratado como um problema secular filosófico. Daí que a Teologia também foi transformada em Filosofia. Ver HELLER, 65. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 39

por influência do mundo celestial, com o qual é ligado pelo spiritus mundanus, o Espírito do Mundo. 4. Reino da Matéria: é informe e sem vida. Só recebe forma, movimento e existência quando deixa de ser ele mesmo e se une com a forma para poder agir no Reino da Natureza. Todo este Universo é um divinum animal: ganha vida e organização em seus quatro planos graças a um “influxo divino que emana de Deus, atravessa o céu, desce pelos elementos e termina na matéria”80, e essa mesma energia flui sem interrupção de volta para Deus, formando um circuitus spiritualis: a Mente do Mundo ama Deus e, ao mesmo tempo, é atraída pela Alma do Mundo, abaixo dela. A Alma do Mundo, por seu turno, transforma as ideias e as inteligências estáticas, que estão contidas na Mente do Mundo, em causas dinâmicas que movem e fecundam o mundo sublunar, levando, com isso, a Natureza a produzir as coisas visíveis. É o amor que faz com que o espírito desça ao nível físico e corpóreo, e é novamente o amor que o eleva acima do físico e corpóreo. O circuitus spiritualis de Ficino tem sua meta em si mesmo, ele não persegue objetivos exteriores a ele; nele estão contidos tanto o princípio do movimento quanto o do repouso. É possível também comparar-se a relação da Mente do Mundo para com Deus – por um lado – e para com a Alma do Mundo – pelo outro – àquela de Saturno para com seu pai, Urano (Cronos), e para com seu filho Júpiter. Pico della Mirandola, no seu Commento sopra una canzona de amore composta da Girolamo Benivieni (Comentário a uma canção de amor de Girolamo Benivieni), interpreta simbolicamente o episódio mitológico da castração de Urano81: esta é a expressão para o fato de que, depois de ter produzido a Mente do Mundo, Deus parou de criar – por isso Saturno não foi castrado por Júpiter: Júpiter apenas o acorrenta, o que significa que a mens (a Mente) é imutável (contemplativa), e a anima ratio (a alma racional) é móvel por si própria. Apesar de ser efêmero, o mundo sublunar participa da eternidade e da beleza de Deus, que lhes são transmitidas por influxo divino. No seu trajeto, desde que emana de Deus, passando pelas regiões celestes até chegar ao mundo, a Beleza (trata-se aqui da Beleza Divina, o Belo em si de Platão, ou, como era chamado pelos neoplatônicos, a “glória da bondade divina”) parte-se em tantos raios quantas esferas ou céus existem – por isso, não existe beleza perfeita sobre a terra. Todo homem, todo animal, toda planta e todo mineral são influenciados82 por um ou mais corpos celestes: a influência de Marte, por exemplo, faz com que um lobo (influenciado por Marte) se comporte diferentemente de um leão (animal solar); já as propriedades medicinais da planta de hortelã devem-se à

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“... divinus influxus, ex Deo manans, per coelos penetrans, descendens per elementa, in inferiorem materiam desinens...” Apud PANOFSKI: Die neoplatonische Bewegung..., 227. 81 O Comentário surgiu a partir da amizade que unia Pico a Girolamo Benivieni e Pico della Mirandola. Benivieni desenvolve literariamente, em forma de poema, os comentários de Ficino sobre O Banquete de Platão. Isso vai inspirar Pico a escrever um ensaio filosófico sobre o poema do amigo, ensaio este que é uma tentativa de aprofundar o exame da filosofia platônica. 82 Daí, aponta Panofski, vem essa expressão hoje em dia tão trivial, mas que, originalmente, se tratava de um conceito cosmológico. 40 | Ronel Alberti da Rosa

ação conjunta do sol e de Júpiter. Cada objeto ou fenômeno da Natureza está carregado com energia celeste. Visto assim, o limite entre ciência e magia torna-se tão permeável quanto o que separa a alegria pela beleza das coisas materiais e a adoração da bondade divina. Para Ficino, mesmo a confecção de talismãs astrológicos era uma forma de bem aproveitar a energia dos astros que equivalia ao emprego de plantas medicinais: todos devem suas propriedades aos corpos celestes. Assim, a prática de cantar hinos “órficos” servia igualmente para harmonizar as órbitas dos planetas com as consonâncias da música, para que entrassem em vibração simpática. De outra parte, o pensamento neoplatônico não tem lugar para algo como o Inferno. Pico chama o reino da matéria de il mondo soterraneo, mas mesmo a matéria, com suas propriedades negativas, não pode ser considerada um mal, já que, sem ela, não existiria a Natureza83. Entretanto, por obra desse seu caráter negativo, ela, apesar de não ser má, provoca males, pois seu não ser age como resistência passiva à suprema bondade de Deus: a matéria possui a tendência de permanecer sem forma e rejeita as formas que se lhe querem impor. O que explica a imperfeição que perpassa o mundo sublunar é o fato de que as formas celestiais são não apenas incorruptíveis como também puras, perfeitas, efetivas, apáticas84 e pacíficas. As coisas sublunares, conspurcadas pela matéria, são não apenas efêmeras, mas falhas, não efetivas, sujeitas a incontáveis paixões e, quando ativas, veem-se obrigadas a lutar umas contra as outras até a destruição85. O reino da Natureza, mesmo sendo expressão da influência divina, pleno de força e de beleza em comparação com a carência de forma e de vida da matéria bruta, é, ao mesmo tempo, um lugar de constante combate, de repugnância e de sofrimento, principalmente se comparado com o mundo celestial e supracelestial. Para um neoplatônico florentino não é irreconciliável, ao contrário, é inevitável o entusiasmo sobre a presença do espiritual no material. Isso sem deixar de se lamentar acerca da “prisão da matéria”, em que as formas e as ideias puras sufocam, são distorcidas e apagadas. A vida no mundo, enquanto reflexo do splendor divinae bonitatis, participa da beatífica pureza do mundo supracelestial, porém em uma forma de existência indissoluvelmente acorrentada à matéria, partilhando com esta o destino sombrio e o sofrimento do que os gregos chamavam de Hades ou Tártaro. Retornemos à crença, partilhada por Ficino e pelos neoplatônicos, na analogia estrutural entre macrocosmos e microcosmos: essa crença era interpretada de forma muito própria. O homem apresenta uma estrutura similar à do Universo: este está composto por mundo material (a Natureza) e mundo imaterial, e o corpo e a alma do homem são correspondentes a essa dualidade. O corpo é uma forma inerente à matéria, e a alma é uma forma aderente à matéria. E assim como o spiritus mundanus une o mundo sublunar

83 No Comentário sobre Dionisio Areopagita de Ficino, lemos que a matéria não é má nem boa, é simplesmente necessária: “Materia neque malum est, neque proprium bonum, sed aliquid necessarium”. Apud Panofski, 228. 84 Não suscetíveis de pathos, isto é, de paixões e afetos. 85 Ficino abordou essa temática com detalhe nos seus comentários às Enéadas I, 8 (Περί του τίνα και πόφεν τά κακά – De onde vem o mal) e II, 4 (Περί των δύο ύλω – Sobre as duas matérias).

A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 41

ao translunar, um spiritus humanus une a alma ao corpo. A alma é constituída por cinco aptidões, distribuídas entre a anima prima e a anima seconda. A anima seconda, ou alma inferior, vive em contato direto com o corpo, e é formada 1) pelas três aptidões que determinam as funções fisiológicas, ao mesmo tempo em que delas dependem: reprodução, nutrição e crescimento (potentia generationis, nutritionis, augmenti); 2) pela percepção externa, quer seja os cinco sentidos que recebem e transmitem os sinais do mundo exterior (sensus exterior, in partes quinque divisus); e 3) pela percepção interna, ou imaginação, que combina esses sinais captados para, com eles, formar imagens psicológicas coerentes (sensus intimus atque simplex, imaginatio). Como vemos, a alma inferior não é livre, ela existe condicionada pela fatalidade corpórea. A anima prima, ou alma superior, comporta apenas duas aptidões: a razão (ratio) e o espírito (mens, intellectus humanus sive angelicus). A razão encontra-se mais próxima à alma inferior: ela coordena as imagens fornecidas pela imaginação segundo as regras da lógica. Já o espírito tem condições de apreender a verdade vislumbrando diretamente as ideias supracelestiais. Enquanto a razão é lógica e reflexiva, o espírito é intuitivo e criativo. A razão é comprometida pelas experiências, desejos e necessidades do corpo, os quais lhes são comunicados pelos sentidos e pela imaginação. O espírito, de sua parte, está em ligação com o intellectus divinus, ou pode mesmo participar dele, o que é uma prova de que o pensamento humano não estaria em condições de apreender conceitos tais como “eternidade” e “infinito” se não tivesse participação na essência do eterno e infinito (Deus). Diferentemente da alma inferior, a razão é livre, isto é: ela pode se permitir ou não ser levada pelos sentimentos e estados de ânimo inferiores. Isso significa luta, combate. E ainda que, nessa luta, o espírito não tome partido, ele é indiretamente afetado por ela, pois, durante essa luta, tenta iluminar a razão. Acontece que a razão só é capaz de suplantar as exigências da natureza inferior do homem no momento em que pedir que uma autoridade superior a ilumine. Em consequência, o espírito vê-se frequentemente obrigado a cuidar do combate que se desenrola aos seus pés, em vez de mirar o reino celeste acima de si, como seria sua real missão. Isso explica a peculiar posição ocupada pelo homem no sistema neoplatônico. As faculdades de sua alma inferior são similares às dos animais não racionais; ele divide seu espírito com o intellectus divinus; e ele não divide sua razão com nada mais no Universo. Sua razão é exclusivamente humana, uma aptidão inatingível para os animais, mas que está muito abaixo da inteligência pura de Deus e dos anjos. Mesmo assim, ele está em condições de mover-se em qualquer dessas direções, rumo aos animais ou rumo a Deus. Esse é o sentido da definição de Ficino, que vê o homem como uma “alma racional que participa do espírito divino e utiliza-se de um corpo”86, uma definição que diz nada mais nada menos que o homem é o elo entre Deus e o mundo, ou o centro do Universo, como

86

“Est autem homo anima rationalis, mentis particeps, corpore utens” (Theologia Platonica VII, 6, apud Panofski, Die neoplatonische Bewegung..., 228 N23). 42 | Ronel Alberti da Rosa

escreveu Pico della Mirandola: “O homem ascende ao reino superior sem se desfazer do mundo inferior, e ele pode descer ao mundo inferior sem abdicar do superior”87. Essa posição do homem é tão nobre quanto problemática. Com seus instintos sensuais jogados para lá e cá entre submissão e revolta, com sua razão que ora triunfa, ora fracassa, e mesmo com seu espírito frequentemente desviado da sua real missão, a alma imortal do homem vive sempre infeliz dentro do corpo; ela dorme, sonha, alegra-se e sofre dentro dele, preenchida por um infindável desejo que só poderá ser saciado quando ela regressa ao lugar de onde veio. Entretanto, se a alma do homem se recupera da queda e começa a se lembrar, ainda que vagamente, das suas experiências preexistenciais88, então pode começar a se livrar de todos os empecilhos que normalmente prejudicam sua atividade. O homem, então, mesmo durante sua vida material, poderá atingir um estado de felicidade que, ao mesmo tempo, vai lhe garantir a redenção na próxima existência. Como vemos, para os neoplatônicos florentinos, era a coisa mais natural do mundo conciliar a doutrina platônica da metempsicose com o dogma cristão da ressurreição. Essa felicidade terrena, pensa Ficino, só poderá ser atingida por meio da intuição, nunca pela razão. O caminho está aberto a todos os que dirigirem seu espírito com seriedade na busca do verdadeiro, do bom e do belo. A felicidade completa, porém, só poderá ser atingida naquele instante extraordinário em que a contemplação se elevar até chegar ao êxtase. Essa felicidade indizível, experimentada pelas sibilas, pelos profetas judeus e pelos visionários cristãos é, naturalmente, o que Platão descreveu como θεία μανία, ou furor divinus: a bela loucura dos poetas, o arrebatamento do visionário, o êxtase dos místicos e o delírio dos apaixonados. Aqui, na filosofia de Ficino, tem origem esse conceito tão renascentista, que é o do gênio. Um filósofo como Ficino, que considerava Platão um “Moisés grego” 89 e comparava os arrebatamentos de S. Paulo com o amor socraticus, não poderia mesmo ver nenhuma diferença fundamental entre o Eros platônico e a caritas cristã. A ideia de amor é o verdadeiro eixo da filosofia de Ficino. O amor é a força movente que leva Deus a deixar fluir sua essência sobre o mundo e, ao mesmo tempo, faz com que suas criaturas busquem a Ele retornar. Para Ficino, o amor é apenas outra denominação para o circuitus spiritualis de Deus para o mundo e deste de volta para Deus. O artista passa a fazer parte desse círculo místico, o que justifica sua natureza específica: o homem criador é dual, dividido que está entre a criação com meios materiais em um mundo de matéria e seu perene anelo por transcender essa mesma matéria.

87

Theologia Platonica, II, 2, apud Panofski. A alma humana fica como que atordoada pela sua queda, até que encontre alguma lembrança, ainda que vaga, de seu estado anterior. Essa lembrança vai lhe causar um desejo de conhecer coisas divinas, desejo este que ela tentará satisfazer dentro dos limites de sua existência corporal. Porém, só após a morte esse desejo poderá ser plenamente satisfeito (ver Panofski, Die neoplatonische Bewegung..., 228, N29). 89 Em Concordia Mosis et Platonis. Cf. Panofski: Die neoplatonische Bewegung..., 229, N38. 88

A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 43

O amor é sempre um desejo, mas nem todo desejo é amor. Quando o desejo não possui relação com as forças cognitivas, então permanece uma mera pulsão natural, como a energia que faz as plantas crescerem ou as pedras caírem. Só quando o desejo é guiado pelas virtù cognitive e toma consciência de seu objetivo mais alto é que merece o nome de amor. Se esse objetivo mais alto for a bondade de Deus, expressa pela beleza, então esse amor pode ser qualificado de “desejo de fruição do Belo”, ou simplesmente um desiderio di bellezza. Essa beleza, recordemos, está espalhada por todo o Universo, mas existe principalmente sob duas formas a que Platão, no Banquete, dá os nomes de Afrodite Uranía e Afrodite Pándemos, as Vênus gêmeas (Geminae Veneres), como os neoplatônicos preferiam. Todos sabemos que, sem amor, não há Afrodite. Se, portanto, uma só fosse esta, um só seria o amor; como, porém, são duas, é forçoso que dois sejam também os amores. E como não são duas deusas? Uma, a mais velha, sem dúvida, não tem mãe e é filha de Urano, e a ela é que chamamos de Urânia, a celestial. A mais nova, filha de Zeus e de Dione, chamamo-la de Pandêmia, a vulgar. É forçoso então que também o amor, coadjuvante de uma, se chame corretamente Pandêmio, o vulgar, e o outro Urânio, o celestial90.

A Afrodite Urânia (Venus Coelestis) não tem mãe porque pertence a uma esfera imaterial – considere-se a relação da palavra mãe, mater, com a palavra materia. Ela habita a zona mais elevada do Universo e a beleza que por ela é simbolizada é a glória primeva e universal do divino. Ela pode, assim, ser comparada a caritas enquanto mediadora entre o espírito humano e Deus. A outra Afrodite, a vulgar (Venus Vulgaris), é filha de Zeus com Dione (de Júpiter com Juno). Ela habita a zona entre o Espírito do Mundo e o mundo sublunar, isto é, o âmbito da Alma do Mundo. A beleza por ela simbolizada é, por isso, uma imagem da beleza primeira, agora não mais separada do mundo corpóreo, e sim nele concretizada. Enquanto a Venus Coelestis é uma intelligentia pura, a outra é uma vis generandi, uma força geradora. Ela dá forma e vida às coisas da Natureza, fazendo com que nossa percepção possa apreendê-la. Cada uma dessas Afrodites é acompanhada por um Eros (Amor) respectivo. Esse é considerado, com razão, seu filho, pois cada forma de beleza suscita uma forma de amor. O amor divinus apodera-se das aptidões mais elevadas do homem, isto é, a imaginação e a percepção sensorial, fazendo com que essas produzam uma alegoria da beleza divina no mundo material. Para Ficino, ambas as Afrodites – ambas as Vênus – são honestas e dignas de louvor, pois aspiram à criação de beleza, ainda que cada uma a seu modo91. Há, contudo, uma diferença de valor entre a forma “contemplativa” de amor – que se eleva acima do

90

PLATÃO. Banquete, 180d. “... immo vero utraque ferur ad pulchritudinem geberandam, sed suo utraque modo” (FICINO: Convivium apud Panofski: PANOFSKI: Die neoplatonische Bewegung..., 230, N48). 91

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visível e específico e ascende ao inteligível e universal – e a forma “ativa” de amor – que encontra satisfação na esfera do material e do visível. Em Pico della Mirandola, encontramos uma descrição detalhada dos estágios ascensionais comparados com os degraus da Escada de Jacó92:

UNIÃO DO ESPÍRITO DO HOMEM COM O ESPÍRITO DO MUNDO

A RAZÃO

ABDICA EM FAVOR

DO ESPÍRITO

A RAZÃO SE AFASTA DO SENTIDO DA VISÃO

RAZÃO

(APLICADA

IMAGINAÇÃO

À VISÃO)

Compreensão dos valores metafísicos enquanto função de uma beleza única e universal

6

Compreensão destes valores morais enquanto reflexo de valores metafísicos

5

Compreensão da beleza visível como expressão de valores morais

4

Entendimento desta como mero exemplo de beleza visível no universal

Idealização da visão desta beleza individual

3

2

1 SENTIDO

Prazer na beleza visível de um indivíduo

92

Para os neoplatônicos renascentistas, o episódio da escada de Jacó, narrada no Gênesis, confirma a ligação existente entre micro e macrocosmos, entre o céu e a terra: “Jacó deixou Bersabéia e partiu para Harã. Coincidiu de ele chegar a certo lugar e nele passar a noite, pois o sol havia-se posto. Tomou uma das pedras do lugar, colocou-a sob a cabeça e dermiu nesse lugar. Teve um sonho: Eis que uma escada se erguia sobre a terra e o seu topo atingia o céu, e anjos de Deus subiam e desciam por ela! Eis que Iahweh estava de pé diante dele e lhe disse: Eu sou Iahweh, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaac. A terra sobre a qual dormiste, e a dou a ti e à tua descendência. [...] Jacó acordou de seu sonho e disse: “Na verdade Iahweh está neste lugar e eu não o sabia! Teve medo e disse: “Este lugar é terrível! Não é nada menos que uma casa de Deus e a porta do céu!” (GÊNESIS 28, 10-17). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 45

Valor nulo, porém, é atribuído ao mero amor (desejo) físico, que corresponde à esfera da visão e do tato e nem é chamado pelos neoplatônicos de “amor”. Apenas aquele para quem a experiência da visão constitui tão somente o primeiro e inevitável passo rumo à beleza inteligível e universal poderá atingir o plano daquele “amor divino” que o postará ao lado dos santos e dos profetas. Quem se satisfaz com a beleza visível permanece dentro do âmbito do amor humano. E quem é insensível à beleza visível ou se rebaixa a ponto de cometer excessos, ou, pior ainda, abandona um estado contemplativo que já atingiu e o troca por prazeres físicos, é presa do amor ferinus, o amor ferino, ou de fera, o amor animal. Segundo Ficino, este seria mais uma doença que um vício: uma forma de loucura provocada pelo acúmulo de humores daninhos no coração. Ficino, que era médico, estava a par da teoria segundo a qual o amor descontrolado seria uma espécie de loucura, chamada hereos. Pico della Mirandola também faz diferenciação entre amor divino, humano e animal. Na teoria de Pico, porém, bastam as duas Vênus para representar os tipos de amor divino e humano, já que o terceiro tipo, o amor ferinus, nem é considerado amor, e sim uma loucura. Nisso, Ficino permanece fiel a Platão e Plotino. No caso de Pico, porém, um neoplatônico menos ortodoxo, há uma diferença: ele não está disposto a abordar problemas morais a partir de pontos de vista medicinais. Em consequência, quer que cada espécie de amor corresponda a uma Vênus. Inventa, então, uma segunda Vênus Urânia – segundo ele, uma filha de Saturno e que ocupa um lugar intermediário entre a Vênus Urânia de Platão (filha de Urano) e a Vênus Pándemos (filha de Zeus e Dione). Esta última deixa, então, de ser honesta e digna de louvor. Pode-se encontrar certa justificativa para tal, já que os mitógrafos não são unânimes a respeito de se o mar, do qual a Vênus original (a que não tem mãe) emergiu, foi fecundado pelos órgãos genitais de Urano ou de Saturno. A divisão ternária de Pico tem origem na doutrina platônica da tripartição da alma, doutrina essa retomada por muitos neoplatônicos, já que possuía uma legitimidade atestada também por autores latinos (não esqueçamos que a obra original de Platão recém começava a ser traduzida e divulgada): “os filósofos descobriram que a vida do homem consiste em três partes, das quais a primeira é chamada teórica, a segunda, prática, e a terceira, voluptuosa, cujos nomes latinos são contemplativa, activa e voluptaria”93. Lorenzo de Medici tomou aqui o partido de Pico: “Nenhum ser racional duvida de que existam três tipos de vida, a contemplativa, a ativa e a voluptuosa. E três são as vias para a felicidade, vias estas escolhidas pelo homem: a sabedoria, a força e o prazer (sapientias, potentia, voluptas)”94. Na seguinte tabela podemos observar as diferenças entre as concepções de Ficino e Pico della Mirandola:

93 94

FULGÊNCIO, Mitologiae, apud WIND. LORENZO DE MEDICI, Opera, apud WIND.

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Marsilio Ficino

Pico della Mir andola

ESPÉCIES DE AMOR95

APTIDÕES CORRESPONDENTES DA ALMA HUMANA

VÊNUS CORRESPONDENTE

APTIDÕES CORRESPONDENTES DA ALMA HUMANA

VÊNUS CORRESPONDENTE

Amore divino

Mens (intelecto)

Venus Coelestis, filha de Urano

Intellecto

Venere Celeste I, filha de Urano

Amore humano

Todas as outras aptidões da a lma humana

Venus Vulgaris, filha de Ze us e Dione

Ragione

Venere Celeste II, filha de Saturno

Amore bestiale

Ne nhuma – é loucura (não é amor)

Não há – é louc ura (não é amor)

Senso

Venere Volgare, filha de Zeus e Dione

Pessoalmente, Ficino levava uma vida casta e de abstinência que, como ele pensava, era adequada à virtude e à saúde dos estudiosos. Seu comentário ao Banquete de Platão, porém, está longe de ser um código de moral. Ele rejeita imposições morais com o mesmo vigor com que rejeitou, para sua filosofia, alternativas excludentes tais como otimismo ou pessimismo, imanência ou transcendência, sensualismo ou intelectualismo. Podemos agora entender por que esta filosofia excitou os ânimos daqueles que, em uma época de crescente tensão espiritual, buscavam novas formas de expressão para os terríveis porém fecundos conflitos do século XVI: os conflitos entre liberdade e opressão, entre fé e razão. De toda forma, as obras chave para o entendimento da teoria neoplatônica do amor tiveram poucos seguidores: o Comentário de Ficino sobre o Banquete platônico e o Comentário de Pico sobre o longo poema de Girolamo Benivieni que, por sua vez, é uma apresentação em versos da doutrina de Ficino. E os Tre libri d’amore do aluno mais fiel de Ficino na Accademia Platonica, Francesco Cattani di Diacceto, não passam de um “guia introdutório” à doutrina ortodoxa florentina. Os Dialoghi d’Amore de Leão Hebreu seriam a única obra em todo o Cinquecento que, fora da Accademia, pode ser considerada fruto de um pensador criativo. Todas essas ideias, porém, exerceram uma forte influência, seja direta ou indireta, sobre artistas italianos e estrangeiros, de Michelangelo a Giordano Bruno, passando por Torquato Tasso, Spenser, Donne e mesmo Shaftesbury. Ao mesmo tempo, deram início a uma verdadeira avalanche de “diálogos sobre o amor”, principalmente na Itália do Norte, gênero esse que parece ter desempenhado um papel na sociedade de então que poderíamos comparar com a atual psicanálise. O que tinha sido uma filosofia esotérica transformouse numa espécie de brincadeira de salão, na qual os cortesãos consideravam uma parte imprescindível de suas habilidades conseguir enumerar quantos e quais tipos de amor existiam.

95

Ver PANOFSKI, Die neoplatonische Bewegung..., 231. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 47

Os protótipos desses diálogos de amor são os Asolani (1505) de Pietro Bembo e o Cortigiano (1528) do conde Baldassar Castiglione, muito superiores às demais tentativas de seus contemporâneos. Como consequência, a doutrina neoplatônica florentina foi apresentada de uma forma muitas vezes atraente96, mas sempre diluída e, o mais importante, socializada e feminilizada. O Convinto de Ficino se passa num suntuoso salão da Villa Medici em Careggi, onde nove membros da família platônica se reúnem em um 7 de novembro (supostamente data de aniversário e de morte de Platão) para celebrar uma solene reedição do banquete platônico original. O cenário do típico “diálogo de amor” é o perfumado jardim de nobres damas97, mas podia ser transferido para o boudoir de uma cortesã letrada98. A diferença entre Ficino e Pico, de um lado, e Bembo e Castiglione, do outro, corresponde à diferença entre Florença e Veneza. Enquanto a arte florentina busca seu fundamento no desenho, na clareza plástica e na organização sintáxica, os venezianos apostam na cor e na atmosfera, na plenitude pictórica e na harmonia musical. Panofski lembra que frequentemente são traçados paralelos entre os grandes pintores venezianos e os dois Gabrieli, Giovanni e Andrea, ao mesmo tempo em que chama a atenção o enorme papel da música nos quadros de Giovanni Bellini, Giorgione, Tiziano e Veronese. Nesse contexto, note-se que Pietro Bembo aponta o ouvido, e não o olho, como transmissor da beleza espiritual e do amor. Finalmente, temos que ter sempre em mente que essa doutrina propiciou uma forma nova de a filosofia se expressar; os silogismos e a Escolástica, já apontava Nicolau de Cusa, levavam à impiedade. E os antigos, como Moisés, Platão, Hermes, Zoroastro e Orfeu – para os renascentistas, todas estas eram personagens investidas de indiscutível autoridade – possuíram grande sabedoria graças a uma ferramenta de trabalho muito melhor que artifícios da lógica. Moisés tinha vivido entre os egípcios e tinha podido aprender o conhecimento imediato proporcionado pelos hieróglifos – estes, por sua vez, eram invenção do próprio Hermes, em sua encarnação anterior como o deus Thot, de cabeça de íbis. Daí a imensa valorização da linguagem imagética e das alegorias. No Heptatlus, Pico argumenta que revelar o mistério significa tocar os véus, mas conservando sua opacidade, de modo que a verdade possa passar através sem queimar. O segredo transcendente é mantido oculto e, ainda assim, pode transparecer através do velamento.

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Bembo e Castiglione não eram pensadores especulativos – eles queriam encantar o leitor. Bembo com objetivos puramente poéticos e Castiglione com proposições suavemente educativas. Foi dito com justiça (Cf. PANOFSKI, Die neoplatonische Bewegung..., 214) que a sequência da filosofia neoplatônica tinha sido ‘francamente estética’. 97 A ação dos Asolani de Bembo se passa nos jardins de Caterina Cornaro, ex-Rainha de Chipre, onde as bodas de três de suas damas de companhia são precedidas por três dias de jogos e nobres conversações acerca do valor do amor. No primeiro livro, o amor é desvalorizado. No segundo, é louvado. E, no terceiro, o problema é solucionado graças à teoria platônica dos dois tipos de amor (ver Panofski, Die neoplatonische Bewegung..., 232, N 62). 98 Uma delas, Tullia d’Aragona, escreveu também um diálogo, “Sobre a infinitude do amor”. Cf. PANOFSKI, Die neoplatonische Bewegung..., 214. 48 | Ronel Alberti da Rosa

Assim, “as coisas divinas, quando escritas, devem ser cobertas por véus enigmáticos e dissimulação poética”99, para que os sagrados mistérios não sejam profanados pelo vulgo. Foi desencadeado, a partir disso, um intenso processo de busca das imagens antigas, uma investigação das origens das personificações e alegorias que chegaram até o Renascimento. A Iconologia de Cesare Ripa coroou esse processo e se destacou como projeto ambicioso e bem-sucedido, estabelecendo parâmetros que por muito tempo vigorarão na interpretação da simbologia das representações. Trata-se de uma extensa compilação de verbetes na forma de imagens, publicada pela primeira vez em Roma em 1593100, com a explicação do seu significado e a informação de suas fontes, geralmente humanistas latinos clássicos, e apresentando-se como obra de consulta indispensável para poetas, pintores e escultores. Tomemos o exemplo do verbete Música da Iconologia de Cesare Ripa, apenas uma entre as muitas alegorias presentes no poema de Striggio para o Orfeo: Mulher jovem, sentada em uma esfera de cor celeste, com a pena em uma mão e olhando atentamente para uma partitura aberta sobre uma estante. [...] Aparece sentada, por servir de repouso ao ânimo cansado [...]. A esfera nos indica que a harmonia sensível da música se funda na harmonia dos céus, antigamente descoberta pelo pitagóricos [...] Muitos dos antigos pagãos eram da opinião de que, sem consonâncias, não seria possível compreendermos nem a perfeição da luz, nem descobrir os mútuos e profundos reflexos da alma e a simetria, como diziam os gregos falando das virtudes101.

Mais adiante, em uma outra versão dessa personificação no mesmo verbete, Ripa escreve que a Música se deve representar como uma “mulher que segura a lira de Apolo entre as mãos, enquanto tem, aos pés, outros diversos instrumentos musicais”102. A obra de Ripa representou a culminância de um trabalho de arqueologia semiótica que deve muito à redescoberta da Hieroglyphica de Horapolo. Esse tratado, obra supostamente antiga, mas, de fato, proveniente da Alexandria do século IV, é o único trabalho do mundo clássico que chegou até nós tendo por objeto a escrita egípcia. Os “Hieróglifos de Horapolo do Nilo que escreveu em egípcio e que depois Filipe traduziu para o grego” chegaram a Florença em 1422, trazidos pelo viajante Cristóforo Bondelmuonte, que o comprou em 1419 na ilha de Andros, na Grécia. Sua primeira edição (ainda sem ilustrações) foi em 1505. Nela, os hieróglifos são explicados com base em seu suposto significado religioso oculto, o que, hoje sabemos, é um grande malentendido sobre sua verdadeira natureza, uma grafia fonética do idioma egípcio. Ficino, 99

“Doversi le cose divine, quando pure si scrivano, sotto enigmatici velamenti e poetica dissimulazione coprire”. Apud WIND. 100 Iconologia, ovvero descrittione dell’Imagini cavate dall’Antiquitá et da altri luoghi, da Cesare Ripa Perugino. Opera non meno utile che necessaria à Poeti, Pittori et Scultori, per rappresenrtare le Virtù, Vitii, Affeti, et Passioni humane. In Roma, Per gli Heredi di Gio. Gigliotti. MDXCIII. 101 RIPA, II, 119 102 Ver RIPA, II, 120. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 49

no prefácio aos comentários que escreveu à sua tradução do Pimandro, atribui ao deus egípcio Thot – isto é, a Hermes Trismegisto – a invenção desses sinais. A veneração pela suposta sabedoria primeva dos egípcios contribuiu para a divulgação da moda dos hieróglifos renascentistas. A Hieroglyphica de Horapolo desempenhou papel relevante no fortalecimento da cultura visual do Cinquecento, confirmando, aos olhos dos italianos, que tanto Platão como as revelações pré-cristãs de Hermes Trismegisto, Orfeu e Zaratustra atestavam a veracidade das suas doutrinas mediante velados mistérios, mistérios esses que estariam na antiga escrita sagrada dos egípcios. Para Ficino, “os hieróglifos são cópias das idéias divinas nas coisas”103. Também Pico, na Carta a Girolamo Bieniveni, concordava que “era opinião dos antigos teólogos que não se deve temerariamente publicar as coisas divinas e os mistérios secretos. Não por outra razão os egípcios, em todos os seus templos, tinham esculturas da Esfinge, no mínimo para lembrar que, quando tivessem de ser escritas, apenas sob véus enigmáticos e poética dissimulação”104. A divulgação da obra de Horapolo resultou na criação dos hieróglifos renascentistas, predecessores dos emblemas, dos brasões e das divisas. Toda uma semântica visual foi erigida em torno da ideia de que as imagens seriam capazes de, escondendo, revelar verdades ocultas. Estas imagens encontram-se também no material do Orfeo, na forma de uma teoria neoplatônica do amor musicada e encenada. Não podemos esquecer que, para os neoplatônicos renascentistas, o cantor Orfeu tinha realmente existido, bem como os magos Zaratustra e Hermes Trismegisto. Ele tinha sido um antiquíssimo conhecedor de profundos mistérios pertinentes à imortalidade da alma e à ressurreição, e apresentar um drama musical que representasse a sua história equivalia a celebrar um ato litúrgico com ressonâncias pseudo-cristológicas digno do maior respeito religioso. Striggio e Monteverdi tinham certamente consciência do caráter, digamos, de santidade que revestia a sua empreitada. E, para que ela atestasse a máxima coerência para com a doutrina do “prisco teólogo”, letra e música deveriam seguir o simbolismo de mistérios do orfismo, pois, “como era o costume dos antigos teólogos, Orfeu vestiu os mistérios dos seus dogmas com véus poéticos, de forma que, se alguém os lê, pode acreditar estar diante apenas de fábulas e estórias poéticas de pouca importância”105. Aos não-iniciados, a mensagem do Orfeu permaneceria para sempre um mero jogo musical e teatral. Os membros da Accademia degli Invaghiti, portanto, que se reuniram para assistir à celebração místico-religiosa no palácio de Mântua em 1607, sentindo-se como herdeiros e cultuadores do orfismo helênico, como homens versados no idioma dos mistérios e sábios descobridores do véu de Ísis, estavam cônscios de que ali receberiam uma mensagem, sim, mas uma mensagem criptografada em versos e melodias, e que do saber de cada um dependeria penetrar aqueles símbolos, pois a encenação da favola d’Orfeo revelaria “dos mistérios apenas a casca exterior, reservando a medula do verdadeiro sentido aos intelectos mais elevados e mais perfeitos”106.

103

Apud GONZÁLEZ DE ZÁRATE, 22. Apud WIND. 105 PICO: Da dignidade do homem. 106 PICO: Commento III. 104

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II. Striggio e a mitologia

Uma questão não menos relevante para compreender o Orfeo é identificarmos a que mitologia Striggio se reportava. O mitologema em si é de origem recente, não sendo citado nem por Homero nem por Hesíodo. A primeira alusão a um cantor mítico que teria descido ao Inferno para resgatar a companheira está na Alceste (438 a.C.), de Eurípedes, em uma fala de Admeto: Ah! Se eu dispusesse da voz e da inspiração de Orfeu, a fim de acalmar a filha de Ceres, ou seu marido, e retirar-te do Hades, eu lá iria ter, e nem o cão de Plutão, nem Caronte, o timoneiro das almas, com seu remo, poderiam impedir que eu te trouxesse de novo à região da luz!107

Depois de Eurípedes, Platão é o próximo autor da Grécia antiga a fazer menção ao mito de Orfeu. Ele aparece no Banquete (385 a.C.), porém, com uma interpretação francamente discordante das variações posteriores que conhecemos: em Platão, o poeta é apresentado como um fraco moralmente, que não teve coragem para trocar de lugar com Eurídice (morrer de amor como o tinha querido Alceste, na tragédia de Eurípedes), e um covarde, já que era músico (“se acovardava, citaredo que era”)! Até os deuses honram ao máximo o zelo e a virtude no amor. A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seu amor morrer como Alceste, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades108.

Recém dos romanos recebemos uma narrativa mais minuciosa. Virgílio elaborou a narrativa do mito de Orfeu como parte de um longo epyllion – uma digressão – ao fim da Geórgica IV (29 a.C.). Nela, as personagens apresentam-se muito bem construídas e, não raro, discursam seus sentimentos com versos tocantes, como na despedida derradeira de Eurídice: ‘Quem fez com que nos perdêssemos, Orfeu, a mim e a ti mesmo? Que grande loucura foi esta? Eis aqui que, de novo, as amarras me obrigam a retroceder, e o sono fecha meus vagantes olhos. Adeus,

107 108

Alceste, 357. Banquete, 179d. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 51

agora! Sinto-me arrastada pela imensa noite que me rodeia, enquanto estendo-te as mãos que, ah, não te pertencem’. Assim falou e, de súbito, longe dos olhos, qual fumaça dissipando-se nas brancas auras, desapareceu sem que o outro, que em vão tentava abraçar sua sombra e queria ainda falar-lhe, pudesse vê-la109.

Finalmente, Ovídio dedica ao tema toda a primeira parte do livro X das Metamorfoses (8 d.C.), enriquecendo o enredo com pequenos episódios paralelos. Ovídio consegue, já no início do poema, anunciar sutilmente o clima da tragédia que vai acontecer: Envolto em seu manto amarelo açafrão, lá vai Himeneu voando, e, atravessando imensas planícies do ar, dirige-se às fraldas dos [montes] Cicones. Em vão a voz de Orfeu convida-o para suas bodas. Ele até iria, na verdade, mas sem levar as palavras sagradas, nem o rosto feliz, nem presságios de bons augúrios110.

O material desses primeiros narradores, Eurípedes (480-406 a.C.), Platão (428347 a.C.), Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) e Ovídio (70 a.C.-19 a.C.), por ordem cronológica, foi vítima, apesar da preservação dos textos depois da queda do Império Romano, de comentadores medievais com pouco conhecimento do grego e mesmo do latim. Além disso, a maioria dos historiadores era tendenciosa, legando à posteridade interpretações quase sempre moralizadas: era de praxe reescrever as histórias e relacionar as personagens mitológicas com a fé cristã. No caso da lenda dos amantes Príamo e Tisbé, por exemplo, esses recebiam o significado de serem, respectivamente, Cristo e a alma humana, sendo que o leão que causou toda a tragédia representaria a encarnação do Mal. As Metamorfoses de Ovídio, a mais completa fonte clássica que dispõe 250 mitos da Antiguidade, foram submetidas por inteiro a esse tratamento. E isso não apenas uma, mas várias vezes, em diversas épocas e línguas; o Ovídio moralizado111 do francês Petrus Berchorius (1340) foi o que alcançou maior popularidade, sendo continuamente reeditado até o século XVI. Em comparação com o restante da mitologia antiga, Orfeu desfrutou de certa preferência nesse processo de moralização. Algumas analogias de sua história com a de Cristo, como a de haver descido ao mundo dos mortos e de lá voltado, fizeram com que sua figura fosse submetida a um maior número de interpretações cristianizadas. Já nos séculos da Patrística, S. Agostinho e S. Clemente contribuíram para que o mito de Orfeu estivesse sempre ligado ao cristianismo. S. Agostinho acreditava não apenas que o famoso cantor tivesse realmente existido, mas que, de forma análoga à das Sibilas, Orfeu tivesse predito algumas verdades sobre o Pai e o Filho112. E S. Clemente de Alexandria concordava em uma identificação da figura do cantor trácio que, com a mágica de sua música,

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Geórgicas, IV, 495-502. Metamorfoses, X, 1-5. 111 Metamorphosis Ovidiana moraliter explanata. 112 Contra Faust, XVII, 15. 110

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amansava as feras, com a de Cristo, que atrai a si os homens pelo fascínio da verdade e da palavra de Deus113. Seja como for, ao preparar o seu Orfeo, Striggio seguramente não estava pensando no que hoje entendemos por mitologia grega. É certo que seu libretto é um verdadeiro compêndio de Neoplatonismo renascentista, o que o distingue com um forte sincretismo cultural. Esse sincretismo, porém, se apresentava à revelia dos autores, que buscavam sinceramente uma recuperação do saber greco-romano, sem, contudo, disporem, para tal, dos documentos e do necessário conhecimento filológico do grego. Para refazer o seu caminho, temos que procurar saber quais foram suas fontes, quais suas referências e o que delas aproveitou ao caracterizar suas personagens. Para escrever o seu poema, Striggio teve que tentar reencontrar uma tradição que tinha sofrido uma longa interrupção durante a Idade Média. O conhecimento da mitologia, das relações genealógicas entre os deuses, semideuses e os homens não estava acessível aos renascentistas italianos. Principalmente o grego era um idioma que logo a partir da queda de Constantinopla, em 1534, passou a ser ensinado regularmente nas universidades italianas. Com exceção de alguns poucos trabalhos de compilação feitos durante a Idade Média114, a solução foi voltar-se para o que havia restado das obras dos eruditos romanos, já que o saber da Grécia encontrava-se praticamente inacessível, devido à carência de traduções e mesmo de documentos originais. As fontes, portanto, eram de segunda mão. Petrarca tinha possuído um Homero em grego, manuscrito a tinha um apreço enorme; era, porém, incapaz de ler o que ali estava escrito. A primeira versão latina (a que Petrarca e os demais eruditos tinham condições de ler e entender) de Homero tinha sido feita por Boccaccio, com a ajuda de um grego que conheceu e que vivia na Calábria115. De uma forma geral, os documentos escritos e a iconografia a esse respeito se encontravam, ao alvorecer do Renascimento, em um estado de grande confusão – durante quase mil anos, entre os séculos V e XV, os atributos, os poderes e a natureza específica dos personagens mitológicos tinham sido esquecidos e, em parte, substituídos por outros, mais próximos à realidade do homem medieval. Esse foi um processo que começou já no período de decadência helenística, quando filósofos começaram a interpretar os deuses como personificação de forças da natureza ou de qualidades morais, chegando mesmo a serem esses explicados como seres humanos comuns que teriam sido, posteriormente, deificados. A iconografia ajudou a fixar essa mistura de caracteres, e, quem consultar, por exemplo, um manuscrito como o 10268, fólio 85, da Biblioteca de Munique, vai se deparar com a deusa Vênus representada como uma bela jovem – em trajes do século XIV – cheirando uma rosa, enquanto Júpiter aparece como um magistrado, segurando nas mãos suas luvas, e Mercúrio veste-se como um bispo católico, a que não faltam a mitra e o báculo116. Os humanistas da primeira geração que tentaram retornar às imagens 113

Cf. KERN, Orphicorum fragmenta, apud DI BERARDINO, 1040. As Nuptiae Mercurii et Philologiae, de Marciano Capella (séc. V), o Mitologiarum, de Fulgêncio (séc. V-VI) e o Comentário sobre Virgílio (Vergilii Ainedos Librum primum commentarius), de Sérvio (séc. IV-V). 115 Ver BURCKHARDT, 190. 116 Ver PANOFSKI: Significado nas artes visuais, 72.

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A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 53

originais dos deuses, tiveram, como Petrarca, que consultar mitógrafos ingleses, que eram os únicos no continente europeu que continuaram cultivando o estudo dos originais da era clássica117. Nesse contexto, era inevitável que o compêndio Genealogia Deorum Gentilii118, de Giovanni Boccaccio, tenha se constituído em uma importante fonte de pesquisa. Boccaccio redigiu esse grande levantamento de todo o material disponível nos últimos anos de sua vida, de 1370 a 1374, e enriqueceu-o com uma pesquisa dos autores latinos conhecidos da época romana, com alguns autores gregos e com outros cristãos, como Hrabanus Maurus e Isidoro de Sevilha, que trataram desse tema durante a Idade Média. Seu grande mérito foi nao considerar as desencontradas informações medievais e tentar ir direto aos documentos originais da Antiguidade. Para tal, teve que expurgar as confusões e incrustramentos que tinham sido adicionados aos mitos gregos ao longo do tempo, e isso Boccaccio fez confrontando as versões das fontes a que teve acesso. O calhamaço de mais de quatrocentas páginas pretendia abranger toda a genealogia dos deuses do panteão clássico, iniciando-se na letra A com Atropos, figliuola di Demogorgone, até a letra Z final, com o último verbete, Zebo, settimo figliuolo di Marte. A essa genealogia, Boccaccio adiciona uma descrição de todos os mitologemas (Tutte le cose notabili & degne di memoria, che n’opra si contengono)119 que recolheu, desde a “Elettione tra tutti i dei del Dio prencipale de’ Gentili”120 até uma explicação final com o título de “La ragione per la quale l’autore non habbia posto tra il numero de’ dei Alessandro & Scipione”121. Boccaccio pesquisou também autores de autoridade indiscutível, como o arquiteto romano Vitrúvio (Openione di Vitruvio nell’inventione del fuoco122), Aristóteles (Quanti siano i venti secondo Aristotele), S. Agostinho (Chi fosse Atlante secondo Santo Agostino123) e o poeta Dante Alighieri (Openione di Dante d’intorno Acheronte124). A popularidade do livro de Boccaccio se deveu também aos temas tratados, certamente ao gosto dos italianos do Renascimento, ansiosos por restaurar o antigo esplendor romano, em verbetes tais como “Perché la famiglia dei Cesari osservasse i sacrifici di Apollo”125 ou “Il senso istorico de Titio”126. Habilmente, na Segunda Parte, ele inclui toda uma defesa do papel da poesia e dos poetas na sociedade enquanto paradigma do Humanismo, com subtítulos tais como Quali siano quelli che opponghino ai Poeti, & quali le cose,

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Petrarca consultou o Mytographus III, da autoria provavelmente do monge inglês Alexander Neckham (†1217), a obra mais abrangente de compilação de toda a informação referente à mitologia antiga disponível ao fim da Idade Média. 118 Genealogia dos deuses dos gentios. 119 Todas as coisas notáveis e dignas de memória que estão contidas na obra. 120 Eleição, por todos os deuses, do Deus principal dos gentios. 121 A razão pela qual o autor não incluiu entre os deuses Alexandre [Magno] e Cipião [o Africano]. 122 Opinião de Vitrúvio sobre a invenção do fogo. 123 O que teria sido a Atlântida, segundo S. Agostinho. 124 Opinião de Dante a respeito do Aqueronte. 125 Por que a família dos Césares assistia aos sacrifícios de Apolo. 126 O senso histórico de Tito. 54 | Ronel Alberti da Rosa

che da alcuni gli sono opposte (Que objeções fazem-se aos poetas, e quais as coisas de que alguns sào acusados); La Poesia essere utile facultà (A poesia é coisa útil); Che cosa sia Poesia onde detta, & quale il suo ufficio (O que é a poesia, onde ela deve ser dita, e qual o seu ofício); Che l’oscurità edi Poeti non è da condennare (Que a obscuridade da poesia não deve ser condenada); Che i poeti guidano al bene chi li legge (Que os poetas conduzem ao bem aqueles que os leem) e, finalmente, argumentando que mesmo o divino Platão não condenou todos os poetas sob quaisquer circunstâncias – alusão à expulsão dos poetas, na República: Che tutti i Poeti secondo il comandamento di Platone non sono da essere cacciati dalle Città (Que nem todos os poetas, segundo o comandante Platão, devem ser expulsos da cidade). Finalmente, argumenta que os estudos do Paganismo já não constituía perigo algum à verdadeira fé cristã: a Igreja tinha há muitos séculos vencido os falsos deuses, podendo estes, então, ser estudados sem risco para o Cristianismo. Não há documentos que atestem algum uso direto feito por Striggio da Genealogia, mas há detalhes nas versões dos mitologemas – como Orfeu ser apresentado como filho da Musa Calíope com Apolo, e não com o rei Eagro – que indicam que, em muitos momentos, e da mesma forma que os seus contemporâneos, foi seguida a então popularíssima versão genealógica boccacciana. Ainda no tocante à paternidade de Orfeu, por exemplo, trata-se de um empréstimo da Écloga IV, de Virgílio, que “atesta” a paternidade de Apolo com um verso no qual compara Orfeu a Lino, seu irmão por parte de pai. Lino é outra personagem mítica com grande pendor para o canto e a música: “Ninguém há de vencer-me no cantar, nem Orfeu da Trácia nem mesmo Lino, ainda que sejam ajudados, um pelo pai, o outro pela mãe: Orfeu por Calíope, Lino pelo formoso Apolo”127. É certo que, se Striggio chegou a ler o comentário de Platão, desconsiderou-o solenemente a paternidade do rei trácio Eagro em favor da versão boccacciana de Apolo como pai de Orfeu. Boccaccio, aliás, também é um autor que vai ratificar, baseado em Lactâncio, a antiguidade de Orfeu128, a quem se refere praticamente como personagem real, o que será mais tarde confirmado pelo manuscritos dos prisci theologi e da Theologia Platonica de Ficino. Nesta linhagem, Orfeu ocuparia um lugar depois de Hermes, Zaratustra e Moisés, seguindo-se depois Pitágoras, Platão e Jesus Cristo! O dom do canto mágico, Orfeu o deveria à sua harpa – na versão de Boccaccio um presente não de Apolo, mas de Mercúrio, encontrando aqui os renascentistas mais uma confirmação da linhagem teológica de Orfeu e dos cultos órficos, já que o próprio Trismegisto, nesse caso, ao presentear Orfeu com seu instrumento mágico, apresenta-se quase como um preceptor do jovem “teólogo”. No século XIV, a crença de que Orfeu dispunha de poderes mágicos recebeu uma interpretação com cores francamente gnósticas, com a arte do canto mágico apontando

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“Non me carminibus vincat nec Thracius Orpheus, / nec Linus, huic mater quamuis atque huic pater adsit, / Orphei Calliopea, Lino formosus Apollo” VIRGILIO: Ecloga IV, 55-7. 128 “Orfeo poi, ilquale fu antichissimo di quasi tutti i Poeti (come Latantio scrive nel libro delle Divine Institutioni)” [...]. Genealogia Deorum, 48. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 55

para um caminho de autoconhecimento e de superação das paixões humanas. Assim, as árvores que se movem ao canto de Orfeu significariam os homens obstinados e teimosos, os rios dos quais Orfeu pode parar a corrente seriam homens instáveis e lascivos, e as feras por ele amansadas seriam uma metáfora para os homens violentos e sedentos de sangue. O poder da música pode a todos conduzir à serenidade da alma. Com esta [harpa], Orfeu move os bosques, ainda que tenham as raízes firmíssimas e fixas na terra, isto é, move os homens de opinião obstinada, os quais não podem ser movidos da sua obstinação a não ser por força da eloquência. Tranca os rios, isto é, os homens lascivos e incorretos, os quais, se não são estáveis em obstinada fortaleza diante de tal demonstração de eloquência, escorrem até o mar, quer seja, até a eterna amargura. Faz mansas as feras, isto é, os homens sedentos de sangue, os quais, muitíssimas vezes são conduzidos à mansidão e à humanidade pela eloquência do sapiente129.

Para o mito de Orfeu, um dos mais longos da Genealogia, Boccaccio se apóia em oito autores antigos, abaixo listados por ordem de aparecimento: -

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Lactâncio (240-320), de quem cita excepcionalmente a fonte, as Divinarum Institutionum130: “Orfeu era filho da Musa Calíope e de Apolo, assim como diz Lactâncio...”131 Rhabanus Maurus (780-856) (provavelmente reportando-se ao De rerum naturis132): “Pretende Rhabanus [Maurus] que Mercúrio lhe presenteasse a lira [...] A lira, depois (como diz Rhabanus), subiu ao céu, e foi colocada entre as constelações celestes”133. Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), Éclogas, Bucólicas e a Eneida: “De sua parte, Virgílio narra tal fábula, isto é, como ele amou a ninfa Eurídice...”134

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“Con questa Orfeo muove le selve, c’hanno le radici fermissime, & fisse nella terra, cioè muove gli huomini d’ostinata openione; i quali non si ponno rimovere dalla sua ostinatione eccetto per le forze dell’eloquenza. Ferma i fiumi, cioè li scorretti, & lascivi huomini, i quali se non sono stabiliti in ferma fortezza con salde dimostrationi d’eloquenza scorrono fino nel mare, cioè nell’eterna amarezza. Fa benigne le fiere, cioè gli huomini ingordi di sangue; i quali spessissime volte dalla eloquenza d el sapiente sono ridotti in mansuetudine, & humanità” (Genealogia Deorum, 166). 130 Instituições Divinas. 131 Orfeo fu figliuolo della Musa Caliope, & d’Apollo, sì come dice Lattantio. 132 Das coisas da natureza. 133 Vuole Rabano che Mercurio a lui desse la lira poco inanzi da se ritrovata [...]La lira poi (come dice Rabano) fu assunta in Cielo, & tra le imagini celesti locata. 134 Di costui Virgilio recita tal favola, cioè ch’egli amò Euridice ninfa. 56 | Ronel Alberti da Rosa

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Ovídio (70 a.C.-19 a.C.), as Metamorfoses: “E por esta razão, como diz Ovídio, tendo rejeitado a mão de muitas mulheres, e persuadindo os outros homens a que vivessem vida casta, foi odiado pelas mulheres...”135 Fulgêncio (séc. V-VI), apesar das interpretações forçadas do sentido místico e alegórico dos mitos nas suas obras Mitologiarum e Expositio Vergilianae continentiae, as comparações que faz com a Bíblia (Fulgêncio era cristão) criaram uma escola posteriormente desenvolvida por outros autores: “Fulgêncio, porém, tem outra opinião. Diz que Eurídice, a amada perdida e novamente conquistada, é a figuração da Música, interpretando-se Orfeu quase oreáfono, isto é, ótima voz...”136 Teodôncio (séc. IX–XI?) escreveu um tratado em latim sobre mitologia, mas que se perdeu. Há numerosas citações desta sua obra desaparecida na Genealogia de Boccaccio: “...diz Teodôncio, que Orfeu foi o primeiro a fazer sacrifícios a Baco, e ordenou aos Trácios que estes [sacrifícios] fossem feitos pelo coro das Mênades [...]”137. Leôncio († 1366), um dos primeiros estudiosos da língua e da literatura grega clássicas na Itália, traduziu toda a obra de Homero para o latim e forneceu material, não sabe-se infelizmente de que fonte, para a Genealogia de Boccaccio: “... aqueles sacrifício são chamados até hoje de órficos [...]. Depois da sua [de Orfeu] cabeça, também sua cítara foi levada até Lesbos, e Leôncio dizia que isto não era uma fábula [...]”138. Plínio, o Velho (23-79) e sua Naturalis historia também são citados, ainda que apenas de passagem no final do verbete de Orfeu, com o comentário sobre os poderes divinatórios da cabeça do semideus (na versão do mito em que o cantor é esquartejado pelas mulheres da Trácia): “... Plínio, no livro da História natural, localiza aí o costume de predizer a sorte a partir de outros animais, já que, primeiramente, se predizia apenas a partir dos [voos dos] pássaros”139.

Para reconstruir o seu Orfeo, Striggio se atém, na maior parte do poema, à versão de Boccaccio, descartando outras variantes adotadas pelos eruditos da Camerata Bardi. Ainda assim, é proveitosa uma comparação direta de alguns trechos da ópera com outras fontes, mesmo que sejam citadas por Boccaccio. A mais importante é a Teogonia de Hesíodo, que já estava disponível na tradução latina de Ficino desde meados do século

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Et perciò (come dice Ovidio) havendo rifiutato le nozze di molte donne, et persuadendo ad altri huomini, che facessero vita casta, cadde in odio delle donne [...]. 136 Fulgentio poi ha altra openione. Dice che l’amata perduta, & di nuovo acquistata, Euridice, è la figuratione della musica, interpretandosi Orfeo quasi Oreafogni, cioè ottima voce [...]. 137 [...] come dice Theodontio, che Orfeo fu il primo che trovò i sacrifici di Bacco, & commandò a’ Thracesi che quelli fossero fatti dai Chori delle Menadi [...]. 138 Quelli sacrifici ancho hora sono detti Orfici [...]. Che poi il suo capo, & la Cithara fossero trasportati in Lesbo, Leontio diceva questo non esser favola [...]. 139 [...] Plinio nel libro dell’historia naturale, di costui esser stata inventione il pigliar auguri dagli altri animali, che solamente dagli uccelli si pigliavano prima. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 57

XV. O início dos dois poemas, a Teogonia e o Orfeo apresenta algumas similaridades notáveis, na maneira de conceber o universo mitológico. É certo que, nas tragédias, uma personagem cujo significado simbólico estivesse muito ligado à trama pedia licença para anunciar o que dali em diante passaria a acontecer sobre o palco, o que, no Orfeo, se dá através do antropônimo La Musica. Na Teogonia, o Proêmio às Musas é que cumpre este papel. Os versos 95 a 103 do poema de Hesíodo concentram várias das ideias básicas do Prólogo de Striggio, e parece muito provável que, tendo-o conhecido, ele aproveitasse suas linhas mestras para compor as suas estrofes da Música: 1) a divisão entre deuses olímpicos, homens (cantores e citaristas) e reis; 2) a voz das Musas, bem como da Música, é doce, ou dela fluem sons doces, e estes sons podem mediar entre homens, reis e deuses, entre Hades, mundo e Olimpo; 3) os humanos são, ocasionalmente, presas de aflição (angústia no ânimo recém ferido); 4) esta angústia tem origem nos males de amor (mirra o coração); 5) a arte (a Música ou as Musas) pode afastar esse mal (logo esquece os pesares [...] já os desviaram os dons das Deusas); 6) a doçura dos sons da Música ou das Musas faz com que seus favoritos (os artistas) sejam felizes (feliz é quem as Musas amam). Pelas [graças às] Musas e pelo golpeante Apolo há cantores e citaristas sobre a terra, e por [graças a] Zeus, reis. Feliz é quem as Musas amam, doce de sua boca flui a voz. Se com angústia no ânimo recém-ferido alguém aflito mirra o coração e se o cantor servo das Musas hineia a glória dos antigos e os venturosos Deuses que têm o Olimpo, logo esquece os pesares e de nenhuma aflição se lembra, já os desviaram os dons das Deusas140.

Também o Hades de Striggio parece-se muito com o descrito por Hesíodo. Em vez de descrever o submundo como um mar de chamas, estéril e feio, Striggio concebe um reino, com soberano, sua consorte, súditos e ministros. Esse Hades tem portas e palácio, é um verdadeiro reino independente. E é, efetivamente, independente: depois da tripartição do cosmos entre os irmãos Zeus – a quem coube o Olimpo –, Poseidon – que ficou com os mares – e Hades – que passou a reinar sobre o mundo das sombras –, nenhum teve mais ingerência sobre os territórios alheios. O papel real de Plutão exige que seu reino tenha administração, com comandados e ministros, cercado de muralhas e com um vasto palácio na acrópole com um grande vestíbulo – que é onde chega Orfeu, depois de ter ultrapassado o rio Aqueronte. Striggio fala de “um portão real desta soleira de horrores” (Ato III), e Hesíodo descreve “resplendentes portas e umbral de bronze inabalável”141 e, referindo-se à real moradia de Plutão: “defronte, o palácio ecoante do

140 141

Teogonia, 95-103. Teogonia, 811-2.

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Deus subterrâneo, o forte Hades, e da temível Perséfone eleva-se”142 e complementa: “ilustre palácio coberto de altas pedras, todo ao redor com as colunas de prata se apóia no céu”143. Detalhes como a geografia do Tártaro, os ventos, cuja fúria Orfeu tem de vencer para atravessar o Aqueronte, e a relação amorosa de Plutão e Proserpina, que começa com o rapto desta, são todos inspirados na descrição feita por Ovídio em suas Metamorfoses. Já o Caronte de Striggio é calcado na Eneida. A descrição de Virgílio impressiona pela crueza: Ao cuidado destas águas e deste rio está seu horrível guardião, terrivelmente sujo: Caronte. Uma grande barba branca pende, descuidada, de seu queixo; seus olhos são um par de tições fixos, um sórdido trapo pende, amarrado, de seus ombros. Apoiado em seu bastão e manobrando as velas, é ele quem transporta as cadavéricas sombras em sua barca de cor ferruginosa, já muito velho, mas com a vigorosa e robusta velhice de um deus144.

A alusão de Plutão aos seus “ministros” tem certamente relação com a crença de que as penas no mundo das sombras eram distribuídas por três juízes imparciais, Minos, Eaco e Radamanto. Platão, no Górgias, dá uma descrição da origem deste costume, e Dante, na Divina Comédia (Inferno), fala apenas de um juiz, Minos: “Ali está o horrível Minos, que, rangendo os dentes, examina as culpas na entrada, julga e assinala o lugar segundo as voltas que dá com a cauda (em torno de si mesmo)”145. Mas não apenas o librettista Striggio se preocupava com um escrupuloso conhecimento dos mitologemas. Também Monteverdi estava muito consciente do grande peso que a correta interpretação da mitologia clássica tinha, ao ser transposta para a música dramática do seu tempo. O libretto de uma outra ópera com temática mitológica, As bodas de Tétis, da autoria também de Striggio, foi veementemente recusado em 1616 por Monteverdi, que não viu nele possibilidade de expressar o que, hoje compreendemos muito bem, era o escopo do Humanismo musical: a dimensão humana. O fato de os ventos não serem humanos, e daí não poderem cantar como o fazem os humanos, era um obstáculo a que Monteverdi não estava disposto a fechar os olhos. Para eu poder transpor a forma de recitar do texto em música, precisaria, além do mais, sustentar o canto com instrumentos de sopro, em vez de suaves instrumentos de corda, pois o canto dos tritões e outros habitantes marinhos exigem, em minha opinião, trombones e cornetti, e, de forma alguma, cítara, clavicembalo ou

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Teogonia, 767-9. Teogonia, 777-9. 144 Eneida VI, 298-304. 145 “Stavvi Minos orribilmente, e ringhia: esamina le colpe ne l’entrata; giudica e manda secondo ch’avinghia” (Divina Comédia, V, 3-5). 143

A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 59

harpa. E, como trata de um ambiente marinho, o enredo se passa fora da cidade, e Platão não nos ensinou que Cithara debet esse in civitate, et tibia in agris [Na cidade deve-se empregar a cítara, no campo a flauta]? [...] Então, eu li a relação das personagens: ventos, cupidos [amoretti] , brisas [zefiretti] e sereias estão representados na cena. Consequentemente, eu precisaria de muitos sopranos. Só que, além disso, também os ventos, os zéfiros e os boreais, teriam de cantar. De que maneira eu vou conseguir imitar a fala dos ventos, se na realidade nem voz eles têm? E como, com um material destes, eu conseguiria comover os ânimos? Arianna provoca piedade porque é uma mulher, e Orfeu porque é um homem, e não um vento146.

Orfeu e Ariadne (Arianna), personagens de outros dramas musicais de Monteverdi, comoviam porque eram humanos; a comoção dos afetos e a catarse, compreendia o compositor, só se objetivam através da identificação com a personagem no palco, e, para tal, é indispensável manter-se a dimensão humana do canto e da arte.

146 MONTEVERDI, Claudio. Carta a Alessandro Striggio em 9/12/1616, em MEIEROTT SCHMITZ: Materialien zur Musikgeschichte.

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III. Monteverdi, a Camerata e os gregos

O arcabouço que sustentou o stilo rappresentativo de Monteverdi foi construído no diálogo com o que os renascentistas acreditavam ter sido a música dos antigos gregos. A recuperação da tragédia ática na forma de um drama musical constituiu-se em um processo durante o qual deduziram-se alguns dogmas estéticos que, como veremos, continham acertos – mas também equívocos – que se revelaram muito produtivos. Provavelmente, o aspecto mais marcante desse processo tenha sido o grande aumento da importância das regras da retórica clássica. A polifonia, técnica que passa a ser crescentemente desprezada em favor da homofonia, tinha seu fundamento na aritmética, nas regras das proporções, constituindo-se numa metafísica sonora em moldes platônicos: prevalecia a perfeição da forma e do tratamento dos sons sobre o significado individual do texto a ser cantado. Com base na mudança de paradigma em favor da palavra, contudo, a retórica é que vai orientar, a partir da teoria dos afetos, as inflexões rítmicas e melódicas a serem tomadas pela composição. Durante a primeira Renascença, teve primazia o estudo de trabalhos de tradição pitagórica; grande autoridade era reconhecida a tratados da época helenística, como os do astrônomo Claudio Ptolomeu (127-148 d.C.), que procuraram desvelar a correspondência entre música, cosmos e homem. No seu Harmonias, Ptolomeu vai além do mero estudo astronômico do Almagesto e do Tetrabiblos: tentando estabelecer as bases de uma ciência da melotesía – o estudo da distribuição dos influxos planetários pelo corpo humano147 –, Ptolomeu discorre, naquele que deveria ser um tratado de escalas e intervalos, sobre harmonia psíquica e cósmica. Em Harmonias II, 7, ele resume suas conclusões acerca das correspondências cósmicas, relacionando as sete faculdades da alma com as sete virtudes da razão e as sete notas da escala. No livro VI, o esboço ptolomaico de uma teoria ética dos sons traz reminiscências de Pitágoras e de Platão (República III, 398c-399a) e será mais tarde fartamente aproveitado pelos tratadistas do Renascimento. COMPARAÇÃO ENTRE AS GENERA EM MÚSICA E AS PRINCIPAIS VIRTUDES: Os dois poderes fundamentais da alma, teoria e prática, têm, cada um, três subdivisões: o poder teórico abrange a Física, a Matemática e a Teologia (ligadas respectivamente à natureza, à ciência e à religião); o poder prático abrange a Ética, a Economia e a Política (ligadas à moral, à administração e à vida pública). Estas subdivisões dos poderes da alma são

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Com o propósito de melhor compreender as relações entre os órgãos humanos, as trajetórias dos astros e a arte (ciência) da música, os governantes de Alexandria autorizaram a prática de vivissecção de condenados à morte, a fim de que suas vísceras fossem estudadas em pleno funcionamento. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 61

relativamente indiferenciadas, pois as virtudes das três são comuns e interdependentes; elas diferem em seu significado, seu valor e em sua estrutura. Assim, pode-se comparar cada um destes grupos ternários de uma forma apropriada com os três tipos de harmonia, os chamados gêneros enarmônico, cromático e diatônico. Estes também se diferenciam pelo tamanho e pelo alcance das parcelas que lhes são removidas ou adicionadas. Pois uma diferenciação deste tipo ocorre nelas, através da afinação universal e do movimento relativo, entre pyknon e apyknon148. Poderíamos comparar o gênero da harmonia enarmônica com a física e a moral, pois ambas agem em um âmbito muito próximo de relações; o gênero diatônico é comparável à teologia e à política, em vista de sua busca pelo ordenamento e nobreza igualitários; o gênero da harmonia cromática, então, é comparável à matemática e à economia, que ocupam um meio entre os extremos. A matemática, freqüentemente está envolvida com a física e a teologia; a economia tem sua parcela de moral (quando trata do individual e subserviente) e, às vezes, de política (quando trata a comunidade e a governança). O gênero cromático é, de certa forma, uma ponte entre os [gêneros] enarmônico e diatônico, com inclinação para o anterior, graças à sua suavidade e falta de firmeza, e para o posterior, devido à sua seriedade e severidade, e mostrando, em comparação com cada uma, as qualidades contrárias. Exatamente assim, a mese soa uma oitava acima do proslambanomenos149, e uma oitava mais baixa que o hyperbolaion150.

Tratados como o de Ptolomeu foram exaustivamente comentados e glosados, ramificando-se em uma série de trabalhos de comentadores que, a seu modo, procuraram sustentar uma teoria numerológica para explicar o cosmos. A seguinte passagem do livro XII do Dodechordon (1530) de Glareanus (1488-1563) exemplifica o grau de relevância de uma mística dos números e seu papel na musica mundana151.

148

Nos tetracordes cromáticos e enarmônicos da música grega, o pyknon é a soma de dois intervalos mínimos, e o apyknon é o intervalo maior, comparáveis ao semitom e ao tom inteiro do atual sistema temperado. 149 O sistema musical teleion, da Grécia clássica, evoluiu a partir de um sistema pentatônico, tendo se consolidado inteiramente apenas no século VIII a.C. Nesse processo, foram sendo adicionadas mais e mais notas às originais quatro notas da forminx, a espécie mais primitiva de lira. Finalmente, para completar-se o que hoje reconhecemos como um sistema escalar de duas oitavas, adicionaram-se uma nota inferior – a proslambanomenos – e uma superior – a hyperboleion – ao sistema, que passou a chamar-se teleion. 150 Apud GODWIN, 27-8. 151 Musica mundana ou musica universalis são outras denominações para música das esferas, conceito tradicionalmente creditado a Pitágoras, expressão não audível das proporções harmônicas e matemáticas das trajetórias dos corpos celestes. 62 | Ronel Alberti da Rosa

Esta questão é digna de consideração, isto é, qual o significado do número sete, citado por tantos escritores e de forma tão diferente, quando eles tratam assuntos de música, desde Homero e seu segundo Hino a Mercúrio: “E ele distendeu sete cordas consonantes de tripa de carneiro”. E em Virgílio, na Alexis: “Eu tenho uma gaita de foles feita pela união de sete palhetas desiguais.” E no livro VI da Eneida: “Orfeu acompanha os diferentes tons das vozes com sete cordas.” [...] Macrobius escreveu no Livro I da Saturnalia que a lira de Apolo tem sete cordas, e graças a isto ela é preferível para compreender-se o movimento das muitas esferas celestes. Penso que ele estava se referindo aos planetas [...]152.

A obra de Glareanus, com marcas tão distintivas de uma Antiguidade prestes a ser superada, se revelará, em outro aspecto, profética: o Dodechordon do título se refere aos modos eclesiásticos – herdados dos modos gregos antigos –, aos quais ele acrescentará outros quatro, sendo que dois deles, o jônico e o eólio, ganharão a preferência dos compositores do baixo Renascimento e terminarão por dominar toda a música dos próximos séculos, sob os nomes de modo maior e modo menor. Dodechordon também procurava atestar a importância de retornar-se à música “como os antigos gregos a praticavam”, quer seja, à música monódica. Esse foi um dos maiores acertos dos teóricos da Camerata Fiorentina e dos renascentistas de um modo geral: a música dos antigos não possuía nenhuma polifonia. Tal constatação tornou-se o argumento mais forte dos partidários da seconda pratica monteverdiana contra seus detratores: se os antigos, cuja perfeição nas artes e na nobreza moral cumpria admirar e imitar, cantavam a uma só voz, era porque tinham relevantes motivos para tal. Cumpria aos modernos descobrir esses motivos e imitá-los na virtude. Em um tratado anterior ao de Glareanus, Franchino Gafori (1451-1522) se reporta às autoridades de Platão e de Pitágoras para provar que a música homofônica já era recomendada pelos antigos como a mais acertada. No livro XV do seu Harmonia Musicorum Instrumentorum Opus (1518)153, encontramos alguns elementos constitutivos da teoria dos florentinos: Platão, no Timeu, ensina que a música percebida pelos sentidos é ultrapassada, em muito, pela que é percebida pelo intelecto. [...] Assim, Pitágoras, substituindo a morte pela vida, recomendava aos seus alunos o uso do monocórdio [...], ensinando que a música mais sublime é entendida mais pelo intelecto – através das relações numéricas – que pelo sentido da audição154.

152

Apud GODWIN, 197-8. Gafori concluiu o seu tratado em 1500, mas este circulou quase duas décadas apenas em forma de cópias manuscritas, antes de ser publicado em Milão em 1518. 154 Apud GODWIN, 184. 153

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1. A música polifônica (mesmo que se trate de uma obra sacra) é dirigida à sensualidade; são os sentidos que se tornam dela presa, na teia de encantamento das relações contrapontísticas. 2. A música homofônica fala ao intelecto, pois é construída sobre o significado da palavra, e o logos helênico é o paradigma da racionalidade atuante. 3. Ao recomendar aos seus alunos o emprego do monocórdio, Gafori deixa claro que a música dos antigos mestres só podia ser monódica. 4. A alusão à substituição da “vida pela morte” em Pitágoras remete aos cultos de mistérios pitagóricos e órficos, e ao poder da música de ter ingerência mesmo no destino das almas. A concepção de uma música homofônica enquanto a única acertada e conforme os cânones dos antigos – com todas as suas boas propriedades – ressalta ainda mais a importância das disputas científicas dos séculos XIV ao XVI em torno das teorias da afinação. Se a música deve ser feita em consonância de uníssono para que desvele todo o seu poder cosmológico, nada mais importante que definir o estatuto de sua afinação. Só assim poderá ser empreendido o caminho de retorno à unidade primordial; a metafísica de Plotino recebe, na Renascença, uma leitura estética. O veneziano Francesco Giorgi (1466-1540) publicou em 1525 sua Harmonia Mundi, em que o propósito subjacente, que é o de demonstrar que o destino do homem é a reunião com Deus, encontra justificativa em uma análise comparativa da harmonia de toda a criação – em seus planos elemental, celestial e angelical – com os arquétipos das dez Sefirot da Cabala hebraica. Giorgi, graças ao seu contato com a colônia judaica de Veneza, pôde ampliar seus conhecimentos da Cabala além do que Pico della Mirandola tinha conseguido, em Florença. O trecho a seguir, que inicia o livro VIII, leva o título de “A consonância de todas as coisas resulta da unidade do uno”, e tangencia a questão dos universais, reportando-se à solução platônica no Parmênides: Como todas as coisas criadas estão separadas e divididas em muitas porções, elas permanecem dissonantes, a não ser que, por meio da harmonia, elas sejam reconduzidas à unidade. A consonância, como definida por Boécio e por Nicômaco [de Gerasa] é a concordância de vozes iguais e desiguais reduzidas a uma [só voz]. Por isso, a consonância deste mundo-instrumento é também a concordância de coisas iguais e desiguais reduzidas à unidade primeira, já que as coisas se rejubilam na unidade, como Platão argumentou sábia e profundamente no Parmênides. De acordo com Orfeu [os Hinos Órficos], Deus é uno através da identidade, de onde cada outra coisa é chamada uma por causa de sua diversidade, dependência, participação e conexão com o verdadeiro Uno que é Deus155.

155

Apud GODWIN, 186.

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Esses tratados citados até agora – Ptolomeu, Glareanus, Gaforio e Giorgi – são todos devedores de trechos da República e das Leis de Platão, e pouco ou nada atentam à Poética de Aristóteles ou à Retórica de Horácio. Entretanto, nem todos os leitores das Harmonias de Ptolomeu inclinaram-se, como os citados, pelo caminho do uníssono e da aproximação da música com o teatro e a poesia. Examinemos o caso de um dos tratadistas mais competentes – e influentes – de seu tempo, Gioseffo Zarlino (1517-1590). Como Giorgi, também Zarlino era veneziano e frade franciscano. Em sua obra Institutioni Harmoniche (1558), Zarlino retoma a tese de que as relações harmônicas não se dão apenas entre as vozes humanas ou entre os instrumentos; elas acontecem na natureza e dentro da alma do homem. Para Zarlino, a música da natureza e da alma é a música original, apenas imitada pela música humana. A música, portanto, abrangeria três esferas: a cósmica, a espiritual e a instrumental. A forma, porém, como, nas Institutioni, esse pressuposto é tratado resulta na conclusão de que, já que as relações harmônicas preenchem todo o universo, o compositor não precisa inventálas: basta reconhecê-las e imitá-las. Essa posição de Zarlino o colocará em conflito com os autores que procuravam – igualmente através de um recurso à autoridade dos autores gregos e romanos! – uma renovação das regras da harmonia e do tratamento da dissonância na música. Vincenzo Galilei, que foi seu aluno e chegou a colaborar intimamente com Zarlino, rompeu totalmente com o mestre, passando a dedicar todos os seus escritos – em especial o Dialogo della Musica Antica e della Moderna, que abordaremos logo a seguir – a refutar as teses de afinação dos instrumentos propostas por Zarlino e da supremacia dos sons sobre o texto cantado. A polêmica Zarlino versus Galilei, da década de 1580, foi o prenúncio para outra, de 1600, que dividiu em campos opostos Monteverdi e os detratores da seconda pratica: em 1600, o teórico Giovanni Maria Artusi publicou em Veneza seu estudo L’Artusi, ovvero, Delle imperfezioni della moderna musica. A imperfeição da moderna música a que Artusi estava se referindo era o movimento de renovação iniciado pela Camerata Fiorentina e levado, agora, adiante por Claudio Monteverdi. A razão pela qual Artusi atacou Monteverdi – e, através dele, todo o trabalho da Camerata –, acusandoo de “procedimenti che offendono l’orecchio”156, era por esses procedimentos não serem realizados em nome de razões estritamente musicais. A seconda pratica, é certo, propunhase a fazer música a partir do texto (a ser cantado), o que era inadmissível para Artusi, que, como Zarlino, acreditava, baseado principalmente em Pitágoras e nos tratados de Aristoxenos e de Ptolomeu, que a música tinha suas regras nela mesma. Monteverdi, seguindo o célebre parágrafo de Platão (República III 398c-399a), argumentava que a “perfetione della moderna musica consiste nel seguire l’oratione”157. O cerne da polêmica, portanto, é que, para Monteverdi, a representação dos afetos é a diretriz pela qual se deve orientar o compositor ao trabalhar os parâmetros da linguagem sonora: o significado

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Procedimentos que ofendem a audição. Apud CRESTI, 3. A perfeição da música moderna consiste em seguir a oração. Prefazione al Quinto Libro di Madrigali, apud CRESTI, 3.

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linguístico, o ritmo e o som musical, o que claramente assinala um movimento de aproximação da música com a poesia. Artusi, seguidor das ideias de Zarlino, de que as relações harmônicas já preexistem no Universo, e, portanto, não poderiam ser melhoradas pelos teóricos modernos, lança uma série de ataques a Monteverdi e, em especial, ao tratamento da dissonância na seconda pratica. Seu livro, no qual o Signore Vario dialoga com o Signore Lucca – emulando um diálogo socrático –, é recheado de ataques diretos aos “modernos”, como o que segue: “Não discuto que a descoberta de coisas novas seja não apenas boa, mas também necessária. Mas diz-me, antes de mais nada, por que queres empregar estas dissonâncias, assim como eles [os músicos modernos] as empregam. Quando dizes ‘Desejo que elas [as dissonâncias] sejam ouvidas com clareza, mas de uma forma que elas não ofendam a audição’, então por que não as empregas da forma correta, de acordo com a razão, de acordo com o que compuseram...”158 (e aqui enfileira uma série de nomes de importantes polifonistas do passado). Segundo as Institutioni Harmoniche de Zarlino também depreende-se que, na música, para cada problema, existe apenas uma solução, não havendo motivo para buscar outras possibilidades. Baseando-se em Aristoxenos159 (IV a.C.), Zarlino acreditava que o sistema escalar teleion dos gregos ainda era o único que se podia usar, já que os intervalos entre as notas encontravam correspondência nas distâncias entre os astros e, como estes, devia necessariamente ser imutável e perfeito. Baseado nessa imutabilidade das relações entre os sons, Artusi ataca Monteverdi argumentando que só existiria uma forma correta de se fazer música, pois “consonâncias são empregadas livremente na harmonia, atingidas por salto ou por graus conjuntos, sem diferença. Mas as dissonâncias, como são de uma natureza completamente diversa, têm de ser tratadas de forma diferente; esta forma é mostrada por Artusi no seu livro Arte do Contraponto160, mas não da maneira como estes novos mestres fazem [...]” Platão, como Aristoxenos, é devedor da numerologia pitagórica, bem como do conceito de música das esferas. Os polemistas italianos do Renascimento, contudo, interpretavam cada um ao seu favor os textos gregos. Na República, Sócrates também assinala a influência pitagórica da ideia de proporcionalidade entre a astronomia e a música, quando explica que “é como se os olhos fixassem a astronomia, e os ouvidos os movimentos da harmonia, e estas ciências são muito próximas uma da outra, como afirmam os pitagóricos, e eu concordo com eles, Glauco”161. No livro IV, Sócrates explica como da relação entre cosmos e música também depende a justiça praticada pelos homens.

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ARTUSI: L’Artusi, ovvero, Delle imperfezioni della moderna musica, em MEIROTT/SCHMITZ, 35. Aristoxenos foi aluno de Sócrates e também de Aristóteles, e seus tratados sobre teoria musical continuaram a ter influência até o fim da Idade Média. 160 Publicado em Veneza em 1586. 161 República, 520d. 159

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Na realidade, a justiça é tal como a descrevíamos – não, porém, no que se refere à ação exterior do homem, mas à interior, sobre si mesmo e as coisas que nele existem, quando não permite que nenhuma delas faça o que é próprio das demais nem interfira nas atividades destas, mas, regulando devidamente os seus assuntos domésticos, torna-se seu próprio senhor e legislador, em paz consigo mesmo; e, tendo posto de acordo seus três elementos, exatamente como os três termos de uma harmonia, o da corda grave, da alta e da intermédia, e qualquer outro que possa haver entre esses – depois de enlaçar tudo isso, digo, e de construir com essa variedade sua própria unidade, então é que, bem afinado e temperado, passa a agir162.

A influência dessas ideias na teoria musical do Renascimento pode ser avaliada pela grande quantidade de comentadores que as desenvolveram. Nada, porém, pode se comparar à famosa passagem da República III (398c-399a), em que Sócrates leva seus interlocutores a deduzir uma verdadeira ética das escalas musicais. Assim como os astros no céu influenciariam o homem a partir da – para os humanos ouvidos – inaudível música das esferas, os sons executados e ouvidos fecham o círculo de correspondência cósmica; eles podem induzir o comportamento humano para o bem ou para o mal: para caráter plangente, o tom mixolídio, para banquetes, as licenciosas melodias nos modos lídio e jônico, para o caráter heroico e as batalhas, o dórico e o frígio e, acima de todos esses, a palavra em primeiro lugar, o ritmo em segundo e, em último, a melodia. Também Aristóteles, na Política, retornará ao tema do ethos dos modos musicais. Mesmo não dando tantos detalhes técnicos quanto seu professor, Aristóteles parece não ter dúvida quanto à correspondência dos sons musicais na alma de quem os escute: Por outro lado, nas próprias melodias há imitação de disposições morais [...] quem as escuta, reage de modo distinto em relação a cada uma delas. Com efeito, umas deixam-nos mais melancólicos e graves, como acontece com a mixolídia; outras enfraquecem o espírito, como as lânguidas, outras incutem um estado de espírito intermédio e circunspecto como parece ser o apanágio da harmonia dórica, porque já a frígia induz o entusiasmo. [...] Relativamente à educação [...] importa usar melodias éticas e harmoniosas da mesma espécie. Tal é a índole da harmonia dórica [...] Além disso, se porventura existe harmonia adequada à tenra idade, pelo fato de implicar simultaneamente ordem e educação, tal parece ser [...] o caso da harmonia lídia163.

Examinemos agora, à luz dos discursos platônico e aristotélico, o seguinte trecho da Musica practica (1482), de Ramis de Pareja (1440-1491). O autor, nascido na Espanha,

162 163

República, 100. ARISTÓTELES: Política, 281, 592-3. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 67

e que viveu em Roma e Bolonha, influenciou Gafori, com suas relações entre as Musas, os modos gregos e as órbitas dos planetas. Nessa passagem do livro III, ao discorrer sobre as propriedades dos modos (Pareja nomeia as escalas parte com as denominações eclesiásticas de primeiro, segundo, terceiro modos, parte segundo os nomes gregos antigos [lídio, frígio etc] já vistos em Platão), podemos observar o quanto restou de Platão e de Aristóteles após dois mil anos, e o quanto já tinha se modificado – o autor cita explicitamente S. Agostinho, por exemplo. No plano geral, entretanto, continua a vigorar a tese da República, secundada pela Política, de que o ethos humano é influenciável tanto pelos astros como pela música que sobre ele age. A CONFORMIDADE DOS MODOS DA MÚSICA CELESTIAL, HUMANA E INSTRUMENTAL: III. O terceiro modo autêntico governa o sangue. Em conseqüência, S. Agostinho qualificou-o de deleitável, modesto [...] O quarto modo autêntico é em parte lascivo e em parte alegre, apresentando alguns saltos de energia e representando o comportamento da juventude [...] Os modos sétimo e oitavo, com sua melodia, ativam o humor melancólico, trazendo à normalidade pessoas tristes e letárgicas. [...] Marte rege o [modo] frígio, um modo decididamente colérico e irascível [...] O hipolídio é atribuído a Vênus, o qual é benéfico e, ademais, feminino, porque, às vezes, segrega lágrimas sagradas [...] O lídio é apropriadamente comparado a Júpiter, o grande benfeitor, que cria homens sangüíneos e amistosos, suave e alegre, já que sempre expressa alegria [...] O mixolídio é atribuído a Saturno porque tende à melancolia [...]164.

A partir dessas teses, duas serão as consequências mais importantes para a música: 1. O texto assumirá a primazia sobre a melodia; e 2. A concorrência simultânea de várias melodias terá de ceder lugar a uma única melodia acompanhada. A prevalência da palavra será uma das pedras fundamentais da estética da Camerata Fiorentina. Giulio Cesare Monteverdi, irmão do compositor, na declaração que fez publicar como Prólogo ao seu V Livro de Madrigais, explica o que o autor do Orfeo não pôde ou não quis, escrevendo que “à velha [técnica composicional], ele [Claudio Monteverdi] deu o nome de “prima pratica”, pois ela foi praticada primeiro, e, à música moderna, ele chamou de “seconda pratica”, porque ela foi a segunda a ser praticada. Por prima pratica ele entende [...] aquela que considera a harmonia não a parte dominada, mas a dominante, não a serva, mas a senhora [...].” E abordando, finalmente, a música homofônica, Giulio Cesare conclui explica que “ele [Monteverdi] entende [por seconda pratica] aquela que aspira à perfeição da melodia, isto é, que vê a harmonia [o contraponto] não como a parte dominada, mas

164

Apud GODWIN, 171.

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como a parte dominante, usando as palavras de tal modo que elas se tornem as senhoras da harmonia”165. A ascensão da palavra à condição de primazia dentro de uma obra musical assinala, como aludimos brevemente no início deste capítulo, a outro movimento interno dentro da estética da música do Renascimento, que é o crescimento da importância da ars retorica em detrimento de uma concepção matemática ainda muito ligada à cosmologia pitagórica. A disputa entre palavra e música não deixa de ser uma extensão do gênero paragone – comparação –, que chegou a monopolizar as disputas entre teóricos da arte no Norte da Itália. No paragone, o autor “compara” as artes entre si, dando finalmente seu veredito a favor de uma ou outra. Leonardo da Vinci, no seu Il paragone (1490), tratou de uma questão que, para ele, era de importância fundamental: demonstrar a superioridade da pintura sobre a escultura166. O gênero do paragone terá cultuadores ainda em pleno século XVIII, com o Laocoonte (1766) de Lessing. Mas a polêmica terá longa vida, e só parece superada no limiar da Pós-modernidade. Na Filosofia da nova música, Adorno esboça pela primeira vez o tema, afirmando que “sempre que, no decurso da história, uma esfera [um parâmetro] do material se desenvolvia isoladamente, as outras sempre ficavam para trás”167. E, no artigo A arte e as artes [Die Kunst und die Künste], expõe sua ideia do que chamou de Verfransung der Künste. O termo Verfransung significa, em alemão, uma sobreposição de franjas [Fransen], um sobrepor-se, um emaranhar de tecidos. Adorno adota-o em sua estética e aplica-o às artes. O emaranhamento adorniano expressa um fenômeno de supressão dos limites que a vanguarda histórica impunha aos materiais e linguagens, e marca o início do movimento de seu pensamento estético em direção a um intercâmbio das linguagens. Esse movimento, aprofundado, desvelará um fundamento comum a todas as artes, que reside no fato de todas elas serem linguagem. Uma das chaves para entender o processo vitorioso da retórica sobre a música está no parágrafo da Poética de Aristóteles onde ele brevemente discorre acerca dos efeitos catárticos da tragédia grega. É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante

165

MONTEVERDI, Giulio Cesare. Dichiaratione della lettera stampata nel quinto libro de’ suoi madrigali, em MEIEROTT – SCHMITZ: Materialien zur Musikgeschichte, 38. 166 Para Leonardo, a pintura mostra-se superior não apenas à escultura, mas a todas as outras artes. No capítulo “Que a música deve ser chamada de irmã caçula da pintura”, lemos: “...ela [a música] compõe harmonias pela conjunção de elementos proporcionais produzidos ao mesmo tempo e forçados a nascer e morrer em um único ou vários acordes harmônicos. [...] Mas a pintura sobressai à música e a domina, pois ela não morre logo após a sua criação, como a desafortunada música, pelo contrário, ela subsiste e mostra-se a ti dotada de vida” (DA VINCI, 23). 167 “Wann immer ein isolierter Materialbereich im geschichtlichen Zuge entwickelt wurde, stets sind andere Materialbereiche zurückgeblieben” (ADORNO: Philosophie der neuen Musik, 55-6). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 69

atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções168.

Nada mais tentador para os teóricos da Camerata Fiorentina que o testemunho de um autor antigo – e mais autorizado que Aristóteles só se fosse Platão, seu mestre –, atestando o poder purificador que um drama pode ter sobre as almas que o assistem, desde que construído e encenado como indicado. Aliando a música às palavras, o drama se constituiria em uma ação predominantemente médica169. No livro VIII da Política, Aristóteles se estende um pouco mais no tema que esboçou na Poética. A paixão que fortemente se apodera de algumas almas [já] em todas existe, [só] diferindo pela intensidade; por exemplo, a piedade e o terror, ou ainda, o entusiasmo. Com efeito, alguns [indivíduos] são particularmente predispostos a este movimento [da alma]; mas, [por efeito] dos cânticos sagrados, quando se servem daqueles que são aptos a produzir na alma a exaltação religiosa, vemo-los pacificados, como se tivessem sido sanados e purificados. Ao mesmo tratamento se devem submeter as pessoas em que se manifesta a piedade e o terror ou qualquer outra paixão, e os outros, na medida em que cada qual participe deste [temperamento]; e assim se produzirá em todos uma espécie de purificação e um alívio acompanhado de prazer; do mesmo modo, as melodias catárticas proporcionam aos homens um prazer inocente170.

E aqui chegamos a um dos mais produtivos equívocos da Camerata Fiorentina em sua interpretação da tragédia antiga: a crença de que o drama ático era cantado do início ao fim. É verdade que o papel da música no espaço dramatúrgico tinha sido definido por Aristóteles, ao integrá-lo na essência mesma da tragédia, observando que “existem necessariamente em cada tragédia seis elementos, que determinam a sua natureza. São os seguintes: fábula, caracteres, dicção, reflexão, espetáculo e canto”171. Mas foi preciso muita vontade para extrair da descrição de Aristóteles a confirmação de que as tragédias na Grécia eram totalmente cantadas. Jacopo Peri, no seu prefácio à Euridice (1601), assegurou que “os antigos gregos e romanos, [...] segundo o parecer de muitos, cantavam suas tragédias sobre o palco do início ao fim”172. Restaria, naturalmente, saber quem eram esses “muitos” a que Peri se referia e que, segundo ele, atestavam esse fato. De qualquer maneira, os estudiosos da retórica na Itália do século XVI comungavam a mesma

168

ARISTÓTELES: Poética, 74. Nos Hippocratis Epidemiarum de Hipócrates, também é abordada essa visão científica da catarse como tratamento médico. 170 ARISTÓTELES: Política, VIII, 7. 171 ARISTÓTELES: Poética, 1450a8. 172 Apud PÖHLMANN, 165.

169

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ideia, a saber, que “toda a tragédia, incluindo-se as partes dos atores principais e as do coro, era cantada”173. Um dos tratados mais fecundos produzido por um membro da Camerata Fiorentina foi o Dialogo della Musica Antica e della Moderna (1581), de Vincenzo Galilei. Ele mesmo versado no grego clássico, e amigo do florentino Girolamo Mei, um dos maiores helenistas do seu tempo, com quem mantém uma longa correspondência, Galilei foi um dos primeiros a transpor para a notação moderna um exemplo musical da antiga Grécia, o Hino ao Sol de Masomedes de Creta (séc. II d.C.). Seus conhecimentos do grego e da teoria antiga estavam, portanto, acima do diletantismo apaixonado de grande parte de seus contemporâneos. O contato com Girolamo Mei, igualmente autor de um tratado teórico, o Discorso sopra la Musica Antica e Moderna (1602), certamente influenciouo no reconhecimento de vários princípios estéticos que abordaria em sua obra, sendo que o que mais consequências trouxe para a história da música foi o de que a música dos antigos gregos não conhecia a combinação de vozes, nem como harmonia e nem como contraponto: a música do teatro ático era toda em uníssono. O Dialogo della Musica Antica e della Moderna é um tratado não muito extenso – tem apenas 148 páginas na edição Marescotti (Florença) de 1581 –, mas procurava abordar os pontos mais candentes das teorias estéticas que a Camerata Bardi defendia: a crítica à música polifônica com a consequente desvalorização do texto em uma técnica compositiva que fazia com que várias vozes cantassem ao mesmo tempo linhas – e mesmo textos – distintas, e o elogio incondicional da música dos antigos gregos e romanos, os quais conseguiam não apenas movere gli affetti – emocionar quem os ouvia – como conjurar uma série de efeitos miraculosos. Os temas eram trazidos em forma de diálogo – mais uma herança platônica – entre os interlocutores, o Signore Bardi – o Conde Giuseppe Bardi, patrono da Camerata – e o Signore Strozzi, o músico diletante e ávido de conhecimento Piero Strozzi. Iniciemos pela tese segundo a qual o teatro grego era todo cantado. Galilei traz a seguinte explicação: Agora sabeis que a tragédia e a comédia realmente, como tendes ouvido, eram cantadas pelos gregos. Isto vos diz, além de outras testemunhas fidedignas, Aristóteles, no parágrafo sobre harmonia, no Problema XLVIII. É verdade, contudo, que, na Poética, quando define a tragédia, ele parece divergir desta opinião. Este costume foi, então, assimilado e cultivado pelos romanos, disto dão testemunho fidedigno os escritos de Terêncio174.

Se buscarmos o Problema XLVIII, entretanto, iremos verificar que o argumento de Galilei é de longe insuficiente: ali encontra-se apenas alusão ao canto dos coros, do corifeu e dos solistas, mas nada sobre um possível diálogo cantado entre as personagens: “As multidões que formam os coros são simples mortais. Por isso, o canto coral reveste-

173 174

PATRICI, Francesco. Della poetica (1586), apud PÖHLMANN, 166. GALILEI, apud Pöhlmann, 166. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 71

se de um caráter ora lamentoso, ora tranquilo, como é próprio ao comum dos homens. As harmonias empregam estes elementos, mas, mais do que qualquer outra, a frígia é exaltada e báquica, sendo a mais oposta à mixolídia, que transporta o espírito para uma disposição passiva...”175. O mais provável é que Galilei tenha sido vítima de um equívoco já bastante difundido em seu tempo, e que reportava a tese de um teatro grego todo cantado a partir da interpretação errônea de algum trecho de Terêncio, o qual não sabemos ao certo qual poderia ser. Pöhlmann descarta os Prólogos – ali há, quando muito, uma alusão ao poeta enquanto músico – e sugere que a confusão possa ter tido origem em um trecho mal compreendido das Didascálias de Elio Donato, o gramático latino do século IV que comentou as obras de Terêncio. Os comentários e as observações de Donato contêm observações – as didascálias – preciosas acerca da estreia, a interpretação e os instrumentos utilizados nas montagens das comédias de Terêncio. Acontece que Galilei ou sua fonte desconhecida, teve, compreensivelmente, dificuldade em entender o latim abreviado, sem pontos ou vírgulas e até mesmo sem verbos de Donato. O comentário à comédia Hecyra (A sogra): “Modulatus est eam Flaccus Claudi tibiis paribus. Tota Graeca est.” transformou-se na didascália “modos fecit Flaccus Claudi tibiis paribus tota Graeca Apollodoru”. Assim, em vez de entender que “as melodias foram compostas por Flaccus, escravo de Claudius. A comédia inteira é para flautas iguais. Ela é grega, de Apolodoro”, foi colocada pontuação nos lugares errados, resultando daí que “as melodias foram compostas por Flaccus, escravo de Claudius, para flautas de mesmo tamanho, para a comédia inteira. Ela é grega, de Apolodoro”176. Claro que, mesmo assim, Galilei já devia estar convencido da ideia de que os atores gregos cantavam suas tragédias do início ao fim, pois, mesmo mal traduzido, o trecho assinalado reza apenas que todos os números musicais foram acompanhados por flautas de mesmo tamanho, e não que a comédia inteira tinha sido cantada. Esse detalhe evidencia a enorme capacidade da arte de transcender o que seja verdadeiro ou falso e de criar seu próprio campo de realidade. Enfim, como observa ironicamente Pöhlmann 177, se a fonte de Galilei era mesmo uma didascália de Terêncio, então o recitativo da ópera barroca deve sua existência a uma pontuação errada. A intenção de reviver a tragédia grega em uma forma dramatúrgica toda cantada não dava por terminado o projeto. Era preciso saber de que forma cantar o texto fornecido pelo poeta. Galilei, como toda a Camerata, já estava convencido – através de Girolamo Mei – que uma das razões para a perda da capacidade da música em realizar prodígios era o fato de ela ser cantada a várias vozes. Acompanhando o pensamento de Galilei, suponhamos que uma determinada voz, o soprano, estivesse cantando a sua parte em modo lídio, votado a Júpiter, um modo amistoso, suave e alegre, e o tenor recebesse do compositor uma parte em modo frígio, o modo do deus guerreiro Marte, de caráter colérico

175

Apud REIS PEREIRA, 44. Ver PÖHLMANN, 166-8. 177 PÖHLMANN, 168. 176

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e irascível. Tal composição não resultaria nem em alegria nem em agressividade, e sim em um caos de sentimentos contraditórios. Para emocionar e recuperar o poder mágico da música, portanto, seria necessário retornar à monodia dos antigos. O primeiro passo era recuperar, para a musica nuova, o que os gregos entendiam por Harmonia. Não se tratava, como no Renascimento, da combinação de sons diferentes de acordo com as regras de duas disciplinas clássicas da composição, a harmonia e o contraponto. Os gregos entendiam por Harmonia a fusão em um uníssono de todos os instrumentos e vozes envolvidos na execução, de forma que desaparecessem as individualidades rítmicas, melódicas e mesmo tímbricas. Tratando-se de instrumentos ou vozes muito díspares – vozes masculinas e femininas – a “consonância de vozes díspares” consistia em cantar-se em oitavas paralelas. O maior mérito dos intérpretes não estava em combinar e dialogar com os outros instrumentos e vozes, e sim em unificar os sons de forma indistinguível. Esse conceito tinha sido bem apreendido por Galilei, que descarta “acidente” que possa deturpar o ethos da escala utilizada (quer seja, o emprego de intervalo não puro, configurando ação concomitante de modos antagônicos), e se refere à “Harmonia, a consonância musical de várias vozes não uníssonas, chamando os gregos antigos com tal nome, nas suas árias e canções [...], a bela e graciosa execução da ária da cantilena, cujas palavras se entendiam todas, bem como os versos do poeta e, consequentemente, os seus conceitos, sem que fossem interrompidos por algum acidente que deturpasse o espírito da sua virtude [do que queriam dizer]”178. Para recuperar-se a Harmonia, portanto, era mister cantar-se em uníssono. O uníssono traria a Harmonia, e a Harmonia, agindo através dos modos acertados, poderia contribuir para fazer homens melhores, o que, afinal, tinha sido o grande propósito dos escritos de Platão, e que também se constituía em um dos mais ambiciosos objetivos da Camerata: convinha, então, combater a polifonia, lembrando sempre “aquilo que Platão adverte, e da mesma forma Aristóteles, dizendo que a música que não serve ao aprimoramento da alma deve verdadeiramente ser desprezada” 179. Apoiado nessas autoridades, Galilei concebia a música como “espressione de concetti”180. Isso fazia parte de um processo que, aos poucos, diminuiu a importância da matemática para a música. Esta vai se tornando mais e mais uma arte dramática e cênica a serviço da expressão, em que o texto ganha cada vez mais preponderância. Resumindo, a música deveria incluir a poesia, daí a importância crescente da ars retorica entre os tratadistas do Seiscento. A música contrapontística serviria apenas ao deleite dos sentidos, e não à elevação e ao aperfeiçoamento humanístico, ela não transmite nenhuma ideia nem concetti, conceitos, e não age de forma ordenada sobre os sentimentos181. 178

“Harmonia, la musical consonanza di piu voci non unisone, chiamando gli antichi Greci com tal nome, l’arie & Canzoni loro; & quali fussero di già si è dimostrato, intesero adunque per Harmonia gli antichi Musici Greci, il bello & gratioso procedere dell’aria della Cantilena; le parole della quale s’intendevano tutte, & così il verso del Poeta, & conseguentemente i concetti loro; senza essere interrotti da accidente alcuno che sviasse l’animo dalla virtù di quelli” (GALILEI, 105). 179 “Quello che Platone ne avvertice, & parimente Aristotile: dicendo egli che quella musica la quale non serve al costume dell’animo, è veramente da disprezzarsi” (GALILEI, 84). 180 Expressão de conceitos. 181 Ver Tatarkiewicz, 257. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 73

Para elogiar as excelências do uníssono, Galilei evoca mais uma vez a autoridade de Platão. Lembremos que, quando fala em prazer irracional, Galilei está se referindo ao prazer em ouvir as combinações das vozes no contraponto. A este deleite sensual deveria ser contraposto o prazer intelectual de ouvir uma melodia e entender-se todas as palavras cantadas: Estas coisas, conhecidas pelo divino Platão, ordenou-as [ele] expressamente nas Leis: que se cantasse e tocasse prochorda, e não symphone, isto é, em uníssono, e não em consonância, tendo ele [Platão] dito antes no Timeu que a harmonia é sempre aquela que impulsiona os movimentos conjuntos e convenientes ao discurso de nossa alma, [ela] é útil ao homem que com intelecto visa [atingir] as Musas, e não pelo prazer irracional, como atualmente parece ser, de maneira que se vê expressamente que, mesmo no tempo daquele divino filósofo, alguns costumavam cantar e tocar em consonância, mas não que jamais proferissem a mesma sílaba da mesma palavra uma depois da outra, ou que isto prejudicasse e rompesse a ordem e a medida dos versos, como hoje se costuma [fazer]. Queixou-se disto mesmo Plutarco e, um pouco depois, Gafurio182.

Uma vez de acordo em voltar a fazer-se música homofônica, recuperar-se a Harmonia (ou melhor, trazer para o efêmero mundo das aparências a Harmonia dos astros), escolherem-se os modos corretos para influir nos ânimos dos homens e aprimorar a sociedade como um todo, restava colher os frutos: a música voltaria a ser investida dos poderes que teve na Antiguidade. Mover os afetos torna-se, portanto, o caminho para operar prodígios, e, sabedor disso, “o poeta persegue o seu próprio fim, que é o de suscitar admiração (eccitare maraviglia). Para este objetivo, ele deve incluir em sua poesia todo um tecido de coisas admiráveis (tessitura de mirabili), que darão ao poema sua forma característica”183. Igualar-se a Orfeu nos milagres torna-se um objetivo possível de ser atingido, se o artista, como o semideus da Trácia, abandonar o jogo estéril da música do contraponto e deixar-se preencher pela inspiração que a palavra transmite. Armado deste furore, nem homem nem Natureza deixarão de soar simpaticamente consigo: “quando o furore é insuflado por uma deidade benigna, então ele [o artista] consegue mover a natureza, preencher a alma e a poesia, adorná-las e conceder perfeição à arte”184. A tradição do 182

“...le quale cose, conosciute dal Divino Platone, comandò nelle leggi espressamente, che si cantasse & sonasse Prochorda & non Simphone: cioè all’Unisono & non in consonanza, havendo egli nel Timeo prima detto, che l’harmonia ancora che ha i movimenti congiunti & convenevoli à discorsi dell’anima nostra, è utile all’uomo che com l’inteletto visa le muse, & non per l’irrationale piacere come hora pare che sai, di manera che si vede espressamente, che fin al tempo di quel Divino Filosofo si costumava per alcuni di cantare & sonare in consonanza: ma non che mai proferissero l’istesse sillabe della medesima parola uno dopo l’altro, ò che egli no guastassero, & rompessero l’ordine & la misura de versi come hoggi si costuma. Si dolle dell’istesso ancora Plutarco, & poco avanti al Gafurio [...]” (GALILEI, 83). 183 PATRIZI, F.: Della Poetica, La deca disputata, apud TATARKIEWICZ, III, 316. 184 Idem, 315. 74 | Ronel Alberti da Rosa

poeta enquanto profeta, interrompida durante os mil anos de Idade Média, era agora retomada: o belo é a perfeição, mas as regras são insuficientes para atingir essa perfeição. Para complementar as regras existem a inspiração e a loucura poética (furor poeticus)185. E muitos eram os poderes atribuídos à música. Referindo-se a suas fontes como livros de autoridades antigas no assunto, mas sem esclarecer o leitor acerca de suas identidades, Galilei lista uma série impressionante de efeitos positivos da música, desde o simples apaziguamento de caracteres rebeldes até o triunfo sobre a morte: Por favor, escutai, porque assim conhecereis a sua perfeição [da música dos antigos gregos], e a imperfeição desta nossa [atual música polifônica], ainda que Zarlino, no capítulo primeiro e no 49 das suas Instituições [Harmônicas] diga o contrário, que esta [música polifônica] é perfeitíssima, e imperfeita aquela [a dos antigos]. Conservava a virtude, fazia mansos os ferozes e fazia desmaiar os pusilânimes; enchia as almas de furor divino, resolvia as discórdias aparecidas entre as pessoas, gerava nos homens um hábito de bons costumes, restituía a audição aos surdos, reavivava os espíritos perdidos, expulsava a pestilência e tornava felizes e alegres as almas deprimidas, fazia castos os luxuriosos, afastava os maus espíritos, curava as mordidas de serpente, acalmava os enfurecidos e os ébrios, expulsava a melancolia causada por longas enfermidades e fadigas e, com o exemplo de Arione186, podemos, finalmente, dizer (deixando de lado muitos outros similares) que ela libertava os homens da morte, entre todos os outros efeitos admiráveis de que estão cheios os livros de autoridade187.

Depois do Dialogo, o próximo tratado de grande importância a ser publicado foi, na verdade, uma coletânea de composições de Giulio Caccini (1551 – 1618), as Nuove Musiche (1601), cujo título – As novas músicas – já revela as intenções que abriga. Caccini, que era romano, tinha sido levado a Florença quando contava apenas nove anos de idade por Cosimo de Medici, impressionado com o talento musical do menino. Adulto, entrou em contato com a Camerata Bardi, tornando-se um dos colaboradores com mais 185

Esta assertiva é especialmente válida para Leonardo Bruni, Marsilio Ficino e Cristoforo Landino. A saga do poeta e cantor Arione é narrada por Heródoto (I, 24): quando piratas tomam o navio em que viajava ele se atira ao mar, onde é recolhido por um delfim e levado em segurança até a costa. 187 “Di gratia attendete, perche da esse conoscerete la sua perfettione, & l’imperfettione di questa nostra; quantunque il Zarlino nel capo primo, & 49 della seconda parte delle sue institutioni dica il contrario, che questa è perfettissima, & imperfetta quella. Conservava la pudicitia; faceva mansueti i feroci i inanimiva i pusillanimi; quietava gli spiriti perturbati, inscutiva gli ingegni; impieva gli animi di divino furore, racchetava le discordie nate tra i popoli, generava negli huomini un’ habito di buon costumi, restituiva l’udito a’ sordi, ravvivava gli spiriti smarriti, scacciava la pestilenza i rendeva gli animi oppressi lieti & giocondi, faceva casti i lussuriosi, racchetava i maligni spiriti, curava i morsi de’ serpenti; mitigava gli infuriati & ebbri; scacciava la noia presa per le gravi cure, & fatiche & con l’essempio d’Arione possiamo ultimamente dire (lasciandone da parte molti altri simili) che ella liberava gli huomini dalla morte; oltre alle altre ammirabili sue operationi di che son pleni i libri d’autorità” (GALILEI, 86). 186

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experiência prática em música. Mais que às composições de Caccini, as Nuove Musiche devem sua fama às nove páginas do Prefácio, em que o autor expõe com muita sobriedade suas ideias sobre a nova maneira de compor e de cantar, bem como suas razões. As Nuove Musiche podem ser consideradas o marco teórico fundador da teoria dos afetos na música. Caccini fala de um paralelismo entre as “colori rettorici”188 e as “passaggi, trilli e altri simili ornamenti, che sparsamente in ogni affetto si possono introdurre”189, resultando disso que os ornamentos são postos a serviço das figuras de retórica contidas no texto poético a ser musicado. Uma das teses centrais da obra é a recusa ao virtuosismo, considerado vazio de essência, em favor do recitativo pausado e inteligível. A crítica de Platão e Aristóteles ao conhecimento artificial fundado exclusivamente na ginástica da dedilhação (da cítara) não deixou de influenciar os florentinos. Para Aristóteles, a finalidade deste virtuosismo dos dedos seria a de provocar um prazer meramente auditivo, o que era contrário à Paideia: “Para a escolha dos instrumentos e para a execução musical, recusamos toda a formação [exclusivamente] técnica [...]. Esta educação não habilita o executante a tocar com vista à sua própria perfeição, mas para despertar o prazer dos ouvintes, prazer que é insuficiente”190. Platão, no Górgias (501e-502c) também apresenta suas reservas quanto ao músico que visa apenas impressionar os ouvintes através de sua maestria técnica. A mensagem, captada passados dois mil anos por Caccini e pela Camerata, era clara: a música não deve ser um fim em si, mas um meio que conduz às ideias (o concetto de Caccini): Eu, verdadeiramente, nos tempos que florescia em Florença a virtuosíssima Camerata do ilustríssimo senhor Giovanni Bardi, Conde de Vernio, onde acorria não apenas grande parte da nobreza, mas também os melhores músicos e homens engenhosos, poetas e filósofos da cidade, tendo-a freqüentado eu também, posso dizer que aprendi muito do seu douto raciocínio, e que em mais de trinta anos não fiz nenhum contraponto [polifônico], porém estes mesmos cavalheiros sempre me confortaram, e com habilíssimos argumentos me convenceram a não praticar aquela espécie de música que, não deixando entender bem as palavras191, enfeia o

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Cores retóricas, significando aqui as figuras de linguagem empregadas pelo poeta para descrever estados de ânimo. Apud Cresti, 1. 189 Melismas, trinados e outros ornamentos semelhantes que, ocasionalmente, podem ser empregados em toda emoção (a ser expressa musicalmente). Apud CRESTI, 1. 190 Política, 1341-15. 191 As palavras não se entendem porque cada voz canta em seu próprio ritmo. Erasmo de Rotterdam já se queixava em 1560: “Introduzimos na igreja uma música teatral e artificial, uma gritaria e uma bagunça de várias vozes como, ao que me consta, nunca se ouviu nos teatros da Grécia e de Roma” (ERASMO DE ROTTERDAM, cit. em NESTLER, Gerhard, p. 187. [Eine verkünstelte und theatralische Musik haben wir eingeführt in die Kirche, ein Geschrei und Getümmel verschiedener Stimmen, wie es meines Erachtens wohl niemals in den Theatern der Griechen und Römer gehört worden ist]). 76 | Ronel Alberti da Rosa

conceito192 e os versos, ora alongando ora encurtando as sílabas para acomodar ao contraponto193, laceramento da poesia, mas de manter-me naquela maneira sempre louvada por Platão194 e por outros filósofos, que afirmaram que a música outra coisa não ser que o narrar, depois o ritmo, e o som por último, e não o contrário, visando que ela possa penetrar nos intelectos195 e fazer ali efeitos notáveis196 que admiram os escritores, e que [tal] não é possível fazer, na música moderna, através do contraponto, e particularmente cantando um solo sobre um instrumento qualquer de corda, onde não se entende nenhuma palavra, devido à quantidade de melismas197 [passaggi] tanto nas sílabas breves quanto nas longas, e em toda sorte de música [...]”198.

Depois de justificar sua opção estética, Caccini se volta à maneira de execução. Sua expressão “um certo nobre desprezo pelo canto” define o estatuto do cantor ideal: é aquele que emite os sons dando sempre preferência à escrupulosa articulação e a uma boa pronúncia das palavras, deixando que o canto aflore naturalmente, sem pretender que ele seja fabricado artificialmente: Vi então que, como eu digo, tal música e músicos não proporcionavam outra alegria além daquela que podia dar a harmonia à simples audição, e que não poderiam ser (co)movidos o intelecto sem a inteligência das palavras. Veio-me [então] ao pensamento introduzir uma espécie de música que, diferentemente, pudesse como que narrar sobre a harmonia, usando nela (como outras vezes expliquei) um certo nobre desprezo pelo canto, passando ocasionalmente por alguma falsa [nota dissonante], mas tendo a corda do baixo sem movimentar, exceto quando eu queira

192

O concetto, isto é, o significado conceitual do que o texto expressava, era o mandamento supremo das Nuove Musiche. 193 Em vez de adaptar as sílabas e as palavras à linha musical, o que distorcia as durações inteligíveis dos conceitos, as Nuove Musiche exigiam que as palavras fossem cantadas em uma forma declamatória, como em um recitado. 194 As teses de Platão acerca da supremacia da palavra já eram, em 1601, de domínio público: a primeira edição em latim, com a tradução de Marsilio Ficino, foi publicada em 1483, e, a partir de 1513, os eruditos italianos já podiam contar com a primeira edição em grego dos tempos modernos. 195 A palavra, quando inteligível, age sobre o intelecto, enquanto o contraponto, por tornar ininteligível o texto, faz com que apenas o corpo – a sensualidade – reaja à música ouvida. 196 Os efeitos notáveis são aqueles listados por Galilei no seu Dialogo, e que vão da correção moral dos irrequietos à vitória sobre a morte. 197 Os melismas são as criticadas passagens rápidas da voz sobre uma única vogal, o que estendia a sílaba até ela se tornar irreconhecível. Segundo o concetto de Caccini, a música deve ser silábica (cada sílaba recebe uma nota), e não melismática. 198 CACCINI, 4. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 77

me servir de [efeito] incomum, com as partes de meio toque [arco] do instrumento, para exprimir qualquer afeto199.

A ideia, porém, não era totalmente original: o descuido para com a perfeita proporção enquanto gerador do belo em uma obra de arte já estava presente nos dois autores que melhor trabalharam as ideias da Accademia de Ficino, Pietro Bembo e Baldassare Castiglione. Bembo, no seu escrito dedicado à categoria da imitação e sua relevância para a estética, o De imitatione libellus (1556), tenta fazer uma transposição da mímesis platônica para o contexto da arte renascentista – a mímesis, condenada por Platão por constituir uma perda da substância ôntica original das ideias, seria doravante empregada em um sentido diverso, quer seja, o da imitação dos antigos autores. Portanto, uma imitação benéfica para as artes. No que concerne à imitação da Natureza, Bembo encontrou o caminho de escapar à sentença reprovatória de Platão: imitar a Natureza, sim, mas sempre incluindo alguma imperfeição (em última análise, a contribuição pessoal do artista). Daí o autor alegar que, “como o rosto não maquiado de uma mulher, também a negligência pode ser agradável em um escritor”200. Castiglione, no seu Cortegiano (1528), segue um caminho similar, justificando a sprezzatura como recurso do artista contra a rigidez excessiva dos cânones de criação. Freqüentemente pensei comigo mesmo de onde vem realmente a graça (com exceção daquela recebida por graça dos astros), e encontrei uma regra que me parece ter validade geral em todas as ações e falas humanas: deve-se evitar todo enfeite como se evita um penhasco alto e perigoso. Para utilizar-me de uma nova forma de expressão, deve-se demonstrar um certo desprezo [sprezzatura] que esconda o esforço empenhado e todo o mais que se faça e diga, como se [a obra] tivesse surgido sem a mínima arte e mesmo sem propósito. É daí, penso eu, que, na maioria dos casos, nasce a beleza (a graça)201.

Esta nova classe – a graça – é expressão da busca pela verdade na obra de arte. O belo, pouco a pouco, começa a abandonar o seu caráter supra-humano e começa a ser reconhecido por aquilo que ele tem de real, de próximo à vida e aos sentimentos humanos. Em pouco mais de um século, haverá uma inversão da atitude para com a beleza: como resultado da expressão das emoções, ela estará ligada à não proporção, à vitalidade, à plenitude e ao pitoresco. Tanto mais importante faz-se paulatinamente a expressão da verdade do que as palavras querem significar. Em Caccini, para a imitação do concetto das palavras, este deve ser primeiramente compreendido e extraído, para depois ser imitado artisticamente no mundo; nisto consistia o dever do bom compositor e do bom intérprete de música vocal, tendo como resultado

199

CACCINI, 4. BEMBO, P. De imitatione libellus (Basel, 1556) apud TATARKIEWICZ, III, 143. 201 CASTIGLIONE, B: Il libro del Cortegiano, I, 26 apud TATARKIEWICZ, III, 142. 200

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desta mímesis construtiva a comoção dos afetos. No Prólogo das Nuove Musiche, ele assegura que seus colegas puderam comprovar, vendo e ouvindo “à vontade tudo aquilo que continuamente produzi referente aos estudos feitos e em quanto nos madrigais bem como nas árias, [onde] sempre procurei a imitação dos conceitos das palavras”202. Antes de Caccini, Galilei também tinha desenvolvido uma teoria semelhante, com a diferença que, para ele, os conceitos não estariam nas palavras, e sim no espírito; as palavras seriam meramente o meio para sua expressão: “a parte mais nobre e mais importante da música são as idéias do espírito (concetti dell’anima), que são expressas com a ajuda de palavras, e não as harmonias (os acordes), como os modernos práticos afirmam”203. O canto que Caccini, Galilei, Monteverdi e os teóricos da seconda pratica consideram adequado para expressar os concetti dell’anima é um somatório das técnicas já então à disposição dos virtuoses. Caccini chega a preocupar-se com detalhes como o timbre diferente das vogais nos diversos registros de vozes solistas, apontando que, segundo observou, “a vogal ‘U’ tem mais efeito na voz de soprano que na de tenor, e a vogal ‘I’ [soa] melhor no tenor que a vogal ‘U’, e sendo as restantes todas em uso comum, se bem que muito mais sonoras as abertas que as fechadas, como também mais apropriadas e fáceis para exercitar a técnica”204. Esta técnica de que fala Caccini – melhor seria chamálas de maneiras de cantar – são basicamente três, o parsaggiato, o sodo e o d’affetto. Todas elas aparecem, em algum momento, ao longo do Orfeo, e seu emprego depende da situação dramatúrgica específica e da disposição de alma das personagens. O cantar d’affetto era o cantar mais moderno. Caccini acreditava que dagli affetti nascono gli effetti, isto é, dos afetos nascem os efeitos. Então, para transmitir-se – e também receber-se – os bons efeitos e as dádivas distribuídas pela música, o canto deveria ser carregado de emoção, emoção esta que tem raízes na palavra da poesia. Isso incluía contrastes dinâmicos, variação na cor da voz, que podia ser obscurecida ou clareada, além do emprego entre pouco e muito vibrato. Essa maneira de cantar também era conhecida por “cantar alla napolitana”. No Orfeo, depois que o semideus tentou sem sucesso todas as outras técnicas para convencer Caronte a transportá-lo, é com o cantar d’affetto que ele terá sucesso; a penúltima stanza (estrofe) pede esse tipo de canto carregado de affetti. Tratadistas como Galilei e Caccini deram destaque ao problema da técnica, pois através dela é que o intérprete se coloca diante do público para transmitir os conceitos das palavras. Assim, vale a pena esboçar brevemente a questão do vibrato no canto antigo: no Syntagma musicum (1619), o grande compêndio de Michael Praetorius (1571-1621), uma entoação com vibrato e agradavelmente trêmula era apontada como indispensável à dispositio de uma boa voz. Para Praetorius, um jovem cantor que fosse escolhido para ser preparado como solista deveria apresentar uma voz “bonita, envolvente, trêmula e com vibrato”205.

202

CACCINI, 5. GALILEI, 83. 204 CACCINI, 5. 205 Apud Henahan, 1. 203

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O cantor e maestro belga René Jacobs (1946), em entrevista à Goldberg Magazine, especializada em música antiga, abordou a questão do vibrato, afirmando que, nos séculos XVI e XVII, “o vibrato era algo que agradava, está escrito em numerosos tratados. Na Alemanha do início do século XVII, por exemplo, em seu Syntagma Musicum, Praetorius enumera, entre as qualidades de uma boa voz, a capacidade de ‘vibrar de forma complacente’”206. Donal Henahan, do New York Times, vai mais longe, ao explicar que, “mesmo no falar, a voz humana tende a oscilar em altura e intensidade, quando posta sob tensão emocional, sendo que cantar é simplesmente uma forma exaltada de falar. Contudo, com a crescente popularidade do movimento a favor de uma autenticidade histórica, surgiu uma aversão, em parte dos intérpretes, a qualquer traço de impureza”207. A consequência, aponta o crítico, é que “há anos temos que sofrer em concertos e gravações de música antiga onde instrumentos anêmicos e vozes distônicas miam aborrecidamente, enquanto que os [comentários dos] programas nos asseguram que estamos presenciando um grande evento”208. Jacobs cita outra fonte de época para provar a legitimidade do vibrato no canto antigo: “Outro músico do Seiscento, Christoph Bernhardt, compositor que estudou canto na Itália, no seu tratado Von der Singe-Kunst (Da arte de cantar), fala de diversos ‘artifícios’ de que um bom intérprete deve dispor, e enumera alguns cujo denominador comum é o vibrato”209. A segunda maniera é o cantar parsaggiato, ou cantar com muitas coloraturas virtuosísticas (parsaggi), da maneira como se costumava cantar no Norte da Itália – por esta razão também denominado canto alla lombarda. Esse estilo de canto já era considerado antiquado na época de Monteverdi, e a razão era porque se originava na técnica exageradamente virtuosística de diminuição, própria do final do século XVI. Nas Nuove Musiche, Caccini alude negativamente a essa maneira antiquada, explicando aos seus leitores que procurou, em suas composições, “fugir àquela antiga maneira de cantar [...], junto com exclamações, trinados e grupetos e outros ornamentos à boa maneira de cantar”210, e conclui que, no cantar parsaggiato, “não se entende nenhuma palavra, devido à quantidade de melismas [passaggi], tanto nas sílabas breves quanto nas longas”211. Nas óperas de Monteverdi, só os deuses cantam assim, como a Minerva no Ritorno de Ulisse

206

JACOBS: Interview, 1. “Even in speaking, the human voice tends to waver in pitch and intensity when put under emotional pressure, and singing is simply an enhanced form of speech. However, with the rising popularity of the historical-authenticity movement has come an aversion on the part of interpreters to any hint of impurity” (HENAHAN, 1). 208 “For years, we had to suffer through early-music concerts and recordings in which bloodless instruments and disembodied voices piped away boringly while erudite program notes assured us we were having an authentically good time” (HENAHAN, 1). 209 JACOBS: Interview, 1. 210 CACCINI, 4. 211 CACCINI, 4. 207

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in Patria. Na ária de Orfeu “Possente spirto”, os complicados ornamentos identificam a origem divina do seu canto212. Finalmente, há o cantar sodo, ou cantar simples, singelo, sem ornamentos. Porém, mesmo no cantar sodo, Caccini insiste em que a técnica de emissão deve estar a serviço de uma sonoridade que seja capaz de transmitir convincentemente os concetti das palavras. A recomendação ao intérprete é que escolha para si mesmo um tom no qual possa cantar com voz plena e natural, para fugir à voz fingida (falsete), na qual, por fingir – ou, ao menos, por forçar – ocorrendo valer-se da respiração para não descobrir-se muito (porque freqüentemente costumam ofender o ouvido), e desta [voz plena e natural] é necessário valerse para dar mais espírito ao crescendo e diminuendo da voz, às exclamações e a todos os outros efeitos que abordamos213.

A última stanza no “Possente spirto” (“Sol tu, nobil Dio”), acompanhada pela lira de Orfeu (ou seria do próprio Apolo?) pede esse estilo de canto sereno e comovente214. Para encerrar, podemos resumir os elementos do pensamento estético da Antiguidade que foram recuperados no Renascimento. Primeiramente, que a arte imita a natureza, como Aristóteles ensinou. Em segundo lugar, que a forma é um elemento essencial da arte, como exposto pelos eruditos do Helenismo tardio. Em terceiro lugar, que o valor de uma obra de arte é determinado pela inspiração e pela criatividade, assim como valia na Antiguidade para a poesia e, finalmente, que a arte pode apresentar diferentes estilos, como consta na retórica clássica215. Em seu diálogo com os gregos, os teóricos da música deram sequência aos fundamentos estéticos que os primeiros humanistas, desde Petrarca, já tinham começado a deduzir dos textos clássicos a que tiveram acesso. Desses fundamentos216, três são devidos a Platão: 1. O de que a beleza é um dos bens máximos. Pico della Mirandola, seguindo Platão, havia equiparado o Belo ao Verdadeiro e ao Bom. Ela seria a finalidade máxima da arte que, a partir daí, passa a perseguir outros objetivos que a religião e a ética. 2. O de que o belo resulta da composição e da proporção. Belas, segundo Pico, só podem ser coisas compostas, pois a beleza consiste na perfeita junção das partes.

212

Monteverdi também emprega este tipo de sugestão musical quando faz a orquestra tocar uma sinfonia de caráter mágico, logo antes de Orfeu dar início ao canto do “Possente spirto”, diretamente inspirada por Apolo. O mesmo trecho aparecerá novamente quando da descida de Apolo, no início do Ato V. 213 CACCINI, 11. 214 Ver JACOBS: La Maniere, le style et l’execution. 215 TATARKIEWICZ, III, 33. 216 Idem, III, 93-4. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 81

3. O do papel complementar da inspiração e da loucura poética junto às regras da retórica. Apenas a obediência às normas não cria uma obra de arte perfeita. Aristóteles contribuiu com a concepção de que nas artes – especialmente na poesia – há determinadas regras e fundamentos a ser observados, a maior parte provenientes da Retórica clássica. Horácio e sua Ars poetica tiveram uma forte influência no sentido de entender-se que os objetivos da poesia (não esquecendo que a música torna-se uma arte cada vez mais irmanada à poesia) e das demais artes são aut prodesse volunt aut delectare poetae (servir e deleitar). Elas devem docere, delectare, movere (ensinar, alegrar e emocionar). Há, finalmente, uma contribuição dos próprios pensadores renascentistas, ainda que seja uma interpretação deturpada de uma ideia platônica: a mímesis (imitatio) é o fundamento da arte – esta, porém, é colocada agora em um novo patamar. Não se trata de imitar a natureza, já que a revivescência do Platonismo tinha desqualificado as cópias das coisas reais, e sim de imitar os modelos das obras de arte dos antigos. Na procura pela pureza dos helênicos antigos e pela recriação fidedigna das qualidades catárticas da tragédia grega, Monteverdi, Galilei e os teóricos da Camerata Fiorentina acabaram criando um novo gênero – a ópera –, síntese do antigo e do moderno.

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IV. L’Orfeo, una favola in Musica – um tratado neoplatônico Alessandro Striggio

PROLOGO LA MUSICA Dal mio Permesso amato a voi ne vegno, incliti eroi, sangue gentil di regi, di cui narra la fama eccelsi pregi, né giugne al ver perch’è troppo alto il segno. Orfeu, uma fábula217 em música Alessandro Striggio PRÓLOGO218

217

“Fábula em música” era uma das denominações genéricas que os italianos dos séculos XVI-XVII davam às experiências reconstitutivas do que se presumia havia sido a tragédia grega. Também eram comuns os nomes de Dramma in musica e Opera in musica. Esta última, a “obra em música” acabou firmando-se definitivamente. Todas elas aludem à supremacia da palavra: são dramas postos em música. Mesmo no século XIX ainda encontraremos esta hierarquia, por exemplo, no Rigoletto, “uma obra (ópera) de Arrigo Boito (o librettista) com música de Giuseppe Verdi”. 218 O Prólogo enquanto elemento didático no início do drama foi introduzido por Eurípedes (480-406 a.C.). O fato de uma personagem apresentar-se à plateia explicando a trama que se desenrolaria a seguir granjeou-lhe muitas críticas, em especial de Aristófanes, para quem Eurípedes escreveria Prólogos muito longos, com explicações intermináveis e desnecessárias. Os renascentistas acolheram essa versão euripidiana da divisão interna da tragédia por razões práticas – a tragédia, depois de adormecer quase 2 mil anos, estava sendo trazida de volta à luz, e o público italiano, desacostumado, teria necessidade de explicações adicionais acerca da trama. Cada drama recebia apresentação de uma personagem que dissesse intimamente respeito ao seu significado maior. O prólogo da L’Oratia (1546) de Pietro Aretino é conduzido pela Fama. Em três tragédias de Rinuccini vemos personagens diferentes: na Dafne (1587), o Prólogo é apresentado pelo poeta romano Ovídio, na Arianna (1608), pelo deus Apolo, e na Euridice (1600) pela própria Tragédia [uma antropomorfização da Musa da Tragédia, Melpômene]. No Orfeo de Striggio é a Música que apresenta o Prólogo, o que já indica que o tema central da obra que vai se desenrolar é o poder da música. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 83

A MÚSICA219 Do [da nascente do] meu amado Permesso220 venho a vós221; ilustres heróis, sangue nobre de reis, de quem a Fama222 narra feitos excelsos sem nunca fazer justiça, de tantos que são. Io la Musica son, ch’a i dolci accenti so far tranquillo ogni turbato core, et or di nobil ira, et or d’amore posso infiammar le più gelate menti.

219

O antropônimo Música encarna em si os poderes da arte dos sons. Esse tratamento foi, a partir do Renascimento, substituindo aos poucos a denominação mitológica clássica. Na Grécia, a Musa Euterpe, filha de Zeus com Mnemosine, presidia à arte musical. Existe (Cf. J. BRANDÃO) uma versão que faz das Musas filhas de Zeus com Harmonia. Tal genealogia remete à concepção filosófica renascentista da primazia da música no universo, o que é confirmado pelo verbete Música da Iconologia de Cesare Ripa: “Mulher jovem, sentada em uma esfera de cor celeste, com a pena em uma mão e olhando atentamente para uma partitura aberta sobre uma estante. [...] Aparece sentada, por servir de repouso ao ânimo cansado [...]. A esfera nos indica que a harmonia sensível da música se funda na harmonia dos céus, antigamente descoberta pelo pitagóricos... [...] Muitos dos antigos pagãos eram da opinião que, sem consonâncias, não seria possível compreendermos nem a perfeição da luz, nem tampouco descobrir os mútuos e profundos reflexos da alma e a simetria, como diziam os gregos falando das virtudes” (RIPA, II, 119). Em outra descrição do mesmo verbete, Ripa escreve que a Música se deve representar como uma “mulher que segura a lira de Apolo entre as mãos, enquanto tem, aos pés, outros diversos instrumentos musicais” (ver RIPA, II, 120). 220 O Permesso era um rio da Beócia cujo curso d’água circundava o monte Hélicon. A denominação Permesso veio do pai da ninfa Aganipe, cujo nome foi dado a esta fonte que brota na encosta do Hélicon. Rio e fonte, Permesso e Aganipe, eram consagrados às Musas. 221 O primeiro degrau do Prólogo se dá no âmbito do material (Dal mio Permesso amato) – a nascente de um rio indica a fonte de inspiração da Musa e, por conseguinte do poeta. Aqui ainda nos encontramos em um nível de não ação, da Natureza e do mundo dos homens. Os heróis e reis nomeados são, para o poeta humanista, dignos de elogio, mas não têm valor perene; são meramente terrestres e mortais, por isso dividem com o mundo da Natureza o status de fundamento, de primeiro degrau na escala ascensional do conhecimento que a Música permite a seus cultuadores. 222 A Fama, da mesma forma que as qualidades e excelências morais, receberá um tratamento de antroponímia, com as adjetivações do que é famoso aderindo a um ser, neste caso feminino, que recebe o nome de Fama. Na Iconologia, de Cesare Ripa, ela é representada como uma mulher vestida com um véu sutil e singelo, atravessado sobre o corpo e recolhido na metade das pernas, que aparece correndo com ligeireza. Tem duas grandes asas totalmente emplumadas, tendo por todos os lados tantos olhos quanto penas, e junto a estesoutras tantas bocas e muitas orelhas. Segura na mão direita uma trompa, tal como descreve Virgílio: “La Fama è un mal, di cui non più veloce / e nessun altro, è di volubilezza sol vive [...]” (RIPA, I, 395-6). 84 | Ronel Alberti da Rosa

Eu sou a Música223, que com doces sons tranquiliza todo coração aflito224; e, ora com nobre ira225, ora com amor, posso inflamar os ânimos mais gelados. Io su cetera d’or cantando soglio mortal orecchio lusingar talora, e in guisa tal de l’armonia sonora de la lira del ciel più l’alme invoglio. Cantando com minha cítara de ouro226 encanto os ouvidos dos mortais

223

A 2ª estrofe (Io son la Musica) assinala uma ascensão à esfera do espiritual, referindo-se à concepção helênica das virtudes éticas da música. Esta concepção subjaz à canção florentina e ao recitativo operístico (teoria dos afetos e seconda pratica). A união íntima de palavra e som musical atesta o poder da música de permear espiritual e material, com ingerência sobre os destinos humanos: pode mover as pedras, acalmar as feras e até vencer a morte. 224 Da mesma forma que a Filosofia, o conhecimento atingido através da Música leva a um apaziguamento das paixões terrenas, aguçando o desejo de conhecimento de coisas perenes. Na versão cristianizada do Neoplatonismo de S. Agostinho, a alma não encontra descanso enquanto não repousar nos seio de Deus. 225 A “nobre ira” de Striggio remete aos Eroici furori (1585) de Giordano Bruno, um interessante exemplo de como um valor – no caso um valor moral negativo, a ira, um pecado mortal – pode sofrer um processo de dignificação a partir da sua dimensão humana. O furor heróico de Bruno é a ânsia de unirse à coisa mais ansiada – Deus –, o que culmina na assimilação pela divindade. Talvez por influência do De ira de Sêneca, e mesmo conservando ainda a velha classificação medieval, alguns humanistas florentinos, em particular Bruni, Palmieri, Poliziano e Landino distinguem do vício comum uma “fúria nobre”, com qualidade de virtude. A ira, um pecado capital, torna-se heróica e nobre. Mas a ira não foi o único caso: baseados na autoridade de Plotino e apoiados por Epicuro, os neoplatônicos introduziram até mesmo uma voluptas nobre, isto é, uma luxúria nobre (WIND, 86). Pico della Mirandola argumentava, por exemplo, que a ira, o orgulho, a concupiscência e outras paixões baixas, longe de serem condenáveis em si, só se tornaram assim pelo uso que o homem faz delas, sendo esses dotes intrinsecamente divinos, adaptados à condição singular do homem: “Devemos experimentar a ira, mas com parcimônia, e mesmo a vingança é obra de justiça, e cada um deve defender sua dignidade, não se devem desprezar as honras adquiridas com meios honestos” (PICO DELLA MIRANDOLA, Heptaplus, IV, v). Ver O Epicurismo de Marsilio Ficino, em WIND, 86. 226 A terceira estrofe corresponde ao grau mais elevado de conhecimento a que a Música conduz. A cítara de ouro (Io su cetera d’or) é alusão à harmonia que rege o Universo. O poder cósmico da música corrobora a crença de que as dimensões, sejam elas do mundo físico como do mundo espiritual, sejam do mundo terreno como dos astros, encontram-se interligadas. Ao contrário de Platão, que concebia uma separação irreconciliável entre ideia e cópia, entre o mundo das Ideias [real] e o das aparências [ilusório], o Neoplatonismo, já desde Plotino, caracteriza-se por uma diferença de gradação entre as esferas do material, intelectual e do espiritual. Essas não são estanques, sendo que Eros, o Amor, é a força que pode mediar entre o mundo físico e o que não vemos. Daí a força que a Música possui, pois reproduz, neste mundo, as proporções das órbitas dos corpos celestes, com o poder de ingerência sobre as constelações do Zodíaco e o destino dos homens por elas regidos. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 85

e desperto na alma o desejo de ouvir227 a harmonia228 sonora da lira dos céus229. Quinci a dirvi d’Orfeo desio mi sprona, d’Orfeo che trasse al suo cantar le fere, e servo fe’ l’inferno a sue preghiere, gloria immortal di Pindo e d’Elicona.

227

O “desejo de ouvir a harmonia sonora da lira dos céus” é o despertar do desejo de transcender o mundo da matéria e conhecer o mundo das coisas perenes e verdadeiras. O mundo físico pode ser experimentado pelos nossos sentidos, mas para chegar a entender a harmonia que rege o Universo é preciso fechar os olhos do corpo e abrir os olhos e ouvidos da alma. 228 O antropônimo Harmonia está ligado a uma abstração que simboliza a harmonia, a concórdia, o consenso e o equilíbrio. Etimologicamente significa “o acordo, a junção das partes” (Cf. BRANDÃO), não raro antagônicas, mas que, unidas, passam a formar um todo harmônico. Harmonia é filha de pais antagônicos, Ares e Afrodite. Casando-se com Cadmo, de origem bárbara, realizará, ela que é grega, na coniunctio oppositorum, na “conjunção dos opostos”, a coincidentia oppositorum, a “harmonia dos opostos”. A categoria Harmonia (afinação) referia-se na Grécia à beleza musical. Algumas categorias do belo foram classificadas já na Antiguidade clássica. Essas categorias são o que podemos chamar de tipos diversos de beleza. Na Grécia Antiga, falava-se de 1) SYMMETRÍA (proporcionalidade), referente à beleza geométrica das formas, e que correspondia à beleza objetiva; 2) EURITMÍA, como era designada a beleza subjetiva (ver TATARKIEWICZ, Geschichte der Aesthetik). 229 A lira dos céus é a lira de Apolo, que todo dia faz o percurso em seu carro de fogo do Oriente até se pôr no Ocidente. Os Hinos Órficos datam do período de decadência da Grécia, nos primeiros séculos de nossa era, marcados pelo sincretismo religioso e pelo ressurgimento dos antigos cultos de mistérios. Marsilio Ficino recebeu de Cosimo de Medici a incumbência de traduzi-los, interrompendo o trabalho que lhe tinha sido encomendado anteriormente, da tradução da obra completa de Platão. Aqui um trecho do Hino XXXIV a Apolo (Athanassakis Apostolos: The Orphic Hymns. Missoula, Mont.: Scholars Press, 1977): “A ti, ó Titã e deus pítio, pertencem a lira, as sementes e o arado. [...] Tu lanças tuas setas de longe, tu conduzes as Musas a dançar, e, ó sagrado, tu és também Baco, Didymeus e Loxias. Senhor de Delos, olho que tudo vê e que traz luz aos mortais, dourados são teus cabelos e claras são tuas sentenças oraculares. Na quieta escuridão da noite coberta de estrelas, tu olhas para baixo, para as raízes da terra, e sustentas os laços do mundo inteiro. Tu fazes tudo florir e, com tua versátil lira, harmonizas os pólos, ora alcançando as tessituras mais agudas, ora as mais graves, sempre repetindo, com o modo Dórico balanceando os poderes harmonicamente...”. 86 | Ronel Alberti da Rosa

Venho apressada pelo desejo de vos contar de Orfeu230; Orfeu que, com seu canto231, amansava as feras232, que dobrou o Inferno a seus pedidos, glória imortal de Pindo e de Hélicon233.

230

Na 4ª e na 5ª estrofe, a Música conduz os ouvintes gradualmente pelo caminho de volta até chegar novamente à natureza. Este caminho de volta passa por um intercâmbio de destinos, ou caminhos cruzados – “Quinci a dirvi d’Orfeo” – o retorno à esfera do espírito. As virtudes éticas apontadas pela Música na 2ª estrofe são aqui substituídas pelo poder mítico de Orfeu, numa referência à ária Possente spirto (Ato IV). Assim como ele desce ao Hades e, depois da segunda perda de Eurídice, retorna mais sábio, o caminho pelo qual a Música conduz os ouvintes, depois de desvelar a relação mais íntima entre o micro e o macrocosmo, entre a música e o caminho dos astros no firmamento – e, por conseguinte, a chave para os destinos humanos – o retorno às esferas inferiores é acompanhado da sabedoria lá adquirida. Há um paralelo com a metempsicose socrático-platônica e o destino das almas que, ao se livrarem do corpo físico, podem contemplar, no mundo das ideias, as coisas mais verdadeiras e eternas (a Justiça, o Amor, o Belo, o Bem). A diferença é que, em Platão, as almas esquecem tudo o que viram e aprenderam, cada vez que encarnam em um novo corpo. Na República (Livro X), o mito de Er relata como um soldado que morreu, de nome Er, narra o porquê do esquecimento dos reencarnados: “... tendo chegado todas [as almas] ao outro lado, encaminhavam-se para o Campo do Esquecimento [...]. [...] Rio da Despreocupação [...] de cuja água eram todos obrigados a beber certa quantidade [...] e, ao beber, cada qual se esquecia de todas as coisas” (República, 236). 231 Orfeu tem por instrumento a lira, presente de seu pai Apolo, com originalmente 7 cordas, às quais acrescentou outras 2 para honrar o número 9, das Musas. Ainda assim, seu poder se manifesta primeiramente através do canto. A voz cantada é, na Grécia antiga, o instrumento humano por excelência. A maior parte da música grega foi concebida como melodia cantada, sendo que os instrumentos meramente acompanham a voz, dobrando as mesmas notas ou ritmando um pedal com poucos sons. Em Aristóteles (Problemata XIX, 9), encontramos que o acompanhamento dos instrumentos apenas enfraquece o vigor das palavras cantadas: “O conjunto formado por muitos auletas (flautistas, executantes de aulos) não torna agradável o canto, pelo contrário, obscurece a parte cantada.” Um acompanhamento discreto, porém, pode realçar e aumentar o alcance do canto, combinando algo que o canto não possui, um ataque preciso: “O som vocalizado pela voz humana é agradável em si mesmo, mas os instrumentos prestam-se melhor ao ataque do som”. O discurso musical cantado, portanto, além de não ser mediado por nenhum instrumento – ele passa direto de homem a homem, da boca para os ouvidos – possui uma mensagem verbal cognoscível, o texto, e concentra em si o poder do Logos. 232 O tema predileto das discussões dos participantes da Camerata Bardi era como restaurar o poder mágico original da música – leia-se música dos antigos gregos. Havia uma verdadeira obsessão pelo tema de Orfeu, vencendo, com seu canto, os poderes do Inferno e da morte. 233 Pindo, Parnaso e Hélicon são os montes frequentados pelas Musas. O Hélicon, especialmente, é uma montanha da Beócia consagrada a Apolo e às Musas – entende-se que Orfeu, protegido de Apolo e favorito das Musas, participe da sua glória. O proêmio da Teogonia de Hesíodo conclama: “Pelas Musas heliconíades [de Hélicon] comecemos a cantar. Elas têm grande e divino o monte Hélicon [...]”. O verbo ter em grego [ékhousin] conserva a dupla acepção de ter-ocupar-habitar e a de ter-mantersuster (Cf. TORRANO). Como as Deusas o têm por habitação, elas o mantêm na grandeza e sacralidade em que ele se mostra. É pela presença delas que ele, o Hélicon, se dá em sua presença, imponente e sagrada. Mantendo o Hélicon como sua habitação, elas o mantêm como uma hierofania – como mantêm no encanto do canto o poder de presentificar o que, sem elas, seria ausente. Na encosta do lado Norte, encontra-se a fonte Hipocrene [fonte do cavalo], nascida de uma patada do corcel alado Pégaso. O episódio é como segue: (Cf. Brandão) no grande concurso de canto entre as Piérides e as Musas, o monte Hélicon, sede do certame, se envaideceu e se enfunou tanto de prazer que ameaçou o Olimpo. Poseidon ordenou a Pégaso que desse uma patada no monte, a fim de que ele voltasse às dimensões normais e “guardasse seus imites”. O monte realmente obedeceu e voltou ao seu tamanho, mas no local atingido por Pégaso brotou uma fonte, a Hipocrene. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 87

Or mentre i canti alterno, or lieti, or mesti, non si mova augellin fra queste piante, né s’oda in queste rive onda sonante, et ogni auretta in suo camin s’arresti. Agora pois234, enquanto alterno meu canto, ora alegre ora triste235, que não se mova nem um pássaro nas folhagens, e nenhuma onda rebente nestas praias e toda brisa interrompa seu caminho236. ATTO I PASTORE (I) In questo lieto e fortunato giorno ch’ha posto fine a gli amorosi affanni del nostro semideo, cantiam, pastori, in sì soavi accenti che sian degni d’Orfeo nostri concenti.

234

A alternância das polaridades corresponde à visão dialética e complementar do mundo na estética pitagórica. Alegria e tristeza são componentes do homem mortal, e não se pode viver sem os dois. Apenas os deuses podem ser sempre felizes. 235 Sentir-se protagonista de uma catarse (purificação) nos moldes descritos por Aristóteles é o grande ensejo do ouvinte e dos teóricos da Camerata. Da mesma forma que, entre os astros, as emoções também fazem vibrar por simpatia as cordas dos corações. Por isso, a fábula em música alterna momentos alegres e tristes, para que essas emoções possam também ser experimentadas por aqueles que a escutarem. 236 Striggio retira a Natureza do mundo físico, paralisando-a à espera da narrativa. Ondas não quebram na praia, os pássaros não cantam e os ventos não sopram: esse mundo foi arrancado ao fluxo do tempo e elevado, momentaneamente, à esfera do Metafísico. Lá, na eternidade atemporal, os ouvintes conhecerão coisas verdadeiras e perenes, tal como a fábula de Orfeu. 88 | Ronel Alberti da Rosa

PRIMEIRO ATO237 PASTOR238 I Neste dia239 alegre e feliz que põe termo aos sofrimentos amorosos240 do nosso semideus241, cantemos, pastores, nos mais suaves tons242; que sejam dignos de Orfeu nossos concertos. Oggi fatt’è pietosa l’alma già sì sdegnosa de la bella Euridice; oggi fatt’è felice

237

O Ato I corresponde à primeira estrofe do Prólogo apresentado pela Música. Aqui, encontramos um mundo natural de pastores e amantes. Cada uma das cinco estrofes da Música estará relacionada a um dos atos do drama, evidenciando a relação do mundo supraterrestre da Música com os acontecimentos terrenos que afetam homens e semideuses. Especificamente, o Orfeo é o único dos dramas de Striggio em que a ação se divide em cinco atos. Nenhuma ópera do Norte da Itália, em especial Florença e Mântua, apresenta essa subdivisão. Os libretti de Rinuccini para a Dafne, a Euridice e a Arianna estão divididos em episódios, mas não em seções estanques, como no Orfeo. 238 Os pastores são os personagens por excelência da Arcádia, aquela região inóspita da Grécia, posteriormente idealizada por Virgílio. O conceito renascentista de uma Arcádia paradisíaca, e que persiste até hoje, vem de Virgílio, que a descreveu como uma Utopia; transformando uma região árida e gélida da Grécia em um reino de completa beatitude. O imaginário arcadiano que Virgílio legou à posteridade é uma evocação de ventura indescritível, desfrutada no passado, não mais atingível, mas viva na memória – uma felicidade passada terminada pela morte. A ambiência da Arcádia tem ligação com uma concepção do passado longínquo do homem enquanto era do ouro, um primitivismo suave, cheio de inocência e de felicidade de uma vida civilizada, porém sem os seus vícios e distorções da sociedade. A Arcádia da realidade, a Arcádia dos gregos, era o oposto dessa idealização latina. Era o domínio de Pã (“O monte Menalus era consagrado especialmente a Pã, e o povo afirmava que ali se podia ouvi-lo tocando sua flauta” – PAUSANIAS: Perigesis, VIII, 36, 8 apud PANOFSKI). Seus habitantes provinham de uma linhagem antiga, cultivavam uma hospitalidade rústica e uma virtude inflexível, mas eram também famosos por sua ignorância e baixo padrão de vida. Virgílio é o poeta que a idealiza, não apenas enfatizando as suas verdadeiras virtudes, como a musicalidade, mas acrescentando outros dons inexistentes: vegetação luxuriante, primavera eterna e tempo inesgotável para o amor. 239 A oposição dual de dia e noite, bem como de morte e vida, está presente em todo o poema de Striggio, sublinhando igualmente os limites de conhecimento e não conhecimento. Onde Apolo – ou seu filho Orfeu – está presente, há luz e bem-aventurança. Seu inverso é o reino escuro e triste de Plutão. 240 O Amor, como força mediadora entre o terreno e o celeste, também é poderosa fonte de privação da alegria e de turbamento dos sentidos – por “tanto amar” Eurídice, Orfeu a perde definitivamente (Ato IV), ao voltar-se para olhá-la, apesar do interdito infernal. 241 Na versão mais difundida do mito, Orfeu é mortal, filho da Musa Calíope (que presidia à poesia épica e era, como tal, considerada a mais importante entre as nove irmãs) e do Rei Eagro. Uma variante, seguida por Striggio, apresenta Orfeu como semideus, filho do próprio Apolo com a Musa Calíope. Orfeu recebia o epíteto de “o fiel por excelência a Apolo” (Cf. BRANDÃO, II, 202), de quem teria recebido sua lira. 242 Seguindo as instruções da Música no Prólogo, o dia alegre e feliz deve ser saudado com canções correspondentemente alegres e felizes, ou seja, suaves. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 89

Orfeo nel sen di lei, per cui già tanto per queste selve ha sospirato, e pianto. Hoje foi feita piedosa243 a alma outrora tão desdenhosa da bela Eurídice244; hoje foi feito feliz Orfeu em seu regaço, pelo qual já tanto havia suspirado e chorado nestes bosques. Dunque in sì lieto e fortunato giorno ch’ha posto fine a gli amorosi affanni del nostro semideo, cantiam, pastori, in sì soavi accenti che sian degni d’Orfeo nostri concenti. Por isso245, neste dia alegre e feliz que pôs termo aos amorosos afãs do nosso semideus, cantemos, pastores, nos mais suaves tons; que sejam dignos de Orfeu nossos concertos. CORO DI NINFE, PASTORI Vieni, Imeneo, deh vieni, e la tua face ardente sia quasi un sol nascente ch’apporti a questi amanti i dì sereni e lunge omai disgombre de gli affanni e del duol le nebbie e l’ombre.

243

A piedade é uma força poderosa, a qual pode ser movida com vigor pela música. Eurídice, a esposa de Orfeu, é uma ninfa, mais precisamente uma dríada, uma habitante dos troncos de árvores, em especial dos carvalhos. No poema As Geórgicas de Virgílio (Canto IV, 314-558), encontramos uma versão um pouco diferente da sua morte unindo a história conhecida com o mitologema de Aristeu: este apicultor, apaixonado pela esposa de Orfeu, perseguiu-a pelos campos da Trácia com a intenção de violentá-la. Ao fugir de Aristeu, Eurídice pisou na serpente que lhe desfere a picada mortal. 245 Striggio intercala aos versos de seu poema a repetição de algumas estrofes que, por razões de simetria, ora cantadas/recitadas pelo mesmo personagem, como aqui, ora pelo coro, qual em uma tragédia teatral clássica. 244

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CORO DE NINFAS E PASTORES Vinde, Himeneu246, oh vinde, e que tua face ardente seja quase um sol nascente, que traga a estes amantes dias serenos, e que carregue para longe o horror e a sombra das preocupações e das dores. NINFA Muse, onor di Parnaso, amor del cielo gentil conforto a sconsolato core, vostre cetre sonore squarcino d’ogni nube il fosco velo; e mentre oggi propizio al vostro Orfeo invochiamo Imeneo su ben temprate corde co’l vostro suon, nostra armonia s’accorde. NINFA247 Musas248, honra do Parnaso249, amadas do céu,

246

Himeneu, filho de Apolo com uma das Musas (Calíope, Clio ou Urânia), ou, em outra versão, de Afrodite com Dioniso, era o deus que encabeçava a procissão nupcial. Era invocado, em altos brados, em socorro do noivo na difícil tarefa de deflorar a jovem esposa. A tocha conduzida à frente da procissão do Himeneu é a primeira metáfora do deus sol, Apolo, no texto de Striggio. Sua luz traz dias de serenidade para os noivos e dissipa as trevas do sofrimento. Nas Troianas de Eurípedes (320-4), lemos: “... levantando bem alto a chama, / faz brilhar e resplandece / em tua honra, ó Himeneu, / em tua honra, ó Hécate, a luz que deve brilhar no casamento de uma virgem, como exige o rito” (apud REIS PEREIRA, 137). 247 Ninfa significa, por um lado, moça, jovem em idade de se casar, jovem casada; de outro, divindade menor, que habita em particular os campos, junto às nascentes. Com o nome genérico de ninfas são chamadas as divindades femininas secundárias, que não habitam o monte Olimpo. Essencialmente ligadas a terra e à água, simbolizam a força geradora. Segundo Johann Jakob Bachofen (Das Mutterrecht), as ninfas seriam reminiscências da era matrilinear, cuja divindade primordial era a Terra Mãe, com a mulher enquanto figura religiosa central. Nesse caso as ninfas, divindades secundárias, poderiam ser consideradas uma extensão da própria energia telúrica, isto é, divindade menores que representam a Mãe Gea em sua união com a água, elemento úmido e fecundante. Da união desses dois elementos, água e terra, surge a força geradora que preside à reprodução e à fecundidade da natureza (ver JUNITO BRANDÃO, II, 172-3). 248 As Musas são filhas de Zeus e de Mnemosine, a Memória. Depois de vencer os Titãs rebelados, os deuses pediram a Zeus que gerasse divindades capazes de cantar condignamente a vitória dos olímpicos, que atendeu ao pedido deitando-se nove noites seguidas com Mnemosine, de quem nasceram as nove irmãs. Havia dois grupos principais, as da Trácia (vizinhas do Monte Olimpo, chamadas de piérides) e as da Beócia (habitantes do Monte Hélicon, mais ligadas a Apolo, que lhes dirigia os cantos junto à fonte Hipocrene, cujas águas favoreciam a inspiração poética). 249 O Monte Parnaso, junto a Delfos, era mais uma das elevações do maciço central da península grega votada a Apolo e às Musas. Foi ali que Apolo venceu a serpente Píton. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 91

gentil conforto do coração desconsolado, vossas cítaras250 sonoras rasgam o fosco véu das nuvens251; e, enquanto hoje invocamos para vosso Orfeu um propício Himeneu252,

250

Striggio apresenta Orfeu, Apolo e as Musas tocando “cetra”, a cítara, em vez de lira. Temos que considerar, contudo, que o instrumento “lira” é um segundo significado da denominação “cítara”. A cítara é um instrumento de cordas soltas pinçadas, e, no Renascimento, foi desenvolvido um instrumento, chamado “ceterone” [citarona, ou grande cítara], para acompanhar recitativos. Nas instruções para o emprego de instrumentos no Ritornello musical escrito por Monteverdi para separar o Ato IV do V do Orfeo, há menção a ceteroni, no plural. Há outra questão a ser considerada: na época de Striggio, a palavra lira era geralmente ligada ao instrumento lira da braccio, que era um instrumento de arco, aparentado com o atual violino ou viola, e, portanto, tocado com um arco. É comum encontrarmos, na iconografia do século XVI, imagens que representam Orfeu, Apolo e as Musas acompanhando-se ao som de uma lira da braccio. É de crer-se, portanto, que o emprego do termo cetra visasse, para o autor, evitar a ambiguidade da denominação lira. Quanto às suas origens, na Grécia, a lira é dos instrumentos mais antigos de cordas pinçadas. Sua invenção é atribuída ao deus Hermes e desfrutou, durante séculos, na Grécia antiga, de uma predileção imbatível. Originalmente era feita com a carapaça dorsal de uma tartaruga, coberta por um couro esticado, que fazia de tábua de ressonância. De cada lado era fixado um corno de antílope ou de cabra, suportando uma transversal de madeira à qual eram fixadas as cordas de tripa em número variável. A cítara, derivada da lira, é um verdadeiro instrumento de lutaria, lembrando seu antepassado apenas de forma geral. Toda escavada em madeira, os braços se prolongam para formar a caixa de ressonância, Com sonoridade bastante pronunciada, tinha também número variável de cordas, fixadas estas atrás da caixa. 251 A ideia do conhecimento como algo que não é possível ao intelecto humano apreender sem que esteja envolto em nuvens de mistérios é recorrente no Neoplatonismo florentino. “As coisas divinas, quando são escritas, devem ser cobertas por véus enigmáticos e dissimulação poética” (PICO: Heptatlus, apud WIND). Esses véus, contudo, são benéficos, pois só através deles o esplendor da verdade transcendente pode atingir o espectador sem destruí-lo. Nessa concepção, sobretudo para os humanistas, o deus Hermes era a divindade dissolvedora das nuvens, o mediador entre mortais e deuses; deus engenhoso, do intelecto que indaga, sagrado aos gramáticos e metafísicos, patrono do questionamento erudito e da interpretação (Hermenêutica – ερμηνεια), revelador do conhecimento secreto (Hermético), do qual um símbolo era seu caduceu mágico – o KERYKEION – era o divino mistagogo. No quadro Alegoria da Primavera, de Botticelli, Hermes, postado à extrema-esquerda, afasta com seu caduceu as nuvens que impedem o sol de penetrar na paisagem (ver WIND). “A mente [o pensamento] dirige-se subitamente em direção à luz da beleza intelectual, sendo expulsas para longe, como nuvens, as paixões que a atraem em direção à matéria” (FICINO: Comentário para a Enéada I de PLOTINO, apud WIND). 252 O canto sagrado do Himeneu, entoado durante a procissão nupcial, tem por referência a repetição cíclica do refrão “Himeneu, ó Himeneu!”. Nas Aves de Aristófanes lemos (1720-1765): “Himeneu, ó Himeneu! Eros coberto de flores, de asas douradas, conduzia, de rédea na mão, o carro, como pagem no casamento de Zeus com a bem-aventurada Hera. Himeneu, ó Himeneu!” 92 | Ronel Alberti da Rosa

com cordas bem afinadas una-se ao vosso canto nossa harmonia253. CORO DI NINFE, PASTORI Lasciate i monti, lasciate i fonti, ninfe vezzose e liete e in questi prati a i balli usati leggiadro il piè rendete. CORO DE NINFAS E PASTORES Deixai os montes, deixai as fontes254, ninfas graciosas e alegres, e, nestes prados, às costumeiras danças, erguei gentilmente os pés255.

253

Striggio ilustra este verso (“...com estas cordas bem afinadas...”) a partir da ideia de que os instrumentos de corda, lira ou cítara, por serem votados às Musas, a Apolo e a Orfeu, seriam os acompanhantes ideais para o canto. Para os gregos, porém, predominava a concepção de que o aulos, espécie de flauta, é que combinaria melhor com o canto, já que ambos, som do canto e som da flauta, têm origem comum no sopro. O acompanhamento era feito meramente dobrando-se a melodia, isto é, repetindo as mesmas notas cantadas nos instrumentos. A concepção helênica de Harmonia não era, como a atual, decorrente de uma boa combinação entre os vários sons que participam em uma execução, e sim na fusão destes sons em, se possível, um único timbre. Esta fusão – Harmonia – era considerada como revelação de uma harmonia mais profunda, como expressão da ordem inerente às coisas (ver TATARKIEWICZ, I, 106). Em um dos problemas pseudoaristotélicos (Problemata XIX, 43) lemos: “O aulos é mais suave que a lyra, de modo que o canto, quando combinado com ele, é mais agradável do que quando acompanhado pela lyra. [...] Ao mesmo tempo, o canto e o som do aulos misturam-se [combinam-se] devido à sua afinidade, resultante de serem ambos sons originados pelo sopro. O som da lyra não resulta do sopro, por isso impressiona menos que o timbre do aulos, isolando-se assim da voz” (Cf. REIS PEREIRA, 220). 254 Montes como o Parnaso, O Pindo e o Hélicon, e fontes de água como a Hipocrene e o Permesso são lugares consagrados às Musas e à inspiração poética. A exortação para que ninfas e pastores baixem à planície e entreguem-se à dança remete à necessidade de abandonar o celeste e metafísico e ligar-se ao material e carnal, em especial à dança, para festejar o casamento de Orfeu. 255 Ninfas e pastores dançando harmoniosamente, a união do supraterreno e do humano expressa o alto conceito que a vida camponesa goza entre os poetas italianos. Os habitantes do campo dividem com seres sobrenaturais como as ninfas – que santificam a natureza – o seu espaço, e a contemplação poética da vida fora dos muros do burgo foi possível, aponta Burkhardt, graças a que os colonos “gozavam de dignidade humana, liberdade pessoal e do direito de fixar-se onde bem entendesse, por mais dura que fosse, às vezes, a sua sorte” (BURKHARDT, 320). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 93

Qui miri il sole vostre carole più vaghe assai di quelle ond’a la luna, a l’aria bruna, danzano in ciel le stelle. Que o sol256 admire vossas cirandas, muito mais lindas que aquela das estrelas, no negro espaço, dançando em volta da lua257. PASTORE (I) Ma tu, gentil cantor, s’a’ tuoi lamenti già festi lagrimar queste campagne, perch’or al suon de la famosa cetra non fai teco gioir le valli e i poggi? Sia testimon del core qualche lieta canzon che detti amore. PASTOR I Mas tu, gentil cantor, que com teus lamentos já fizeste chorar estes campos, por que não fazes, ao som de tua famosa cítara,

256

O Apolo renascentista de Striggio é um deus praticamente onisciente e onipresente, quase uma versão cristianizada do deus grego: “Sol, que tudo abarca e tudo vês...” (Ato I). Do alto do seu carro, Apolo vê e sabe tudo, contempla e se compraz com a dança das ninfas e pastores. 257 Todo o poema de Striggio é um grande elogio ao humanismo enquanto herdeiro legítimo dos valores clássicos greco-romanos. Neste sentido, o deus Apolo recebe honrarias não só por ser o pai de Orfeu, mas também por representar a racionalidade, a ciência e as artes. A noite e a lua quase não são mencionadas, aqui. Contudo, o verso que assegura que as cirandas dos pastores e ninfas são mais belas que “aquela das estrelas, em noite escura, dançando em volta da lua...” recorda a noite poética arcadiana, uma imagem do poeta romano Virgílio, e que muita influência teve no pensamento poético renascentista. Virgílio é, segundo Panofski (Significado nas artes visuais, 382-3) o “descobridor” da noite poética, que cai sobre o mundo com um manto de poesia. Na Iconologia de Ripa, ela é representada como uma mulher vestida com um manto azul, todo adornado de estrelas. Nas costas, tem duas grandes asas, estando a ponto de voar: a fantasia do poeta se alça junto com a noite (ver RIPA, II, 133). 94 | Ronel Alberti da Rosa

com que vales e colinas contigo se alegrem?258 Seja testemunho do coração qualquer canto alegre que fale de amor. ORFEO Rosa del ciel, gemme del giorno, e degna prole di lui che l’universo affrena, sol, ch’il tutto circondi e ‘l tutto miri, da gli stellanti giri, dimmi: vedesti mai alcun di me più fortunato amante? ORFEU Rosa do céu259, jóia do dia e digna prole daquele que rege o Universo260, Sol, que abarcas o todo e tudo vês261, quando entre os astros fazes tua gira, diz-me: já viste um amante mais afortunado que eu?262

258

A celebração da alegria liga-se diretamente com a dança; quando Orfeu cantar, os vales se alegrarão com ele, e as ninfas e os pastores farão eco iniciando uma dança para festejá-lo. Na Iconologia de Cesare Ripa, a Alegria aparece como uma moça com uma guirlanda de flores nos cabelos, vestes brancas, que segura, em uma mão um recipiente de cristal com vinho tinto e, na outra, uma taça de ouro. É representada na atitude de dançar agilmente sobre um prado florido (RIPA, 75). 259 Na primeira evocação de Orfeu a Apolo, este é chamado de rosa do céu, pedra preciosa do mundo (ou vida do mundo, segundo outra edição do texto de Striggio). O sol é a joia maior do firmamento, assim como a inteligência, é o bem maior que Apolo, deus da racionalidade e do engenho humano, pode conceder aos seus acólitos. 260 A imagem do sol regendo o Universo não significa que este tenha lugar no centro do cosmos. As teorias de Galileu e Copérnico estão nesta época desautorizando a versão que vigorou por 14 séculos, aceita oficialmente pela Igreja Católica, o modelo astronômico de Ptolomeu, em que a Terra é que ocupa o centro do Universo. Striggio pretende aqui uma metáfora da regência de Apolo, isto é, da inteligência humana, sobre os afetos humanos, mesmo que esta não ocupe o centro de seu coração, reservado à fé. 261 Apolo, o intelecto, vê tudo porque não olha com os olhos físicos, e sim com os olhos da mente raciocinante. 262 Orfeu é o mais afortunado dos amantes: sabe das coisas verdadeiras, porque enxerga com os olhos da mente. Enquanto esta dirigir seus afetos, será vencedor. No momento em que for vencido por eles, ao voltar-se para olhar de Eurídice, na saída do Hades, perderá tudo. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 95

Fu ben felice il giorno, mio ben, che pria ti vidi, e più felice l’ora che per te sospirai, perch’al mio sospirar tu sospirasti: felicissimo il punto che la candida mano pegno di pura fede a me porgesti! Foi muito feliz o dia, meu bem, em que primeiro te vi, e mais feliz ainda a hora em que por ti suspirei, porque ao meu suspiro suspiraste tu263; felicíssimo o momento em que a cândida mão entregaste como penhor de pura fé. Se tanti cori avessi quant’occhi ha il ciel sereno e quante chiome sogliono i colli aver l’aprile e ‘l maggio, colmi si farien tutti e traboccanti di quel piacere ch’oggi mi fa contento. Tivesse eu tantos corações quantos olhos tem o céu eterno, e quantas ramagens têm as colinas em abril e maio264, plenas estariam todas e transbordantes deste prazer que hoje me faz contente. EURIDICE Io non dirò qual sia nel tuo gioire, Orfeo, la gioia mia, che non ho meco il core, ma teco stassi in compagnia d’Amore; chiedilo dunque a lui s’intender brami quanto lieta i’ gioisca e quanto t’ami.

263

A magia de Orfeu se revela nas relações simpáticas: ao cantar, faz com que as pedras se comovam e os animais selvagens se amansem. Ao suspirar, fez com que a ninfa Eurídice respondesse com suspiros, provocando-lhe resposta ao seu amor. 264 O céu eterno tem muitos olhos, e as colinas têm muitas folhas: a consciência que tudo vê e tudo permeia e a vitalidade geradora da Natureza encontram correspondência no amor transbordante de Orfeu por Eurídice. Ele conjuga mundo supralunar e terreno. 96 | Ronel Alberti da Rosa

EURÍDICE Não posso dizer, Orfeu, quanta a minha alegria, quando tu te alegras. pois meu coração já não o guardo comigo, está sempre contigo, em companhia do Amor265; pergunta a ele, se desejas saber quão feliz é, e o quanto te ama. CORO DI NINFE, PASTORI Lasciate i monti, lasciate i fonti, ninfe vezzose e liete e in questi prati a i balli usati leggiadro il piè rendete. CORO DE NINFAS E PASTORES Deixai os montes, deixai as fontes, ninfas graciosas e alegres, e, nestes prados, às costumeiras danças, erguei gentilmente os pés. Qui miri il sole vostre carole più vaghe assai di quelle ond’a la luna, a l’aria bruna, danzano in ciel le stelle. Que o sol admire vossa ciranda, muito mais linda que aquela das estrelas, no negro espaço, dançando em volta da lua.

265

Eurídice tem a confiança perfeita em seu amante: o coração não lhe bate dentro do peito, entregouo a Orfeu, que dele cuida. Quem quiser saber dela deve a Orfeu perguntar. Eurídice é a discípula perfeita; na saída do Hades seguirá obediente seu amado, que trairá sua confiança, ao olhar para trás. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 97

Poi che bei fiori, per voi s’onori di queste amanti il crine, ch’or de i martiri de i lor desiri godon beati al fine. E depois, com belas flores, sejam por vós honrados os cabelos destes amantes, que, depois dos tormentos de seus desejos, desfrutem, finalmente, felizes266. CORO DI NINFE, PASTORI Vieni, Imeneo, deh vieni e la tua face ardente sia quasi un sol nascente ch’apporti a questi amanti i dì sereni, e lunge omai disgombre de gli affanni e del duol le nebbie e l’ombre. CORO DE NINFAS E PASTORES Vinde, Himeneu, oh vinde, e que tua face ardente seja quase um sol nascente, que traga a estes amantes dias serenos, e que carregue para longe o horror e a sombra das preocupações e das dores PASTORE (I) Ma s’il nostro gioir dal ciel deriva, com’è dal ciel ciò che qua giù s’incontra, giusto è ben che divoti gli offriam incensi e voti.

266

A felicidade a ser encontrada depois de uma série de sofrimentos e privações é uma herança da moral estoica romana. Depois do vale de lágrimas da vida terrena, o céu acolherá os seguidores da doutrina órfica, assim como Orfeu que, depois de experimentar o Inferno, subiu com Apolo aos céus. O sofrer dignifica a bem-aventurança, neste que pode ser considerado um dos ensinamentos principais do texto de Striggio, que se encerra com os versos: “Quem semeia com dor, colhe o fruto de toda graça” (Ato V). 98 | Ronel Alberti da Rosa

Dunque al tempio ciascun rivolga i passi a pregar lui ne la cui destra è il mondo, che lungamente il nostro ben conservi. PASTOR I Mas se nossa alegria267 vem do céu, como é do céu268 tudo que aqui embaixo se encontra, é justo então que, com devoção, ofereçamos incenso e sacrifícios269. Por isso, que cada um dirija seus passos ao templo, rezar àquele que tem o mundo na sua destra270, para que preserve sempre o nosso bem. PASTORI Alcun non sia che disperato in preda si doni al duol, benché talor n’assaglia possente sì che la nostra vita inforsa.

267

A alegria do devoto não provém do prazer da matéria, e sim do conhecimento de coisas perenes. Para tal, será necessário trilhar um longo caminho, rumo ao autoconhecimento. 268 Todas as coisas que se encontram no mundo são pálidos reflexos das coisas verdadeiras, que se encontram no mundo ideal, fora do alcance dos humanos. Nesta passagem, Striggio se refere à doutrina platônica original, como exposta no Livro VII da República, na Parábola da Caverna. No Heptatlus, de Pico, encontramos uma variação desse tema: “Na verdade, tudo o que existe no baixo mundo existe também no alto, mas em uma forma melhor; correspondentemente, tudo o que existe no alto pode ser visto também embaixo, mas em uma condição degenerada e com uma natureza que se poderia chamar de adulterada. [...] Entre nós existe o fogo, que é um elemento; o sol é o fogo do céu. Na região ultramundana, o fogo é o intelecto seráfico. Contudo, notemos como eles são diferentes: o fogo elemental queima, o [fogo] celestial dá vida, e o [fogo] hipercelestial ama” (apud HANEGRAAFF). 269 Incenso e sacrifícios são, para o humanista, o estudo e a busca do conhecimento, bem como a privação dos prazeres dos sentidos. 270 Esta referência à destra enquanto o lugar direito, correto, certo das coisas é uma indicação da hierarquia que as coisas “direitas” devem ocupar na vida do estudioso. Assim como o mundo está à direita de Apolo, da mesma forma que Cristo está sentado à direita de Deus Pai, o amor ao conhecimento deve ocupar o lugar preferencial na vida do sábio. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 99

PASTORES271 Que ninguém se entregue ao desespero e à dor, ainda que frequentemente ela nos assalte e faça-nos duvidar da vida272. CORO DI NINFE, PASTORI Che poiché nembo rio gravido il seno d’atra tempesta inorridito ha il mondo, dispiega il sol più chiaro i rai lucenti. CORO DE NINFAS E PASTORES Pois, após nuvens escuras e furiosa tempestade aterrorizarem o mundo, o sol desfralda ainda mais claros os seus raios273. PASTORI E dopo l’aspro gel del verno ignudo veste di fior la primavera i campi.

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No original de Striggio, os oito versos que seguem não eram divididos em estrofes e levavam simplesmente a indicação CORO (Cf. WHENHAM, 53). Trata-se do ensinamento final do Ato I, dirigido aos espectadores e ressaltando o que devia ser guardado do que sucedeu e foi dito (cantado) até aqui. Monteverdi, contudo, musicou os versos da forma como eles aparecem aqui, dividindo-os em 3, 3 e 2 linhas, cantadas respectivamente por pastores, ninfas e pastores com ninfas. 272 Os primeiros versos destacam o que, no final da ópera, Apolo vai censurar em Orfeu, isto é, o ter-se entregue à tristeza e à depressão. Vale lembrar que também a acédia, a prostração, um pecado mortal, sofreu um processo de enobrecimento a partir da segunda década do século XVI, transformando-se na poética melancolia. Na xilogravura Melancolia I (1514), de Albrecht Dürer, um anjo de rosto escurecido (acreditava-se que os melancólicos tinham a face escura) está sentado entre instrumentos geométricos, olhando para o nada, enquanto um cometa cruza o céu, marcando o tempo que, aparentemente, não quer passar. Será Orfeu um depressivo? A doutrina dos temperamentos, esquecida desde o fim da Antigüidade, foi trazida novamente à baila pelos humanistas do século XVI. Segundo esta, corpo e caráter – o temperamento – eram determinados por quatro diferentes fluidos. No homem ideal, eles estão equilibrados, mas no homem natural encontram-se em estado de desequilíbrio (ver HAGEN, 132). Quem tem sangue, sanguis, em excesso, é um sanguíneo. Quem tem excesso de muco, phlegma, é um fleumático. Uma quantidade exagerada de bilis amarela, cholé, faz do homem um colérico. E quem tem muita bilis negra, melaina cholé, será um melancólico. 273 A moral estoica apresenta-se com imagens diferentes: o recorrente tema da recompensa depois do sofrimento insiste uma vez mais, desta feita com o sol, Apolo, enquanto metáfora para a distribuição das graças que poderão ser colhidas pelo homem que perseverar na trilha da virtude, sem se deixar assustar ou desviar pelas tempestades trazidas pelos afetos. Esses afetos podem seduzir para um desvio tanto na direção da cólera e da prepotência quanto da acédia e da melancolia. O estudo das coisas verdadeiras é o remédio que vai equilibrar os humores no corpo e na alma do sábio. 100 | Ronel Alberti da Rosa

PASTORES E, depois do duro gelo do inverno desnudo, a primavera veste de flores os campos274. CORO DI NINFE, PASTORI Orfeo, di cui pur dianzi furon cibo i sospir, bevanda il pianto, oggi felice è tanto che nulla è più che da bramar gli avanzi. CORO DE NINFAS E PASTORES Orfeu, que antes tinha por alimento os suspiros e por bebida o pranto275, hoje é tão feliz que nada mais existe que ainda deseje. CORO DI NINFE, PASTORI Ma perché tal gioire dopo tanto morire? Eterni numi, vost’opre eccelse occhio mortal non vede ché splendente caligine le adombra; pur, se lece spiegar pensiero interno sol per cangiarlo ove l’error si scopra, direm ch’in questa guisa, mentre i voti d’Orfeo seconda il cielo, prova vuol far di sua virtù più certa: ch’il soffrir le miserie è picciol pregio, ma ‘l cortese girar di sorte amica suol dal dritto cammin traviare l’alme.

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Não apenas fluidos corporais e temperamentos tinham relação entre si, como também as quatro partes do dia, as quatro idades do homem, os quatro elementos e as quatro estações. A melancolia do inverno, quando o tempo parece que não quer passar, se relaciona com a terra, mais especificamente com a terra seca. Depois do inverno, a umidade e o sol fazem com que brotem as flores nos campos. A monotonia do branco dará lugar à primavera multicolorida, assim como a dureza do gelo também será trocada pela suavidade das águas. A oposição verão-inverno também está presente no poema de Striggio através da dualidade Apolo-Plutão. Plutão raptou Proserpina, filha de Gea, a terra. O crime teve como consequência que a terra se cobrisse de luto, trazendo o inverno para o mundo. O canto de Orfeu Possente spirto, no Ato IV, só despertará piedade no coração de Proserpina porque fará eco, soando por simpatia, na porção solar do seu temperamento. 275 Aquele que persegue as coisas materiais acaba sempre insatisfeito, se alimentando de suspiros e de lágrimas. Se conseguir dirigir-se às coisas realmente valiosas, será tão plenamente feliz que nada mais de material o atrairá. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 101

Mas porque tal alegria, para depois tanto morrer? Deuses eternos, vossas obras excelsas olho mortal algum vê porque esplendente escuridão as ensombrece; porém, se é lícito explicar o pensamento oculto só para mudá-lo, onde o erro se esconde, diremos que, desta maneira, enquanto os votos de Orfeu chegam ao céu querem dar prova do seu poder mais evidente: que o sofrer das misérias é mérito menor mas o complacente girar da amiga sorte sói desviar as almas do caminho certo276. Oro così per foco è più pregiato; combattuto valore godrà così di più sublime onore. Assim, pelo fogo o ouro é mais prezado; valor conquistado gozará assim da mais sublime honra. ATTO II ORFEO Ecco pur ch’a voi ritorno care selve e piaggie amate, da quel sol fatte beate per cui sol mie notti han giorno.

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A descrição do mundo terreno como passageiro, enganoso e mera passagem para uma existência plena no além é um tema recorrente nos poetas italianos neoplatônicos. Lorenzo de Medici expressou nos versos que abrem o Trionfo di Bacco e Arianna um misto desse sentimento e de um epicurismo tardio modificado pela cultura italiana cristianizada do Carpe diem de Horácio: “Quanto è bella giovinezza, che si fugge tuttavia! Chi vuol esser lieto, sai: di doman non c’è certezza” [Como é bela a juventude, que não para de fugir! Quem quer ser alegre, que seja: do amanhã não há certeza] (Apud BURKHARDT, 379). 102 | Ronel Alberti da Rosa

SEGUNDO ATO277 ORFEU Eis que retorno a vós278, caros bosques e amados prados, beatificados pelo sol, pelo sol que transforma minhas noites em dia279. PASTORE (I) Mira, ch’a sé n’alletta l’ombra Orfeo di que’ faggi or ch’infocati raggi Febo dal ciel saetta. PASTOR I Vê, Orfeu, como a sombra Daquelas faias nos convida, Enquanto Febo280 dispara do céu Seus raios ardentes. PASTORE (II) Su quelle erbose sponde posiamci e ‘n vari modi ciascun sua voce snodi al mormorio de l’onde.

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No Ato II, o desenvolvimento vai levar a ação até a primeira perda de Eurídice. A estrutura é palindrômica: se inicia com o nascer do dia, com dança e a comemoração da perpetuação da vida através do casamento de Orfeu e Eurídice. Vai terminar com a notícia da morte da noiva e o obscurecimento dos temperamentos e da paisagem. A tocha do Himeneu torna-se, aqui, uma chama invertida, o antigo símbolo da vida que termina. Como conclusão, também Orfeu vai deixar seus amigos pastores e as paisagens felizes da Trácia, pois está determinado a descer ao Hades para buscar sua esposa. 278 Striggio teve que enfrentar, aqui, um problema dramatúrgico. Orfeu e Eurídice acabaram de se casar. Como fazer que Eurídice seja picada por uma serpente estando fora da cena, e Orfeu, em cena, receba o relato de uma mensageira contando da morte de sua amada? Não seria normal esperar-se que os recém-casados se separem, praticamente em seguida às núpcias. A solução foi fazer com que o casal saísse de cena no final do Ato I, acompanhado pelo canto dos pastores e com Orfeu retornando sozinho, no início do Ato II, para cantar e festejar com os outros habitantes da Trácia. Eurídice ficou com suas amigas, supõe-se, em outra parte do campo, onde, ao colher flores para enfeitar seus cabelos, será surpreendida pela víbora venenosa. 279 Só o controle das emoções, guiadas pela razão, é que pode transformar a treva do sofrimento e da ignorância em claridade e bem-aventurança. Assim como o bosque é sombrio, mas se alegra com a luz do sol, o próprio dia, símbolo para a duração de toda uma vida humana, é conquistado à escuridão da noite. 280 Febo, “o brilhante, o puro”, é um dos epítetos de Apolo. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 103

PASTOR II Junto àquelas frondosas margens acampemos, e cada um, à seu modo, levante sua voz, ao murmúrio das ondas281. PASTORI In questo prato adorno ogni selvaggio nume sovente ha per costume di far lieto soggiorno. PASTORES Nesta formosa campina, todos os deuses da floresta têm amiúde o costume de fazerem alegres encontros. PASTORI Qui Pan, dio de i pastori, s’udì talor dolente rimembrar dolcemente suoi sventurati amori. PASTORES Aqui ouve-se, às vezes, Pã282, o deus dos pastores, recordando docemente seus infelizes amores283. 281

O tema predominante nas discussões da Camerata Bardi era, como descrito, a busca de uma forma de recuperar o mítico poder órfico da música, a comoção dos afetos e da matéria inerme. Uma chave para tal, acreditavam os florentinos, tinha sido fornecida pelos documentos que Lorenzo de Medici entregou, ainda no século XV, para a tradução de Marsilio Ficino. A partir de passagens da Tabula Smaragdina (Tábua de Esmeralda) de Hermes Trismegisto, e dos Hinos Órficos, supostamente compostos pelo próprio Orfeu, a antiga teoria da vibração simpática do universo foi atualizada, sempre buscando imitar a vibração dos corpos para com esses entrar em sintonia. Para comandar os riachos, seria, então, necessário imitar os murmúrios das suas ondas. 282 Pã era o deus dos pastores e dos rebanhos. Filho de Hermes e de Dríope, foi rejeitado pela mãe, quando nasceu, devido à sua monstruosidade. Pã tinha o corpo coberto de pelos e, em vez de pés, tinha cascos de bode, além de chifres na cabeça. Hermes o envolveu num couro de cabra e levou-o para o Olimpo, onde se fez a alegria dos deuses, em especial de Dioniso, que depois o incluiu nos seus cortejos. A filosofia neoplatônica viu em Pã a própria síntese personificada do paganismo, com seu aspecto zoomorfo e sua sexualidade irrefreável. 283 Pã amou em especial a deusa Selene e a ninfa Eco. Uniu-se à primeira dando-lhe como presente uma junta de bois brancos. Ambas as amadas de Pã são personagens ligadas às forças telúricas e à vida natural, Selene como a lua e Eco como o reflexo do primitivo no humano.

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Qui le Napee vezzose, (schiera sempre fiorita) con le candide dita fur viste a coglier rose. Aqui foram vistas as formosas Napéias284, em falanges sempre floridas, com os cândidos dedinhos a colher rosas285. CORO DI NINFE, PASTORI Dunque fa’ degni Orfeo, del suon de l’aurea lira questi campi ove spira aura d’odor sabeo. CORO DE NINFAS E PASTORES Então, Orfeu, faz dignos do som da áurea lira estes campos, onde a brisa sopra doces286 perfumes.

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As napeias são as ninfas telúricas propriamente ditas (Cf. BRANDÃO, II, 173). Habitam os vales e as selvas. 285 A rosa é a flor consagrada a Afrodite enquanto símbolo das forças irrefreáveis da fecundidade. Sua cor vermelha evoca o sangue derramado no Himeneu. O fato de Striggio descrever em seu poema ninfas colhendo rosas acentua a ligação desses seres com a atividade telúrica geradora, como representantes da própria Gea enquanto matriz criadora de todos os seres e coisas (ver BRANDÃO, II, 172). 286 O adjetivo sabeo do original italiano se refere à terra de Sabá (literalmente: sabeu), atestando uma ligação da imagem utópica de um país do Oriente, distante e maravilhoso citado no Antigo Testamento com o afã de, através da música, recuperar aquela bem-aventurança originária. Preferimos, para melhor compreensão, traduzir por doces perfumes. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 105

ORFEO Vi ricorda, o boschi ombrosi, de’ miei lunghi aspri tormenti, quando i sassi a’ miei lamenti rispondean, fatti pietosi? ORFEU Recordais, ó bosques sombreados, meus longos e ásperos tormentos287, quando as pedras, tomadas de piedade, respondiam meus lamentos?288 Dite, allor non vi sembrai più d’ogni altro sconsolato? Or fortuna ha stil cangiato ed ha volti in festa i guai. Dizei: eu não vos parecia então ser o mais desconsolado dos mortais? Agora, a Fortuna289 mudou de rumo e transformou em festa os meus ais.

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Orfeu dá início, aqui, a uma canção em quatro estrofes que resume e concentra os sentimentos ambivalentes apresentados até agora nos Atos I e II, a tristeza passada e a alegria do presente. A primeira estrofe é toda focada na melancolia e no sofrimento passados, porém, a partir da próxima estrofe, serão sempre apresentados passado e presente de forma contrastante. 288 As respostas das pedras aos lamentos de Orfeu remetem à ninfa Eco e ao desencontro que sua aparição desvela: Orfeu chora de dor, mas a resposta, naturalmente, chega sempre depois do seu pranto, sendo que esse que nunca consegue presentificar-se como o semideus anseia. Conforme Brandão (I, 302), o pranteador e seu eco se encontram, mas não se resolvem; mais ainda, se separam. Desse encontro/ desencontro resta a imagem de uma discórdia e de uma tragédia: a realidade do movimento psicológico da personalidade individual e da cultura. 289 O sincretismo cultural de Striggio coloca lado a lado personagens da mitologia grega, romana e antroponímios residuais da Idade Média, como a Fortuna controladora dos destinos humanos: um problema teológico, sem dúvida, pois como imaginar que Deus e a Divina Providência deixariam a criação à mercê de um demônio que confunde, embaralha os destinos e tortura os homens sem ter deles a mínima piedade? A figura da Fortuna, assim, vai contra um dos dogmas católicos mais importantes, que é o do livre-arbítrio. Pico já tinha se expressado, no seu Discurso sobre a dignidade do homem que este foi justamente assim criado para que pudesse, de acordo com seus atos, ascender aos astros ou afundar na animalidade. Dante, no Purgatório, faz uma espécie de compromisso, conciliando a vontade humana com as eternas e perfeitas leis que regem o universo criado por um Deus infinitamente bondoso. No Canto XVI, o personagem Marco Lombardo diz que “Os astros dão o primeiro impulso à vossa ação, mas também a luz vos é dada, iluminando o bem e o mal, e o livre-arbítrio, que, após batalha inicial com os astros, tudo vence, se alimentado corretamente”. 106 | Ronel Alberti da Rosa

Vissi già mesto e dolente, or gioisco e quegli affanni che sofferti ho per tant’anni fan più caro il ben presente. Eu vivia então triste e dolente, mas hoje sou alegre, e aqueles afãs que sofri por tantos anos fazem tanto mais precioso o bem presente. Sol per te, bella Euridice, benedico il mio tormento, dopo ‘l duol vie più contento, dopo il mal vie più felice. Só por ti, bela Eurídice, bendigo meu sofrimento290, depois da dor vem o contentamento, depois do mal vivemos mais felizes291. PASTORE (I) Mira, deh mira, Orfeo, che d’ogni intorno ride il bosco e ride il prato, segui pur col plettro aurato d’addolcir l’aria in sì beato giorno. PASTOR I Olha, ah olha, Orfeu, em volta de ti, Ri o bosque e ri o campo292, Segue pois [tocando] com o plectro dourado293, Adoçando o ar deste dia tão feliz.

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A quarta e última stanza justifica o porquê do cantar as dores passadas: o prêmio, a mão da amada Eurídice, é tão grande que Orfeu chega a bendizer o sofrimento pelo qual passou. Ao mesmo tempo, esse momento de maior alegria carrega com mais vigor o momento imediatamente posterior, que é o anúncio da morte de Eurídice. 291 O ensinamento do verso, de que “vivemos mais felizes depois de experimentar o mal”, se inverterá dolorosamente a partir da morte de Eurídice, pois a forçosa conclusão é que também se sofre mais depois de ter-se experimentado a felicidade. 292 O poder mágico de Orfeu transmite sua alegria à natureza, que vibra por simpatia. De forma correspondente, a dor que o atingirá derrubará o ânimo de todos os seres vivos; até a noite cairá de repente, acusando o golpe da repentina morte da jovem esposa do cantor. 293 A lira podia ser tocada apenas com os dedos, com a ajuda de um plectro (aqui um plectro de ouro, já que o ouro é um atributo de Apolo, por sua cor e pelo seu brilho) ou com os dedos de uma mão e com o plectro em outra (REIS PEREIRA). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 107

MESSAGGIERA Ahi caso acerbo! ahi fato empio e crudele! ahi stelle ingiuriose! ahi cielo avaro! MENSAGEIRA294 Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel! Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro! PASTORE (I) Qual suon dolente il lieto dì perturba? PASTOR I Que som dolente perturba o alegre dia? MESSAGGIERA Lassa, dunque debb’io, mentre Orfeo con sue note il ciel consola con le parole mie passargli il core? MENSAGEIRA Infeliz de mim, enquanto Orfeu alegra o céu com sua música, devo trespassar-lhe o coração com minhas palavras? PASTORE (I) Questa è Silvia gentile, dolcissima compagna de la bella Euridice; o quanto è in vista dolorosa! or che fia? Deh, sommi dèi, non torcete da noi benigni il guardo. PASTOR I Esta é a delicada Silvia295, dulcíssima companheira da bela Eurídice; oh, quanto é dolorido seu olhar! O que aconteceu? Ai, deuses poderosos, não afasteis vosso olhar bondoso de nós. 294

A entrada da Mensageira é um dos momentos mais expressivos de toda a história da ópera. Seus primeiros dois versos vão se transformar em um refrão que se repetirá por toda a cena, cantado por várias personagens e culminando no comentário do coro. Nas Istitutioni Harmoniche de Zarlino, que tinha sido professor de Vincenzo Galileu antes de frequentar a Camerata Fiorentina, anota que o modo hipoeólio, no qual Monteverdi escreve a narrativa da Mensageira, é “adequado para expressar tristeza, lágrimas, solidão, calamidades e todo tipo de desgraça” (apud WHENHAM, 55). 295 Ninfa da linhagem de Hércules. 108 | Ronel Alberti da Rosa

MESSAGGIERA Pastor, lasciate il canto, ch’ogni nostra allegrezza in doglia è volta. MENSAGEIRA Pastor, interrompe o canto, pois toda nossa alegria se transformou em dor. ORFEO Donde vieni? Ove vai? Ninfa, che porti? ORFEU De onde vens? Para onde vais? Ninfa, que [notícia] trazes? MESSAGGIERA A te ne vengo, Orfeo, messaggiera infelice di caso più infelice e più funesto! La tua bella Euridice... La tua diletta sposa è morta. MENSAGEIRA A ti venho, Orfeu, mensageira infeliz da mais infeliz e funesta notícia! A tua bela Eurídice... a tua amada esposa está morta. ORFEO Ohimè che odo? Ohimè. ORFEU Ai de mim, que ouço? Ai de mim. MESSAGGIERA In un fiorito prato con l’altre sue compagne, giva cogliendo fiori per farne una ghirlanda a le tue chiome, quando angue insidioso, ch’era fra l’erbe ascoso, le punse un piè con velenoso dente: ed ecco immantinente

A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 109

scolorirsi il bel viso e ne’suoi lumi sparir que’ lampi, ond’ella al sol fea scorno. MENSAGEIRA Em um prado florido, com suas outras amigas, ia colhendo flores para fazer uma grinalda em seus cabelos; foi quando uma serpente insidiosa, que estava escondida entre a folhagem, mordeu-lhe o pé com a presa envenenada296: no mesmo instante empalideceu o belo rosto, e de seus olhos desapareceu o brilho que rivalizava com o sol297. Allor noi tutte sbigottite e meste le fummo intorno, richiamar tentando gli spirti in lei smarriti con l’onda fresca e coi possenti carmi; ma nulla valse, ahi lassa! ch’ella i languidi lumi alquanto aprendo, e te chiamando Orfeo, dopo un grave sospiro spirò fra queste braccia, ed io rimasi pieno il cor di pietade e di spavento.

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A questão do mal enquanto categoria merece, neste ponto, atenção: para os gregos antigos, não havia um mal absoluto. A Moira, o destino, escolhia aleatoriamente os que haveriam de perecer ou triunfar. Assim o é nas tragédias do período ático: elas são tragédias justamente por não haver vilões malvados e culpados. Não há culpa, há meramente a tragédia de existir e estar à mercê das Parcas, que tecem, medem e cortam o fio da humana existência. Desde o início do processo de dissolução da comunidade primitiva, porém, a morte passou cada vez mais a ser vista como a experiência de máxima dor, já que a dissolução da consciência individual não encontrava mais conforto na continuidade da existência comunitária. Uma serpente aparece aqui como o vetor da morte prematura e sem significado algum da jovem ninfa Eurídice. Mas a serpente também é um ser natural, ainda que, aos nossos olhos, possua reminiscências bíblicas. Ela cumpre sua natureza de picar quem pisa sobre ela, não tem mérito nem culpa. Na teoria neoplatonista do mal de Sto. Agostinho, o mal não existe, ele não passa de uma diminuição do infinito amor de Deus, que perpassa todas as coisas. O homem é que sente e vivencia essa diminuição como algo real. Mas, se Sto. Agostinho viveu na Idade Média, Baruch Espinoza, em pleno século XVII, ainda vai defender, na primeira parte da sua Ética, a relatividade do mal. Argumentando quase como um sofista grego, Espinoza explica como surgiu o humano preconceito de que existam bem e mal no mundo: é a sua condição humana que faz como que ele vivencie as coisas desta forma. 297 A graça de Apolo resplandece no rosto dos seus prediletos; a morte faz com que se apague o brilho do deus. 110 | Ronel Alberti da Rosa

Então, nós todas a rodeamos, assustadas e tristes, tentando com água fresca e com fortes orações acordar de novo seu espírito; mas tudo em vão, pobre de mim! Uma última vez ela ainda abriu seus olhos lânguidos e chamou por ti, Orfeu. Depois de um profundo suspiro, expirou nestes braços, e eu lá fiquei, o coração cheio de pena e de espanto. PASTORE (I) Ahi caso acerbo! ahi fato empio e crudele! ahi stelle ingiuriose! ahi cielo avaro! PASTOR I Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel! Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro! PASTORE (II) A l’amara novella rassembra l’infelice un muto sasso, che per troppo dolor non può dolersi. PASTOR II Depois desta amarga notícia, o infeliz parece uma pedra muda que, de tanta dor, não consegue lamentar-se. PASTORE (I) Ahi, ben avrebbe un cor di tigre o d’orsa chi non sentisse del tuo mal pietate. Privo d’ogni tuo ben, misero amante. PASTOR I Ai, só se tiver um coração de tigre ou de urso para não sentir pena do teu mal. Mísero amante, privado de toda sua felicidade. ORFEO Tu se’ morta, mia vita, ed io respiro? tu se’, tu se’ pur ita per mai più non tornare, ed io rimango?

A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 111

ORFEU Tu estás morta, minha vida, e eu respiro?298 Tu partiste de mim para nunca mais voltar, e eu permaneço?299 No, che se i versi alcuna cosa ponno n’andrò sicuro a’ più profondi abissi, e intenerito il cor del re de l’ombre meco trarròtti a riveder le stelle. Não, se versos algum poder detêm, irei, sim, aos mais profundos abismos300, e, comovendo o coração do rei das sombras, trazer-te-ei comigo para rever as estrelas301.

298

Para Orfeu, Eurídice só vive enquanto vive no mundo junto com ele. A continuação da existência em uma dimensão do além, nas trevas, não conta, não é consolo algum. A morte, aqui, é equivalente à aniquilação. Agnes Heller aponta que, já no Estoicismo e no Epicurismo antigo, o problema da inevitabilidade da morte do indivíduo tornou-se um problema central. Eis o início da morte dolorosa: enquanto o indivíduo continuava a viver na comunidade, essa dor não foi sentida. No processo de desagregação da comunidade primitiva, não há um sentimento de pertença nem de continuação da vida no todo, e a morte é cada vez mais sentida como um castigo e um sofrimento. Porém, mesmo na comunidade intacta, a morte dos outros era sentida, pois era algo que influía no significado da vida de quem ficava. Uma morte prematura, como a de Eurídice, tornava impossível viver inteiramente a vida, uma morte sem sentido significava a conclusão de uma vida sem sentido (HELLER, 90). 299 O desespero de Orfeu parece não se coadunar com a crença cristã de uma vida mais perfeita após a morte, na companhia dos santos e anjos e em bem-aventurança. Observem-se aqui sinais de um certo desvanecimento de dogmas cristãos muito centrais da doutrina. O processo de substituição, no imaginário popular, do céu dos bem-aventurados por um além-túmulo calcado na mitologia clássica, principiou com as reflexões sobre um texto clássico, o chamado “Sonho de Cipião”, do Livro VI da República de Cícero. Ali, a descrição de um céu pagão, povoado de filósofos e heróis começou a substituir o paraíso do cristianismo. O humanista Giovanni Pontano descreve em uma de suas obras como o amigo Sanazzaro recebe a visita de um morto conhecido seu. Pergunta-lhe se é verdade que são terríveis as penas do Inferno. Depois de longo silêncio, aquele responde: “O que posso dizer-te e afirmar é que nós, os apartados da vida terrena, carregamos dentro de nós o mais intenso desejo de retornar a ela” (ver BURKHARDT, 485). 300 Não apenas o amor move o intento de Orfeu, de ir ao Hades atrás da sua consorte. A categoria da lealdade, um valor importado da Idade Média, compromete-o para a vida e para a morte com o destino de Eurídice. No Renascimento, esta recebe ênfase máxima, como lemos em Heller (p. 239-40): a lealdade era sempre incondicional, e “só podia conduzir a um conflito no caso de um choque entre duas exigências de lealdade igualmente vinculativas”. 301 Striggio escreve aqui um eco para as linhas finais do Inferno de Dante. Depois de visitarem o Inferno, Dante e Virgílio saem em direção ao Purgatório e ao Céu, para “rever as estrelas”. No Inferno, na morte eterna, não há estrelas, símbolo da esperança: “Salimmo su, el primo e io secondo / tanto ch’i’ vidi de le cose belle / che porta ‘l ciel, per un pertugio tondo. / E quindi uscimmo a riveder le stelle” (DANTE: XXXIV, 136-9). 112 | Ronel Alberti da Rosa

O se ciò negherammi empio destino rimarrò teco in compagnia di morte, a dio, terra; a dio, cielo; e sole, a dio. Mas se isto me for negado por um destino ímpio, ficarei contigo, na companhia da morte302. Adeus, terra; adeus, céu e sol. Adeus! CORO DI NINFE, PASTORI Ahi caso acerbo! ahi fato empio e crudele! ahi stelle ingiuriose! ahi cielo avaro! CORO DE NINFAS E PASTORES Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel! Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro! Non si fidi uom mortale di ben caduco e frale che tosto fugge, e spesso a gran salita il precipizio è presso. Não se fie o homem mortal em bem efêmero e frágil que rapidamente escapa e, muitas vezes, junto à maior das alturas, está o precipício303. MESSAGGIERA Ma io ch’in questa lingua ho portato il coltello ch’ha svenata d’Orfeo l’anima amante, odiosa a i Pastori et a le Ninfe, odiosa a me stessa, ove m’ascondo? Nottola infausta, il sole fuggirò sempre e in solitario speco menerò vita al mio dolor conforme.

302

Como observa Whenham (65), essas estrofes não são o lamento de Orfeu por Eurídice; este virá ainda, depois de perdê-la pela segunda vez, no Ato V. Aqui, Orfeu junta toda a determinação de que é capaz e jura ou resgatá-la ou com ela ficar “na companhia da morte”. 303 Aqui, mais uma vez o coro assume o papel de comentador, resumindo o ensinamento do quadro apresentado. A exortação é para que o homem não confie nas coisas passageiras deste mundo, riquezas, amores. Tudo passa. Só as coisas perenes dão satisfação perene, e essas coisas não estão ao alcance daquele que se ilude com as aparências. Da mesma forma que a acédia é um pecado, a alegria exagerada também deve ser combatida – a ataraxia é a opção do sábio. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 113

MENSAGEIRA Eu, porém, que com esta língua trouxe o punhal que golpeou a alma apaixonada de Orfeu, odiosa a ninfas e pastores304 e odiosa a mim mesma; onde posso me esconder? Infeliz ave noturna, do sol fugirei sempre305 e, em solitária caverna, levarei uma vida conforme à minha dor. PASTORI Chi ne consola, ahi lassi? O pur chi ne concede negl’occhi un vivo fonte da poter lagrimar come conviensi in questo mesto giorno, quanto più lieto già, tant’or più mesto? PASTORES Quem nos consolará, infelizes de nós? Ou então, quem nos fará brotar nos olhos uma fonte viva, para que possamos chorar como convém neste dia infeliz, que tão feliz já era, e tanto mais triste agora é?306 Oggi turbo crudele i due lumi maggiori di queste nostre selve, Euridice e Orfeo, l’una punta da l’angue, l’altro dal duol trafitto, ahi lassi, ha spenti.

304

Em poucas linhas, Striggio consegue esboçar uma personalidade própria para a ninfa Silvia. Ela sofre por ser portadora da nova, encontra-se dividida entre a urgência da notícia que trouxe e o efeito que ela terá sobre Orfeu e sobre ela mesma, já que passará a ser “odiada por ninfas e pastores”. 305 A Moira, o destino, fez com que a Mensageira ferisse o ânimo do filho de Apolo. Para expiar o episódio, ela se retirará do convívio solar, passando a viver como as aves da noite. 306 Da mesma forma que Orfeu, os pastores também se alegravam desmedidamente – eles desrespeitaram a justa medida, o mesotes, o meio-termo propugnado por Aristóteles na sua Ética. Em consequência disso, tanto mais profundo será o seu pesar. 114 | Ronel Alberti da Rosa

Hoje, uma tormenta cruel apagou as duas maiores luzes307 deste nosso bosque, Orfeu e Eurídice, ela, picada por uma víbora, ele, trespassado pela dor, ai de nós, infelizes308. CORO DI NINFE, PASTORI Ahi caso acerbo! ahi fato empio e crudele! ahi stelle ingiuriose! ahi cielo avaro! CORO DE NINFAS E PASTORES Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel! Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro! PASTORI Ma dove, ah, dove or sono de la misera Ninfa le belle e fredde membra, che per suo degno albergo quella bell’alma elesse ch’oggi è partita in su ‘l fiorir de’ giorni? PASTORES Mas onde, ai, onde estão agora os belos e frios membros da mísera ninfa? Onde foi buscar morada digna309 aquela bela alma que hoje partiu, na flor dos seus dias?

307

Orfeu e Eurídice são benquistos por Apolo; nessa condição, iluminam o bosque, as campinas e os que com eles convivem. Os amados do deus Sol são uma extensão da sua luminosidade. 308 Assim frágeis são matéria e ânimo, quando não guiados pelo intelecto: a matéria perece, como Eurídice picada pela víbora. E o ânimo se abate, como Orfeu, que se alegrava sem meditar na efemeridade das coisas. 309 O fato de os pastores perguntarem pela morada da alma de Eurídice é reminiscência da cultura órfica, quando as almas desencarnadas passam a habitar os Campos Elíseos ou o Hades. A transposição para o âmbito do Renascimento cristão é direta, quando as almas vão para o Inferno, para o Purgatório ou diretamente ao Paraíso. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 115

Andiam Pastori, andiamo pietosi a ritrovarle, e di lagrime amare il dovuto tributo per noi si paghi almeno al corpo esangue. Vamos, pastores, vamos, piedosos, procurá-la e, de lágrimas amargas, pagar ao menos o devido tributo ao corpo exangüe310. CORO DI NINFE, PASTORI Ahi caso acerbo! ahi fato empio e crudele! ahi stelle ingiuriose! ahi cielo avaro! CORO DE NINFAS E PASTORES Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel! Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro! PASTORI Ma qual funebre pompa degna fia d’Euridice? Portino il gran feretro le Grazie in veste nera, e con le lor chiome sparse le Muse sconsolate l’accompagnin cantando con flebil voce i suoi passati pregi.

310

O cumprimento dos rituais fúnebres era condição indispensável para que o morto pudesse viajar na barca de Caronte e chegar ao seu destino, no mundo das sombras. Daí o terrível anátema em que consistia a proibição do tirano Creonte, na Antígona de Sófocles, de deixar insepultos, sem que se cumprissem as “cerimônias prescritas” (Antígona, 247), os cadáveres dos traidores de Tebas. 116 | Ronel Alberti da Rosa

PASTORES Mas qual pompa fúnebre pode ser digna de Eurídice? As Graças311, em trajes negros312, carreguem o grande féretro, e, com os cabelos desgrenhados, as Musas, inconsoláveis, acompanhem, cantando com voz fraca as suas antigas orações. Di nubi il ciel si cinga e con oscura pioggia pianga sopra il sepolcro: e poi ch’egli avrà pianto, languida luce spieghi, e lampada funesta sia di sì nobil tomba il sol dolente. Que o céu se vista de nuvens e, com chuva escura, chore313 sobre o sepulcro: e, depois de ele ter chorado, reflita uma luz baça; qual lâmpada funesta314, seja de tão nobre tumba o sol dolente. 311

A imagem das Graças carregando o féretro atesta o encerramento do ciclo vital. Na versão neoplatônica renascentista, as três Graças Voluptas, Pulchritudo e Castitas (Luxúria, Beleza e Castidade) são uma manifestação trinitária da deusa Afrodite. Pico della Mirandola escreve “L’unità di Venere si manifesta nella trinità delle Grazie”: “A unidade de Vênus se manifesta na trindade das Graças” (apud WIND). 312 O fato de as Graças se apresentarem em trajes negros também é relevante. Nos Fasti de Ovídio lemos que as Graças é que são responsáveis pela chegada das cores, na forma das flores que brotam na primavera. “Fino allora la terra era stata di un solo colore”: “Até então, a terra havia sido de uma só cor”. Como representantes tripartidas da deusa Afrodite, as Graças agem junto à mãe Terra, Gea, para fecundar, na primavera, o mundo adormecido. Ao se apresentarem enlutadas e vestidas de preto, é iminente que o ciclo da vida corre perigo de se interromper. 313 São numerosos os exemplos em que Striggio quer deixar claro que a Natureza participa da sorte dos mortais, dividindo com eles as emoções. Imagens como a chuva para o pranto das nuvens ou uma tormenta cruel que apagou a vida da Eurídice e a alegria de Orfeu são características do sincretismo Neoplatônico renascentista, em que a natureza não aparece mais excluída das virtudes que levam ao conhecimento. 314 Depois de afirmar que a chama da vida se apagou, Striggio volta atrás e descreve a tumba de Eurídice como uma lâmpada esmaecida e funesta. Para os vivos, o sol verdadeiro; para os mortos, apenas um reflexo baço – na religião órfica, a alma não morre, fica à espera de uma nova encarnação, no ciclo de existências. Porém, o Orfismo, enquanto religião soteriológica, isto é, que visava a salvação da parcela imortal do homem, que é a alma, buscava uma libertação a mais rápida possível dos sofrimentos do mundo. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 117

CORO DI NINFE, PASTORI Ahi caso acerbo! ahi fato empio e crudele! ahi stelle ingiuriose! ahi cielo avaro! CORO DE NINFAS E PASTORES Ai, acontecimento amargo! Ai, destino ímpio e cruel! Ai, estrelas injuriosas! Ai, céu avaro!

ATTO III ORFEO Scorto da te, mio nume, Speranza unico bene de gli afflitti mortali, omai son giunto a questi regni tenebrosi e mesti ove raggio di sol giammai non giunse. Tu, mia compagna e duce, in così strane e sconosciute vie reggesti il passo debile e tremante, ond’oggi ancora spero di riveder quelle beate luci che sol a gli occhi miei portano il giorno. TERCEIRO ATO315 ORFEU Escoltado316 por ti, minha deusa

315

O Ato III assinala o clímax da obra. Em correspondência com a 3ª estrofe do Prólogo, que alude à harmonia que rege o Universo, esse ato vai assinalar a exibição máxima do poder de Orfeu. Muito além do drama terrestre, trava-se aqui uma batalha pelo império da Harmonia. O poder da música entra em disputa contra as leis que regem o Hades. O Ato III está construído por Striggio a partir de uma série de “affetti”, de forma a ressaltar o seu cerne, que é a ária Possente spirto, onde Orfeu lança os seus poderes mágicos para que ajam no mundo dos mortos. São sete (o número de Apolo) os degraus de “affetti” atravessados, que podem ser assim assinalados: 1) Esperança; => 2) Desespero; => 3) Insensibilidade; => 4) Poder mágico; 5) Insensibilidade; 6) Desespero; 7) Esperança. Toda a construção converge para a demonstração do poder mágico de Orfeu, na verdade uma manifestação da divindade de Apolo. 316 O primeiro degrau é dedicado ao afeto esperança. Nesse momento, depois de um número instrumental escrito por Monteverdi, a Sinfonia III, Orfeu se apresenta chegando ao limiar do mundo dos mortos, e acompanhado pela deusa Esperança. Entenda-se aqui “sinfonia” não no sentido que recebeu no período clássico vienense, de obra musical com dois temas contrastantes, desenvolvimento, modulações e conclusão, mas na acepção originária, de conjunto de sons que combiam (bem), portanto uma peça instrumental eufônica e harmoniosa. 118 | Ronel Alberti da Rosa

Esperança317, único bem dos aflitos mortais, chego agora ao reino triste e tenebroso onde nunca alcança o raio de sol. Tu, minha companheira e minha guia por tão estranhas e ignotas vias, dirigiste meus passos fracos e trêmulos para que hoje ainda, espero, possa rever aqueles luzeiros felizes318, os únicos que podem trazer para os meus olhos o dia. SPERANZA Ecco l’atra palude, ecco il nocchiero che trae gli spirti ignudi a l’altra sponda, dov’ha Pluton de l’ombre il vasto impero. Oltra quel nero stagno, oltra quel fiume, in quei campi di pianto e di dolore, destin crudele ogni tuo ben t’asconde. Or d’uopo è d’un gran core e d’un bel canto: io fin qui t’ho condotto, or più non lice teco venir, ch’amara legge il vieta, legge scritta co ‘l ferro in duro sasso de l’ima reggia in su l’orribil soglia, che in queste note il fiero senso esprime: «Lasciate ogni speranza o voi ch’entrate.» Dunque, se stabilito hai pur nel core di porre il piè ne la città dolente, da te me n’ fuggo e torno a l’usato soggiorno.

317

Na Iconologia de Ripa (I, 353), a Esperança é descrita da seguinte forma: “Mulher vestida de verde que leva um lírio na mão. A flor simboliza a Esperança, pois vem a ser como a aspiração a algum bem, como, ao contrário, o temor consiste em uma comoção do ânimo por suspeitar de algum mal. Assim, nós, vendo as flores, costumamos esperar pelos frutos, os quais, passados alguns dias, nos concede a natureza, se não defraudar nossa esperança. Leve-se em consideração, além disso, que, se todas as flores alentam a esperança em nossos corações, ainda mais o faz o lírio, pois é a flor mais suave de todas [...]”. 318 Variando os versos de Dante, Striggio descreve Orfeu como alguém para o qual as únicas estrelas – os únicos luzeiros – que indicam estar saindo do Inferno são os olhos da sua amada Eurídice. Dante saúda as estrelas ao, efetivamente, sair do Inferno, e as estrelas indicam-lhe estar de volta ao universo beato criado por Deus. Já Orfeu está prestes a penetrar no Hades, e as estrelas – os luzeiros – a que se refere são os olhos de Eurídice. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 119

ESPERANÇA Eis o pântano escuro319, eis o barqueiro320 que leva as almas nuas para a outra margem321, lá onde Plutão322 tem seu vasto323 império de sombras. Além deste pântano negro, depois do rio324, naqueles campos325 de pranto e de dor326 319

Quando Striggio fala de pântano escuro, está se referindo a apenas um rio infernal, o Aqueronte, que, possivelmente, é o único rio original que os mortos deviam cruzar. Na Grécia clássica, dependendo da época, havia menção a um número diverso de rios a serem atravessados pelas almas. Como assinala Brandão (I, 364), os quatro rios infernais Estige, Cócito, Aqueronte e Piriflegetonte já estão presentes em Homero: “Circe, quem nos piloteará nesse caminho? [...] Odisseu, [...] não te preocupes com piloto. [...] Teus próprios pés te levarão ao negro paço de Hades. Lá o Rio de Fogo (Piriflegetonte) e o Cocito, um braço das águas do Estige, deságuam no Aqueronte” (Odisséia, X, 501-514). Porém, até o séc. V a.C. com Ésquilo, não exercem influência sobre o imaginário helênico acerca do Hades (ver a descrição de Virgílio, na Eneida, VI, 438-9). 320 O barqueiro é Caronte, um espírito do mundo infernal cuja sua função era transportar as almas que tivessem recebido sepultura até a outra margem, ao Hades propriamente dito. Isto mediante o pagamento de uma moeda, ou óbolo. Segundo Brandão (I, 364), a pouca freqüência com que se fala na travessia dos rios infernais relaciona-se, provavelmente, com a ausência do “barqueiro do inferno”. Caronte e sua barca aparecem pela primeira vez na segunda metade do séc. V a.C., e o óbolo com que se pagava a travessia é citado pela primeira vez na comédia As rãs de Aristófanes. 321 Ao que parece (ver BRANDÃO, I, 364), Caronte não rema, ele apenas dirige a barca. Quem rema são as almas. 322 Plutão, “o rico”, era um duplo eufemístico de Hades, o deus dos mortos, que designa tanto os infernos quanto seu rei. Plutão significa “o rico”, tanto com referência a seus incontáveis hóspedes, quanto às intermináveis riquezas que se encontram no seio da terra. Filho de Cronos e de Réia, foi devorado pelo seu pai Cronos junto com os seus irmãos, excetuando-se apenas Zeus. Salvo por este último, participou da luta contra os Titãs. Terminados os combates, o cosmos foi dividido em três grandes impérios, cabendo a Zeus o Olimpo, a Poseidon os mares e a Hades, ou Plutão, o imenso império situado nas entranhas da terra. 323 O reino de Plutão é tão grande que as almas e as divindades que o habitavam cobriam uma porção do mundo tão vasta quanto as outras duas em que residiam, respectivamente, os vivos e os deuses imortais (Cf. BRANDÃO, I, 363). Em Hesíodo: “Vasto abismo, nem ao termo de um ano atingiria o solo quem por suas portas entrasse...” (Teogonia, 740-1). 324 O Hades encontra-se abaixo da superfície da terra, mas em uma grande profundidade. Hesíodo, na Teogonia (721-5) dá uma descrição da distância em que se localiza o Tártaro: “Nove noites e dias uma bigorna de bronze cai do céu e só no décimo atinge a terra e, caindo da terra, o Tártaro nevoento. E nove noites e dias uma bigorna de bronze cai da terra e só no décimo atinge o Tártaro”. 325 Para os órficos, isto é, os gregos que festejavam os mistérios de Orfeu, o Hades foi subdividido em três regiões diferentes entre si: Tártaro era a mais profunda, abissal e trevosa; Érebo a do meio e os Campos Elíseos a mais alta e nobre. Como assinala Brandão (I, 375), os dois níveis mais profundos eram destinados aos castigos que se infringiam às almas, que lá nas profundezas purgavam suas penas. Os Campos Elíseos eram destinados àqueles que, tendo passado já pelos horrores dos outros dois estágios, aguardavam o retorno. 326 Os castigos para as almas faltosas são descritos por Platão: “Mergulhados no lodaçal imundo, serlhes-á infligido um suplício apropriado à poluição moral” (República, I, 363d); e por Aristófanes: “Verás, depois, um lodaçal imundo e submersos nele todos os que faltaram ao dever da hospitalidade [...] os que espancaram a própria mãe, os que esbofetearam o próprio pai ou proferiram um falso juramento” (As rãs, 145ss) e pelas pinturas de Polignoto (V a.C.) em Delfos: um parricida estrangulado pelo próprio pai, um ladrão sacrílego obrigado a tomar veneno e um demônio sentado sobre um abutre roendo a carne dos mortos (BRANDÃO, I, 378). 120 | Ronel Alberti da Rosa

um destino cruel esconde teu único bem. Agora, são necessários um grande coração327 e um belo canto328: até aqui te trouxe, mas não posso ir adiante contigo, pois que uma amarga lei me proíbe. Lei escrita a ferro na pedra dura do portão329 real desta soleira de horrores, que exprime nestas palavras seu cruel sentido: “Vós que aqui entrais, deixai toda esperança”330. Então, se decidiste em teu coração pôr os pés na cidade dolente, aqui te abandono e volto ao meu lugar de costume331. ORFEO Dove, ah, dove te n’ vai, unico del mio cor dolce conforto? Poiché non lunge omai del mio lungo cammin si scopre il porto, perché ti parti e m’abbandoni, ahi lasso, su ‘l periglioso passo? Qual bene or più m’avanza se fuggi tu, dolcissima Speranza? 327

O grande coração a que se refere a Esperança é a categoria da coragem, um conceito grego clássico, que nasce do enfrentamento com as adversidades. Orfeu, para suplantar a máxima injúria que representa a morte prematura e sem sentido da esposa amada, terá que reunir também o máximo de coragem. Já no estoicismo e no epicurismo helenísticos, a coragem é tudo o que se opõe à injustiça – às tiranias – à doença, a pobreza e o desamparo (ver HELLER, 244). Na época clássica, porém, Aristóteles, com a sua norma do mesotes, o meio-termo, não teria considerado Orfeu corajoso, e sim um louco. Corajoso é apenas aquele que enfrenta o que sabe que tem condições de vencer. É um louco quem enfrenta desarmado um leão e também quem vai tentar dobrar os desígnios do Hades, as leis que separam os vivos dos mortos, sem estar para isso armado – Orfeu não estava, pois vimos que suas emoções o traíram no momento decisivo. A coragem vinha já da Idade Média enquanto categoria essencial para o espírito da cavalaria, e instalou-se no imaginário popular – mesmo dos que não eram cavaleiros –, pois adequava-se muito à situação do homem italiano no tempo de Striggio e Monteverdi (e mesmo antes, desde Maquiavel), na condição de fortaleza contra as injustiças do mundo. 328 O belo canto confirmará Orfeu como digno filho de Apolo. Esse consiste no emprego de todas as técnicas de que dispõe a música, tanto a antiga quanto a moderna. Só juntas essas três maneiras de cantar (o cantar parsaggiato, o cantar sodo e o cantar d’affetto) comporão a grande arte de sedução pela música que é o dom de Orfeu. Com essa, como diz-lhe a Esperança, ele talvez terá condições de convencer Caronte. Striggio concede, aqui, a chance para Monteverdi promover a grande síntese dos estilos, transcendendo a polêmica do tratamento da dissonância. 329 Em Hesíodo: “Aí resplendentes portas e umbral de bronze inabalável...” (Teogonia, 811-2). 330 Mais uma citação de Dante, a inscrição na porta do Inferno: Divina Comédia, Inferno, III, 51-3. 331 A Esperança não pode entrar na cidade dos mortos. Orfeu, que ainda vive, quer retê-la como companheira, mas não lhe é permitido. Ele tem que entrar sem esperança no Hades. Há um paralelo com Virgílio, que, na Divina Comédia, acompanha Dante ao Inferno e ao Purgatório, mas não pode ser seu guia no Paraíso, pois é um romano, portanto um pagão não batizado. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 121

ORFEU Para onde, ai, para onde vais, único doce conforto do meu coração?332 Agora que descobre-se o porto de minha longa viagem, porque partes e me abandonas, pobre de mim, neste transe perigoso? Que bem ainda me restará se foges tu, dulcíssima Esperança?333 CARONTE O tu ch’innanzi morte a queste rive temerato te n’ vieni, arresta i passi; solcar quest’onde ad uom mortal non dassi, né può coi morti albergo aver chi vive. CARONTE334 Ó tu, atrevido, que, antes de morrer, destas margens te aproximas, detém teus passos; a nenhum homem mortal é dado sulcar estas ondas335, e nem pode quem vive habitar entre os mortos.

332

O Orfeu de Striggio desespera cedo demais, e não parece dar fé à análise de Maquiavel sobre a esperança. No Livro II dos Discorsi, Maquiavel expressa a proporção que deve formar a aliança de uma compreensão objetiva da realidade do mundo e a esperança em uma virada do destino: “Afirmo mais uma vez como uma verdade de que toda a história é testemunha que os homens podem apoiar o se destino mas não se lhe podem opor; que podem atuar de acordo com os ditames deste mas não os podem infringir. Nunca devem, porém, desistir, porque há sempre esperança, embora não conheçam o fim e se desloquem em direção a este ao longo de caminhos que se cruzam e ainda não estão explorados; e dado que existe a esperança, não devem desesperar, seja o que for que o destino lhes traga ou em que situações se encontrem” (MACHIAVELLI, II, 29). 333 O segundo afeto proposto por Striggio para o Ato III: o desespero, quando a Esperança abandona Orfeu. 334 Caronte é o portador do próximo afeto, a insensibilidade. Dramaturgicamente, a aparição deste personagem aqui confirma a linha dantesca que Striggio vinha seguindo em seu roteiro e interpõe um elemento de oposição à entrada de Orfeu no Hades. 335 Os únicos homens vivos que conseguiram andar na barca de Caronte foram o troiano Enéias, que trouxe-lhe um ramo de ouro colhido da árvore sagrada de Core (Proserpina), e o semideus Hércules, que o forçou a transportá-lo à força de golpes de sua clava. Virgílio também alude à proibição de Caronte transportar quem não tenha recebido as unções fúnebres em sua barca: “Toda esta gente que vês ficou desassistida e insepulta. Aquele barqueiro é Caronte. Os que ele leva, são os que receberam sepultura. Não é dado transportá-los destas horríveis margens e através destas enlouquecidas correntes, antes que seus ossos tenham conhecido o descanso de uma morada” (Eneida VI, 326). 122 | Ronel Alberti da Rosa

Che? vuoi forse nemico al mio signore, Cerbero trar de le tartaree porte? O rapir brami sua cara consorte, d’impudico desire acceso il core? Que? És, talvez, inimigo do meu Senhor, e queres levar Cérbero336 dos portões do Tártaro?337 Ou ambicionas raptar sua amada esposa338, o coração inflamado de impudico desejo? Pon freno al folle ardir, ch’entr’al mio legno non accorrò più mai corporea salma, sì de gli antichi oltraggi ancora ne l’alma serbo acerba memoria e giusto sdegno. Põe freio à louca audácia, que no meu lenho jamais acolherei outra vez corpóreo despojo, pois das antigos ultrajes ainda guardo na alma amarga lembrança e justa ira339.

336

Cérbero é o cão guardião da entrada do Hades, com três cabeças, cauda de dragão e pescoço e corpo eriçado de serpentes. Postado no portão, não permitia que nenhum vivo entrasse e, principalmente, que os mortos saíssem. Em Hesíodo: “Terrível cão guarda-lhe a frente não piedoso, tem maligna arte: aos que entram faz festa com o rabo e ambas as orelhas, sair de novo não deixa: à espreita devora que surpreende a sair das portas” (Teogonia, 769-773). Cérbero (Cf. BRANDÃO, 202) representa o terror da morte, simboliza o próprio Hades e o inferno interior de cada um. Observe-se que Hércules, em seu 12º trabalho, venceu-o usando apenas a força dos seus braços (Plutão, naquela ocasião, concordou que o levasse se, para o vencer, não usasse nenhuma arma) e Orfeu, no mito original, adormeceu-o com o som da sua lira mágica. Tal parece confirmar a interpretação neoplatônica que via em Cérbero a encarnação do demônio interior de cada homem. Para vencê-lo, cada um só pode contar consigo mesmo. 337 Alusão a Hércules, que, para executar o seu 12º e último trabalho, raptou Cérbero no Hades para levá-lo ao rei Euristeu. 338 O verso reporta-se à tentativa de Pirítoo e Teseu, que penetraram no Hades para tentar raptar Proserpina, a esposa de Plutão. Teseu, graças à amizade de Hércules, conseguiu escapar, mas Pirítoo lá ficou, eternamente sentado em uma cadeira – quem desfruta da hospitalidade no Hades nunca mais pode deixá-lo. 339 Ainda que tenha sido obrigado por Hércules a transportá-lo à força, Caronte não escapou ao castigo de Plutão, tendo que passar um ano inteiro acorrentado, de onde sua desconfiança e ira para com todo vivente que mais uma vez tente passar para a outra margem. É interessante, aqui, comparar o trecho com a Eneida VI, em que Caronte interpela Enéias, quando este desceu ao Hades: “Quem quer que sejas, tu que, armado, a nossas correntes te diriges, fala! Diz, daí de onde estás, a que vens, e teu passo detém. Esta é a morada das sombras, do sonho, da letárgica noite. É proibido transportar sobre a quilha estígia os corpos viventes. Não saí eu sem castigo por ter acolhido nesta lagoa, quando aqui vieram, Alcides [Hércules], Teseu e Pirítoo, ainda que fossem filhos de deuses e invictos” (Eneida VI, 387). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 123

ORFEO Possente spirto e formidabil nume, senza cui far passaggio a l’altra riva alma da corpo sciolta in van presume, non viv’io no, che poi di vita è priva mia cara sposa, il cor non è più meco, e senza cor com’esser può ch’io viva? ORFEU340 Poderoso espírito341 e terrível divindade, sem a qual, as almas libertas do corpo em vão presumem passar à outra margem: eu não estou vivo não, pois, desde que perdeu a vida minha querida esposa, o coração já não o tenho comigo342; e, sem coração, como pode ser que eu ainda viva? A lei volt’ho il cammin per l’aër cieco, a l’inferno non già, ch’ovunque stassi tanta bellezza il paradiso ha seco. O caminho até ela passa [quando muito] por tenebrosa atmosfera, não pelo Inferno, pois qualquer lugar que abrigue tamanha beleza guarda, consigo, o Paraíso. Orfeo son io che d’Euridice i passi seguo per queste tenebrose arene, ove già mai per uom mortal non vassi. O de le luci mie luci serene;

340

Antes de Orfeu começar a cantar, o ambiente é preparado pela aura musical de Apolo: a orquestra toca um número puramente instrumental, a Sinfonia IV, que reaparecerá sempre que o poder do deus Sol se manifestar através da lira de Orfeu (na realidade, de Apolo), e, também, quando da descida do deus em uma nuvem, no início do Ato V. Monteverdi confiou-a aos instrumentos de arco com acompanhamento de um organo di legno, um órgão positivo com registro de flautas de madeira. Segundo as instruções do compositor, é para ser tocada muito suavemente: “Questa Sinfo[nia] si sonò pian piano [...].” (apud Whenham, 183). 341 Os versos que Orfeu começa a cantar agora constituem o centro de todo o poema de Striggio. Monteverdi, consequentemente, cercou-o de números instrumentais e de acompanhamento que ressaltaram ainda mais seu caráter simbólico como centro simétrico da organização dos afetos no Ato III, enquanto expressão do poder mágico de Orfeu e, por extensão, da ópera inteira. Para convencer Caronte, Orfeu terá que conjurar todos os poderes da música – esta será a sua maior prova. Aqui, a música de Monteverdi sintetiza o que tinha de técnica de canto ao dispor em sua época. 342 Para argumentar com Caronte, Orfeu faz eco, aqui, aos versos proferidos por Eurídice na festa do Himeneu, “meu coração já não o guardo comigo, está sempre contigo, em companhia do Amor”: ele também não tem consigo o coração, diz, pois Eurídice é que era o seu coração, e, tendo partido, ele é um homem que não pode ser considerado vivo. Portanto, tem direito a ser transportado à outra margem. 124 | Ronel Alberti da Rosa

s’un vostro sguardo può tornarmi in vita, ahi, chi nega il conforto a le mie pene? Eu sou Orfeu, que os passos de Eurídice sigo por estas tenebrosas areias343. onde mortal algum jamais esteve. Ó luz serena das minhas luzes, se um olhar teu pode devolver-me à vida, ai, quem recusa o consolo às minhas penas? Sol tu, nobile dio, puoi darmi aita, né temer déi che sopra un’aurea cetra sol di corde soavi armo le dita contra cui rigida alma invan s’impetra. Tu apenas, nobre Deus, podes me ajudar. Nada tens a temer, afora uma cítara dourada; apenas com cordas suaves estou armado. Contra elas, até a alma mais empedernida em vão resiste344. CARONTE Ben mi lusinga alquanto dilettandomi il core, sconsolato cantore, il tuo pianto e ‘l tuo canto.

343

Virgílio descreve, na Eneida, como o Aqueronte vomita água turva misturada com areia: “Hinc via Tartarei quae fert Acherontis ad undas. / Turbidas hinc caeno, vastaque voragine gurges / Aestuat, atque omnem Cocyti eructat harenam”: “Daqui começa o caminho que leva às ondas do tartáreo Aqueronte. / Aqui ferve um escuro turbilhão de lodaçal e impetuoso redemoinho, / e vomita toda a areia do Cocito” (Eneida VI). 344 A cítara dourada a que Striggio alude é, por extensão, metáfora de todos os instrumentos musicais. Assim também o entendeu Monteverdi, ao musicar estes versos: nas estrofes 1 e 4, o canto de Orfeu é acompanhado por 2 violinos (a lira da braccia renascentista, muito comum na iconografia dos séculos XVI e XVII); na estrofe 2, por 2 cornetti, e na estrofe 3 pela harpa (também própria de Orfeu, por ser aparentada com a cítara e a lira gregas, enquanto instrumento de cordas suspensas pinçadas). Como observa Whenham (p. 68 e ss.), os violinos e a harpa podem ser relacionados com a iconografia de Orfeu e sua lira. Já os cornetti não. Seria possível, contudo, ver a lira de Orfeu no chitarrone que acompanha todos esses versos, sendo que os instrumentos obligatos, ou solistas (os violinos, os cornetti e a harpa), representando as três classes principais de instrumentos do Renascimento tardio (arcos, sopros e cordas pinçadas) sugeririam que Orfeu faz um chamamento a todas as forças da música para que estejam ao seu lado, neste momento. Nesta última stanza, os instrumentos de arco sustentam com notas longas o canto, como que formando um halo em torno de Orfeu. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 125

CARONTE Até que me envaidece, bem quanto me alegra o coração, desconsolado cantor, teu pranto e teu canto. Ma lunge, ah lunge sia da questo petto pietà, di mio valor non degno affetto. Mas longe, ah, longe fique deste peito a piedade, um afeto indigno do meu valor345. ORFEO Ahi, sventurato amante, sperar dunque non lice ch’odan miei prieghi i cittadin d’Averno? Onde qual ombra errante d’insepolto cadavero infelice, privo sarò del cielo e de l’inferno? ORFEU Ai de mim, amante infeliz, não me é mais permitido esperar que os cidadãos do Averno346 ouçam minhas súplicas? Onde ficarei, qual sombra errante de infeliz cadáver insepulto347, privado do céu e do inferno?348

345

Quarta etapa do ordenamento dos afetos no Ato III: retorno à insensibilidade de Caronte, que considera a piedade indigna de si. 346 O Averno, lago localizado na cratera de um vulcão extinto, na Itália, era uma entrada mítica alternativa para o Hades. O termo acabou por denominar o próprio mundo dos mortos com seus habitantes. Seu nome, Averno, significa “sem pássaros”, pois sobre ele os pássaros não voam, em consequência dos gases tóxicos que exala. Na época de Homero, praticamente não se encontra menção a entradas desse tipo. Homero menciona meramente a existência de “tétricos caminhos” (Odisséia XXIV, 10). Mais tarde, a mitologia cria entradas misteriosas através de lagos, cavernas e florestas, através das quais os deuses conseguem descer ao Hades, como Hércules, para buscar o cão Cérbero. 347 Somente os mortos a quem se prestaram as honras fúnebres podem viajar na barca de Caronte. Orfeu, nas suas próprias palavras, não vive mais, pois não tem mais seu coração consigo, mas não é reconhecido como morto por Caronte, que se recusa a transportá-lo. Dessa forma, está condenado a errar pelo limbo, sem estar entre os vivos e sem ser admitido no Hades. 348 Quinta etapa – já em movimento retrógrado – da sequência dos afetos: novamente o desespero de Orfeu, que não esperava uma negativa de Caronte. 126 | Ronel Alberti da Rosa

Così vuol empia sorte ch’in questi orror di morte da te, mio cor lontano, chiami tuo nome in vano, e pregando e piangendo mi consumi? Rendetemi il mio ben, tartarei numi. Assim o quer um destino cruel, que eu tenha de estar longe de ti, meu coração, neste horror de morte; em vão chame pelo teu nome, e, orando, em pranto me consuma? Devolvam-me o meu bem349, divindades do Tártaro!350 Ei dorme, e la mia cetra, se pietà non impetra ne l’indurato core, almeno il sonno fuggir al mio cantar gli occhi non ponno. Ele dorme351, e ainda que minha cítara não desperte piedade352

349

A exclamação “Devolvam-me o meu bem, deuses do Tártaro” vai se repetir adiante, como que emoldurando a vitória obtida por meio do sono sobre Caronte entre o momento de maior desespero e o de maior esperança do herói. O “Devolvam-me o meu bem [...]” faz eco e responde à lei escrita na porta do Hades: “Vós que aqui entrais, deixai toda esperança”; ambas destacadas por Monteverdi através de uma repetição imediata da frase, nas duas únicas exceções deste tipo de tratamento em toda a ópera. Orfeu não aceita os limites impostos pelos deuses, ele exige de volta a sua metade humana, sua esposa. 350 O Tártaro era a região mais profunda do mundo dos mortos, na época de Homero ainda indiferenciada, “Tártaro escuro, voragem profunda de soleira de bronze e portas de ferro” (Ilíada, VIII, 5-29, apud BRANDÃO, II, 402). Mais tarde, quando o mundo subterrâneo foi tripartido, o Tártaro se converteu no lugar de suplício permanente e eterno dos grandes criminosos mortais e imortais (ver NR 303). 351 Depois de tentar com o canto, aparentemente em vão, Orfeu experimenta comover Caronte com o som da sua lira, desta feita com sucesso, daí a constatação “Ele dorme”, logo no início do verso: a Sinfonia IV novamente anuncia a presença de Apolo e seus poderes divinos (ver NR 317). 352 No verbete Piedade, lemos em Ripa: “Jovem de tez muito branca e de aspecto muito belo, com olhos muito grandes e nariz aquilino, com asas nas costas, vestida de vermelho e com uma chama acima da cabeça. Terá a mão esquerda sobre o coração, enquanto que, com a direita, vai esvaziando uma grande cornucópia cheia de coisas úteis para a vida humana. [...] Veste-se de vermelho por ser companheira e irmã da caridade, com a qual lhe convém esta cor (ver Caridade). É representada com asas porque, entre todas as virtudes, esta principalmente pode-se dizer que seja a que voa, intercedendo prontamente ante Deus e a pátria [...]. A chama que sobre a cabeça lhe arde simboliza o entendimento da mente com o amor de Deus mediante o exercício da Piedade, que sempre aspira, de maneira natural, às coisas do céu” (RIPA, II, 207). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 127

no endurecido coração, pelo menos os olhos, ao meu cantar, não puderam fugir ao sono353. Su dunque, a che più tardo? Vamos logo, por que me demoro? Tempo è d’approdar su l’altra sponda, s’alcun non è ch’il neghi; vaglia l’ardir, se foran vani i preghi. É hora de aportar à outra margem, se ninguém houver que possa me impedir; que valha a audácia354, já que foram vãos os pedidos. È vago fior del tempo l’occasion, ch’esser dée colta a tempo. Mentre versan quest’occhi amari fiumi rendetemi il mio ben tartarei numi. A oportunidade355 é uma efêmera flor do tempo, e tem que ser colhida na hora certa.

353

Sétima e última etapa: esperança – o Ato III vai se encerrar presidido pelo mesmo afeto com que havia iniciado. 354 Na Iconologia de Ripa, a Audácia é representada como “uma mulher vestida de vermelho e verde, com a fronte acesa, que aparece tentando derrubar uma grande coluna de mármore sobre a qual se apóia um edifício. A Audácia é contrária ao apequenamento e é vício daqueles que, menosprezando as dificuldades que acompanham as grandes ações, e superestimando as forças de que dispõe, empenhamse em levá-las a cabo com toda a diligência. Por isso, representa-se pela figura de uma jovem que tenta com todas as suas forças jogar por terra uma coluna bem fundada. A roupa verde e vermelha simboliza a Audácia, da mesma forma que sua fronte acesa, tudo isso de acordo com o que diz Aristóteles no capítulo IX de sua Phisiognomia” (ver RIPA, I, 117-8). 355 Na Iconologia de Ripa, no verbete Ocasião consta: “Fídias, antigo e nobilíssimo escultor, idealizou a Ocasião na imagem de uma mulher nua com um véu trançado atravessado, que lhe cobria as partes pudendas, tendo soltos os cabelos e colocados sobre a fronte, de modo que, na nuca, aparecia toda calva e descoberta. Tinha, ademais, asas nos pés, e ia equilibrando-se sobre uma roda e tendo, na destra, uma adaga. Os cabelos postos para a frente nos avisam, sem dúvida, que a ocasião deve ser esperada com prevenção, não adiantando querer segui-la quando já nos deu as costas, pois passa velozmente, com os pés alados e equilibrando-se sobre uma roda que não pára nunca de girar. Leva uma adaga na mão porque deve estar preparada para cortar e desfaz qualquer impedimento que encontre” (RIPA, II, 142). 128 | Ronel Alberti da Rosa

Enquanto meus olhos vertem rios amargos, devolvam-me o meu bem, divindades do Tártaro!356 SPIRITI INFERNALI Nulla impresa per uom si tenta in vano, né contra lui più sa natura armarse, e de l’instabil piano arò gli ondosi campi, e ‘l seme sparse di sue fatiche, ond’aurea messe accolse. Quinci perché memoria vivesse di sua gloria, la fama a dir di lui sua lingua sciolse, che pose freno al mar con fragil legno, che sprezzò d’austro e d’aquilon lo sdegno. ESPÍRITOS INFERNAIS357 Não há empreitada que o homem358 arrisque em vão, nem contra ele pode a natureza armar-se. Da terra instável359, fez, arando, os campos ondulados, e espalhou as sementes do seu trabalho, do qual recebe dourada colheita360. Para que a lembrança da sua glória viva sempre, e a saga possa dele contar, sua lingua desprendeu-se361;

356

A repetição deste grito encerra as exigências de Orfeu aos deuses do Tártaro, e é sua resposta à lei que proíbe esperança no Inferno. A vitória é do semideus, e os versos “Não há empreitada que o homem arrisque em vão, nem contra ele pode a natureza armar-se”, cantado a seguir pelo coro, comentam sua vitória e a entrada efetiva no Hades. 357 O coro dos espíritos, presumivelmente em cena, para recriar a visão de Dante, estava em silêncio até aqui, mas assume agora o papel de comentador. Sua mensagem é em tom inequivocamente humanista, com ecos do Discurso sobre a dignidade do homem de Pico della Mirandola: “Diz o criador a Adão: coloquei-te no meio do mundo para que mais facilmente possas olhar à tua volta e ver tudo que te cerca. Criei-te como um ser nem celestial nem terreno, nem mortal nem imortal apenas, para que sejas tu a moldar e superar livremente a ti próprio. [...] Somente a ti foi dado crescer e desenvolver-se conforme tua vontado: tens em ti os germes de toda espécie de vida”. 358 Entenda-se aqui o homem como o intelecto, o homem racional – contra ele, de nada adianta os instintos, a Natureza, querer forçar passagem. 359 Não só a terra a ser arada é instável: todo o mundo físico é instável e passageiro, e o homem o doma para moldá-lo de acordo com sua vontade. Esta dá forma ao cosmos a partir de ideias que o homem foi buscar no mundo apenas acessível àqueles que estudam as coisas perenes. 360 A colheita é dourada não apenas pela cor do trigo, mas por ser produto do trabalho físico comandado pelo intelecto, que é atributo de Apolo. 361 Consoante o Prólogo, o homem foi tocado pela Música – e pelas outras Musas, quer seja, inventou a linguagem – e esta agora é que narra os feitos dos homens. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 129

ele venceu o mar numa frágil canoa362, desprezando a ira do Austro e do Aquilão363. Per l’aeree contrade a suo viaggio l’ali lievi spiegò Dedalo industre, né di sol caldo raggio, né distemprò sue penne umor palustre, ma, novo augel sembrando in suo sentiero a l’alta famiglia, fece per meraviglia, perché arridea fortuna al gran pensiero, fermar il volo, e starsi e l’aure e i venti a rimirar cotanto ardire intenti. Pelos ares parte a viajar, as asas leves abriu o gênio de Dédalo364; não foi o quente raio de sol nem a umidade do mar que derreteu suas penas365,

362

A imagem do homem em um barco, ou canoa, já está presente no Hino Homérico VII, o Hino a Dioniso (estes hinos, a Batraquiomaquia, como se sabe, não são de Homero nem de sua época: foram escritos dois a três séculos mais tarde), simbolizando a individuação do homem, protegido do mar do inconsciente primitivo pelo casco do navio ou canoa. Graças à subjetividade, o homem cria ciência e civilização, mas tem que abandonar a fusão primitiva com o mundo natural, o qual vê agora como algo para ser domado e conquistado: “... venceu o mar [...] desprezando a ira dos ventos...”. No hino homérico, os piratas atirados por Dioniso ao mar são levados pelos delfins para as profundezas, isto é, perdem sua condição de sujeito ao mergulharem seu ego na força irresistível e regressora da Natureza. Odisseu advertiu o mesmo perigo ao passar pelo rochedo das sereias, mas conseguiu controlar o desejo de atirar-se ao mar por estar atado ao mastro do seu barco (ver Odisséia, XII, 143-200). 363 Ventos Sul e Norte. Muitos são os ventos que recebem nome, desde a Antigüidade, costume este estimulado pelas grandes navegações a partir do século XV. Os principais, contudo, são aqueles que sopram das quatro partes do mundo, e que remontam a Ovídio (Ver Ripa, II, 415). A divisão do mundo em quatro partes corresponde à sua natureza física, formada por quatro elementos (fogo, água, terra e ar) e traduz-se na figura geométrica do quadrado. Os ventos pertencem à estirpe dos titãs, e representam forças indomáveis da Natureza. Os nomes dos quatro correspondentes aos pontos cardeais são: Euro (Leste), Favonio (Oeste), Aquilão ou Bóreas (Norte) e Austro (Sul). Em Virgílio lemos: “Euro, em direção à Aurora, toma o reino / que se opõe ao raio matutino./ Favonio rege a moradia do Ocaso,/ oposto ao rico albergue de Tritão. / Toma assento perto da fria e cruel Escitia / o horrível Bóreas [Aquilão], nas Setentrionais./ E o Austro tem a terra que lhe é contrária,/ que de nuvens e chuva enche os ares” (Metamorfoses, I). 364 Dédalo, arquiteto e inventor ateniense, preso no Labirinto pelo rei Minos, de Creta, fabricou para si e para seu filho Ícaro pares de asas de ganso colados com cera, com os quais fugiram voando. 365 A referência é à recomendação de Dédalo ao seu filho, durante a fuga pelo ar, para que não voasse muito alto, pois o sol derreteria a cera que une as penas, e nem baixo demais, porque a umidade tornaria as penas muito pesadas. Ícaro, porém, desobedeceu a Dédalo e aproximou-se demais do sol, que derreteu a cera que unia as penas das asas que vestia, provocando sua queda e morte no mar Egeu, que passou a chamar-se mar de Ícaro (Ver Metamorfoses, VIII, 183-205).

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mas, qual pássaro novo em seu trajeto, [como que pertencendo] à mais alta estirpe, fez maravilhas, porque a fortuna sorri a quem pensa grande366, deter o vôo, e estar com brisas e ventos a recordar tão audaciosos planos. Altri dal carro ardente e de la face ch’accende il giorno in terra al ciel salito, furò fiamma vivace: ma qual cor fu giammai cotanto ardito che s’agguagli a costui ch’oggi si vede per questi oscuri chiostri fra larve e serpi e mostri mover cantando baldanzoso il piede? L’orecchie in van Caronte a i preghi ha sorde, e in vano omai Cerbero latra e morde. Outros, do carro ardente e da face Que, subindo ao céu, acende o dia na terra, foram chama vivaz: mas qual coração foi alguma vez tão ardente ao ponto de se igualar a este que hoje se vê por estes claustros escuros, entre espectros, serpentes e monstros, mover cantando, airosos, os pés? Em vão Caronte tem os ouvidos surdos para súplicas, e em vão Cérbero ladra e morde.

366

Todo o trecho lembra uma refinada paráfrase do famoso Primeiro estásimo (Coro) da Antígona de Sófocles, provavelmente a primeira expressão poética da capacidade humana de superar-se a si próprio na busca de seus objetivos. É difícil crer que Striggio não tenha tido em mente estes versos, com os elementos que utilizou – homem como maravilha do universo, mar espumante e ventos furiosos, os arados que cultivam a terra, a captura das aves selvagens e a domesticação das feras: “De tantas maravilhas, mais maravilhosa de todas é o homem. O espumante mar nos ímpetos dos ventos austrais sulca, bramantes ondas fende, e cultiva a dos deuses mãe, a Terra imortal, incansável, revolvendo-a ano após ano com arados movidos por força eqüina”. Na Estrofe 2, o tema é a invenção da linguagem e das leis: “A voz, o pensar volátil e as urbanas leis das assembléias ele as ensinou a si mesmo...”. Só na morte encontra ele seu limite: “Aparelhado, desaparelhado não acata nada do que lhe advém: só da morte fuga não lhe acena” (SÓFOCLES, Antígona, p. 332-362). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 131

ATTO IV PROSERPINA Signor, quell’infelice che per queste di morte ampie campagne va chiamando Euridice, ch’udito hai tu pur dianzi così soavemente lamentarsi, mess’ha tanta pietà dentro al mio core ch’io torno un’altra volta a porger preghi perch’il tuo nume al suo pregar si pieghi. QUARTO ATO367 PROSÉRPINA368 Senhor, aquele infeliz que por estes vastos campos da morte vai chamando por Eurídice, e que recém ouviste369 lamentar-se tão suavemente, despertou tanta piedade em meu coração, que uma vez mais venho a ti e peço para que tua divindade se dobre ao seu suplicar.

367

O Ato IV, que assinala um retorno à esfera do espírito, traz a desobediência de Orfeu e a segunda perda, agora definitiva, de Eurídice. Orfeu exibiu sem sucesso o máximo virtuosismo do seu canto para Caronte e foi a lira dourada que fez com que o barqueiro caísse no sono. O semideus não pode esperar, agora, que seu canto, que aparentemente fracassou, surta efeito justamente no poderoso senhor do Hades. A solução, aponta Whenham (70-1), está na continuidade que Striggio planejou para a passagem do Ato III para o IV. Tendo roubado a barca de Caronte e atravessado o rio, Orfeu entra imediatamente no Hades, e as primeiras palavras de Proserpina deixam claro que o seu canto foi ouvido, sim, e que ele surtiu efeito no coração daquela que é a senhora do mundo dos mortos. Ela, diferentemente de Caronte, foi comovida à piedade. 368 Proserpina, em grego Perséfone, ou Core, era filha de Zeus com Deméter. Estando um dia a colher flores no campo, a terra se abriu e Hades, que por ela estava apaixonado, raptou-a para o fundo da terra. Sua mãe, Deméter, abdicou a retornar ao Olimpo e negou-se a continuar a desempenhar suas funções divinas de deusa das colheitas, enquanto sua filha não fosse restituída. O mundo, com isso, tornou-se árido e triste, vivendo um inverno sem fim. Com a mediação de Zeus e auxílio de Hermes, foi feito então um compromisso: Proserpina retornaria à superfície, onde viveria em companhia de sua mãe e dos demais deuses por seis meses – aí a terra se alegra cobrindo-se de flores e frutos. Os outros seis, porém, viveria no Hades, como esposa de Plutão – o inverno cai sobre o mundo, à espera do retorno de Proserpina. É nesta condição, de rainha do mundo subterrâneo, que ela vai ouvir e se comover com o canto de Orfeu. 369 Plutão escutou também o canto de Orfeu e, ao que tudo indica, comoveu-se da mesma forma que sua esposa. Tanto que, quando Proserpina faz o pedido pela liberdade de Eurídice, ele apenas refere-se muito brevemente à “lei imutável” e logo acede ao pedido de clemência. 132 | Ronel Alberti da Rosa

Deh, se da queste luci amorosa dolcezza unqua traesti se ti piacque il seren di questa fronte che tu chiami tuo cielo, onde mi giuri, di non invidiar sua sorte a Giove, pregoti per quel foco con cui già la grand’alma Amor t’accese, d’Orfeo dolente il lagrimar consola, e fa’ che la sua donna in vita torni al bel seren dei sospirati giorni. Vê: se alguma vez tu, destes olhos meus370, provaste doçura amorosa, se a ti agradou a serenidade desta fronte que chamas de teu céu, e me juras não invejar a sorte de Júpiter371, peço-te, por aquele fogo com o qual o Amor incendiou372 tua grande alma: consola o pranto do lamentoso Orfeu, e faz com que sua mulher retorne, viva, à felicidade serena dos saudosos dias.

370

No original italiano, luci, luzes para olhos: Proserpina é um ser solar, filha de Zeus com Deméter, deusa das colheitas, que, por sua vez, depende de Apolo, o sol, para fertilizar os campos. Nos seus olhos, portanto, carrega um reflexo do sol, algo que os habitantes do Hades não possuem, e que Plutão identifica com a doçura do amor. 371 A alusão aqui é à partilha do cosmos, depois da vitória dos deuses sobre os titãs. Hades ficou com o mundo subterrâneo, supostamente desprivilegiado. Mas, pela boca de Proserpina ficamos sabendo que não inveja a sorte de Zeus – aqui Júpiter, Giove, seu nome romano – que ficou com o Olimpo (e nem a de Poseidon, que ficou com os mares), pois tem para sua rainha a mulher que mais ama, tanto que a chama de “meu céu”, em substituição ao céu olímpico, que não possui. 372 O Amor, Eros, ou Cupido, é, como Apolo, um deus gerador de vida (não de morte), e seu sinal é incendiar, atear fogo, “dar luz” aos corações, através das setas que dispara aleatoriamente. Daí o apelo de Proserpina a Plutão ser um chamado a uma sabedoria divina, mais elevada que a do intelecto. Na Itália, a partir do século XIV, a figuro do Eros grego passa por um processo de pseudomorfose: encolhe, perde suas roupagens e toma a forma de um putto, garzone, ou puer alatus, o cupido de incontáveis representações. Na doutrina neoplatônica renascentista, o Amor é cego, porque pode ver desta forma mais longe do que com os olhos. Pico della Mirandola define a cegueira do amor supremo como órfico por causa de um comentário de Proclo ao Timeu (33c) de Platão, e escreve: “O Amor une o intelecto inteligível à beleza primeira e secreta mediante uma certa vitalidade que é melhor que a inteligência. Por isso, o próprio teólogo dos gregos (Orfeu) chama de cego este amor. E parece-me que mesmo Platão havia identificado este Deus com Orfeu, onde ele é chamado ora de Amor (Eros) ora de um grande demônio.” A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 133

PLUTONE Benché severo ed immutabil fato contrasti, amata sposa, a’ tuoi desiri, pur nulla omai si neghi a tal beltà congiunta a tanti preghi. PLUTÃO Ainda que uma lei severa e imutável contraste, amada esposa, com teu desejo, por razão alguma negue-se algo a tal beleza aliada a tantas súplicas373. La sua cara Euridice contra l’ordin fatale Orfeo ricovri. Contrariando a ordem fatal, que Orfeu recupere sua cara Eurídice. Ma, pria ch’ei tragga il piè da questi abissi non mai volga ver lei gli avidi lumi, ché di perdita eterna gli fia certa cagione un solo sguardo. Porém, antes de ele tirar o pé deste abismo não poderá voltar-se-lhe os olhos ávidos, pois com uma única mirada ela estará para sempre perdida. Io così stabilisco. Or nel mio regno fate, o ministri, il mio voler palese, sì che l’intenda Orfeo e l’intenda Euridice e di cangiarlo or più tentar non lice.

373

Tocado pelo Amor, Plutão fica cego para as antigas leis. Esta cegueira, na doutrina pseudoórfica renascentista, é mais valiosa que a visão e que o intelecto, podendo ver mais longe que os olhos físicos. Ele consegue encontrar justificativas que o eximem de seguir à risca as antigas e imutáveis leis do Tártaro, estipuladas quando da divisão do cosmos entre os três irmãos, Hades, Zeus e Poseidon. 134 | Ronel Alberti da Rosa

Assim ordeno. Agora, ó ministros, fazei conhecida minha vontade em todo o meu reino374, para que Orfeu entenda, e entenda Eurídice, que não é lícito tentar anulá-la ou modificá-la375. SPIRITI INFERNALI O de gli abitator de l’ombre eterne possente re, legge ne sia tuo cenno, ché ricercar altre cagioni interne di tuo voler nostri pensier non denno; ESPÍRITO INFERNAL I 376 Ó poderoso rei dos habitantes das sombras eternas seja lei para nós qualquer desejo teu, pois procurar as razões internas do teu querer não é digno de nosso pensamento. trarrà da queste orribili caverne sua sposa Orfeo, s’adoprerà suo senno sì che no ‘l vinca giovanil desio, né i gravi imperi tuoi sparga d’oblio.

374

O Hades enquanto reino possuía juízes e ministros. Dos três juízes máximos, Minos, Éaco e Radamanto, apenas Radamanto é citado por Homero. Segundo Brandão (I, 300), Platão certamente foi o responsável pela investidura de Éaco ao lado de Minos e Radamanto como magistrados supremos do reino do Hades. No Górgias (253e), Zeus fala: “Constituí como juízes meus próprio filhos, dois da Ásia, Minos e Radamanto, um da Europa, Éaco. Quando estiverem mortos darão suas sentenças na pradaria, na encruzilhada de onde partem os dois caminhos que levam, um, às Ilhas Afortunadas, o outro, ao Tártaro.” (Ver Dante, Inferno, segundo círculo) 375 Plutão distribui justiça à sua maneira. Ele interpõe uma prova de autocontrole ao infeliz Orfeu, uma prova que – saberá disso de antemão o senhor do Hades? – não conseguirá superar. O problema da categoria da justiça é que ela, depois de Maquiavel, sofre uma modificação em seu caráter. Em Maquiavel, Ética e Política separam-se, pela primeira vez, desde Aristóteles. Não que a justiça arbitrária do governante não fosse conhecida na Grécia clássica. É só lembrarmos Trasímaco que, na República 338c, define a Justiça como sendo “a conveniência do mais forte”. Mas esta é a cultura vigente nas tiranias da Ática, e contra ela se levanta a voz de Sócrates e de Platão. Podemos considerar que o julgamento de Creonte, na Antígona de Sófocles, é conforme à lei, mas não é justo. 376 O primeiro dos espíritos infernais nesta cena responde a Plutão, confirmando o entendimento das ordens recebidas: para ele, imprescrutáveis e indiscutíveis, já que, pertencendo a uma categoria social – infernal – inferior –, não está em condições de julgar o que os mais fortes consideram justiça, quer seja seus próprios interesses. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 135

ESPÍRITO INFERNAL II377 Conseguirá Orfeu resgatar sua esposa destas horríveis cavernas? Empregará o bom senso para que não o vença o juvenil desejo e as severas ordens não esqueça? PROSERPINA Quali grazie ti rendo or che sì nobil dono concedi a’ prieghi miei signor cortese? PROSÉRPINA Como te agradecer agora, que um presente tão nobre concedes ao meu pedido, cortês senhor? Sia benedetto il dì che pria ti piacqui, benedetta la preda e ‘l dolce inganno, poiché per mia ventura feci acquisto di te perdendo il sole. Bendito o dia em que pela primeira vez te agradei, bendito o rapto e o doce engano, porque, por minha ventura, ganhei a ti, perdendo o sol378. PLUTONE Tue soavi parole d’amor l’antica piaga rinfrescan nel mio core, così l’anima tua non sia più vaga di celeste diletto, sì ch’abbandoni il marital tuo letto.

377

O segundo espírito dirige-se diretamente ao público, e pontua a interrogação que agora a todos aflige, se Orfeu conseguirá atender às condições impostas por Plutão para resgatar Eurídice, isto é, fazer com que a razão comande suas emoções. 378 O breve intermezzo amoroso que se desenrola neste ponto entre Plutão e Proserpina é uma metáfora invertida da própria história de Orfeu e Eurídice. Enquanto Orfeu está descendo ao Hades para buscar Eurídice, Plutão, há tempos, subiu à superfície para raptar Proserpina. Ela recorda e bendiz o rapto de que foi vítima, alegrando-se com a recompensa por ter perdido o sol, que foi o amor de Plutão. Para o rapto de Proserpina, ver Ovídio, Metamorfoses, V. 136 | Ronel Alberti da Rosa

PLUTÃO Tuas suaves palavras refrescam a antiga ferida de amor em meu coração; assim, tua alma nunca mais ansiará felicidade celeste, para que não abandones teu leito conjugal. SPIRITI INFERNALI Pietate oggi e Amore trionfan ne l’inferno. Ecco il gentil cantore, che sua sposa conduce al ciel superno. ESPÍRITOS INFERNAIS Hoje, no Inferno, triunfam a Piedade e o Amor. Eis o gentil cantor, que sua esposa acima conduz, ao céu. ORFEO Qual onor di te fia degno, mia cetra onnipotente, s’hai nel tartareo regno piegar potuto ogn’indurata mente? ORFEU De que honra te fizeste digna, minha cítara onipotente379, tu que, no tartáreo reino, pudeste vencer as mentes380 mais duras?

379

Nestes versos, Orfeu se apresenta já conduzindo Eurídice para fora do Hades. Neles, celebra o poder da sua cítara, digna de um lugar entre as constelações, conforme a estrofe 3 do Prólogo. 380 O vocábulo mente significando o intelecto humano foi estabelecido no italiano pelo uso que dele fez Dante Alighieri. Em Dante, mente é intelecto, e o intelecto é partícula de Deus que existe na alma humana. No Convivio, III, II, lemos: “Onde se pode ver já agora o que é a mente: que é aquela fina e preciosíssima parte da alma que é a divindade. E este é o lugar onde digo eu que Amor me fala” (“Onde si puote omai vedere che è mente: che è quella fine e preziosissima parte de l’anima che è deitade. E questo è il luogo dove dico che Amore mi ragiona”). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 137

Luogo avrai fra le più belle immagini celesti ond’al tuo suon le stelle danzeranno co’ giri or tardi or presti. Terás lugar entre as mais belas constelações, onde, ao teu som, as estrelas dançarão cirandas, ora lentas ora rápidas. Io, per te felice a pieno, vedrò l’amato volto, e nel candido seno de la mia donna oggi sarò raccolto. Eu, graças a ti, sou totalmente feliz; verei o rosto amado, e no suave colo de minha mulher hoje ainda repousarei. Ma mentre io canto, ohimè chi m’assicura ch’ella mi segua? Ohimè, chi mi nasconde de l’amate pupille il dolce lume? Forse d’invidia punte le deità d’Averno perch’io non sia qua giù felice a pieno mi tolgono il mirarvi, luci beate e liete, che sol co ‘l guardo altrui bear potete? Ma che temi, mio core? Ciò che vieta Pluton, comanda Amore; a nume più possente, che vince uomini e dèi, ben ubbidir dovrei. Porém, enquanto eu canto, ai de mim, quem me assegura que ela me segue? Ai de mim, quem me oculta a doce luz das amadas pupilas? Talvez seja a inveja que acedie os deuses do Averno, para que eu não seja aqui em baixo totalmente feliz, proibindo-me de olhar-te, luzeiros benditos e alegres, que, com um único olhar, podem deliciar a qualquer um? 138 | Ronel Alberti da Rosa

Mas que temo, meu coração? Aquilo que Plutão proíbe, Amor ordena! A deus tão poderoso, que vence homens e deuses, deverei eu também obedecer381. (Qui si fa strepito dietro alla scena) (Aqui, faze-se um grande ruído atrás da cena) Ma che odo, ohimè lasso? S’arman forse a’ miei danni con tal furor le Furie innamorate per rapirmi il mio bene, ed io ‘l consento? (qui si volta) O dolcissimi lumi, io pur vi veggio, io pur... ma qual eclissi, ohimè, v’oscura? Mas, que ouço, pobre de mim? São talvez as Fúrias382 assanhadas para raptar-me o meu bem, e eu consinto? (aqui ele se vira) Ó dulcíssimas luzes, eu vos vejo, eu... mas que eclipse, ai de mim, vos escurece? UNO SPIRITO Rott’hai la legge, e se’ di grazia indegno. UM ESPÍRITO Quebraste a lei, e és indigno de mercê.

381

O Amor neoplatônico dos renascentistas, como Pico e Ficino, segue a concepção medieval de Lucrécio e Opiano, segundo os quais o Amor é força todo poderosa e onipresente, mas é um poder natural, não metafísico, que perpassa todo o Universo material, mas não o transcende (Cf. WIND, 67ss.). 382 As Fúrias, ou Erínias, eram deusas violentas, encarnando forças primitivas como guardiãs das leis da Natureza e da ordem das coisas, no sentido físico e moral. A partir dessa perspectiva, é natural que Orfeu temesse estar sendo perseguido por elas, já que, resgatando sua esposa do Hades, estava contrariando a ordem natural das coisas. Tal corresponderia bem à ideia que se tinha, na Antiguidade, das Fúrias enquanto consciência que atormentava os criminosos. Na Iconologia, Ripa escreve que “Dante, no seu Inferno, descreveu as Fúrias como mulheres de aspecto feíssimo, vestidas com túnicas de cor negra e todas manchadas de sangue, enroladas em cobras e com cabelos de serpentes. A isto, acrescentaremos que levavam em uma mão um ramo de cipreste e, na outra, uma trompa de onde saíam muitas chamas e uma fumaceira negra” (RIPA, I, 451). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 139

EURIDICE Ahi, vista troppo dolce e troppo amara! Così per troppo amor dunque mi perdi? Ed io, misera, perdo il poter più godere e di luce e di vita, e perdo insieme te d’ogni ben mio più caro, o mio consorte. EURÍDICE Ai, visão por demais doce e por demais amarga! Então, por me amares demasiado é que me perdes? E eu, mísera, perdo de poder jamais desfrutar novamente da luz e da vida, e, contigo, perco meu mais caro tesouro, ó meu companheiro! SPIRITI INFERNALI Torna a l’ombre di morte, infelice Euridice, né più sperar di riveder il sole, ch’omai fia sordo a’ prieghi altrui l’inferno. ESPÍRITOS INFERNAIS Volta às sombras da morte, infeliz Eurídice, nunca mais esperes rever o sol, pois o Inferno, doravante, estará surdo a qualquer outra súplica. ORFEO Dove te n’ vai, mia vita? ecco i’ ti seguo. Ma chi me ‘l vieta, ohimè, sogno o vaneggio? Qual poter, qual furor da questi orrori, da questi amati orrori mal mio grado mi tragge e mi conduce a l’odiosa luce? ORFEU Para onde vais, vida minha? Olha, vou contigo... Mas... quem me impede, ai de mim... É sonho ou deliro? Que força, que poder me arrasta, contra a vontade,

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destes amados horrores, e me leva em direção à odiosa luz?383 SPIRITI INFERNALI È la virtute un raggio di celeste bellezza, fregio dell’alma ond’ella sol s’apprezza: questa di tempo oltraggio non teme, anzi maggiore divien se più s’attempa il suo splendore. ESPÍRITOS INFERNAIS384 A virtude é um raio de celestial beleza; é o enfeite da alma onde a si mesma louva. Não teme o ultraje do tempo, pelo contrário: ainda maior se torna, ao envelhecer, seu esplendor. Nebbia l’adombra sol d’affetto umano, a cui talor invano tenta opporsi ragion, ch’ei la sua luce spegne, e l’uomo cieco a cieco fin conduce. Só o humano afeto pode ofuscar [a virtude] com sua névoa, [afeto] ao qual, às vezes, em vão tenta opor-se a razão, apagando sua luz e conduzindo o homem cego a um cego fim.

383

Ocorre aqui uma inversão da ordem natural das coisas: para Orfeu, o Hades, agora, torna-se um lugar de horrores amados, e até as sombras são amadas, porque nelas habita Eurídice. Também a luz é odiosa para Orfeu, porque retornar à vida significar perder definitivamente sua esposa. Para a segunda morte de Eurídice, ver Virgílio: Éclogas, Geórgicas, Eneida I-VI, 231-3 (WHENHAM 73, 189, NR 9). 384 Este número completa o comentário do coral no fim do Ato III: “Não há empreitada que o homem arrisque em vão, nem contra ele pode a natureza armar-se”. A diferença é que, agora, os espíritos advertem que, apesar de ter condições de vencer a natureza, voando até através dos ares, o homem, para ser verdadeiramente vencedor, precisa domar suas emoções, isto é, ser vencedor de si mesmo. Os versos insistem no elogio do imaterial, do virtuoso e do ideal, desprezando o temor da morte e comparando o homem guiado pelos afetos a um cego. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 141

Orfeo vinse l’inferno e vinto poi fu da gli affetti suoi. Degno d’eterna gloria fia sol colui ch’avrà di sé vittoria. Orfeu venceu o Inferno, e depois vencido foi pelos afetos seus. Digno de eterna glória é apenas aquele que vence a si mesmo.

ATTO V ORFEO Questi i campi di Tracia, e questo è il loco dove passommi il core per l’amara novella il mio dolore. Poiché non ho più spene di ricovrar pregando, piangendo e sospirando il perduto mio bene, che poss’io più se non volgermi a voi, selve soavi, un tempo conforto ai miei martir, mentre a dio piacque di farvi per pietà meco languire al mio languire? Voi vi doleste, o monti, e lagrimaste voi, sassi, al dipartir del nostro sole, ed io con voi lagrimerò mai sempre, e mai sempre dorròmmi, ahi doglia, ahi pianto!

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QUINTO ATO385 ORFEU Eis os campos da Trácia, e este é o lugar onde a dor pela amarga notícia trespassou-me o coração. Já que não tenho mais esperança de recobrar, pedindo, chorando e suspirando, a perda do meu bem, que posso eu mais fazer se não dirigir-me a vós, bosques amados, que uma vez fostes conforto para meu martírio, quando Deus, por piedade, vos fazia comigo definhar, quando eu definhava?386 Vos apiedasteis, montanhas! Vós, pedras, chorasteis, quando nosso sol partiu, e eu para sempre convosco chorarei, para sempre me entregarei, ai, dor, ai, pranto. ECO Ahi pianto. ECO387 Ai, pranto. ORFEO Cortese Eco amorosa, che sconsolata sei, e consolar mi vuoi ne’ dolor miei, benché queste mie luci

385

O quinto e último ato assinala o retorno à dimensão do mundo natural. Orfeu desperta nos campos da Trácia (terá sido sua viagem ao mundo subterrâneo apenas um sonho?), abatido e incapaz de recomporse. Para fazer o contraponto à Música, que apresenta o Prólogo, vem agora o deus Apolo, que fecha o ciclo encerrando o poema na dimensão cósmica do poder da música. 386 A primeira e a segunda estrofes são uma digressão poética sobre a primeira estrofe da canção “Vi ricorda, o boschi ombrosi”, no início do Ato II. 387 Eco é uma ninfa dos bosques e das fontes. Perseguida pelo deus Pã, a quem não amava, mas apaixonada por um sátiro que a evitava, acabou sendo despedaçada pelos pastores como punição a esta afronta contra seu protetor, o grande Pã. Foi apaixonada pelo jovem Narciso, a quem seguia onde quer que ele fosse. Depois de ter sido friamente repelida por Narciso, retirou-se, encerrando-se em dolorosa solidão. Deixou de se alimentar e definhou, transformando-se num rochedo, capaz apenas de repetir as últimas sílabas do que se fala. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 143

sien già per lagrimar fatte due fonti, in così grave mia fiera sventura non ho pianto però tanto che basti. ORFEU Gentil e amorosa Eco, que desconsolada estás, queres consolar-me em minha dor, ainda que estes meus olhos, de tanto lacrimar, tenham virado duas fontes e eu, em desventura assim profunda e cruel, não tenho pranto que baste. ECO Basti. ECO Baste. ORFEO Se gli occhi d’Argo avessi e spandessero tutti un mar di pianto, non fora il duol conforme a tanti guai. ORFEU Tivesse eu os olhos de Argos388 e um mar de pranto eles todos derramassem, ainda não faria jus à minha dor. ECO Ahi. ECO Dor.

388

Uma centena de olhos possuía Argos, um gigante de força descomunal a quem Hera, a esposa de Zeus, encarregou de vigiar a vaca Io, de quem tinha ciúmes. Graças aos seus cem olhos, podia vigiar a amante de Zeus sem problema, pois adormecia fechando apenas cinquenta de cada vez. 144 | Ronel Alberti da Rosa

ORFEO S’hai del mio mal pietade, io ti ringrazio di tua benignitate. Ma, mentr’io mi querelo, deh, perché mi rispondi sol con gl’ultimi accenti? Rendimi tutti integri i miei lamenti. ORFEU Se tens piedade do meu mal, eu te agradeço por tua bondade. Porém, quando me lamento, ai, porque respondes só com as últimas sílabas?389 Devolve inteiros os meus lamentos. Ma tu, anima mia, se mai ritorna la tua fredd’ombra a queste amiche piagge, prendi or da me queste tue lodi estreme ch’or a te sacro la mia cetra e ‘l canto come a te già sopra l’altar del core lo spirto acceso in sacrifizio offersi. Mas tu, minh’alma, se nunca mais voltar 390 tua sombra fria a estas plagas amigas, receberás então de mim este máximo louvor, pois a ti consagro a cítara e o canto, como a ti já ofereci, sobre o altar do coração, meu espírito incendiado, em sacrifício. Tu bella fusti e saggia, e in te ripose tutte le grazie sue cortese il cielo mentre ad ogni altra de suoi don fu scarso; d’ogni lingua ogni lode a te conviensi ch’albergasti in bel corpo alma più bella, fastosa men quanto d’onor più degna.

389

A repetição apenas das últimas sílabas é a própria condição de incompletude da ninfa Eco. Em vida, ela seguia Narciso por toda parte sem ser jamais amada por ele, isto é, nunca pode fundir-se com o objeto desejado. Agora, a sílaba que responde não só é uma parte apenas da palavra pronunciada, como chega sempre tarde, sempre depois do som original. 390 A partir daqui cessam as intervenções da ninfa Eco, e Orfeu tece, nas três estrofes finais, um apaixonado elogio de amor à sua esposa. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 145

Foste bela e sábia; em ti, o céu generoso depositou todas as graças suas, sendo parcimonioso para com todas as outras; em todas as línguas mereces louvor, pois abrigaste, em belo corpo, alma ainda mais bela sem ser orgulhosa, ainda que digna de honra. Or l’altre donne son superbe e perfide, ver chi le adora, dispietate instabili, prive di senno e d’ogni pensier nobile, ond’a ragion opra di lor non lodasi; quinci non fia giamai che per vil femina Amor con aureo stral il cor trafiggami. Todas as outras mulheres são orgulhosas e más, desapiedadamente instáveis para com os que as adoram, carentes de razão e de qualquer nobre pensamento, e com justiça não sendo, por isso, nunca elogiadas; daí que, por uma malvada mulher, jamais Amor, com flecha dourada, atinjirá meu coração391.

Versão original de Striggio para o final da edição de 1607392 Ma ecco stuol nemico di donne amiche a l’ubriaco nume: sottrar mi voglio a l’odiosa vista, che fuggon gli occhi ciò che l’alma aborre.

391

Nas Metamorfoses, de Ovídio, encontramos explicitado o que no poema de Striggio é sugerido apenas muito vagamente: a conversão de Orfeu à homossexualidade: “E Orfeu se tornou indiferente a todas as seduções das mulheres, seja por ter sido funesto o seu amor, seja por ter perdido a esperança. Muitas quiseram ardentemente unir-se ao poeta, e muitas sofreram vendo-se rejeitadas. E é assim que os cantos narram à gente da Trácia o amor de Orfeu pelos jovens rapazes e por colher-lhes, antes do desabrochar da juventude, a curta primavera e a primeira flor da tenra idade” (Metamorfoses, X, 7887). 392 Existem dois finais para o Orfeo: um preservado no libretto de 1607, e outro, completamente diferente, foi impresso na partitura de Monteverdi de 1609. Depois do Mito de Orfeo (1498), de Angelo Poliziano, em que o final trágico do mito foi preservado, concluiu-se que a tragédia era um afeto inapropriado para as récitas de ocasiões festivas. A partir do início do século XVII começou a ser, então, incluído um final feliz, um lieto finale: a tragicommedia, como passaram a chamar-se as encenações, não tinham nada de cômico, era tragédias, mas tinham o final alterado para terminar bem. O final de 1607 reproduz o mito de Orfeu em sua forma mais conhecida: ao regressar à Trácia, Orfeu, inconsolável e sem poder esquecer a esposa, passa a repelir todas as mulheres. Estas, ultrajadas por sua fidelidade à memória da esposa, fizeram-no em pedaços. O poema de Striggio termina, correspondentemente, com um coro de Bacantes. 146 | Ronel Alberti da Rosa

Mas eis o tropel inimigo393, de mulheres amigas do ébrio deus394: quero me retirar à odiosa visão395; que fujam os olhos fogem àquilo que à alma ofende. CORO DI BACCANTI Evohè, padre Lieo, Bassareo, te chiamiam con chiari accenti. CORO DE BACANTES Evoé396, pai Lieu397, Bessaréu, te chamamos com fortes gritos. Evohè, liete e ridenti te lodiam padre Leneo, or ch’abbiam colmo il core del tuo divin furore. Evoé, alegres e sorridentes te louvamos, pai Leneu, agora que temos o coração cheio do teu furor divino. BACCANTE Fuggito è pur da questa destra ultrice l’empio nostro avversario, il trace Orfeo, disprezzator de’ nostri pregi alteri.

393

É um tropel inimigo porque Orfeu, depois da segunda perda de Eurídice, quer distância de tudo o que festeje as forças vitais. 394 O ébrio deus é Baco, ou Dioniso, a quem as Bacantes se entregam. Historicamente (Cf. Brandão, I, 290), por ocasião da vindima, celebrava-se, a cada ano, em Atenas e em toda Ática, a festa do vinho novo, em que os participantes, como outrora os companheiros de Baco, se embriagavam e começavam a cantar e a dançar freneticamente até caírem desfalecidos. 395 Orfeu, fechado em sua reclusão, não quer ouvir nem ver os ritos de Dioniso, que qualifica de odiosa visão. Do ponto de vista histórico (Cf. BRANDÃO, I, 290), as Bacantes, ou Mênades, tomadas pelo delírio sagrado, imitavam as Mênades dionisíacas, percorrendo montes e campos, despedaçando animais e comendo-lhes as carnes cruas ainda palpitantes. 396 O grito Evoi era a saudação a Evan, uma das alcunhas de Baco, durante as festas de celebração do deus. 397 Lieu, Bessaréu, Leneu, Baco, Iaco, Evan e muitos outros são todos nomes para Dioniso. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 147

BACANTE Fugiu de meu braço vingador o nosso ímpio adversário, o trácio Orfeu, desprezador de nosso alto valor398. UN’ALTRA BACCANTE Non fuggirà, ché grave suol esser più quanto più tarda scende sovra nocente capo ira celeste. OUTRA BACANTE Não fugirá, pois, quanto mais tarda, mais severa desce sobre a cabeça culpada a ira celeste. DUE BACCANTI Cantiam di Bacco in tanto, e in vari modi sua deità si benedica e lodi. DUAS BACANTES Cantemos a Baco, muito e de vários modos seja bendita e louvada sua divindade. CORO DI BACCANTI Evohè, padre Lieo, Bassareo, te chiamiam con chiari accenti. CORO DE BACANTES Evoé, pai Lieu, Bessaréu, te chamamos com fortes gritos. Evohè, liete e ridenti te lodiam padre Leneo, or ch’abbiam colmo il core del tuo divin furore.

398

A origem do ódio das mulheres da Trácia, que se consideravam desprezadas por Orfeu, e que culminará com seu despedaçamento, tem duas versões: primeiramente, conta-se que, ao retornar do Hades, Orfeu instituiu cultos de mistérios que eram inteiramente vedados às mulheres. No segundo, Afrodite, deusa do amor, querendo vingar-se da ninfa Calíope, mãe de Orfeu, e não podendo, vingou-se do filho, instilando uma paixão tão violenta e incontrolável por ele nas mulheres da Trácia que cada uma queria o cantor só para si (ver BRANDÃO, II, 197). 148 | Ronel Alberti da Rosa

Evoé, alegres e sorridentes te louvamos, pai Leneu, agora que temos o coração cheio do teu furor divino. BACCANTE Tu pria trovasti la felice pianta onde nasce il licore che sgombra ogni dolore, ed a gli egri mortali del sonno è padre e dolce oblio de i mali. BACANTE Foste o primeiro a encontrar a planta feliz399 de onde nasce o licor que afasta toda dor, e, dos enfermos mortais, és pai do sono e do doce esquecimento dos males400. CORO DI BACCANTI Evohè, padre Lieo, Bassareo, te chiamiam con chiari accenti. CORO DE BACANTES Evoé, pai Lieu, Bessaréu, te chamamos com fortes gritos. Evohè, liete e ridenti te lodiam padre Leneo, or ch’abbiam colmo il core del tuo divin furore.

399

Foi no monte Nisa, entregue aos cuidados das ninfas e dos sátiros, que o jovem Dioniso descobriu o suco da vinha. Vivendo em uma gruta onde pendiam cachos de uva, certa vez colheu alguns cachos, espremeu os bagos em taças de ouro e bebeu o suco na companhia de sua corte. Bebendo-o repetidas vezes, sátiros, ninfas e o próprio Baco começaram a dançar vertiginosamente ao som de címbalos (ver BRANDÃO, I, 290). 400 O esquecimento dos males se dava na esteira da comunhão com o deus. Conforme descreve Junito Brandão, o ékstasis, o sair de si, implicava num mergulho em Dioniso e do seu adorador no processo do entusiasmo, de éntheos, isto é, “animado de um transporte divino” (ver BRANDÃO, Mitologia II, 136). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 149

Evoé, alegres e sorridentes te louvamos, pai Leneu, agora que temos o coração cheio do teu furor divino. BACCANTE Te domator del lucido oriente vide di spoglie alteramente adorno sopr’aureo carro il portator del giorno. BACANTE A ti, domador do brilhante Oriente, finamente adornado de espólios, vemos, sobre um carro de ouro, o portador do dia401. UN’ALTRA BACCANTE Tu, qual leon possente, con forte destra e con invitto core spargesti e abbattesti le gigantee falangi, ed al furore de lor braccia ferreo fren ponesti allor che l’empia guerra mosse co’ suoi gran figli al ciel la terra. OUTRA BACANTE Tu, qual leão poderoso, braço forte e coração invicto402, retalhaste e abateste as falanges dos gigantes403, dando fim

401

Uma dos feitos de Dioniso foi ter atravessado a Mesopotâmia e chegado até a Índia; daí os versos o celebrarem como “conquistador do brilhante Oriente”: brilhante porque de lá é que parte o carro fulgurante de Apolo a percorrer os céus. Retornando à Trácia, em triunfo, fez-se adorar sobre um carro de ouro puxado por panteras. 402 O coração de Dioniso é invicto porque, sendo deus e imortal, renasce a partir do próprio coração. 403 Os versos escritos por Striggio para as Bacantes recontam os episódios mais importantes do mito de Dioniso, mas os recriando fantasiosamente. A tradição ensina o contrário: é Dioniso que é morto e retalhado pelos gigantes: para proteger seu filho ilegítimo do ciúme da esposa Hera, Zeus entrega-o aos cuidados de Apolo e dos Curetes (gênios encarregados de encobrir o choro dos bebês), que o esconderam nas florestas do monte Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu o esconderijo do deus e encarregou os Titãs – os gigantes – de matá-lo. Com o rosto polvilhado de gesso para não serem reconhecidos, os gigantes atraíram o pequeno Dioniso com brinquedos, e, ao apanhá-lo, fizeram-no em pedaços, cozinharam sua carne em um caldeirão e devoraram. Zeus fulminou os Titãs, e de suas cinzas nasceram os homens. Por isso o ser humano possui as duas naturezas: má, da parte dos Titãs, e boa, da parte do deus (ver BRANDÃO, I, 286). 150 | Ronel Alberti da Rosa

ao furor dos seus braços, quando, em ímpia guerra, o céu armou-se com seus grandes filhos404 contra a terra. CORO DI BACCANTI Evohè, padre Lieo, Bassareo, te chiamiam con chiari accenti. CORO DE BACANTES Evoé, pai Lieu, Bessaréu, te chamamos com fortes gritos. Evohè, liete e ridenti te lodiam padre Leneo, or ch’abbiam colmo il core del tuo divin furore. Evoé, alegres e sorridentes te louvamos, pai Leneu, agora que temos o coração cheio do teu furor divino. BACCANTE Senza te l’alma dèa che Cipro onora fredda e insipida fora, o d’ogni uman piacer gran condimento e d’ogni afflitto cor dolce contento. BACANTE Sem ti, a grande deusa que honra Chipre seria fria e insípida; ela, o tempero de todo prazer humano e doce alegria de todo coração aflito405.

404

Os grandes filhos são os gigantes, e o “céu que se arma em ímpia guerra” significa aqui a perseguição movida pela enciumada Hera, esposa de Zeus, portanto uma deusa olímpica e representante do céu. Dioniso, mesmo sendo também olímpico, é apresentado como ligado a terra, devido à sua mãe Semele, cujo próprio nome significa “terra” (ver BRANDÃO, I, 288). 405 A grande deusa que honra Chipre é Afrodite, que nasceu da espuma do mar em uma praia desta ilha. Ali, foi acolhida pelas Horas (personificações do ano e das estações), recebeu um manto, foi enfeitada e conduzida ao palácio dos deuses olímpicos. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 151

CORO DI BACCANTI Evohè, padre Lieo, Bassareo, te chiamiam con chiari accenti. CORO DE BACANTES Evoé, pai Lieu, Bessaréu, te chamamos com fortes gritos. Evohè, liete e ridenti te lodiam padre Leneo, or ch’abbiam colmo il core del tuo divin furore. Evoé, alegres e sorridentes te louvamos, pai Leneu, agora que temos o coração cheio do teu furor divino.

ATTO V – VARIANTE Finale in alternativa al coro di Baccanti Versione tratta dalla partitura del 1609. (Apollo discende in una nuvola cantando) QUINTO ATO – VARIANTE Final alternativo ao coro das Bacantes Versão extraída da partitura de 1609. (Apolo desce cantando em uma nuvem)406

406

Uma hipótese citada por Sternfeld (ver WHENHAM, 30-3) para a existência de dois finais é que o original seria o lieto finale, o final feliz, com Apolo resgatando Orfeu. Porém, a Galleria delle Specchi, a Galeria dos Espelhos (ou teria sido a estréia na Galleria dei Fiumi – Galeria dos Rios?), no Palácio dos Duques de Gonzaga, em Mântua (Cf. JACOBS, 13), não tinha dimensões capazes de acomodar uma máquina de teatro que erguesse Orfeu e Apolo para o céu. Por essa razão, Striggio teria escrito o final alternativo, com o coro das Bacantes. 152 | Ronel Alberti da Rosa

APOLLO Perch’a lo sdegno ed al dolor in preda così ti doni, o figlio? Non è, non è consiglio di generoso petto servir al proprio affetto. APOLO407 Por que, ó filho, te entregas presa da dor e do desdém? Nunca é bom conselho de um coração sábio render-se ao próprio afeto408. Quinci biasmo e periglioso già sovrastar ti veggio onde muovo dal ciel per darti aita; or tu m’ascolta e ne avrai lode e vita.

407

Apolo, filho de Zeus e de Leto, era deus das artes, da música e da poesia. O deus Sol tem tantos atributos que, como observa Brandão (I, 89), tem-se a impressão de que Apolo é um amálgama de várias divindades, sintetizando em um só deus um amplo leque de oposições. No neoplatonismo renascentista são bem evidenciadas suas qualidades de deus pai onisciente e gerador de toda vida. Sua lira tinha sete cordas (lira a cujas cordas Orfeu acrescentará mais duas, em honra às Musas, que eram nove), e o número sete é paradigmático para esta divindade: nasceu no dia sete do mês délfico Bísio (início da primavera), e tão logo nasceu, cisnes brancos deram sete voltas em torno de Delos. Sua doutrina possuía sete máximas, atribuídas a sete sábios. Ésquilo o chamava augusto deus sétimo, o deus da sétima porta. 408 A categoria renascentista da moderação é, na verdade, uma velada oposição ao ascetismo cristão. Pouco antes do ano santo de 1600, um terremoto em Roma fez com que se redescobrissem as antigas catacumbas onde tinham se refugiado os perseguidos na época heróica do cristianismo ilegal e subterrâneo. Este fato veio a calhar para a propaganda da Contrarreforma, que, com isso, aproveitou ao máximo para reacender o culto e a tradição dos antigos mártires e ascetas (atualizando a questão, também seriam gloriosos mártires cristãos os que resistissem à reforma luterana ao Norte dos Alpes). Ora, o homem moderado é o homem da mesotes aristotélica, o meio termo, a justa medida. “Render-se ao próprio afeto” é, claramente, transbordar os limites da passionalidade. Por sua parte, o homem moderado – o homem que não se entrega aos excessos do ascetismo e da mortificação da carne – tornase sinônimo de homem autônomo e livre. A moderação aconselhada por Apolo a Orfeu perde sua categoria de norma, tornando-se doravante uma conseqüência do comportamento humano (ver HELLER, 234-5). A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 153

Vejo-te, porém, ameaçado por ignomínia e perigo; por isso venho do céu para trazer-te socorro. Escuta-me, agora, e terás vida e glória409. ORFEO Padre cortese, al maggio uopo arrivi, ch’a disperato fine con estremo dolore m’avean condotto già sdegno et amore. ORFEU Pai bondoso, chegas na hora mais urgente, pois amor e desdém me levaram a um fim desesperado em meio a dores extremas. Eccomi dunque attento a tue ragioni, celeste padre: or ciò che vuoi, m’imponi. Eis-me aqui, atento às tuas razões, pai celeste: ordena o que quiseres. APOLLO Troppo, troppo gioisti di tua lieta ventura, or troppo piagni tua sorte acerba e dura. Ancor non sai come nulla qua giù diletta e dura?

409

A vida e glória oferecida por Apolo é a mesma vida eterna do Cristo solar: o processo de fusão dos mitos – os clássicos e os da tradição cristã – deu-se não apenas na esfera artística. Toda a cultura italiana dos séculos XVI e XVII se encontrava fundida com os modelos antigos. O cardeal Bessarion, aponta Heller, encontrou um paralelo entre Homero e Moisés; em Florença, o Cônsul romano [Décimo Júnio] Bruto e o Davi do Antigo Testamento eram igualmente considerados símbolos da cidade e, entre os eruditos e no imaginário popular, as figuras de Cristo e de Sócrates encontravam-se cada vez mais fundidas em uma só. Se observarmos a obra de Michelangelo, não há como não convencer-se de que ele pintou Jesus criança sempre como um putto, um daqueles alados Eros greco-romanos; também a Madonna que pintou para os Medici é, na verdade, uma Sibila, olhando de cima como um símbolo antigo do Destino. Finalmente, o Cristo do seu Juízo final da Capella Sistina é idêntico a Apolo: um poderoso e vingativo deus Sol (ver HELLER, 53). 154 | Ronel Alberti da Rosa

Por demais te alegraste410 da tua feliz existência; agora, por demais choras teu duro e cruel destino. Ainda não sabes que nada aqui embaixo é alegre e perene? Dunque se goder brami immortal vita vientene meco al ciel ch’a sé t’invita. Contudo, se queres gozar vida imortal, vem comigo ao céu, eu te convido411. ORFEO Sì non vedrò più mai de l’amata Euridice i dolci rai? Então, nunca mais verei os doces olhos da amada Eurídice? APOLLO Nel sole e ne le stelle veggherai le sue sembianze belle. APOLO No sol e nas estrelas descobrirás o seu belo semblante. ORFEO Ben di cotanto padre sarei non degno figlio se non seguissi il tuo fedel consiglio.

410

Apolo, ligado à inteligência e à racionalidade, dá a Orfeu a lição: a mesma que se encontrava inscrita sobre a soleira do oráculo de Delfos: Nada em demasia. Orfeu sofre agora porque exagerou em suas emoções, tanto na alegria, antes, como agora, na tristeza. Na Itália do Renascimento, a categoria da sabedoria também sofreu uma transformação. Desde o matemático Bovillus, a sabedoria se identifica cada vez mais com o conhecimento científico: “O homem sábio, que conhece os segredos da natureza, é ele próprio misterioso e espiritual. Vive sozinho, longe da multidão vulgar. Basta-se a si próprio, não necessita de ninguém, possui todos os bens em abundância. É perfeito, completo e feliz” (apud HELLER, 237). 411 O convite para a imortalidade é também uma exortação para abandonar as paixões e sofrimentos terrenos. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 155

ORFEU De tão grande pai eu não seria digno filho se não seguisse o teu fiel conselho. APOLLO, ORFEO Saliam cantando al cielo, dove ha virtù verace degno premio di sé, diletto e pace. APOLO E ORFEU Subamos, cantando, ao céu, onde a virtude verdadeira recebe seu digno prêmio: alegria e paz412. CORO Vanne, Orfeo, felice e pieno a goder celeste onore, là ‘ve ben non vien mai meno, là ‘ve mai non fu dolore, mentr’altari, incensi e voti noi t’offriam lieti e devoti. CORO413 Vai, Orfeu, feliz de todo, gozar honrarias celestes, lá onde o bem nunca tem fim, lá onde nunca existiu a dor, enquanto nós, alegres e devotos te oferecemos altar, incenso e votos. Così va chi non s’arretra al chiamar di nume eterno, così grazia in ciel impetra chi qua giù provò l’inferno, e chi semina fra doglie d’ogni grazia il frutto coglie. 412

Orfeu receberá o prêmio pela virtude verdadeira quando abandonar a expectativa material e passar a desejar coisas imutáveis e que lhe concederão alegria e paz eternas. 413 O coro final recapitula e sintetiza toda a moral do poema: em uma região acessível apenas aos que se dedicam às coisas espirituais, existe um bem que nunca termina – a ideia do Bem, diria Platão. Para chegar até lá, é preciso ter coragem e, às vezes passar por provações (vide a parábola da caverna, na República VII): não é fácil transcender o mundo das aparências. 156 | Ronel Alberti da Rosa

Lá vai ele, que não se escusou ao chamado do deus eterno; assim recebe a graça do céu quem já provou, aqui embaixo, o Inferno. Quem semeia com dor, colhe o fruto de toda graça414.

414

Os últimos versos são explicitamente bíblicos, parafraseando o Salmo 126, 5: “Os que semeiam com lágrimas ceifarão em meio a canções”. A sombra de Orfeu: o Neoplatonismo renascentista e o nascimento da ópera | 157

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