A SOMBRA DOS HOMENS, DE ROBERTO DE SOUSA CAUSO E A FANTASY FICTION

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A SOMBRA DOS HOMENS, DE ROBERTO DE SOUSA CAUSO E A FANTASY FICTION1

RESUMO: O artigo propõe uma série de reflexões gerais sobre o gênero da Fantasy. A partir disso, é realizada uma leitura do romance A sombra dos homens, de Roberto de Sousa Causo, que propõe reescrever os principais tópicos da Fantasy através de uma série de elementos supostamente “nacionais”. O artigo defende a hipótese de que romance de Causo, no afã de “abrasileirar” a Fantasy, acaba reproduzindo uma série de lugares comuns ligados à construção de uma nacionalidade brasileira. A matriz ideológica, neste sentido, parece ser o Romantismo brasileiro.

Cristhiano Aguiar Universidade Presbiteriana Mackenzie

1) Convite à Fantasy

No ensaio “Convite ao mainstream”, o escritor paulista Nelson de Oliveira, escrevendo sob o pseudônimo de Luiz Bras, faz uma série de ressalvas à ficção brasileira contemporânea. “Diluição” e “cansaço” são as palavras-chave na avaliação que Bras realiza da atual produção. Não só os escritores contemporâneos estariam diluindo as práticas legadas pelos grandes nomes da literatura brasileira, tais como João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, como também haveria uma espécie de esgotamento temático da ficção: “Os mesmos dramas dos mesmos intelectuais entediados, da mesma classe média idiotizada, dos mesmos marginais marginalizados, dos mesmos indigentes tresloucados, da mesma juventude transviada” (Bras, 2011, p.29). “Convite ao mainstream”, porém, propõe um way out para o suposto marasmo da atual literatura brasileira: “Nossa sorte é que na literatura brasileira existem outras correntes além da corrente principal. A melhor delas – a mais vigorosa, vulgar e brutal – 1

Artigo originalmente publicado em: AGUIAR, Cristhiano. A sombra dos homens, de Roberto de Sousa Causo, e a Fantasy fiction. In: CORDIVIOLA, Alfredo; CAVALCANTI, Ildney. Os retornos da utopia: histórias, imagens, experiências. Edufal: Maceió, 2015.

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é certamente a da ficção científica” (Brás, 2011, p.30). O elogio, embora foque explicitamente a Ficção Científica, engloba na expressão “outras correntes” , além da já citada Ficção Científica, a Fantasy Fiction, a literatura policial e histórias de terror/horror. Não se trata, porém, de opor uma produção literária mainstream – termo muito utilizado por escritores e críticos que se dedicam à Genre fiction – aos modos de criação que acabaram de ser elencados. Oliveira defende que o legado das vanguardas e das literaturas mainstream do século XX são “ferramentas à procura de novos projetos” (Brás, 2011, p.32). O ensaio de Brás, com um sabor quase de manifesto, levanta questões fascinantes, que talvez merecessem uma reflexão voltada apenas a elas. O que para o nosso artigo é mais importante ressaltar, porém, é a ligação entre a crítica do escritor paulistano e a sua própria prática literária. Em livros como Subsolo infinito, ou Babel babilônia, escritos por Nelson de Oliveira, temos justamente a busca por um cruzamento entre a literatura de gênero e uma tradição mais mainstream. Nas diferentes expressões das literaturas em lingua inglesa, autores contemporâneos como Thomas Pynchon, Junot Diaz, Christopher Coake, David Mitchel e Yann Martel têm incorporado em seus romances mainstream elementos de Fantasia, Horror e Ficção Científica. O que escrevem, porém, os escritores brasileiros contemporâneos que atuam diretamente dentro da literatura de gênero? O presente artigo procurará elaborar algumas breves reflexões a respeito do romance A sombra dos homens, do paulistano Roberto de Sousa Causo. Neste livro, encontramos uma engenhosa tentativa de construir uma Fantasy fiction utilizando elementos da mitologia, geografia e história brasileiras. No lugar do Dragão, um Boitatá; no lugar de um Aragorn ou de Conan, um índio. Assim como Nelson de Oliveira, Causo se dedicará à teorização e crítica literária da própria tradição com a qual se aproxima. Em 2003, por exemplo, publicou um ótimo estudo que serve como introdução não só à literatura fantástica de modo geral, mas que também realiza uma história da literatura de gênero brasileira. Trata-se do livro Ficção científica, fantasia e horror no Brasil, publicado em 2003 pela editora da UFMG. Neste livro, Causo argumenta que ficção científica, horror e fantasia são variantes da [Type text]

ficção especulativa, aquela que propõe mundos ficcionais alternativos a um modelo padrão, e historicamente situado, do que seria o “real”. No caso da Fantasy, este outro mundo é fundamentado na magia e no sobrenatural (Causo, 2003, p.34; p.88) e recupera tópicos medievais e celtas (Hansen, 2003, p.19). Importante ressaltar que, nesta perspectiva defendida por Causo e incorporada neste artigo, “real”, “sobrenatural” e “fantástico” não são conceitos imanentes. Ou seja: eles são historicamente situados e serão plenamente definidos apenas na cultura e no público-leitor que os recebe. Por isso, um dos equívocos frequentes na crítica anglo-americana que escreve sobre Fantasy, por exemplo, consiste em trazer para essa discussão a geração de escritores latino-americanos conhecida genericamente como “realistas mágicos”. Para uma determinada cultura, por exemplo, um livro de Jorge Amado que contenha elementos das religiões afro-brasileiras pode soar extremamente “mágico” ou cheio de “fantasia”. No entanto, para certo público-leitor da obra de Amado, não será uma surpresa averiguar que esses leitores lerão a obra numa clave mais “realista”. Desta discussão estão cientes Mendlesohn e James (2009, p.3) que, ao escreverem o seu Short story of fantasy, afirmam: John Clute, who is by far the most important critic, coined the term ‘taproot’ for an originating text that continues to serve as a reference point, thus The Pilgrim’s Progress, can be understood as a ‘taproot’ text for modern fantasy but was for its author the relaying of a divinely inspired vision and not in the least bit fantastical. Many magic realist text from Latin America and the American South read as fantasy to fantasy readers, but were written with a firm sense of a supernatural world that exists in conjunction with the natural.

As perguntas surgem: que Fantasy “brasileira” podemos encontrar no romance a ser analisado? De que forma Fantasy fiction e utopia se relacionam? Qual a relação entre a representação de um espaço fantástico “brasileiro” e o controle do imaginário, tal como pensado por Costa Lima? Estas são algumas das questões que este artigo procurará problematizar.

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2) Fantasy fiction: pressupostos, discussões e história

Os antecedentes da Fantasy como a conhecemos hoje podem ser rastreados até o século XVIII, embora vários dos seus críticos e teóricos proponham uma genealogia excessivamente eclética e elástica para o gênero, inserindo obras como Senhor dos anéis, por exemplo, em uma tradição que remontaria até a Epopeia de Gilgamesh, ou à Odisseia de Homero. Em parte, este ecletismo e falta de rigor talvez seja um indício de um campo de pesquisa e produção literárias que ainda procura se legitimar como algo “estudável” dentro do universo de reflexão acadêmico. Legitimação é uma palavra importante, pois Fantasy, Science Fiction and detective stories não gozam de um imediato prestígio da crítica e historiografia literárias. Segundo Margaret Anne Doody (1996, p.294), ecoando de algum modo Ian Watt, é a partir da segunda metade do século XVIII que encontramos a ascensão de um modo cada vez mais realista de escrever, modo este que deslegitimou toda uma tradição ficcional na qual o aventuresco, o heróico e o mágico eram elementos centrais. No entanto, esse veio talvez subterrâneo da prosa nunca foi apagado e é no próprio século XVIII que pode ser presenciado o nascimento do gótico, do apólogo fantástico, da ficção científica e das histórias de horror (Doody, 1996, p.294), que formam literalmente uma contraproposta ao peso crescente de uma representação realista na ficção. Esta contraproposta, aliás, é acatada pelos próprios “grandes nomes do realismo”: There is hardly any great “master” of fiction in the nineteenth century who does not register some impatience with the demands of absolute Realism – not at realism itself, but at the idea that it must be all-in-all. Most nineteenth century authors give themselves a holiday from Prescriptive Realism from time to time. It would scarcely be fair to cite Dickens, whose attachment to Realism is so notoriously loose. (…) one might consider Balzac’s La peau de chagrin (1831), or Flaubert’s Salammbô (1862). Dostoevsky’s attachment to Realism is also

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disconcertingly loose; he can write stories in which corpses underground talk (Doody, 1996, p.296)

Assim, embora talvez o ponto de chegada do ensaio de Nelson de Oliveira seja generalizante demais (“a literatura contemporânea brasileira está esgotada”), a discussão levantada pelo texto continua pertinente: de fato, mesmo no caso de autores e obras que foram inseridos na História da Literatura Oficial, a relação entre gêneros considerados populares e outros nomeados de eruditos, entre imaginação fantástica e realismo, não é necessariamente dicotômica e pode ser muito dialógica. Embora talvez seja um exercício de superinterpretação considerar J.R.R. Tolkien como um “Homero” moderno, ou fazer uma genealogia direta entre Fantasy e romances da antiguidade greco-latina sem que haja a devida mediação, certamente Fantasy e outros gêneros populares se aproximam de uma tradição ficcional que se tornou cada vez mais subterrânea, ao menos no discurso da crítica, da teoria e da historiografia literárias, a partir da modernidade. Além do gótico e da narrativa aventuresca, um importante antecedente da Fantasy, cujas origens também podem ser localizadas entre o XVII e o XVIII, é o interesse crescente das literaturas europeias pelos contos populares e contos de fadas, chamados na época da literatura romântica alemã de Kunstmärchen (Wolfe, 2012, p12), bem como o interesse romântico pelo redescoberta da cultura da idade média (fundamental para o processo formador da nacionalidade dos Estados europeus modernos). Assim, escritores como E.T.A Hoffman, Ludwig Tieck, Lord Dunsany, George MacDonald e William Morris são importantes preocursores da Fantasy. Livros como Phantastes (1858) e The Princess and the Goblin (1872), escritos por MacDonald, e The Story of the Glittering Plain (1891) e The Water of the Wondrous Isles (1897), escritos por Morris, prepararam o terreno para a Fantasy do século XX. Eles serão algumas das principais influências para autores como J.R.R. Tolkien, C.S. Lewis e Robert E. Howard (Wolfe, 2012, p.16), que consolidaram a gramática da Fantasy fiction atual, cujos representantes mais conhecidos hoje são George R.R. Martin, J.K. Rowling, Philip Pullman, Robert Jordan, Ursula K. Legin, Marion Zimer Bradley, Terry Pratchet, entre outros. [Type text]

Existe uma multiplicidade de subgêneros dentro da rubrica “Fantasy fiction”. Entre eles encontramos High Fantasy, Sword and sorcery, Epic Fantasy, Dark Fantasy, entre outros, cujas diferenças entre si nem sempre são claras. A grosso modo, poderíamos dividir os livros de Fantasy em dois grupos. Todo o debate realizado por este artigo leva em conta o modelo a):

a) Histórias em que toda a narrativa se ambienta em um mundo paralelo, de modo geral criado a partir das já citadas referências celtas, medievais e com influência das sagas arturianas. O exemplo clássico são As crônicas de Nárnia, O senhor dos anéis;

b) Histórias situadas em uma ambientação urbana, contemporânea ou relacionada à história humana, mas que são permeadas em menor ou maior grau pela presença da magia, aparecendo também com frequência elementos medievalizantes. Neste caso, é frequente uma mistura entre Fantasy, Science Fiction and Horror, como atestam os livros de autores como Neil Gaiman ou China Miéville.

É interessante perceber que se a Ficção científica e o Horror foram, em décadas passadas, os principais carros-chefe da cultura pop e da literatura especulativa, os últimos anos têm presenciado a crescente popularidade da Fantasy. Segundo Mendlesohn e James (2009, p.5), essa mudança de mercado teria ocorrido em meados dos anos 80. Atualmente, dois terços dos livros vendidos sob a rubrica “fantasy and science fiction” no mercado anglo-saxão são livros de Fantasy. De fato, filmes como Senhor dos anéis, Harry Potter e As crônicas de Nárnia, por exemplo, assim como séries televisivas como Game of Thrones, impulsionam as vendas não apenas dos livros nos quais estas produções audiovisuais se basearam, como também aqueceram todo um mercado editorial não somente da literatura infantil e infanto-juvenil – tradicional público consumidor de Fantasy -, mas de um ávido público consumidor adulto. Além de filmes, séries e livros, jogos de videogame, RPGs, card games, board games and graphic novels têm escolhido a Fantasy como tema favorito. [Type text]

Apesar da pluralidade de mundos fantásticos e obras, a aproximação entre Fantasy e utopia nos parece uma boa forma de tentar teoricamente construir uma reflexão de conjunto a respeito deste tipo de literatura. Encontramos em toda essa produção, em maior ou menor grau, um forte senso utópico. Permeando vários destas ficções, podemos encontrar uma nostalgia e uma melancolias de uma época da Totalidade, da Era de Ouro. Os próprios mundos ficcionais criados nestas obras já poderiam em si ser vistos como uma Era de Ouro, porém em muitos casos as histórias começam quando estes mundos estão passando por um processo de transição. Às vezes, como é o caso dos livros de George R.R. Martin, é o mundo desencantado que reencontra a magia; em outros momentos, como é o caso de O senhor dos anéis, o mundo mágico caminha para o desencantamento, para a desaparição da magia. Seria possível, então, afirmar que a Fantasy é filha direta dos Paraísos Perdidos, do Jardim do Éden tão procurado na Idade Média, das Cocanhas, dos Reinos de Preste João, dos Eldorados? Em Visão do Paraíso, Sergio Buarque de Holanda (1994, p.151) afirma:

O perfeito acordo entre todas as criaturas, a feliz ignorância do bem e do mal, a isenção de todo mister penoso e fatigante, e ainda a ausência da dor física e da morte: estes são os elementos constitutivos da condição primeira do homem, que há de ser abolida com o Pecado e a Queda. Sobre esse núcleo inicial, que pertence ao Genesis, ampliado, em seguida, de traços oriundos do Apocalipse e, depois, de novos e sucessivos atributos tomados geralmente às crenças do paganismo, irão engastar-se pouco a pouco os juízos interpretativos dos padres da Igreja e dos teólogos, para formar, finalmente, a ideia medieval do Paraíso Terrestre.

Em que medida o espaço e personagens na Fantasy são uma variante dos motivos edênicos que, nascidos no imaginário bíblico e greco-romano, permearam discussões e representações contidas na literatura, teologia e filosofia? Embora seja difícil generalizar, devido à imensa quantidade de Fantasy escrita desde os séc. XVIII/XIX, defendemos que essas matrizes edênicas são de alguma forma reelaboradas pela Fantasy e que seus antecedentes, tais como as novelas de [Type text]

cavalaria, ou os contos de fada, forneceram uma rica matéria-prima que seria então reescrita, ou, nos piores exemplos, diluída. Embora os elementos constitutivos apontados por Sergio Buarque de Hollanda não se encontrem “puros” em boa parte dos mundos da Fantasy – mal, genocídio, política, crueldade e guerra são temas importantes nestas histórias -, ainda assim há um senso de harmonia dos habitantes com o espaço no qual atuam, assim como há uma totalidade de sentido – uma experiência plena, não fraturada, de um estar-aí-no-mundo – que nos remetem a uma condição semiedênica, digamos. Esta condição, em alguns casos, poderia ser interpretada como uma resposta escapista à própria modernidade e/ou às diferentes etapas do modo de produção capitalista. Assim, essa literatura, embora profundamente “moderna” e integrada a um aparato de produção e consumo de massa, carrega dentro de si uma inescapável e, por que não, irresistível, nostalgia pelo “paraíso que se perdeu”. Outras questões ideológicas poderiam ser apontadas na Fantasy. Conectado a este espírito “antimoderno”, algumas obras podem recair em uma idealização de um simulacro dos passados medieval e celta; uma época a ser vivida curiosamente através de padrões europeizantes e brancos. Na obra de Tolkien, por exemplo, as alegorias envolvem muitas vezes certos preconceitos de raça e gênero que se tornam muito mais evidentes na transposição desta obras para o cinema (vejamos a vilanização de traços orientais e/ou mestiços na raça dos Homens que aderam ao poder supremo do mal; ou os traços raciais africanos na “degenerada” raça dos orcs, goblins e uruk-hai). É justamente nessa exotização da alteridade que a Fantasy fiction pode encontrar um beco sem saída. Além disso, a observância rígida e repetitiva das próprias regras consolidadas no gênero também pode levar a Fantasy a um esgotamento. Como bem alerta Braulio Tavares (2004, p.14): “Em seus estratos literários mais toscos, esse tipo de fantasia acaba se esvaindo num ritual um tanto masturbatório, onde só conta a incessante repetição de um mesmo tipo de estímulo emocional, num ciclo fechado onde se tenta evitar a presença do Diferente, do Imprevisível, do Novo”.

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3) Fantasy à brasileira: lendo Roberto de Sousa Causo

Além de empreender uma reflexão teórica a respeito da literatura de gênero, o já citado Ficção científica, fantasia e horror no Brasil, de Causo, contém não apenas uma miltância a favor da legitimação literária destas modalidades literárias, como uma eficaz história de suas práticas no Brasil. Dez anos após a publicação daquele estudo, a situação tanto da Fantasy, quanto da literatura de Horror, em terras tupiniquins, mudou consideravelmente. Se em 2003 Causo (2003, p.298) se queixava, com razão, da “falta de atenção crítica sistemática” em relação à ficção científica, horror e fantasia, o panorama hoje, ao menos em termos de consumo e produção, está mudando. Embora haja poucos trabalhos críticos no Brasil sobre estes gêneros, uma série de novos escritores não apenas conseguiu publicar suas obras, como também encontrou um considerável público-leitor. É o caso de autores como André Vianco e Raphael Dracon, por exemplo, que respectivamente se dedicam à literatura de Horror e Fantasy. Importantes editoras como a Casa da Palavra e a Leya criaram específicos selos para vender livros de Fantasy e os autores brasileiros mais bem-sucedidos comercialmente da ficção especulativa mantém presença constante em redes sociais, listas dos mais vendidos e feiras literárias. Todo esse aquecimento do mercado de Fantasy não existia quando Causo publicou o seu estudo e estes novos autores não parecem preocupados com a questão de um “nacional” explícito na literatura especulativa escrita por brasileiros. Em Ficção científica, Fantasia e Horror no Brasil, por outro lado, encontramos uma forte inclinação na procura de uma fantasia ou ficção científica mais “mestiça”, aproveitando os elementos supostamente nativos de uma possível “cultura brasileira”. Em termos de uma história da Fantasy escrita e consumida por brasileiros, pode-se notar que ela profissionalmente mal começou, embora a medievalização seja em si um traço marcante na história da nossa literatura mainstream. Podemos lembrar, por exemplo, dos romances O guarani e Iracema, de José de Alencar, que importam para uma realidade nativa o já citado gosto romântico pela medievalização, ou obras [Type text]

como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa e O romance da Pedra do reino, de Ariano Suassuna. Nelas, influências da novela de cavalaria, de uma interpretação feudalizante do Brasil, principalmente do mundo rural, e a inserção de elementos das histórias de aventuras constituem aquilo que Walnice Nogueira Galvão (1976), talvez com mão pesada e excessiva militância marxista, chamou de “insidiosa presença” . Assim, o estudo de Causo faz menção à presença da feudalização na cultura literária brasileira, quase como uma indicação de que há em nosso sistema literário uma pré-condição para o desenvolvimento da Fantasy: “Os trabalhos de Guimarães Rosa, de Roberto de Mello e Souza e dos escritores de cordel mostram que essa matéria-prima medieval é encarnável em formatos originais e surpreendetes. Mas a fantasia como gênero teve pouco exercício no Brasil” (Causo, 2003, p. 98). Antes do surgimento da geração liderada por Raphael Dracon, a Fantasy brasileira poderia ser encontrada nos círculos restritos dos fanzines ou publicações de fãs de games e RPGs, ou em obras infanto-juvenis de autores como Luiz Roberto Mee ou Fábio Rezende (Causo, 2003, p.99). É possível afirmar que o solo na terra em que “se plantando tudo dá” estava apenas esperando a semente certa para florescer uma Fantasy tropical? Certamente, a presença de um imaginário da Idade Média nas diferentes expressões culturais brasileiras é um fator importante para a recepção da Fantasy, contudo não se pode subestimar a própria influência da moda da literatura de fantasia importada/imposta através da produção cultural de massa. Como já foi salientado, o ensaísmo aqui é o outro lado da moeda da ficção: ambos são caminhos de experimentação daquilo que parece ser o projeto de Causo, o de constituir uma Fantasy Fiction Brasileira, cuja autonomia deveria ser maior em relação ao seu modelo anglo-estadunidense. Vejamos, por exemplo, este trecho do estudo (p.119, 2003, grifos do autor): “Alguns romances bem recentes têm combinado a dark fantasy a um ethos genuinamente brasileiro. A mãe do sonho (1990), de Ivanir Calado, é um dos melhores exemplos”. O que seria um “ethos genuinamente brasileiro”? Perceberemos que A sombra dos homens tentará construir uma ficção de fantasia pautada por esta “brasilidade”. Mas será que isto é possível? Ou melhor: o que esta angústia implica? As cartas estão na mesa: se, como autor, proponho-me a escrever uma fantasy fiction, ou uma ficção [Type text]

científica, levando em conta articular esta criação com um “ethos brasileiro”, isto implica que a minha máquina ficcional precisará de rédeas, pois meu imaginário estará sob o controle de uma “brasilidade” que escolherá o que pode ser posto, ou não, à mesa da ficção. No ensaio Implicações de brasilidade, Costa Lima trata desta questão relacionando-a com a identidade nacional: “a consideração da identidade teve de atacar uma deficiência inicial: como não havia sentimento de nação, logo depois de proclamada

a

independência,

este

teve

de

ser

construído

e

desenvolvido

artificialmente”; um dos recursos para desenvolver isto estará na exaltação dos elementos da natureza, que a partir do romantismo desenvolverão uma série de representações, “imagens do brasil”, “decifradoras” da nossa brasilidade. A busca da brasilidade implicará num veto a uma ficção de largos voos imaginativos e/ou conceituais: os elementos a explorar – retórica afetiva, nativismo, pitoresco descritivo, etc. – condicionavam (e condicionam) uma obra fluentemente rasteira; externamente, na relação da obra com o público, tal limite deveria e continua a não dever ser ultrapassado, porque o nível de tolerância do leitor brasileiro era e continua baixo. E por que é baixa sua tolerância de recepção? Por que em instante algum dele se exigiu a prática de reflexividade? [...] a brasilidade sempre nos isentou, considerando-a, de um lado, própria das culturas maduras, se não envelhecidas, de outro, desnecessária em terra de tantas cores, cheiros, sabores (2005, p.22-23).

Nossa hipótese é que a ficção e a crítica de Causo ainda estão presos a esta questão do “nacional”. Os termos, claro, não são os mesmos apontados no ensaio de Costa Lima. Embora o tema da identidade nacional não pareça estar excluído da ficção brasileira contemporânea, ele não possui mais a força que desempenhava em gerações anteriores, principalmente porque já não parece caber mais à literatura desempenhar uma função nacionalizadora. A pergunta sobre o nacional, além disso, se reelabora de outras formas, talvez não mais na construção de um Brasil, e sim na descoberta dos mosaicos e fragmentos que se tensionam mutuamente sob a sombra desta ficção chamada “Nação”. Aqui, contudo, a busca do ethos brasileiro é reativada a fim de dar conta de um possível desconforto com a importação de um tipo de literatura que parece muito restrita à cultura anglo-saxã. [Type text]

A sombra dos homens conta as aventuras do índio Tajarê, que é, desde a primeira página do livro, didaticamente exposto como o “Herói da Terra”. Ele mora na Aldeia do Coração da Terra, que se localiza na região amazônica. O espaço é formado por uma luxuriosa floresta mítica, habitada por personagens do imaginário indígena, num contexto histórico anterior à colonização européia. Tajarê é chamado pela Terra para defendê-la da invasão de um grupo de vikings, que chegam à floresta com o intuito de libertar o deus Loki, adormecido embaixo da terra amazônica. Assim como a Terra-média de Tolkien seria a nossa própria terra, a floresta na qual Tajarê vive seria o pré-Brasil no século XI, contudo o modo os dois espaços, Terra-média e Amazônia, acabam por constituir um espaço mágico separado da nossa própria continuidade histórica. Os elementos paratextuais do romance nos dão muitas informações importantes a respeito de tudo que discutimos até o presente momento. Eles procuram reiterar a inserção do livro de Causo em uma tradição específica – a Fantasy – e em um projeto ficcional, o da constituição de uma Brazilian Fantasy. A capa e as ilustrações contidas no livro representam os protagonistas com corpos esculturais e em poses, principalmente no caso da figura feminina, eróticas; o corpo dos protagonistas e suas poses se adequam bem a toda uma tradição de ilustrações de pulp magazines e histórias em quadrinhos de Fantasy. Se antes tínhamos o Bárbaro das típicas histórias de Sword and Sorcery, junto com a sensual e dúbia feiticeira com quem ele se envolve em aventuras ou confrontos, presenciamos uma troca de paisagem e personagem: entram a floresta amazônica e o índio. Chama atenção, a justaposição de elementos que tradicionalmente não estariam misturados. Na capa, temos o índio, protagonista da história, em cima de uma cabeça de um Boitatá, enquanto ao fundo há outro monstro, mas de uma tradição cultural não brasileira: o Kraken. Em uma segunda imagem, encontramos o mesmo índio, com tacape na mão, em posição de confronto diante de um homem caucasiano, um guerreiro viking, que cavalga um cavalo. A mistura é criativa, embora a fatura final do texto sempre resvale para o kitsch. Imaginação extravagante e especulações são justamente onde a literatura especulativa e as pulp fictions retiram sua força e fascínio. Porém, diante do que se expôs, até que ponto a mistura contida em A sombra dos homens é resultado de um veto sobre o ficcional, que [Type text]

impõe a necessidade de uma certa imagem “mestiça” como caminho obrigatório para encontrar o tão procurado ethos “brasileiro”? Tajarê é um super-herói de tacape e urucum, invencível e que tem as forças mágicas da terra e da floresta ao seu lado. Embora ele seja anunciado pelo próprio romance, com didatismo, como um herói hesitante, seu heroísmo e poderes acabam tornando-o um personagem pouco interessante, uma mera força que põe adiante as ações que o livro deseja relatar. Além disso, desenrola-se uma história de amor entre ele

e a sacerdotisa viking Sjala, com quem o índio mantém uma relação de

desencontros que, apesar disto, não empolga. Os personagens são poderosos e perfeitos demais, retratos mecânicos que adornam uma paisagem-mundo que, embora não idealizada em termos românticos, é plena de totalidade, harmonia, vida, fecundidade: “E tal serpente é alimentada e fortalecida pelos aliados da fracassada defesa de Balder, os elementos da terra e da vida, neste vasto continente onde a vida parecia cerrar fileiras, crescer para dentro do próprio ar e da água, tal o poder de sua variedade e intensidade” (Causo, 2004, p.33). Se os nativos vivem em comunhão com a Terra, comunicando-se com ela e retirando deste espaço edênico uma existência Plena, aos “visitantes” brancos e europeus é colocada a pecha de se tornarem uma força alienígena identificada com o mal. A luta do bem (forças da Terra brasileira, virgens da maldade) contra o mal (os adoradores do deus Loki, o elemento estrangeiro que vem trazer o pecado original; as agressivas descendentes da Atlântida) se aproxima de uma ideologia de uma terra brasileira “pura”, cheia de magia, que corre o risco de ser profanada pelo elemento estrangeiro. A saída proposta para este binarismo recai em uma imagem clichê da brasilidade: o elogio conciliador da mestiçagem, através de uma fusão sexual, “harmônica”, e marcado pelo Amor Verdadeiro, entre o elemento índio e branco. Tajarê e Sjala darão a luz a um filho mestiço, Niadorã, um Moacir pop: A mulher que Tajarê roubou pra o Povo Mágico [Sjala] tem o poder de libertar a feitura mágica ruim, e se ela fizer isso toda a Terra será destruída [...] – O que Tajarê precisa fazer? – Tajarê perguntou – Matar a mulher? [...] A terra não quer o sangue da mulher, só o poder que ela carrega no ventre de ela [...] Sjala entregou-se ao homem que a tomara

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e que agora unia-se a ela com inquietante candura [...] Mas o fruto do seu ventro seria especial. Fora isso que a entidade mágica prometera há menos de um ano, no interior da caverna. [...] Seu filho seria a conjunção de duas forças mágicas, e dele viriam as respostas de que precisava (CAUSO, 2004, p.34-36; p.41, grifos nossos).

Há outra ressalva a ser apontada, desta vez a respeito da constituição da linguagem do romance. A voz do narrador muda de tom dependendo da ênfase numa destas duas personagens: Tajarê, ou Sjala. Vejamos o foco em Tajarê: Tajarê andou com seus passos leves até a oca agora sem guarda e entrou ligeiro. Tajarê viu a mulher deitada e sem as peles que cobriam o corpo de ela. A mulher era branca e cheia e bonita ou feia ou esquisita. Tajarê não soube o que pensar. Mas Tajarê já tinha roubado mulheres antes, nas guerras de sua tribo contra as tribos vizinhas, e Tajarê sabia o que fazer (CAUSO, 2004, p.24).

Vejamos agora o foco em Sjala: Sjala, a grande sacerdotisa do culto secreto de Loki, acordou com os solavancos e viu-se atravessada nos ombros duros como pedras do homem-demonio que a raptara no meio da noite, após vencer a vigilância do sentinela. Ela, além dessas conclusões, não podia entender o que acontecia. (CAUSO, 2004, p.24-25).

O foco em Sjala, branca e europeia, segue a norma-padrão culta, ao passo que a linguagem de Tajarê quer soar primitivista, truncada, sem a utilização de pronomes que substituam os nomes próprios, por exemplo. A ideia é boa, porém mal realizada. A visão da linguagem “normal” e “oficial” é a do europeu, relegando Tajarê a um gueto de primitivismo que trai uma adesão a uma representação clichê do índio, a uma visão do índio como aquele Outro que colocamos no pedestal para criar o nosso Verdadeiro Nacional. Procedimento linguístico semelhante acontecia, na nossa ficção, com o regionalismo. É o que apontam Candido (2013, p.88) e Dacanal (2001, p.18) ao tratarem da maneira estereoripada como alguns textos regionalistas representavam as falas dos personagens populares, escritas por meio de uma concepção enviesada de transcrição fonética, ao passo que os personagens de classe média e alta eram

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representados falando o código urbano culto2. Ora, a convenção de uma norma urbana culta, na sua modalidade escrita, não coincide exatamente nem com a sintaxe, nem com a transcrição fonética das variantes da língua portuguesa praticadas por membros das classes média e altas. 4) E há Brazilian Fantasy?

O texto de Causo, dado o nosso contexto histórico, não tem o objetivo de construir uma nação brasileira nos termos que Costa Lima colocou ao tratar do romantismo brasileiro. Não obstante, busca fundar uma fantasia “brasileira” lançando mão de imagens cristalizadas de brasilidade, que são repetidas sem a devida leitura crítica, porque elas continuam fazendo uma “pressão” na criação ficcional. A brasilidade, aqui, parece ser apenas uma questão de trocar as coisas de lugar: retiro o cavaleiro medieval, coloco um índio; retiro um castelo, coloco uma fortificação de madeira; retiro o dragão e coloco o boitatá. Tentando ser mais e mais brasileiro, a fatura de A sombra dos homens termina num sinal de menos. Parece termos esquecido a boa e velha lição de Machado de Assis no seu Instinto de nacionalidade, que já nos alertava que, ao invés da literatura se tornar brasileira pela força dos temas da região, o escritor deve procurar “certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço” (apud LIMA, 2005, p.21). Embora incorporar elementos da mitologia indígena ou da história brasileira possam ser muito instigantes para renovar o repertório da literatura fantástica, eles não precisam estar presentes em função de uma “brasilidade”. Desta forma, A sombra dos homens está sob a influência de dois fantasmas: primeiro, o fantasma da busca por um nacional “genuíno”. Segundo, o fantasma dos típicos clichês

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Como ilustração, vamos citar um trecho de um conto regionalista de Coelho Neto, analisado por Candido: “- Não

vou? Ocê sabi? pois mió. Dá cá mais uma derrubada aí modi u friu, genti. Um dos vaqueiros passou-lhe o copo e Mandovi bebeu com gosto, esticando a língua para lamber os bigodes. Té aminhá, genti.” (NETO apud CANDIDO, 2013, p.88).

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nos quais a Fantasy pode recair: o espaço enquanto Paraíso Perdido; o Outro enquanto Alien.

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