A SUPERAÇÃO DO IMPASSE APONTADO PELA \'OBJEÇÃO DO SOLIPSISMO\' NAS MEDITAÇÕES CARTERSIANAS DE HUSSERL

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A SUPERAÇÃO DO IMPASSE APONTADO PELA ‘OBJEÇÃO DO SOLIPSISMO’ NAS MEDITAÇÕES CARTERSIANAS DE HUSSERL Rodrigo Mahlmeister; n° USP 8962846. Hist. da Filosofia Contemporânea IV Prof. Marcus Sacrini

Introdução O movimento fenomenológico surge inaugurando uma descrição particular acerca da relação do sujeito cognoscente com o mundo, reagindo a uma interpretação psicologizante segundo a qual a consciência, por ser detentora do poder de se apropriar da realidade convertendo-a em representações, é definida pela interioridade absoluta. Recusando essa visão, a fenomenologia acaba também por figurar como uma negação do solipsismo – doutrina frequentemente evocada como grave acusação de deslize teórico, que explica a dicotomia sujeito-objeto reduzindo-a unicamente a conteúdos mentais. Ao atribuir à consciência um movimento de abertura, de projeção para fora de si em direção ao mundo, Husserl demonstra essa rejeição à ideia de um sujeito definido por uma esfera psicológica que encerra representações. Para tanto, o termo ‘intencionalidade’ assume centralidade em seu pensamento e é empregado com o fim de posicionar o mundo sempre como correlato da consciência – não como parte integrante dela. A partir da explicitação desse sujeito ligado intencionalmente a polos noemáticos, a fenomenologia envereda para suas investigações transcendentais, as quais atentam essencialmente às condições subjetivas da experiência e são orientadas pela inspiração cartesiana de busca àquilo que é absolutamente evidente e capaz de conferir autenticidade de fundamentação última a todas as ciências (HUSSERL, 2013, p. 40). Nas Meditações Cartesianas, Husserl conduz essas investigações e condensa parte significativa dos temas abarcados em sua vasta obra, utilizando com frequência os expedientes metodológicos da redução fenomenológica e da epoché. Ao final da quarta meditação, entretanto, esses mecanismos mostram-se insuficientes ao se defrontarem

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com a questão da intersubjetividade, uma vez que até então eles haviam imputado à consciência de um só ego a fonte absoluta de sentido e evidência, tornando-se vacilantes ao considerarem polos noemáticos que também são noeses. A teoria da constituição de sentido dos objetos até então desenvolvida tinha como limite esse caso em que o pólo sintético constituído era, além disso, um centro autônomo de organização de outra vida. Conforme aponta Pedro S. Alves (2008), para a reversibilidade que essa situação envolve, a formulação desenvolvida até a quarta meditação não continha instrumentos analíticos a seu dispor. A fenomenologia, que nesta altura das Meditações Cartesianas havia sido definida como um idealismo transcendental destoante de um idealismo psicológico, alcança com esse impasse uma situação desconfortável: vê-se aparentemente condenada ao solipsismo que negava, esbarrando no risco de colocar o ego enclausurado em si mesmo. Com isso, “a própria sorte da fenomenologia transcendental está em jogo”1, uma vez que a tensão posta representa uma ameaça a sua pretensão de ser uma filosofia transcendental e poder assegurar a possibilidade de um conhecimento objetivo. Husserl, reconhecendo o problema, aceita o que seria o maior desafio da obra, tratando-o ao longo de toda a quinta meditação. Procedendo assim, como pontua Paul Ricoeur (2009), ele assume como uma questão interna à fenomenologia aquela que é uma acusação comum contra toda forma de idealismo: a objeção do solipsismo. A resolução desse impasse desagua no esclarecimento de uma questão mais abrangente, e que acaba por emprestar ainda mais volume à proeminência do assunto tratado na quinta meditação: a constituição do sentido do mundo objetivamente válido. Nesta dissertação interpretativa, procuro defender que a explicitação fenomenológica da constituição da intersubjetividade se dá em cinco etapas. Em um primeiro momento, Husserl identifica o problema representado pelo risco do solipsismo e, a partir dele, projeta o que será aqui chamado de interesse primário da quinta meditação; no segundo, ele estabelece como condição para se iniciar o percurso gradativo de explicitação intencional da constituição do outro a introdução de um novo expediente metodológico que frise a distinção entre o próprio e o alheio. Em seguida, a terceira etapa envolve o passo sobre o primeiro degrau da escada que levará ao mundo objetivo; nela, é descrita uma atestação originária do corpo do alter-ego, sem ainda 1

Alan J. Vieira (2014)

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imputar-lhe o sentido de alteridade subjetiva. No quarto momento, elucida-se como a alteridade subjetiva é co-presentada e de que forma acontece a validação do sentido que lhe é conferido; por fim, a última etapa marca a chegada à constituição da objetividade: as percepções entram em coordenação múltipla, configurando uma comunidade de produção intencional. A partir dessa sequência, espero demonstrar que Husserl contorna o solipsismo argumentando que é possível reconhecer o “outro que é” sem reduzi-lo ao ego. Ao revelar que a intersubjetividade escapa à esfera própria, esclarece-se que ela não é acessível pela evidência apodítica, mas mediante uma evidência de experiência externa, que por sua vez viabiliza o sentido aí-para-qualquer-um.

SEÇÃO I: a identificação do problema e do interesse primário da 5ª meditação A indagação a respeito de se fenomenologia mereceria ser estigmatiza como algo semelhante a um solipsismo transcendental dá início ao campo temático que ocupa praticamente metade das Meditações Cartesianas. A princípio, Husserl reconhece que a redução transcendental, por vincular o eu a suas vivências e a suas operações constitutivas de sentido, pode dar margem à interpretação segundo a qual toda a esfera da experiência transcendental é definida por meio do ego e nele se esgota – compreensão essa que se revela precária assim que se anuncia a questão da intersubjetividade. De fato, o método da redução convertera em noema todas as coisas, inclusive os outros; portanto, não absorvera a densidade contida em um pólo noemático que também reunia a organização de outra consciência. Evidencia-se, assim, a limitação apontada por Pedro S. Alves (2008) da teoria da constituição de objetos em geral até então elaborada: ela não abarcava o sentido da experiência “outro sujeito”. Resta a Husserl estabelecer a tarefa de ganhar visão acerca da intencionalidade na qual o alterego se anuncia e se confirma; e, ao debruçar-se sobre ela, configura-se uma tensão central: cada consciência opera a partir de experiências e constituições de sentido próprias ao mesmo tempo em que percebe o mundo como algo que lhe é alheio, de validade intersubjetiva (HUSSERL, 2013, p. 130). À medida que Husserl avança nesse tema, o problema colocado acaba por ultrapassar o questionamento acerca de outras subjetividades: emerge com ele a necessidade de se justificar a própria existência e validade do conhecimento objetivo,

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acessível a qualquer um. O desenrolar da explicitação do sentido do “outro que é”, portanto, desagua em uma formulação mais ampla que representa uma “capa superior de constituição”2, já que não só contempla o alter-ego, mas também altera a própria teoria desenvolvida anteriormente de constituição dos objetos em geral. Isso porque, a partir da quinta meditação, esses últimos não serão mais considerados enquanto atestados por um ego solitário, mas por uma comunidade de produção intencional; constituídos, assim, como pólos de validade intersubjetiva (ALVES, 2008, p. 148-49). Pedro S. Alves afirma ainda que, em sua forma sistemática, a questão da comunidade intersubjetiva precede a relativa à constituição dos objetos em geral. Como as quatro primeiras meditações não se anteciparam desenvolvendo o assunto da alteridade, a descrição do modelo de constituição que elas apresentam (do pólo sintético de uma multiplicidade de atos intencionais) mostrou-se insuficiente e deu flanco à objeção solipsista. Alan J. Vieira (2014) lembra, entretanto, que Husserl menciona já na segunda meditação, após a efetuação da epoché, que naquela altura não se estava ainda em condições de abordar adequadamente a questão dos outros egos, o que indica que ele optou conscientemente por iniciar a fenomenologia como uma egologia solipsista. Esse solipsismo, por sua vez, iria revelar-se apenas aparente: a consecução das investigações conduziria à intersubjetividade transcendental, de tal forma que a ordenação adotada possivelmente consistiu em um método encontrado para rejeitar a admissão ingênua da intersubjetividade como um pressuposto dado e óbvio. Então, nos termos que Husserl coloca, “imediatamente se torna patente que o alcance de uma tal teoria [da constituição do alter-ego] é muito maior do que parece à primeira vista, dado que ela também conjuntamente funda uma teoria transcendental do mundo objetivo” (HUSSERL, 2013, p. 130, itálico do original). A constituição da objetividade assume, assim, centralidade: segundo Smith3, ela representa o interesse primário da quinta meditação, e impede que o mundo se reduza aos atos de consciência e correlatos noemáticos do ego (SMITH, 2003, p. 2014). Para Paul Ricoeur, o problema do outro tem alcance tal que desempenha um papel análogo ao que, em Descartes, “a veracidade divina enquanto fundamento de toda verdade e de toda realidade que ultrapassa a simples reflexão do sujeito sobre si mesmo” (RICOEUR, 2009, p. 215).

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Pedro S. Alves (2008) Smith (2003), p. 214 - referência reproduzida de Alan J. Vieira (2014)

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SEÇÃO II: a introdução de um novo expediente metodológico Posto o problema, sua resolução tem início com a introdução do primeiro expediente metodológico necessário à explicitação da constituição da intersubjetividade. A noematização do mundo havia sido insuficiente para considerar “outro que é”; fez-se, pois, necessária uma segunda redução, aplicando-se uma nova epoché no interior do campo transcendental já reduzido. Com isso, abstrai-se toda a operatividade alheia; ”ou seja, do fenômeno transcendental ‘mundo’, é retirada abstrativamente a camada de sentido fundada que remete à constituição intersubjetiva”4. Fechado nessa esfera própria, entretanto, o ego não deixa de estar ligado intencionalmente a pólos noemáticos alheios; apenas o que constitui o caráter de ser alheio ao o ego é tematicamente excluído. Dessa forma, desaparece por completo o sentido objetivo que pertence a tudo que é mundano, enquanto constituído intersubjetivamente e experenciável por qualquer um (HUSSERL, 2010, p. 134). Delimita-se, a partir desse mecanismo, um núcleo isolado, que circunscreve apenas a produção intencional do ego sem colaboração alheia, o que serve como um estrato fundante para compreender a atribuição do sentido “mundo objetivo”. Conforme esclarece Paul Ricoeur, esta etapa de forma alguma consiste em uma descrição com sentido cronológico, como se a experiência do que me é próprio precedesse no tempo a do que me é alheio: trata-se de uma filiação de sentido que repousa na noção de que é necessário em primeiro lugar definir o que é meu, para então dar sentido ao mundo do outro. “Há ‘estranho’ porque existe ‘próprio’, e não o contrário” (RICOEUR, 2009, p. 220). Nota-se, assim, que o avanço em direção à questão das outras subjetividades inicia-se com um recuo cujo resultado é o ego psicofísico experienciando um fluxo de vivências com um soma corpóreo inserido em uma natureza purificada de todo o sentido da subjetividade alheia.

SEÇÃO III: a transcendência imanente e a atestação originária do outro Husserl segue seu percurso gradativo de argumentação, pelo “desdobramento sistemático das intencionalidades”5, centrando sua análise ainda no interior do campo da propriedade, mas atentando sobretudo a uma área situada no limiar dessa esfera. A segunda redução, conforme ele explica, não excluiu o mundo transcendente, o mundo 4 5

Alan J. Vieira (2014) Husserl (2010), p. 130

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objetivo submetido à destituição de seu caráter alheio: o sujeito, após a segunda epoché operar, não cessa de se dirigir ao mundo, o qual se manifesta como horizonte temático no interior da esfera própria. O que o novo expediente metodológico da seção anterior proporcionou foi a distinção entre o que é plenamente imanente – e circunscreve o fluxo interior de vivências – e o que pertence ao nível transcendente imanente – que abarca a abertura para a esfera mundana. As aparências, possibilidades e objectualidades eidéticas que se deparam ao ego como transcendentes, na medida em que foram alvos da segunda redução, pertencem também ao domínio do próprio (HUSSERL, 2010, p. 142). A definição deste último nível apresenta-se como o primeiro degrau da escada que levará a argumentação ao mundo complexo, que envolve um nível superior de constituição de sentido, a saber, o da transcendência objetiva. É imprescindível sublinhar os diferentes graus de evidência que vigoram em cada nível: o mais complexo, por escapar à esfera própria, não é absolutamente evidente como o primeiro, e, portanto, não é acessível pela evidência apodítica. O mundo primordial alcançado na transcendência imanente serve de subsolo para a constituição do mundo objetivo. Este último, contudo, pressupõe que o ego reconheça, antes, as outras subjetividades – etapa que marca a primeira superação dos limites nos quais está envolta a esfera própria. Husserl parte, então, para a explicitação intencional do contato com o outro, e logo identifica uma dificuldade: se o alter-ego estivesse disponível ao eu de um modo direto, ele não passaria de um momento da essência própria do ego; e não seria possível receber, junto com a doação dessa outra consciência, as vivências e aparições que lhes são próprias. Adianta-se, assim, que uma certa mediatez da intencionalidade é necessária ao processo denominado por “apresentação” da esfera primordial do sentido “outro” – em sua acepção que denota um ser com experiências particulares. Sem essa mediação, no campo perceptivo da transcendência imanente, o único corpo que pode estar originariamente constituído como um soma é o do próprio ego; então, a atestação originária do alter-ego que se dá no nível primordial reconhece nele não mais do que um elemento determinativo do ego, e não lhe atribui o sentido de soma, como um órgão funcionante em torno do qual se organiza outra vida (HUSSERL, 2013, p. 147-49).

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SEÇÃO IV: o 1° nível da transcendência objetiva e a co-presentação da alteridade Um leitor apressado poderia acusar Husserl de, ao realçar o contraste que a experiência do outro forma com a do próprio, tornar o problema do solipsismo ainda mais insolúvel. Para que o recuo proposto não fosse em vão, seria necessário que a esfera primordial embasasse o acréscimo de sentido que se liga ao reconhecimento de outra subjetividade. Conforme aponta Ricoeur, é precisamente essa exigência que Husserl atende: ao prosseguir na argumentação, a experiência de transcendência em direção ao alter-ego enraíza-se na experiência primordial. No estrato noemático restante após a segunda redução, permanecera a natureza em que foi reconhecido o corpo orgânico, ou soma, por meio do qual o ego exerce suas capacidades intencionais e se reconhece enquanto unidade psicofísica (HUSSERL, 2010, p. 135). Assim, o recuo à esfera própria revelou que “a consciência em que o ego transcendental faz experiência no mundo é a consciência pela qual o ego se põe ele próprio no mundo e a si próprio aparece como uma unidade não só psíquica, mas também somática”6. Essa formulação serviu como superfície na qual, a partir da semelhança entre o meu soma e o de outro, repousa a ligação entre o “corpo ali” e o meu próprio corpo, e motiva a apreensão analogizante do primeiro como um outro soma (HUSSERL, 2010, p. 149). Graças a essa apreensão, “pode-se vencer o solipsismo sem o sacrifício da egologia. Noutros termos, pode-se explicar a transgressão da esfera do próprio, confirmando ao mesmo tempo o primado da experiência originária do eu”7. Conclui-se com isso que só na medida em que apareço corporalmente no mundo pode um outro corpo emergir como outro soma, possibilitando um emparelhamento originário entre o ego e o alter-ego – que, como Husserl frisa repetidas vezes, consiste em uma forma de síntese associativa passiva. Essa parificação por semelhança permite a transferência de sentido de uma unidade temática para outra, de tal forma que o alterego recebe o sentido de outro corpo vivo, detentor de outra esfera própria. Extravasando as fronteiras do campo reduzido à propriedade, com a mediação representada por essa síntese parificante, a vida subjetiva do outro é co-presentada, em oposição ao processo diretamente intuído no qual o corpo de outrem havia sido presentado ao ego na atestação originária da seção anterior.

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Pedro S. Alves (2008), p. 158 Paul Ricoeur (2009), p. 227

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Husserl, na sequência, debruça-se sobre o problema de tornar compreensível a confirmação da validade desse sentido atribuído de alteridade subjetiva. Em um primeiro momento, identifica que a conduta alheia, por constituir uma experiência harmônica, contínua e concordante comparável à do ego, é um elemento que ratifica tratar-se de outra subjetividade. Outro fator que serve de validação refere-se à espacialidade do eu psicofísico: o campo perceptivo de uma consciência forma-se sempre sob perspectiva, orientada espacialmente de tal forma que um soma corpóreo tem como seu modo de doação um “aqui central”, enquanto o corpo do outro tem o modo “ali”. Cada perspectiva, além disso, é multiplicável indefinidamente por meio de alterações na orientação espacial do corpo, o que faz da perspectiva visada pelo outro algo que o eu poderia assumir. Configura-se, assim, um sistema de equivalências de localizações espaciais possíveis para o meu corpo que contribui para que ao alter-ego seja imputado o sentido de soma constituído no modo de outro “aqui central”; e, portanto, enquanto centro funcionante do seu governo (HUSSERL, 2010, p. 154-55).

SEÇÃO V: a intersubjetividade transcendental O nível que faz a alteridade subjetiva anunciar-se e confirmar-se atinge, em seguida, graus superiores de constituição: ao considerar uma multiplicidade de mônadas, cada qual com percepção do alheio e todas ligadas intencionalmente ao mesmo mundo objetivo, engendra-se uma comunidade de produção intencional. A natureza, enquanto os pólos noemáticos revelam-se como potencialmente válidos para outros pontos de vista, vai ganhando sentido de validade objetiva, marcada pela síntese harmoniosa e pela confirmação concordante de múltiplas perceptivas. Husserl designa, finalizando a constituição da intersubjetividade, a intersubjetividade transcendental como uma comunidade aberta (passível de incluir outro qualquer) constituída no ego meditante a partir de suas fontes de intencionalidade, ao mesmo tempo em que é a mesma para cada mônada (HUSSERL, 2010, p. 168).

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Conclusão A objeção do solipsismo, que apontava um problema comumente associado às filosofias idealistas, supunha que a fenomenologia não estaria apta a descrever adequadamente a passagem do ego transcendental para a subjetividade alheia e para a objetividade. Prontamente assumido por Husserl, o desafio de superar essa objeção acaba servindo de gatilho para estabelecer como interesse primário da quinta investigação a constituição da objetividade do mundo. Para tanto, o autor considerou que o processo de apercepção de um outro sujeito seria a condição para a edificação de uma comunidade na qual os pólos noemáticos têm validade intersubjetiva. O

método

assumido

passou

pelo

desmembramento

sistemático

das

intencionalidades em um percurso gradativo de explicitação de constituição de sentido em diferentes níveis de evidência. O caminho se inicia com a introdução de um mecanismo de abstração metódica que procurava evidenciar os ingredientes parciais da experiência do mundo, isolando a camada na qual se enraíza o acréscimo de sentido que se liga ao reconhecimento de outra subjetividade. Para Zahavi 8, se a experiência do outro fosse acessível ao eu diretamente, não haveria instituição de nenhuma objetividade, já que o sentido “alter-ego” não ultrapassaria o círculo daquilo que é próprio ao ego. Esse primeiro expediente metodológico, ao demonstrar que o sentido de outra subjetividade enquanto centro autônomo de organização de outra vida escapa à esfera própria absolutamente evidente, revelou consequentemente que é preciso mediatez para que esse sentido seja atribuído. Ao não restringir o mundo aos atos de consciência e correlatos noemáticos do eu, já começa a ser delineado o contorno ao problema do solipsismo, elucidando que a constituição do sentido “outro que é” se dá sem que ele seja reduzido ao ego. A argumentação desagua, por fim, na constituição do sentido aí-para-qualquerum, formulação que se mostra determinante para a fenomenologia na medida em que contribui para dar vulto a uma noção de experiência de mundo cuja condição é a pluralidade de sujeitos, de tal forma que a existência das coisas posiciona-se não como “para mim”, mas para “qualquer um” (ALVES, 2008, p. 164). Levando em conta as palavras de Pedro Alves (2008), p. 167:

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Zahavi (2003), p. 116 - referência reproduzida de Alan J. Vieira (2014)

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Na verdade, sem os processos de harmonização comunicativa dos fluxos de experiência, sem, portanto, a conexão de auto-aparição com a aparição de um alterego e a consciência recíproca de uma comunidade, que aí se edifica, não há, para o ego, qualquer coisa como uma efetiva experiência de mundo: a experiência de um mundo é obra de um ego que desde sempre se passou já para a consciência de uma comunidade (real ou possível) de sujeitos em consciência recíproca da harmonia dos seus fluxos de experiência – tal é a derradeira lição que deriva da leitura que fazemos do movimento global da quinta meditação.

Husserl, que até a quarta meditação havia dado margem para a objeção do solipsismo, logra com a quinta meditação a rejeição à admissão ingênua da intersubjetividade como um pressuposto e supera o impasse que essa objeção representa.

Referências bibliográficas: HUSSERL, E. Meditações cartesianas e conferências de Paris. Tradução de P. M. S. Alves. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010. RICOEUR, P. Na escola da fenomenologia. Tradução de E. F. Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. ALVES, P. S. Intersubjetividade e comunicação, uma abordagem fenomenológica. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2008. VIEIRA, A. J. Intersubjetividade e solipsismo nas Meditações Cartesianas de Husserl. UFSC, 2014. SMITH, A.. D. Routledge Philosophy guidebook to Husserl and the Cartesian meditations. New York: Routledge, 2003. ZAHAVI, D. Husserl’s intersubjective transformation of transcendental philosophy. Journal of the British Society for Phenomenology, [s.l.], vol. 27, n. 3, p. 228-245, 1996.

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