A SUSPENSÃO DE DIREITOS DE INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS COMO MEDIDA RETALIATÓRIA NAS DISPUTAS NA OMC: UMA OPÇÃO PERIGOSA

Share Embed


Descrição do Produto

A SUSPENSÃO DE DIREITOS DE INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS COMO MEDIDA RETALIATÓRIA NAS DISPUTAS NA OMC: UMA OPÇÃO PERIGOSA André de O. S. Moreira1

SUMÁRIO: I – Introdução. II - As indicações geográficas no âmbito da OMC. 2.1 - As indicações geográficas e suas características. 2.2 Alguns reflexos da regulação das Indicações Geográficas na OMC. III – O perigoso uso das indicações geográficas como ferramenta de retaliação. 3.1 – A suspensão de direitos de indicações geográficas como medida retaliatória: para quem? 3.2 O caso Bananas e o “vinho Bordeaux equatoriano”. IV – Considerações finais.

I – Introdução

O presente estudo buscará analisar a suspensão de direitos de propriedade intelectual das indicações geográficas como medida retaliatória no sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio. O foco deste trabalho é verificar se tal medida, plenamente autorizada pelas atuais regras dos respectivos tratados internacionais que compõem a OMC, não traria efeitos negativos incapazes de serem sanados após a execução destas medidas. Para tal fim, o presente artigo será dividido em duas partes, na primeira será analisado o instituto das indicações geográficas e suas características essenciais, justificadoras da existência desse tipo de artificialidade da propriedade intelectual. Ainda neste primeiro momento, observaremos a regulação das indicações geográficas no âmbito da OMC, ocorrido por meio do acordo TRIPS, um tratado internacional que versa sobre a propriedade intelectual. Antecipamos, no entanto, que o principal reflexo analisado será a submissão dos direitos previstos em referido acordo internacional ao sistema de disputas da OMC e, consequentemente, a possibilidade de uso dos mesmos como medida retaliatória. Dessa

maneira,

na

segunda

parte

deste

estudo

analisaremos

especificamente o uso da suspensão de direitos de indicações geográficas como forma de retaliação, salientando que tal opção pode ser muito perigosa em face ao que referidos institutos de propriedade intelectual representam. Após, será 1

Mestrando pela Faculdade de Direito da UFRGS, advogado.

apresentado um caso emblemático, o caso Bananas, onde pela primeira vez a suspensão de direitos de indicações geográficas foi autorizado pelo órgão de solução de disputas da OMC, momento em que algumas reflexões foram feitas por parte da doutrina. Não se pretende, outrossim, analisar criticamente o sistema de retaliação da OMC, mas tão somente a suspensão dos direitos de indicações geográficas como ferramenta do mesmo, razão pela qual já se fazemos essa ressalva de antemão. Importante destacar, ainda, alguns dos autores que tiveram maior contribuição para o desenvolvimento deste estudo, como Peter Van den Bosche, Gabriel L. Slater e Allison Whiteman. Não obstante, digna de ser mencionada, também, a professora da casa Kelly Lissandra Bruch, quiçá a maior autoridade nacional no campo das indicações geográficas.

II – As indicações geográficas no âmbito da OMC

2.1 As indicações geográficas e suas características

Quando compramos um vinho Bordeaux, sabemos geralmente quais características e qualidades esperar do produto, independente da vinícola que o fez. Da mesma maneira, quando vamos ao supermercado e compramos uma carne de gado vinda da campanha gaúcha, sabemos de antemão que aquele produto possuirá certas propriedades (maciez, sabor, textura), mesmo que nunca tenhamos ouvido falar na fazenda que criou o animal abatido. Não suficiente, ao mesmo tempo que esses sinais de referência da origem do produto nos passam algumas informações prévias sobre o que esperar, eles também fazem com que aquele produto sinalizado se destaque dos demais. Estes sinais são chamados de indicações geográficas. Dentro do mundo do direito, todavia, as indicações geográficas, conforme atesta Viviane Gurgel, são institutos da propriedade intelectual que possuem como finalidade proteger e garantir uma característica diferenciada de um produto ou serviço que, por sua vez, encontra-se conectada com determinada região geográfica2. O nome desta região (ou qualquer outro sinal pelo qual a mesma seja 2

GURGEL, Viviane Amaral. Aspectos Jurídicos das Indicações Geográficas. In: LAGES, Vinícius et al. (Org.). Valorização de produtos com diferencial de qualidade e identidade: indicações geográficas e certificações para competitividade nos negócios. Brasília: Sebrae 2005, p. 58.

conhecida) passa a atuar como um identificador e indicador de qualidades que aquele produto ou serviço possuirá, o que pode gerar benefícios aos seus utilizadores e consumidores, conforme observaremos a seguir. No outro lado dessa moeda está o direito de impedir que pessoas fora dessas regiões utilizem referidos termos para identificar seus produtos. As indicações geográficas, portanto, fazem parte do direito da propriedade intelectual3 e, no ponto de vista deste autor, são um instituto sui generis dentro desta4, pois dificilmente enquadram-se dentro de uma das esferas da típica divisão entre direitos autorais e propriedade industrial, divisão esta bem apontada por Luiz Otávio Pimentel5. As indicações geográficas são o gênero, dividindo-se em duas espécies: as indicações de reputação e aquelas que possuem uma relação com fatores naturais e humanos da região, conforme bem conceitua Viviane Gurgel ao analisar as indicações de procedência e denominações de origem, nomes adotados pela legislação pátria correspondente (Lei 9.279/96): “(...) entende-se a indicação de procedência como um conceito a partir da excelência, peculiaridade ou especialização de uma expertise que não está vinculada a uma reunião de fatores locais relacionados

a

especificidades

geológicas,

fisiográficas,

edafoclimáticas ou humanas. Na indicação de procedência, o relevante

é

a

notoriedade

qualitativa

que

se

atingiu

no

desenvolvimento de determinado produto ou serviço não relacionado a especificidades dos recursos naturais e humanos; ou seja, as

3

Não cumpre aqui trazermos a discussão sobre a nomenclatura utilizada (propriedade intelectual ou direitos intelectuais), sendo suficiente salientar que existe na doutrina diferentes pontos de vista sobre tal tema, alimentados pela discordância entre doutrinadores sobre direitos de criações intelectuais serem ou não direitos de propriedade (ver obras de Edmond Picard, José de Oliveira Ascensão, João da Gama Cerqueira, entre outros). Para o presente trabalho, adotaremos o nome propriedade intelectual, pois este é utilizado na maior parte das legislações, bem como (e principalmente) no âmbito da OMC (vide o nome oficial do acordo TRIPS - Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights). 4 Importante mencionar que no Brasil as IGs encontram-se regidas pela Lei de Propriedade Industrial – Lei 9.279/96, ainda que este autor não concorde que aquelas fazem parte deste subgrupo, por razões que não cumprem ser aqui discutidas também. 5 “As diversas produções da inteligência humana e alguns institutos afins são denominadas genericamente de propriedade imaterial ou intelectual, dividida em dois grandes grupos, no domínio das artes e das ciências: a propriedade literária, científica e artística, abrangendo os direitos relativos às produções intelectuais na literatura, ciência e artes; e no campo da indústria: a propriedade industrial, abrangendo os direitos que têm por objeto as invenções e os desenhos e modelos industriais, pertencentes ao campo industrial” (PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito industrial – as funções do direito de patentes. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 126.).

especificidades, relacionadas ao clima, solo, geografia, qualidade da água, bioma e culturais da população local, não são essenciais. Quando se trata de denominação de origem, ocorre a necessidade de

preenchimento

de

requisitos de

qualidade

do

tipo

que

caracterizam o produto (...) exigência esta não requerida aos produtos e serviços afeitos à indicação de procedência.”6 Essa divisão em duas espécies é recorrente no cenário legal alienígena também, ainda que os nomes possam variar, como no caso da União Européia que possui a Apelação de Origem Controlada (AOC) e a Indicação Geográfica Protegida (IGP), bem explicadas por Catherine Brabet e Dominique Pallet7. Europeia também é a

origem

histórica

desse

instituto

da

propriedade

intelectual,

conforme

brilhantemente relata Kelly Bruch8, atrelando a produtores europeus de vinhos o primeiro uso de termos geográficos de maneira regulamentada em seus produtos. Desde então a regulamentação do uso de termos de indicação geográfica começou a receber destaque nas legislações nacionais, inicialmente para alguns produtos específicos, em sua grande maioria bebidas fermentadas e destiladas, chegando ao contexto em que hoje estamos inseridos, onde qualquer produto (e até mesmo serviço, no caso da legislação brasileira9) que tenha essa ligação extraordinária com o local onde é produzido pode receber essa sinalização regulamentada10. No cenário internacional também é possível observar o nascimento 6

GURGEL, op. cit., p. 66. BRABET, Catherine, PALLET, Dominique. Os selos oficiais de qualidade dos alimentos na França e na Europa. In: LAGARES, Léa, LAGES, Vinícius, BRAGA, Christiano (Orgs.). Valorização de produtos com diferencial de qualidade e identidade: indicações geográficas e certificações para competitividade nos negócios. Brasília: SEBRAE, 2005, p. 35. 8 BRUCH, Kelly Lissandra. Signos distintivos de origem: entre o velho e o novo mundo vitivinícola. Tese de doutorado defendida perante a UFRGS, 2011, p. 51-110. 9 Lei 9.279/96: Art. 177. Considera-se indicação de procedência o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço. 10 “Os primeiros produtos beneficiados foram os vinhos e, notadamente, o champanhe. Os vinhos franceses tem em geral o nome da região onde são produzidos: Bordeaux, Champagne, Bourgogne são regiões da França onde tradicionalmente existem uvas específicas e determinados meios de produção que dão origem a um vinho com um gosto e um teor alcoólico conhecido pelo público. Assim, quando o consumidor vê esses nomes, ele os relaciona de imediato a uma qualidade já conhecida. No entanto, nessa época, existiam muitos outros produtores de vinhos que classificavam seus vinhos como champanhe, bordeaux, bourgogne, mesmo que esses produtos fossem fabricados em outras regiões da França, até que a proteção do direito proibisse tal prática. Com o passar dos anos, diversos outros produtos foram beneficiados pela lei, como os queijos, os pães, outras bebidas alcoólicas, aves, produtos tradicionais, etc. Ademais, vários países adotaram mecanismos análogos com os mesmos objetivos.” VARELLA, Marcelo Dias, GRANJA E BARROS, Ana Flávia. Indicações geográficas e arranjos produtivos locais. In: VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Propriedade intelectual e desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 363. 7

de disposições específicas sobre indicações geográficas em diversos tratados, como a Convenção da União de Paris11, o Acordo de Madrid para Repressão às Falsas Indicações de Origem de Produtos e, principalmente, o TRIPS. Atualmente no Brasil a forma para obter um registro de indicação geográfica é por meio de um processo administrativo perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, regulado pela Lei 9.279/96 e pelos atos administrativos e regulamento de referida entidade. O grupo de produtores de determinada região, ou uma associação representante dos mesmos, deve apresentar provas das qualidades ou da reputação do produto feito naquela localização geográfica e, assim, aguardar o exame dos especialistas de referida autarquia. Uma vez concedido o registro de indicação geográfica, todos aqueles que estiverem dentro dos limites territoriais estabelecidos, bem como cujos produtos atendam aos requisitos definidos para obter tal certificação, gozarão do direito de uso exclusivo daquele sinal12. Ao agregar um sinal de indicação geográfica a um produto as vantagens se mostram inúmeras, e não apenas voltadas aos próprios produtores, conforme atestam Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Granja e Barros ao elencar as vantagens que auxiliaram na consolidação do sistema de proteção das indicações geográficas: “Em suma, o sistema se consolidou por: - impedir os concorrentes de copiar ou contrafazer os produtos ou os serviços de uma empresa; - evitar investimentos pouco rentáveis e pesquisa, desenvolvimento e marketing; - criar uma imagem de marca graças a uma estratégia de comercialização fundada em uma marca; - aumentar o valor do fundo de comércio; - adquirir um capital-risco e facilitar o acesso a crédito; - ter acesso a novos mercados; - garantir a aquisição e expandir a credibilidade dos consumidores; - reforçar a cultura regional e a reorganização territorial; 11

Art. 1º (2) A proteção da propriedade industrial tem por objeto as patentes de invenção, os modelos de utilidade, os desenhos ou modelos industriais, as marcas de serviço, o nome comercial e as indicações de procedência ou denominações de origem, bem como a repressão da concorrência desleal. 12 Lei 9.279/96: Art. 182. O uso da indicação geográfica é restrito aos produtores e prestadores de serviço estabelecidos no local, exigindo-se, ainda, em relação às denominações de origem, o atendimento de requisitos de qualidade.

- criar novas rendas indiretamente ligadas ao produto, por meio do turismo e da promoção de outros produtos regionais; - possibilitar um selo de qualidade ligado à marca local;”13 Dessa maneira, hoje em dia é com grande facilidade que encontramos produtos rotulados por sinais de indicações geográficas, como por exemplo:

Figura 1. INPI: Registro de indicação de procedência n. IG20000214;

Figura 2. INPI: Registro de indicação de procedência n. IG20070215;

13

VARELLA e GRANJA E BARROS, Op. cit., p. 363-364. Registro de indicação de procedência para o nome geográfico “Vale dos Vinhedos”, para os produtos “vinhos tinto, branco e espumante”, cuja delimitação é “A região do VALE DOS VINHEDOS possui uma área total de 81,23Km², distribuída na sua maior parte no Município de Bento Gonçalves, mas também nos Municípios de Garibaldi e Monte Belo do Sul. Considerando-se as coordenadas extremas, o VALE DOS VINHEDOS localiza-se nos paralelos 20938* e 29^15' Oeste de Greenwich. Possui a forma aproximada de um triangulo isósceles, cujos vértices localizam-se a Nordeste da cidade de Bento Gonçalves, a Leste da cidade de Monte Belo do Sul e ao Norte da cidade de Garibaldi.” Informações disponíveis em acesso em 22/01/2013. 15 Registro de indicação de procedência para o nome geográfico “Vale dos Sinos”, para o produto “couro acabado”, cuja delimitação é “Fica estabelecida como área da INDICAÇÃO GEOGRÁFICA delimitada para a produção do couro acabado da região conhecida como "Vale do Sinos" os limites políticos dos Municípios de Araricá, Campo Bom, Canoas, Dois Irmãos, Estância Velha, Esteio, Ivoti, Nova Hartz, Nova Santa Rita, Novo Hamburgo, Portão, São Leopoldo, Sapiranga, Sapucaia do Sul, Igrejinha, Lindolfo Collor, Morro Reuter, Parobé, Picada Café, Presidente Lucena, Riozinho, Rolante, Santa Maria do Herval, Taquara, Três Coroas, Alto Feliz, Barão, Bom Princípio, Brochier, Capela Santana, Feliz, Harmonia, Linha Nova, Maratá, Montenegro, Pareci Novo, Salvador do Sul, São José do Hortêncio, São José do Sul, São Pedro da Serra, São Sebastião do Caí, São Vendelino, Tupandi e Vale Real.” Informações disponíveis em: acesso em 22/01/2013. 14

Um detalhe deveras importante sobre as indicações geográficas é a característica identificadora e orientadora, para consumidores, que ela possui. Fernanda Brandão, que elaborou uma dissertação de mestrado abordando a percepção do consumidor sobre produtos com esses sinais, constata que estes desenvolvem uma identidade e reputação e que os consumidores são guiados por esses sinais, aceitando até mesmo pagar mais para adquirir um produto cujas qualidades eles conhecem sem mesmo conhecer o produtor16. Portanto, é possível afirmar que essa característica identificadora e distintiva das indicações geográficas é essencial a sua existência, pois do contrário, se não gerar diferenciação perante os demais produtos do mercado, desnecessária torna-se sua existência. Não suficiente, um alerta deve ser feitos quando ao uso desses institutos da propriedade intelectual: o risco de generificação. A partir do momento que um termo que identifique uma origem geográfica passe a exercer a própria função de descrição do produto, como é o caso do queijo-de-minas ou do queijo Prato 17, não mais possível é a sua apropriação exclusiva, mesmo que originariamente tais expressões fossem típicas indicações geográficas. Nesse sentido, os produtores de determinado local, que tenham em mãos um sinal desse tipo, devem ter extremo cuidado para não permitir que aquele nome se torne de uso comum. Importante salientar, por fim, que a validade de um registro de Indicação Geográfica é territorial, tanto no Brasil como nos demais países, exigindo, portanto, que

aqueles

interessados

em

proteger

seu

sinal

geográfico

iniciem

os

procedimentos registrais nas demais nações de interesse. Nesse sentido, a movimentação do direito internacional para garantir a proteção dessa importante ferramenta da propriedade intelectual foi essencial para a consolidação do instituto 16

“[…]a IG confere ao produto ou ao serviço uma identidade própria, tendo em vista que o nome geográfico estabelece uma ligação entre suas características e a sua origem, gerando um fator diferenciador entre os demais disponíveis no mercado. Por conseqüência, o produto ou serviço adquire uma reputação e os seus consumidores ou usuários estarão dispostos a pagar um pouco mais, já que se trata de um produto ou serviço único e sua substituição por outro passa a ser mais rara.” BRANDÃO, Fernanda Scharnberg. Percepções do consumidor de carne com indicações geográficas. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. CEPAN-Centro de Estudos e Pesquisas em Agronegócios. Programa de Pós-Graduação em Agronegócios. Porto Alegre, 2009, p. 35. 17 “O art. 180 (da Lei 9.279/96) ressalva o uso da indicação quando ela se tornou de uso comum, designando produto ou serviço. Enquadra-se nesta definição, por exemplo, o queijo Prato, que é produzido em todo o mundo sob este nome, e não somente na região italiana de Prato. Outro exemplo, desta vez nacional, é do queijo-de-minas, oriundo daquele Estado brasileiro e hoje produzido em todo o país sob esta denominação.” IDS-Instituto Dannemann Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual. Comentários à lei de propriedade industrial. Ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 348.

da indicação geográfica, tendo a Organização Mundial do Comércio papel de destaque nesse processo.

2.2 Alguns reflexos da regulação das Indicações Geográficas na OMC

Com a intensificação do comércio internacional nos últimos 30 anos, ocasionando uma maior circulação de bens e serviços, grande parte deles protegidos por institutos da propriedade intelectual, houve um clamor geral entre as nações para uma reformulação do sistema internacional de proteção das criações humanas. Todavia, devido à essência territorial de referidos direitos, à discrepância material entre as legislações nacionais e aos diferentes interesses de certos países, a reestruturação do sistema de proteção da propriedade intelectual no âmbito internacional fez parte de intensas discussões nos anos 1980. Inicialmente, como bem relata Dênis Borges Barbosa18, o assunto foi levado à pauta perante a ONU, já 18

“A culpa era de Afonso Arinos, que, no tempo em que tocava o Itamaraty para Jânio Quadros, fez com que a diplomacia brasileira começasse, na ONU de Nova York, uma campanha contra o poder das patentes dos países desenvolvidos. Vão se passando os anos e se fortalecendo a idéia de que os países pobres tinham direito a mais oportunidades neste mundo: como os negros americanos, depois que a Suprema Corte decidiu em 1954 que a idéia “iguais, mas separados” não era coisa de gente honesta. Era a idéia da nova ordem econômica mundial. Igualdade só de boca não basta. Era preciso tratar os pobres desigualmente, para tira-los do lodo. Falando de patentes, o Brasil e os outros pedintes queriam mais direitos e menos deveres do que os grandes. Tinha-se que mudar o tratado das patentes e marcas, a Convenção de Paris de 1884, para garantir essa nova ordem. Para isso, convocaram uma conferência diplomática em Genebra, em 1981. A situação política: os pobres, o chamados Grupo dos 77 (apesar do nome, eram muito mais pobres do que 77...) querendo mudança. Certo número de países europeus estava favorável, ou moderadamente favorável a essa mudança; os Estados Unidos – isolados, na mesma posição em que estavam desde o século XIX, num isolamento majestático – preferiam que a conferência diplomática não seguisse. E começaram a oferecer todo tipo de objeções. Pois os americanos inventaram que toda a discussão na conferência só podia ser tomada por unanimidade. E eles iam dizer que não. Isso era a tradição [...]: todas as reuniões, desde 1873, tinham acabado em consenso. [...] Mas nem a sabotagem dos americanos consegue parar a burocracia posta em marcha. Os diplomatas, em sua infinita sinuosidade, decidiram que, como todo mundo estava ali mesmo, era o caso de ir tocando para frente as discussões, sem voto. [...] Descobri às tantas que havia uma Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Que, revogando a tradição, mandava tomar os votos por maioria. Só que não estava em vigor. Fiquei de olho. Telefonei para a ONU de Nova York, onde se depositam os tratados. Estava quase-quase. Faltava uma só ratificação para entrar em vigor, e dizia-se que estava vindo – Zâmbias, Uganda, algo assim. Podiam telefone se chegasse? Podiam. No penúltimo dia da sessão, ligaram de Nova York. Ademar Bahadian leu meu memorando noticiando a mudança na Assembleia Geral. Propôs, enfim, que se devia dar início à conferência, aplicando simplesmente o princípio da maioria do novo tratado. Votou-se essa proposta e foi vencedora, democraticamente, por 113 a 1. O voto isolado era, evidentemente, o americano. Alegria geral: palmas, um ou outro assobio. Podíamos mudar o sistema de propriedade intelectual em todo o mundo por voto de maioria. Foi aí que o embaixador americano, muito sério, nervoso no isolamento de um plenário de 114 países em que o único voto discordante era o seu, teve de explicar a realidade das coisas:

que tal organização mostrava-se naturalmente apta a tratar desse tema (já existia à época a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, um braço da ONU voltado exclusivamente para assuntos ligados aos direitos sobre as criações humanas e que cuidava dos tratados mais antigos versando sobre o tema 19), mas os Estados Unidos se encarregaram de não permitir que tal discussão prosseguisse. Nesse sentido, em 1982 os Estados Unidos propuseram, por meio do artigo IX do GATT20, juntamente com outros membros da OCDE, a realização de um acordo para repressão aduaneira à contrafação de marcas registradas. Plantada a semente, em 1994 na Rodada do Uruguai nasce o Acordo TRIPS, um tratado emblemático para a OMC e que foi muito além da ideia inicial americana, abordando diversas áreas da propriedade intelectual, inclusive as indicações geográficas.

“Está tudo muito bom, está tudo muito bem, vocês estão falando em interesses dos países em desenvolvimento, em transferência de tecnologia, em equidade econômica, mas o que interessa é o interesse de minhas empresas. Aqui não estamos falando de cooperação entre pessoas, estamos falando de interesse entre empresas” Atrás da fileira de bancadas decoradas com o nome dos países, havia outra, dos observadores. Lá os letreiros diziam: Xérox, IBM, General Electric. O embaixador americano apontou enfaticamente para a bancada de trás. E completou: “Essa conferência não vai continuar.” E assim, pelo delicado voto de um contra 113, a conferência deu em nada. Era 4 de março de 1981 e, na Casa Branca, estava Ronald Reagan” BARBOSA, Dênis Borges. Trips e a experiência brasileira. In: VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Propriedade intelectual e desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 130-132. 19 Vide informações em . 20 ARTIGO IX MARCAS DE ORIGEM 1. No que diz respeito às condições relativas às marcas, cada Parte Contratante concederá aos produtos do território das outras Partes Contratantes um tratamento não menos favorável que o concedido aos produtos similares de qualquer terceiro país. 2. As Partes Contratantes reconhecem que, no estabelecimento e aplicação das leis e regulamentos relativos às marcas de origem, conviria reduzir a um mínimo as dificuldades e os inconvenientes que tais medidas possam acarretar para o comércio e a produção dos países exportadores, levando devidamente em conta a necessidade de proteger os consumidores as indicações fraudulentas ou de natureza a induzir em erro. 3. Sempre que possível do ponto de vista administrativo, as Partes Contratantes deverão permitir a oposição, por ocasião da importação, das marcas de origem. 4. No que diz respeito à marcação de produtos importados, as leis e regulamentos das Partes Contratantes serão de natureza a permitir a sua aplicação sem ocasionar danos sérios aos produtos nem reduzir substancialmente o seu valor ou elevar inutilmente o seu preço de custo. 5. Em regra geral, nenhuma parte Contratante deverá impor multa ou direito especial por falta de observação dos regulamentos relativos à marcação antes da importação, a menos que a retificação da marcação seja indevidamente retardada ou que marcas de natureza a induzir em erro tenham sido opostas ou que a marcação tenha sido intencionalmente omitida. 6. As Partes Contratantes colaborarão entre si para o fim de evitar que as marcas comerciais sejam utilizadas de forma a induzir em erro quanto à verdadeira origem do produto em detrimento das denominações de origem regional ou geográfica dos produtos do território de uma Parte Contratante que sejam protegidos pela legislação dessa Parte Contratante. Cada Parte Contratante dará inteira e amistosa consideração aos pedidos ou representações que possa lhe dirigir uma outra Parte Contratante sobre abusos tais como os mencionados acima no presente parágrafo, que lhe tenham sido assinalados por essa outra Parte Contratante em relação à denominação dos produtos que a mesma houver comunicado à primeira Parte Contratante.

O TRIPS, conforme fala Carlos Correa21, mostrou-se um tratado internacional deveras equilibrado, pois não consagra um paradigma absolutista da propriedade intelectual, onde só direitos do titular importam (posição americana). Diferentemente disso, o TRIPS baseia-se num equilíbrio entre a promoção da inovação e da difusão e transferência de tecnologia. Ademais, conforme explica Peter Van den Bossche22, referido tratado inaugura uma nova era de atuação da OMC, pois passa a atuar na harmonização das legislações nacionais (“behind-the-borders”), já que os ditames do TRIPS exigem que determinados parâmetros de proteção de direitos sejam adotados por todos os países membros. Assim, o escopo do Acordo TRIPS é consideravelmente amplo, tratando de diversos institutos da propriedade intelectual conforme pode ser observado no preâmbulo explicativo do mesmo, referente à seção II23.

As

indicações

geográficas, por sua vez, aparecem nos artigos 22 a 24 do acordo, onde é possível observar um conceito utilizado pela OMC24, assim como um par de obrigações mínimas que seus países membros devem garantir no âmbito das legislações nacionais, dignas de atenção: 2.

Com

relação

às

indicações

geográficas,

os

Membros

estabelecerão os meios legais para que as partes interessadas possam impedir: 21

CORREA, Carlos María. Acuerdo Trips – Régimen internacional de la propriedad intelectual. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1998, p. 28-29. 22 “However, three WTO agreements go further in addressing ‘other non-tariff barrier’ to trade by, in addition to the usual WTO disciplines, promoting regulatory harmonization obligations around international standards. These are the TRIPS Agreement […] The TRIPS Agreement lays down mandatory minimum standards of intellectual property protection and enforcement, based on preexisting international conventions.” VAN DEN BOSSCHE, Peter. The law and policy of the World Trade Organization: text, cases and materials. 2a. ed., 6a. impress., Nova Iorque: Cambridge University Press, 2011, p. 741. 23 PARTE II PADRÕES RELATIVOS À EXISTÊNCIA, ABRANGÊNCIA E EXERCÍCIO DE DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL 1. Direito do Autor e Direitos Conexos; 2. Marcas; 3. Indicações Geográficas; 4. Desenhos Industriais; 5. Patentes; 6. Topografias de Circuitos Integrados; 7. Proteção de Informação Confidencial; e 8. Controle de Práticas de Concorrência Desleal em Contratos de Licenças. 24 Artigo 22 Proteção das Indicações Geográficas 1. Indicações geográficas são, para os efeitos deste Acordo, indicações que identifiquem um produto como originário do território de um Membro, ou região ou localidade deste território, quando determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica.

(a) a utilização de qualquer meio que, na designação ou apresentação do produto, indique ou sugira que o produto em questão provém de uma área geográfica distinta do verdadeiro lugar de origem, de uma maneira que conduza o público a erro quanto à origem geográfica do produto; (b) qualquer uso que constitua um ato de concorrência desleal, no sentido do disposto no Artigo 10bis da Convenção de Paris (1967). Conforme observado no art. 22.2(a) é nítida a preocupação da OMC com uma das funções essenciais das indicações geográficas – a orientação do consumidor, já que o fato de tal previsão estar presente no TRIPS demonstra claramente ser este um ponto de interesse comum entre todos os países participantes das discussões ocorridas na rodada do Uruguai. Nesse sentido, um dos primeiros reflexos que podemos observar com a inclusão das indicações geográficas no Acordo TRIPS e, consequentemente, no sistema da OMC, é que os Estados-parte deverão fornecer uma mínima proteção a esse instituto da propriedade intelectual, nos termos referenciados acima, possuindo em suas legislações nacionais espaço específico para a defesa destes sinais geográficos. O Brasil, por meio de sua Lei 9.279/96, adotou integralmente as proposições sugeridas no tratado internacional, até porque não lhe restava outra alternativa sem sofrer eventuais retaliações perante OMC, ainda que alguns autores, como Dênis Borges Barbosa, falem de uma pseudo-incorporação25 do texto do acordo. Outro reflexo da regulação do TRIPS na OMC é que o acordo passa a gozar de um sistema de solução de controvérsias26, algo extremamente inovador no sistema internacional de propriedade intelectual, tendo em vista que os tratados existentes até então, administrados pela OMPI, não possuíam essa ferramenta de extrema utilidade e responsável por dar mais força e valor ao acordo internacional. O desrespeito dos países-membros às exigências tecidas no acordo TRIPS poderão 25

“Em suma, a pseudo-incorporação do Trips na ordem interna foi, em regra, muito além do texto final de consenso negociado e sempre contra o interesse brasileiro. O legislador brasileiro acabou cedendo à pressão unilateral americana, sem aproveitar-se dos ganhos de razoabilidade que vieram com o Trips.” BARBOSA, op. cit., p. 152.

26

Acordo TRIPS Art. 64 – Solução de Controvérsias 1. O disposto nos Artigos XXII e XXIII do GATT 1994, como elaborado e aplicado pelo Entendimento de Solução e Controvérsias, será aplicado a consultas e soluções de controvérsias no contexto desse Acordo, salvo disposição contrária especificamente prevista neste Acordo.

resultar em um procedimento de solução de controvérsias, conforme já foi observado no caso EC – Trademarks and Geographical Indications, no qual os Estados Unidos reclamaram que a União Européia estaria violando o dispositivo 22.2 do TRIPS27. Todavia, é outro o reflexo da regulação das indicações geográficas no âmbito da OMC que merece nossa atenção, especialmente para o desenvolvimento do presente artigo: o uso de direitos de propriedade intelectual como medida retaliatória no sistema de solução de disputas. O uso de ferramentas de retaliação em uma solução de controvérsias apresenta duas importantes funções (dar a idéia de que o sistema é eficaz e forçar o cumprimento das medidas definidas pelo órgão solucionador), como bem diz Vikas Mahendra28, ilustrando o uso dessa ferramenta como a “colocação de dentes” no sistema de solução de disputas. Assim, o sistema de solução de controvérsias ganha uma arma muito potente, cujos efeitos, porém, podem ser desastrosos para a essência das indicações geográficas.

III – O perigoso uso das indicações geográficas como ferramenta de retaliação

3.1 – A suspensão de direitos de indicações geográficas como medida retaliatória: para quem?

Conforme observado em sutis pinceladas no título anterior, a OMC possui um sistema de solução de controvérsias que objetiva a aplicação e o respeito de todos os acordos celebrados no âmbito da organização, vinculando assim os países 27

“Article 22.2 of the TRIPS Agreement imposes an obligation on Members. The obligation is owed to other Members, as the TRIPS Agreement creates rights and obligations between WTO members. In this regard, it can be noted that the dispute settlement system of the WTO serves, inter alia to preserve the rights and obligations of Members under the covered agreement.” Painel EC – Trademarks and Geographical Indications (US), par. 7.741. 28 “The fear of sanction plays two roles – perceived and real. While on one hand a more objective system of Dispute Settlement send out a positive message to all the member nations about the efficacy of the system, on the other in a case where compliance is actually not forthcoming, it serves as an excellent tool to induce such compliance. In addition, adding teeth to the Dispute Settlement process was seen as an attempt to bridge the gap between countries with differing economic powers. The move towards a ‘rule-based’ system which has adequate enforcement machinery was seen as a tool which the developing countries could use against the more developed countries to bring them in compliance with the objectives of the agreement.” MAHENDRA, Vikas Nanjundappa. Cross retaliating under the TRIPS agreement: probing an effective strategy. Tese apresentada na European master in law and economics – EMLE, 2008-2009, p. 4. Disponível em acesso em 27/11/2012.

membros

a

atender

ao

disposto

no

corpo

das

respectivas

convenções

internacionais. Esse sistema é, assim como o TRIPS, um produto da rodada do Uruguai, tratado por alguns doutrinadores, como Van den Bossche, como um dos resultados mais importantes daquele ciclo de negociações29. O sistema de solução de controvérsias é formado basicamente por duas importantes peças: o conjunto de regras e procedimentos para a solução de disputas, chamado de Entendimento sobre Solução de Controvérsias (ESC)30 e o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC)31, divisão da OMC responsável por dar vida ao sistema. Normalmente o procedimento, descrito ao longo do texto do ESC, funciona da seguinte maneira: o país que entende estar sendo prejudicado por outro Estado, que estaria violando regras de acordos firmados no âmbito da OMC, tenta por meio de consultas celebrar um acordo com o suposto violador para o alcance de uma solução consensual; em não havendo este acerto, haverá um painel criado pelo OSC, composto por especialistas, que emitirão um parecer sobre o caso, com sugestões de medidas a serem adotadas.32 29

“[…] the WTO dispute settlement system, negotiated during the Uruguay round and provided for in the Understanding on Rules and Procedures for the Settlement of Disputed, commonly referred to as the Dispute Settlement Understanding or DSU, remedied this and a number of other shortcomings of the GATT dispute settlement system. The DSU is attached to the WTO Agreement as Annex 2 and is generally considered to be one of the most important achievements of the Uruguay Round negotiations.” VAN DEN BOSSCHE, op. cit., p. 172-171. 30 Entendimento relativo às normas e procedimentos sobre solução de controvérsias Artigo 1º Âmbito e Aplicação 1. As regras e procedimentos do presente Entendimento se aplicam às controvérsias pleiteadas conforme as disposições sobre consultas e solução de controvérsias dos acordos enumerados no Apêndice 1 do presente Entendimento (denominados no presente Entendimento "acordos abrangidos"). As regras e procedimentos deste Entendimento se aplicam igualmente às consultas e solução de controvérsias entre Membros relativas a seus direitos ou obrigações ao amparo do Acordo Constitutivo da Organização Mundial de Comércio (denominada no presente Entendimento "Acordo Constitutivo da OMC") e do presente Entendimento, considerados isoladamente ou em conjunto com quaisquer dos outros acordos abrangidos. 31 Artigo 2 º Administração 1. Pelo presente Entendimento estabelece-se o Órgão de Solução de Controvérsias para aplicar as presentes normas e procedimentos e as disposições em matéria de consultas e solução de controvérsias dos acordos abrangidos, salvo disposição em contrário de um desses acordos. Conseqüentemente, o OSC tem competência para estabelecer grupos especiais, acatar relatórios dos grupos especiais e do órgão de Apelação, supervisionar a aplicação das decisões e recomendações e autorizar a suspensão de concessões e de outras obrigações determinadas pelos acordos abrangidos. Com relação às controvérsias que surjam no âmbito de um acordo dentre os Acordos Comerciais Plurilaterais, entender-se-á que o termo "Membro" utilizado no presente Entendimento se refere apenas aos Membros integrantes do Acordo Comercial Plurilateral em questão. Quando o OSC aplicar as disposições sobre solução de controvérsias de um Acordo Comercial Plurilateral, somente poderão participar das decisões ou medidas adotadas pelo OSC aqueles Membros que sejam partes do Acordo em questão. 32 “A base do Entendimento sobre Solução de Controvérsias da OMC são os sistemas de consulta e de panel. Em um primeiro momento, Estados com alguma questão em litígio são encorajados a

No entanto, quando as recomendações sugeridas pelo OSC não são voluntariamente atendidas pelo Estado violador, o país prejudicado poderá exercer medidas para forçar esse atendimento ou então para reparar os danos sofridos oriundos dos atos violadores33, conforme disposto no art. 22 do ESC. Nesse sentido bem explica Van den Bossche34, afirmando que se as recomendações do OSC não forem atendidas primeiramente tentarão os países envolvidos a realização de um acordo de compensação. Em não sendo negociada uma compensação satisfatória, o Estado prejudicado poderá, assim, requerer ao OSC autorização para suspender concessões ou obrigações existentes com o outro país, relativas aos acordos existentes no âmbito da OMC. “In other words, it may seek authorisation to retaliate.”35. Surge, assim, o direito de retaliação, que obedecerá uma ordem específica no momento de escolha da suspensão de concessões ou obrigações, prevista no art. 22.3: 3. Ao considerar quais concessões ou outras obrigações serão suspensas, a parte reclamante aplicará os seguintes princípios e procedimentos: (a) o princípio geral é o de que a parte reclamante deverá procurar primeiramente

suspender

concessões

ou

outras

obrigações

relativas ao(s) mesmo(s) setor(es) em que o grupo especial ou órgão de Apelação haja constatado uma infração ou outra anulação ou prejuízo; estabelecer consultas (ESC, art. IV) entre si e procurarem um entendimento mutuamente satisfatório sobre a questão. Esse processo permite a cada parte compreender a posição do outro em um período de tempo previamente estabelecido, aproximadamente de dois meses. Tais conversações podem ser conduzidas pelos próprios países envolvidos ou, se necessário, com a mediação de um representante da OMC. Os pedidos de consulta devem ser encaminhados por escrito ao OSC e devem ser legalmente consistentes com o acordo da OMC. Em não havendo um acordo entre as partes, o Estado demandante pode então solicitar o estabelecimento de um panel para julgar a questão. A qualquer momento, entretanto, as partes podem decidir por resolver a questão por outros meios, como bons ofícios, conciliação e mediação (ESC, art. V). Deve-se observar que a grande maioria de disputas no âmbito da OMC são resolvidas no estágio das consultas.” CINTRA, Rodrigo, MEIRA, Frederico Arana. O sistema de solução de controvérsias na OMC. In: CARAVALHO, Leonardo Aquinino de, HAGE, José Alexandre Altahyde. OMC: estudos introdutórios. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 188-189. 33 “Article 22 of the DSU governs the scope of retaliation when a country does not comply with a DSB ruling.33 Retaliation induces compliance, provides reparations to the complaining country, and helps the countries reach an equilibrium point on their balance of concessions.” WHITEMAN, Allison L. Cross retaliation under the TRIPS agreement: an analysis of policy option for Brazil. North Carolina journal of international law and commercial regulation. Vol. 36, n. 1, 2010, p. 187-231. Disponível em acesso em 26/11/2012, p. 193. 34 VAN DEN BOSSCHE, op. cit., p. 304-305. 35 Ibidem, p. 305.

(b) se a parte considera impraticável ou ineficaz a suspensão de concessões ou outras obrigações relativas ao(s) mesmo(s) setor(es), poderá procurar suspender concessões ou outras obrigações em outros setores abarcados pelo mesmo acordo abrangido; (c) se a parte considera que é impraticável ou ineficaz suspender concessões ou outras obrigações relativas a outros setores abarcados pelo mesmo acordo abrangido, e que as circunstâncias são

suficientemente

graves,

poderá

procurar

suspender

concessões ou outras obrigações abarcadas por outro acordo abrangido; Indiscutível é a grande ferramenta que se mostrou o direito de retaliação no sistema de solução de controvérsias da OMC, tratado por Mahendra como o coração do sistema36. Sabemos, conforme já visto até então, que ao agregar o TRIPS ao conjunto de convenções da OMC aquele ou mais especificamente as obrigações nele constantes poderão ser utilizadas para os fins do art. 22.3 do ESC, isto é, países prejudicados por atitudes violadoras de outros poderão suspender obrigações relativas a direitos de propriedade intelectual, mesmo que os atos violadores não tenham ocorrido nesta seara (art. 22.3 (c) – chamada retaliação cruzada37). A suspensão de direitos de propriedade intelectual como medida de retaliação (cruzada) possui importantes justificativas que a sustentam, bem sintetizadas por 36

“At the heart of the current Dispute Resolution process under the DSU is the power given to member nations to retaliate against a recalcitrant State for violation of WTO obligations.” 37 “The Dispute Settlement Understanding (DSU) is a body of procedural rules for dispute resolution at the DSB and was created during the Uruguay Round of negotiations. Article 22 of the DSU governs the scope of retaliation when a country does not comply with a DSB ruling. Retaliation induces compliance, provides reparations to the complaining country, and helps the countries reach an equilibrium point on their balance of concessions. As a general rule, a complaining country must first try to retaliate in the same sector and under the same agreement that the violation occurred. For example, a country whose cotton industry has been injured must first seek to retaliate against the violating country’s cotton industry. If “it is not practicable or effective to suspend concessions” in the same sector, the country should next seek to retaliate in a different sector under the same agreement. Following the same example, the country whose cotton industry has been injured must then try to retaliate against another goodsproducing industry in the violating country, since the GATT 1994 governs cotton. Finally, a country may suspend obligations under a different agreement “if that party considers that it is not practicable or effective to suspend concessions . . . with respect to other sectors under the same agreement.” For example, a country suffering a violation under the GATT 1994 could retaliate under either the GATS or TRIPS agreements. This third option, called “cross retaliation,” has only been allowed in three cases to date. Cross retaliation under the TRIPS Agreement would permit a country to suspend certain intellectual property rights of a country that had violated the former country’s rights under the GATT 1994.” WHITEMAN, op. cit., p. 193-194.

Whiteman38 como uma ferramenta capaz de: (i) equilibrar os poderes de países pequenos em desenvolvimento e grandes desenvolvidos em uma eventual disputa, já que países desenvolvidos são grandes exportadores de produtos contendo direitos de propriedade intelectual; e (ii) permitir que as medidas adotadas pelos países pequenos para forçar o cumprimento das recomendações do OSC não tenham uma influência negativa em seu próprio mercado, já que muitas vezes tais nações são extremamente dependentes de importações de produtos e serviços. Não obstante, o consumidor do país autorizado a retaliar também poderá, em algumas situações, se beneficiar com a suspensão de direitos de propriedade intelectual, pois terá acesso produtos de entretenimento e novas tecnologias a baixos preços. Alguns exemplos dos efeitos acarretados por tal suspensão são: (i) a exploração (econômica ou não) gratuita de tecnologias patenteadas; (ii) a exploração (econômica ou não) gratuita de obras protegidas por direitos autorais; (iii) a exploração (econômica ou não) gratuita de marcas e indicações geográficas registradas; Não há, até então, regras detalhando como a escolha dos direitos a serem suspensos ocorrerá. Por tal razão, portanto, o foco do trabalho se direciona a possibilidade de escolha dos direitos de indicações geográficas como alvo da suspensão, que ao entender deste autor pode ser muito perigosa. Ao recordarmos das funções essenciais das indicações geográficas, analisadas no item 2.1 do presente artigo, lembramos nitidamente de sua função orientadora, guiando o consumidor num mercado de consumo cada vez mais competitivo e repleto de opções. Um sinal de indicação geográfica, assim como uma marca, transmite diversas informações ao comprador sem que elas necessitem estar expressas na embalagem (qualidade do produto, sabor, técnica utilizada, tradição, segurança, etc.), permitindo que o comprador tenha mais dados para realizar uma compra que otimize seus interesses. Assim, parece-nos um tanto ameaçador a existência de um ato permitindo que qualquer pessoa possa utilizar uma indicação geográfica registrada sem atender às especificações constantes naquele registro. Ao colocar no mercado dois vinhos Bordeaux, um produzido na renomada região francesa, por meio de um método 38

Ibidem, p. 195-196.

único do povo que pratica essa técnica há séculos, com uvas Cabernet Sauvignon e Merlot, e outro feito no Equador, que não possui tradição vinícola e cujo clima não é propício para o cultivo de uvas, não haveria um excesso nessa medida, colocando o próprio consumidor do país retaliador em risco? Diferentemente do uso liberado de tecnologias patenteadas e de obras de direitos autorais protegidas, cujo acesso somente traria benefícios ao consumidor do país autorizado a promover tal suspensão de direitos, o uso liberado de marcas e indicações geográficas poderia acarretar em graves danos ao mercado interno da nação autorizada a fazê-lo. Poucos autores vislumbraram essa incompatibilidade entre a medida retaliatória autorizada por meio do ESC e do TRIPS e aqueles institutos da propriedade intelectual que exercem uma função de orientação do consumidor, como as marcas e as indicações geográficas. Gabriel Slater foi um deles, reconhecendo que por mais que tal medida seja plenamente autorizada pelas regras do sistema de solução de controvérsias da OMC, os governos locais jamais deveriam suspender os direitos de marcas e indicações geográficas devido ao papel que exercem e ao conseqüente perigo que correriam seus próprios consumidores39. Vikas Mahendra também teve a sensibilidade de notar essa incongruência, conforme claramente nos falou: “Trademarks and Geographical Indications form a distinct category within the broader ambit IPRs by virtue of their ability to identify commodities.

This

attribute

serves

to

differentiate

different

goods/services and thus send across a quality signal to the consumer. In addition to the benefit owners of such rights derive, the benefit to the consumers is unmistakable. Given this, a suspension of such IPRs would only cause greater harm to the consumers with counterfeit goods flooding the market.”40 Além dos estudiosos acima citados, a International Chamber of Commerce ICC também se mostrou incomodada com essa questão, emitindo um parecer sobre o procedimento de retaliação cruzada com suspensão de obrigações do Acordo TRIPS, onde deixou clara sua posição: 39

SLATER, Gabriel L. The suspension of intellectual property obligations under TRIPS: a proposal for retaliating against technology-exporting countries in the World Trade Organization. The Gerogetown law journal. Vol. 97, pub. 5, 2009. Disponível em acesso em 27/11/2012, p. 1388. 40 MAHENDRA, Op. cit., p. 29-30.

“Retaliation using trademarks and geographical indications would hurt consumers in the complainant country because both of them provide important signals to consumers about product quality, brand reputation, and in some cases after-market service. Additionally, depending upon national grey market rules, counterfeit trademarked goods from a complainant country may leak into neighboring countries.”41 A ICC acrescentou outra preocupação ao tema, suscitando os riscos das regras do mercado cinza do país retaliador, que poderiam gerar a saída de produtos “legalmente piratas” para os países vizinhos. Dessa forma, a questão que salta a nossa mente é “Afinal, a suspensão de direitos de indicações geográficas permitida pelo art. 22 do ESC é uma retaliação para quem?” Parece, ao entender deste autor, que todos acabam sendo retaliados com essa medida, ou seja, ela certamente não é benéfica a ninguém, nem retaliado nem retaliador. A questão, porém, é se tal situação um dia ocorrerá, ou será que já ocorreu?

3.2 O caso Bananas e o “vinho Bordeaux equatoriano”

Um caso em especial atraiu a atenção dos estudiosos da propriedade intelectual e daqueles que estudam o sistema de solução de disputas da OMC: o caso EC–Bananas III42. Este foi, conforme afirma Whiteman43, o primeiro caso na OMC que autorizou a retaliação cruzada por meio de suspensão de obrigações do Acordo TRIPS e, por assim ser, possui grande relevância para o presente artigo. O caso em referência iniciou com uma política tarifária adotada pela Comunidade Europeia (na época ainda vigorava essa denominação) referente à importação de bananas, política esta que, ao entender de alguns países como Equador, Guatemala, Honduras, México e Estados Unidos, feria disposições do GATT e do GATS e, consequentemente, afetava negativamente a entrada de 41

ICC – International chamber of commerce, comissions on intellectual property. Policy statement: cross-retaliation under the WTO dispute settlement mechanism involving TRIPS provisions. Documento n. 450/1074 de 29 de jun. de 2012. Disponível em acessado em 02/12/2012. 42 43

OMC – Caso DS27 de 1996 – Equador e outros v. União Européia; WHITEMAN, Op. cit., p. 195.

bananas produzidas e comercializadas por empresas daqueles países. James Smith44 fez uma análise minuciosa do contexto e dos acontecimentos relativos a este caso e, por tal razão, apresentaremos aqui importantes informações citadas por referido autor. Na época a Comunidade Europeia colocou em prática um sistema tarifário que permitia às bananas oriundas de países localizados na África, Caribe e Pacífico, antigas

colônias

europeias,

chegar

ao

mercado

europeu

com

valores

consideravelmente mais baixos quando comparados às frutas oriundas de outros países, dentre eles o Equador, maior exportador mundial do produto. Os Estados Unidos, por sua vez, eram o país sede das maiores empresas produtoras de bananas (Chiquita International e Dole Foods), cuja produção, no entanto, ocorria em outros países. Nesse sentido, os americanos foram os primeiros a se mostrar irresignados com as práticas europeias, e desejavam, assim, iniciar um painel perante a OMC para resolver tal situação45. Assim, para que os EUA tivessem maior peso nos argumentos do painel a ser proposto, os diplomatas americanos buscaram convencer o Equador a participar no litígio, já que este país mostrava-se mais do que legitimado a atacar as políticas tarifárias do bloco europeu. O Equador é, desde 1953, o maior exportador de bananas do mundo, sendo responsável por 34% do mercado mundial da fruta. Ademais, 30% de todas as exportações equatorianas são de bananas, cuja produção é feita majoritariamente por empresas de controle nacional, e não estrangeiras46. Ou seja, os danos ao mercado nacional equatoriano eram inegáveis, e o próprio Equador se convenceu, tendo inclusive acelerado sua entrada na OMC para poder participar do painel, já que até 1995 os equatorianos não faziam parte da entidade47. Iniciado o período de consultas com a Comunidade Européia, esta apresentou uma nova proposta de tarifas que fora considerada insuficiente pelos Estados Unidos e pelo Equador. Assim, apresentadas as reclamações perante o OSC, este entendeu que de fato os atos praticados pelo bloco europeu eram 44

SMITH, James McCall. Compliance bargaining in the WTO: Ecuador and the bananas dispute. In: ODELL, John (Edit.). Negotiating Trade: Developing Countries in the WTO and NAFTA, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, Capítulo 8, 47 p. Disponível em acesso em 21/11/2012 45 46 47

Ibidem, p. 9-11. Ibidem, p. 11. Ibidem, p. 12.

discriminatórios e violavam as regras de comércio internacional (e por conseqüência as disposições do GATT). Os europeus recorreram da decisão ao Órgão de Apelação, o qual manteve o mesmo entendimento do painel inicial. A partir desse momento, e com a política européia de importação de bananas inalterada, Equador e Estados Unidos tomaram diferentes caminhos devido ao seu entendimento sobre como deveria ser a seqüência dos atos perante o OSC. Tal fato é até hoje chamado na doutrina por nomes como “the sequencing issue”48 ou “the sequencing crisis”49, momento em que se deliberou como funcionaria a seqüência de procedimentos para a autorização de retaliação e que, outrossim, fez valer o entendimento equatoriano, que primeiramente iniciou um painel de “compliance”, conforme o art. 21.5 do ESC, para que fosse autorizado a retaliar comercialmente a Comunidade Europeia50. Não cumpre ao presente estudo analisar se o procedimento adotado foi o mais correto, razão pela qual deixamos essa discussão fora do âmbito deste texto. O que importa, todavia, é saber que o Equador, com base no art. 22.3 do ESC, solicitou a autorização para a prática da retaliação cruzada por meio da suspensão de direitos oriundos do TRIPS, especificamente os direitos autorais, desenhos industriais e indicações geográficas. Justificando o pleito equatoriano pela retaliação cruzada, seus representantes na OMC alegaram que seria impraticável ao Equador executar retaliações de acordo com os arts. 22.1 e 22.2 do ESC, haja vista a dependência de seu mercado interno de produtos oriundos do bloco Europeu. Assim entenderam os árbitros analisando o caso: “in situations where the complaining party is highly dependent on imports from the other party, it may happen that the suspension of certain concessions or certain other obligations entails more harmful effects for the party seeking suspension than for the other party.”51 Autorizada a retaliação cruzada, cujo limite de sanções deveria ser de US$ 201 milhões anuais com base nos cálculos feitos pelos árbitros da OMC52, o Equador 48

VAN DEN BOSSCHE, Op. cit., p. 306-307 SMITH, op. cit., p. 12-13. 50 “However, the EC remained out of compliance following the ruling, and Ecuador subsequently requested that a DSB compliance panel suspend concessions under the TRIPS agreement instead of under the GATT 1994.50 The panel determined that the EC was not in compliance with the GATT 1994 and that sanctions were appropriate.” WHITEMAN, Op. cit., p. 196. 51 Decisão n. WT/DS27/ARB/ECU do caso EC–Bananas III, par. 73. 52 “Using the various data provided and our knowledge of the current quota allocation and what it would be under the WTO-consistent counterfactual chosen by us, we determine that the level of Ecuador's nullification and impairment is US$201.6 million per year.” Decisão n. WT/DS27/ARB/ECU do caso EC–Bananas III, par. 73. 49

tornou-se o primeiro Estado a obter permissão para suspender direitos de propriedade intelectual, algo que gerou inúmeras reações. O próprio OSC alertou os equatorianos sobre o perigo da suspensão de direitos de propriedade intelectual como medida retaliatória, informando que (i) deveria haver muito cuidado com os alvos de suspensão para que exageros não fossem cometidos, (ii) que a legislação nacional sobre direitos de PI poderia continuar sendo violada e, portanto, dar ensejo a propositura de ações judiciais particulares contra tais atos e (iii) o risco de produtos feitos sob esse regime de suspensão chegarem a mercados de países vizinhos.53 Smith diz que tais complicações eram de conhecimento do Equador, tanto que um de seus representantes na OMC disse que usar o TRIPS como ferramenta de retaliação era como usar uma espingarda calibre 12 para acertar um alvo preciso54. Claro que para o interesse equatoriano tal escolha foi essencialmente estratégica, e surtiu efeito55. Foi dito que os oficiais europeus receberam tal decisão com grande preocupação, não especificamente para o caso do Equador, mas para futuros casos que pudessem autorizar a retaliação por suspensão de direitos de propriedade intelectual. O Equador nunca colocou em prática a suspensão, em contrapartida obteve inúmeros benefícios56, como um acordo para maior acesso ao mercado europeu de importação de bananas57. Digna de ser citada, também, a única reação pública de uma entidade privada que se mostrou assustada com a carta branca possuída pelo Equador - a Confederação Europeia dos Produtores de Bebidas (CEPS), que disse que, se os equatorianos suspendessem os direitos de suas indicações geográficas no país, adotariam medidas agressivas, inclusive o lançamento de um boicote mundial aos produtos equatorianos e uma campanha para rotular tal país como um falsificador internacional58. 53

WHITEMAN, op. cit., p. 197-198. SMITH, op. cit., p. 19. 55 “Ecuador had always acknowledged that any use of TRIPS would be messy […] but part of the strategy's utility came from this very fact. Ecuador's negotiators, admitting the limited size of their markets, stressed the implications of their TRIPS maneuver as an example for larger developing countries such as India and Brazil.” Ibidem, p. 19-20. 56 Extraoficialmente, Smith informa que inúmeros acontecimentos após a autorização de suspensão demonstram que o Equadro teve um certo auxílio dos países europeus. O Equador na época obteve um empréstimo de US$ 2 bilhões de entidades bancárias internacionais, que antes disso mostrava-se muito difícil de acontecer. Além disso, referido país renegociou uma dívida de US$ 880 milhões que possuía com o clube de Paris. Ibidem, p. 20-21. 57 “Ecuador never exercised its right to suspend intellectual property protection, but instead negotiated a settlement with the EC for improved market access for its bananas.” WHITEMAN, op. cit., 198. 58 SMITH, op. cit., p. 20-21. 54

O lançamento de um vinho Bordeuax equatoriano, por exemplo, poderia surtir inúmeras reações no cenário internacional, sem contar a questão de que os próprios consumidores equatorianos estariam sujeitos a ser enganados e confundidos caso não se ativessem a maiores detalhes no rótulo do produto. Ocorre, contudo, que este reflexo da retaliação utilizando o Acordo TRIPS não foi suscitada em momento algum pelos especialistas da OMC, e isso intensifica ainda mais a preocupação ora demonstrada quanto à suspensão de direitos de indicações geográficas como medida retaliatória. Se o caso EC-Bananas III serviu de modelo para o procedimento de retaliação cruzada, citado até hoje como um aprendizado paradigmático para o sistema de solução de disputas da OMC, assim como de esperança para os países economicamente mais fracos, que agora possuem uma importante ferramenta em eventuais disputas contra os mais poderosos, referido litígio também serve de alerta para a falta de uma preocupação a respeito do uso de institutos de propriedade intelectual de função orientadora (como marcas e indicações geográficas) como medida de retaliação por meio do Acordo TRIPS. Alguns dirão que isso faz parte do jogo, outros entenderão como uma grave ameaça à essência desses direitos, o que nos leva a uma única conclusão: mais discussões sobre esse assunto devem ser travadas.

IV – Considerações finais

As idéias que permearam o presente texto deixam clara a opinião contrária deste autor quanto à suspensão de direitos de indicações geográficas como medida retaliatória em disputas realizadas na OMC. Mostra-se necessário, neste sentido, que seja feita uma diferenciação dentro do TRIPS sobre quais direitos podem ser utilizados em momentos retaliatórios, e quais não podem – como é o caso das indicações geográficas. A essência e natureza destes institutos da propriedade intelectual não permitem que eles sejam relativizados da forma observada nos ditames das convenções da OMC, sob pena de tal processo se mostrar irreversível e prejudicial ao próprio povo do país retaliador. O risco existente na suspensão de direitos que servem principalmente para orientar o consumidor, para dar a este sinais de qualidade e reputação para que saiba escolher o produto desejado em um mercado cada vez mais competitivo,

coloca em risco o próprio espaço comercial do país que recebe essa autorização, como poderia ter feito o Equador no caso EC-Bananas III, ainda que nenhuma observação oficial tenha sido feita nesse sentido. É como disse Gabriel Slater: “Unlike nearly identical digital copies of music, a cheap red wine does not become a fine Bordeaux simply because a domestic producer slaps a Bordeaux label on the bottle.”59 Não é possível saber, ainda, se os especialistas da OMC não vislumbram essa possibilidade. Não obstante, defendemos que medidas para evitar que isso aconteça sejam adotadas, seja no próprio TRIPS, seja por meio de qualquer outra ferramenta que a OMC possua para tal fim. Ao menos a Rodada de Doha ainda não acabou.

Referências

BARBOSA, Dênis Borges. Trips e a experiência brasileira. In: VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Propriedade intelectual e desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 129-170.

BRABET, Catherine, PALLET, Dominique. Os selos oficiais de qualidade dos alimentos na França e na Europa. In: LAGARES, Léa, LAGES, Vinícius, BRAGA, Christiano (Orgs.). Valorização de produtos com diferencial de qualidade e identidade: indicações geográficas e certificações para competitividade nos negócios. Brasília: SEBRAE, 2005, p. 31-55.

BRANDÃO, Fernanda Scharnberg. Percepções do consumidor de carne com indicações geográficas. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. CEPAN-Centro de Estudos e Pesquisas em Agronegócios. Programa de Pós-Graduação em Agronegócios. Porto Alegre, 2009.

BRUCH, Kelly Lissandra. Signos distintivos de origem: entre o velho e o novo mundo vitivinícola. Tese de doutorado defendida perante a UFRGS, 2011, 277 p.

59

Ibidem.

CINTRA, Rodrigo, MEIRA, Frederico Arana. O sistema de solução de controvérsias na OMC. In: CARAVALHO, Leonardo Aquinino de, HAGE, José Alexandre Altahyde. OMC: estudos introdutórios. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 177-203.

CORREA, Carlos María. Acuerdo Trips – Régimen internacional de la propriedad intelectual. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1998

GURGEL, Viviane Amaral. Aspectos Jurídicos das Indicações Geográficas. In: LAGES, Vinícius et al. (Org.). Valorização de produtos com diferencial de qualidade e identidade: indicações geográficas e certificações para competitividade nos negócios. Brasília: Sebrae 2005, p. 57-71.

ICC – International chamber of commerce, comissions on intellectual property. Policy statement: cross-retaliation under the WTO dispute settlement mechanism involving TRIPS provisions. Documento n. 450/1074 de 29 de jun. de 2012. Disponível em acessado em 02/12/2012.

IDS-Instituto Dannemann Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual. Comentários à lei de propriedade industrial. Ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

LAGARES, Léa, LAGES, Vinícius, BRAGA, Christiano (Orgs.). Valorização de produtos com diferencial de qualidade e identidade: indicações geográficas e certificações para competitividade nos negócios. Brasília: SEBRAE, 2005.

LOCATELLI, Liliana. Indicações geográficas e desenvolvimento econômico. In: BARRAL, Welber, PIMENTEL, Luis Otávio (Orgs.). Propriedade intelectual e desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 233-252.

MAHENDRA, Vikas Nanjundappa. Cross retaliating under the TRIPS agreement: probing an effective strategy. Tese apresentada na European master in law and economics



EMLE,

2008-2009,

61

p.

Disponível

em

, acesso em 27/11/2012.

PAUWELYN, Joost. The calculation and design of trade retaliation in context: what is the goal of suspending WTO obligations? In: BOWN, Chad P., PAUWELYN, Joost (Edits.). The law, economics and politics of retaliation in WTO dispute settlement. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 34-72.

PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito industrial – as funções do direito de patentes. Porto Alegre: Síntese, 1999.

SLATER, Gabriel L. The suspension of intellectual property obligations under TRIPS: a proposal for retaliating against technology-exporting countries in the World Trade Organization. The Gerogetown law journal. Vol. 97, pub. 5, 2009, p. 1365-1408. Disponível em acesso em 27/11/2012.

SMITH, James McCall. Compliance bargaining in the WTO: Ecuador and the bananas dispute. In: ODELL, John (Edit.). Negotiating Trade: Developing Countries in the WTO and NAFTA, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, Capítulo 8, 47 p. Disponível em acesso em 21/11/2012

VAN DEN BOSSCHE, Peter. The law and policy of the World Trade Organization: text, cases and materials. 2a. ed., 6a. impress., Nova Iorque: Cambridge University Press, 2011.

VARELLA, Marcelo Dias, GRANJA E BARROS, Ana Flávia. Indicações geográficas e arranjos produtivos locais. In: VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Propriedade intelectual e desenvolvimento. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 362 a 385.

VIVAS-EUGUI, David, SPENNEMANN, Cristophe. The treatment of geographical indications in recent WTO discussion and in regional and bilateral agreements. 06 out.

2006,

40

p.

Disponível

em

acesso em 30/11/2012.

WHITEMAN, Allison L. Cross retaliation under the TRIPS agreement: an analysis of policy option for Brazil. North Carolina journal of international law and commercial regulation.

Vol.

36,

n.

1,

2010,

p.

187-231.

26/11/2012.

Disponível

em

acesso

em

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.