A tacanha intransigência de Sergio Miceli com as vanguardas

May 24, 2017 | Autor: Ronald Augusto | Categoria: Literatura Latinoamericana
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A tacanha intransigência de Sergio Miceli com as vanguardas
Ronald Augusto[1]


As vanguardas artísticas e literárias da virada do século 19 para o 20
experimentam um processo até certo ponto rápido de consagração. Em outras
palavras, se historicizam até de maneira surpreendente, inclusive porque,
não podemos nos esquecer, os registros ou o anedotário da resistência, seja
aos desdobramentos da vanguarda europeia aclimatados às nossas condições
latino-americanas, seja ao modernismo tardio, formam uma pequena história à
parte – exemplo disso, no caso brasileiro, é a crítica neurastênica de
Monteiro Lobato às pinturas que Anita Malfatti expõe em 1917. Assim, tal
resistência, pelo forte teor arrivista assumido por suas posições e
contraposições, não dava, à primeira vista, indícios de que essas
experiências fossem facilmente assimiladas, sequer que se chegaria a um
acordo valorativo em torno à sua estranheza.
Portanto, a movimentação e a bibliografia de toda a polêmica relativa
ao problema contribuíram, ao fim e ao cabo, para fazer da recusa
conservadora e alarmista, aceitação incondicional. A tolerância dos iguais
e do senso comum à rotina das rupturas (às vezes aparentes) ofereceu as
condições necessárias para que o alto modernismo viesse a se tornar,
segundo alguns analistas, "uma das manifestações mais oficiais da cultura
ocidental" e, por isso mesmo, se tornasse desencadeador também de
interpretações reativas e sem paciência com relação àquilo que, de resto, é
– a contragosto de uns e outros – a parte principal desse processo, a
saber, os problemas de objeto que subjazem à ficção do "nacional" assumida
ou evocada por esses movimentos. O modernismo como vanguarda se torna, em
fim de contas, um classicismo enrustido que cumpriria, agora, reconsiderar
de um ponto de vista tacanhamente sociológico ou historiográfico e capaz
de, pretensamente, desmontar crenças consolidadas (em virtude das relações
de mútuo prestigiamento) a respeito de importantes nomes dos movimentos de
vanguarda argentino e brasileiro. E é o que pretende Sergio Miceli com
Vanguardas em retrocesso.
Embora não se trate de perspectiva irrelevante – isto é, se
aceitarmos, a princípio, que o significado é algo que se apresenta antes ou
depois da fatura mesma do objeto arte-feito – esquadrinhar esses indícios,
como que constrangedores de um pertencimento social, nas determinações
compositivas e estéticas desses artistas (Jorge Luis Borges, Mário de
Andrade, Lasar Segall, Xul Solar, entre outros) isso, por outro lado, não
os decodifica nem exaure suas valências inventivas e também não os torna
menos inquietantes, apenas nos situa ou nos coloca eruditamente sabedores –
talvez fosse melhor dizer: informados – de algo perfeitamente secundário no
que concerne à fruição dos objetos de arte realizados por eles.
Embora o editor advirta na orelha da obra que a atenção dispensada por
Sergio Miceli em seu estudo "aos condicionamentos, às relações pessoais,
familiares, e às tentativas fracassadas não significa diminuir os objetos
de estudo", a pesquisa, ainda segundo o editor, ao se ater detalhadamente
em uma série de materiais, circunstâncias e polêmicas relativas ao momento
restituiria a eles (os objetos) "a dimensão humana" e explicaria "as
condições que permitiram sua emergência".
Não resisto a ler essa advertência do editor do seguinte modo: a
pesquisa de Miceli tem, de um lado, algo de redentora (pois pretende fazer
circular entre nós "a dimensão humana", a physis, desses rapazes bem-
nascidos) e, de outro, de poder de polícia ("golpear certezas", diz a
orelha, com o fito de denunciar "as condições que permitiram sua
emergência", a das vanguardas latino-americanas).
Miceli e outros críticos – ele não se encontra sozinho nessa canoa
remendada e isso menos o isenta do que o protege – descrevem essas
vanguardas, que buscam seu campo de autonomia, como se elas fossem uma
inadvertida construção levada a efeito por seus executores tão só para
obscurecer ou enublar uma verdade que esses pesquisadores não podem
permitir que seja calada, a saber, o pertencimento social de classe dos
nossos pais fundadores do alto modernismo como avalista de sua reputação.
A acusação de Miceli segundo a qual os representantes dessas
vanguardas, através de uma "postura política escapista"[2], tentam apagar
ou desviar nossa atenção desses vestígios talvez não signifique que, por
exemplo, Borges, Oswald e Mário quisessem, de fato, exibir ou disfarçar o
que tivessem de conservadorismo ou de dandismo perdulário, apenas que,
tendo em mente a intrínseca ambiguidade da arte (a que Miceli faz vista-
grossa), talvez fosse mais atraente afirmar, mais uma vez, a relação
complexa e controversa (que está nas antípodas do jogo simplório de "causa
e efeito" proposto no livro em apreço) do artista na sua interação com a
sociedade do que marcar passo na obediência civil. A propósito, segundo
Roman Jakobson, "a ambiguidade se constitui em característica intrínseca,
inalienável"[3] da poesia, e das artes em geral. Portanto, continua o
linguista, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu
remetente se tornam ambíguos. Em outras palavras, toda obra de arte se
define social e historicamente; ao mesmo tempo, parte da sua contundência é
resultado de um corte sincrônico formal no fluxo da tradição que a faz
irredutível ao que quer que seja. Para o artista, assumir certa medida de
ambiguidade não parece lhe causar o menor embaraço, já que sua atividade
supõe o jogo de máscaras e duplos, ou ainda, que seu apetite sígnico o
situa num espaço de abandono relativamente ao discurso que lhe cobra a
opção entre a verdade e a mentira. Entretanto, para o destinatário (a
recepção), assumir esse risco de se autoinfligir a desaparição da
identidade, é infinitamente mais doloroso, afinal, o leitor –
principalmente o leitor conservador – tem o compromisso com a
decodificação; para ele nada é comparável à explicação do objeto estético.
O objeto estético serve apenas de testemunho ou de confirmação a esta ou
aquela visada interpretativa em condição de emboscada desanuviadora de um
enigma proposto como aparente divertissement.
Longe de mim afirmar que o viés de leitura levado a cabo por Sergio
Miceli em Vanguardas em retrocesso, mesmo com toda a sua casmurrice
sociológica, deva ser descartado; não. Só me inquieta um pouco perceber que
o autor não abre a menor possibilidade para que a sua abordagem possa
comportar a virtude do precário, do provisório, de que talvez ele não tenha
pensado tudo, ou antes, de que ele, quem sabe, não tenha pensado
corretamente a respeito do assunto. O problema é que toda essa confiança
calcada num exaustivo e quase sobrenatural esforço de pesquisa (e no
prólogo o autor não cansa de nos avisar sobre isso, tentando fazer assim
mais extraordinários seus esforços[4]) acaba por nos revelar não um
intelectual em ação – ou seja, o sujeito que se vê implicado nos logros e
dilemas que investiga, que é capaz, inclusive, de pensar contra si mesmo de
modo a problematizar a eficiência, tão arduamente conquistada ou alardeada,
de seu ponto de vista –, acaba por nos revelar não um intelectual, mas um
renitente professor apenas aplicado, um secretário cioso dos seus
documentos. Miceli é categórico, não admite dúvidas. Não caberia polemizar
com o autor propondo-lhe a seguinte questão, mas vá lá: como pode um
intelectual se tornar grande se tem medo de não ser compreendido? O pior é
que para o autor de Vanguardas em retrocesso não se trata de ser ou não
compreendido, mas de não ser dobrado, de não se dispor ao risco do jogo
estético e sua deriva semântica; Sergio Miceli, feito um míssil teleguiado,
se dispõe tão só a solapar a suposta idealização desses artistas da
vanguarda substituindo o triunfo (ou a impostura?) deles com outro triunfo
(ou impostura?), isto é, a verdade da sua modelagem sociológica. Como
afirma o poeta Paul Valéry, o leitor que se lança na caça da "verdade" só
consegue capturar, afinal, "sua própria sombra. Gigantesca, às vezes; mas
sempre sombra".
A abordagem de Sergio Miceli desdenha a lúcida percepção de Edmund
Wilson que em seu, hoje clássico, O Castelo de Axel, reconhece nos
representantes do alto modernismo a importante dívida simbolista ou, dito
de outro modo, Wilson entende que os artistas das vanguardas da virada do
século são simbolistas lato sensu, e que a "história literária do século 20
é, grandemente, a do desenvolvimento do Simbolismo"[5]. E não é por outra
razão que Borges, comparando o seu escrito a uma milonga executada com
languidez, diz mallarmaicamente: "La mano se demora en las cuerdas y las
palabras cuentan menos que los acordes". Infelizmente o sociólogo Miceli,
que não será jamais um boleiro nesse "esporte de combate" (Bourdieu assim
define o discurso da sociologia), pois o senhor Miceli, no máximo, não
passa de um volante retranqueiro, e, assim, a mórbida agudez dos seus
sentidos, o embotamento da sua percepção burocratizada pela extrema atenção
dispensada ao rito e ao traquejo acadêmico conduzem esse sociólogo, na
prática simplista do seu esporte, a tomar a arte como mero sparring; Sergio
Miceli só tem apetência ou ouvidos para as palavras (a significação) que,
em seu aspecto inteligível (deslinde do enigma), se referem ao mundo, ao
tempo.
Grosso modo, o crítico – e no que diz respeito à essência de sua
atividade – com frequência, para recuperar-se de si ou para esquecer de si
mesmo, encontra abrigo (cava uma zona de escape ou a sua própria cova) em
alguma inimizade ou assunto com o qual mantenha uma forma de antipatia
intelectual e intransigência leviana. Nos melhores casos essa prática pode
resultar em boas análises, pois o que está em causa, em que pese certa
carência de fair play, é a polêmica necessária e salutar, a suspeição que
não se presta ao beija-mão. Desgraçadamente, a rotina inercial e fora da
medida de tal procedimento crítico se converte em estupidez. E é o que
acontece em Vanguardas em retrocesso. Miceli dá mostras de que por não
gostar de literatura resolveu ensiná-la (embora mal) e admoestá-la por sua
ambiguidade constitutiva. O autor teima em negar dois traços verticais da
arte da literatura e que são fundamentais na economia construtiva do poema,
do objeto estético, refiro-me tanto à multiplicidade de significados,
quanto à forma. Mesmo contra a má vontade de alguns leitores essa obviedade
ainda precisa ser repetida, afinal de contas, para os impacientes com as
armadilhas e os refinamentos de linguagem — ainda que, como nos lembra Leda
Tenório da Motta, "não possa haver poesia sem isso" — falar sobre o
"conteúdo" soa menos impertinente. Com efeito, em Vanguardas em retrocesso
percebe-se a tentativa de colher peras ao olmo. Uma abordagem que visa
apenas à dimensão histórico-social da literatura e ao cobrar o que,
aparentemente, lhe falta ou escapa aos interesses dos seus autores, não
percebe o que de mais importante ela contém.
Sergio Miceli, no esforço de comprovar o presumido retrocesso das
vanguardas latino-americanas em virtude de sua dívida com oligarquias
decadentes, convida o leitor de hoje a (re)ler os versos de determinado
poeta modernista apenas para reconhecer (anuindo com o comentarista) os
traços passadistas desse espécime. O convite é falacioso, pois, em certo
sentido, não se pode esperar outra coisa desse genérico "leitor de hoje"
senão uma correlata impaciência com tal dicção estranha ao seu paladar
saturado de tanta informação secundária.
Alguns nomes mencionados por Miceli como confirmação da tese de que o
generoso lastro social e econômico seria decisivo para que o sistema
literário os aprovasse – ao menos no tempo em que viveram – dando, assim,
sustentação à sua argumentação, alguns desses nomes mesmos se mostram, a
seguir, sem nenhuma importância. É o caso de lembrar o mecenas e editor
Augusto Frederico Schmidt, à época, tido e havido por seus iguais, que eram
editados por ele, como excelente poeta. Mas que importância, afinal, tem o
supracitado poeta hoje em dia? Nenhuma. Por outro lado, embora a
marginalidade de alguns autores se explique, temporariamente, por sua
condição econômica e social, digamos, desfavorável, também tais exemplares
não vingam porque com o transcurso do tempo acabaram por se revelar
medíocres como artistas. Assim, tanto a consagração de uns em termos de
contrafação endogâmica, como os expurgos de outros, nos revelando uma
espécie de apartheid social, quando vistos na perspectiva do tempo, indicam
que tudo que não diz respeito aos problemas formais e estéticos, para
relevância desta ou daquela obra, é secundário e assim deve ser tratado.
Mas Miceli, ao contrário, superestima o que não interessa diretamente à
fatura do signo estético. E mais, por pouco não os culpa, os fundadores das
vanguardas, por serem filhos da – ou por estarem ligados à – "nata
dirigente".
E que grande novidade há em fotografar esses escritores e artistas
dando um piscar de olhos ou se apresentando com a boca na botija
relativamente à sua condição de membros da elite, credenciados, portanto, a
cumprir as tarefas exigidas pelo meio onde buscam e sempre acham o crédito
que lhes é devido? Não é novidade que a endogamia faz parte dessas relações
artísticas desde sempre. Hoje, ainda que de maneira mais volátil,
experimentamos situação análoga. A argumentação contida em Vanguardas em
retrocesso busca comprovar que os principais artistas e escritores
argentinos e brasileiros só lograram realizar suas experiências criativas
em virtude das "condições privilegiadas de fortuna pessoal"; Miceli vê de
maneira causal "a folga material como que espicaçando o arrojo de
invenção"[6].
Sem entrar, agora, no mérito das questões de valor e reconhecendo uma
série de diferenças entre eles, podemos evocar toda uma linhagem de
artistas que não cabe nesse molde proposto pelo sociólogo e que pressupõe
uma fórmula perfeita (fortuna pessoal-familiar + boas relações com grupos
de mando) para o alcance da consagração. Sirvam então de contraexemplo os
nomes dos seguintes artistas, todos, cada um a seu modo, grandes inventores
que viveram em precárias condições sociais e econômicas e que, a
contragosto da circunstância, ainda fornecem insumos estéticos poderosos ao
presente: François Villon, Cruz e Sousa, Edgar Allan Poe, Velimir
Khlébnikov, Arthur Bispo do Rosário, Jimi Hendrix, Paulo Leminski, Cartola,
Nelson Cavaquinho. Esses poetas, artistas e músicos inauguram uma tradição
que começa a se plasmar paralelamente à decadência das aristocracias e das
elites. Mas isso só começa a mudar de modo mais notável, e sempre com
interrupções, no último quarto do século 20. Desde a emergência da cultura
pop as classes C e D começam a fornecer escritores e artistas.
Vanguardas em retrocesso nos apresenta Sergio Miceli na figura de um
crítico legista, o sociólogo realiza verdadeiras necropsias textuais para
investigar a causa do apagamento das práticas sociais na obra desses
criadores que são o alvo de sua pesquisa, práticas sociais que, segundo
Miceli, viabilizaram suas reputações. Para o crítico legista tal
investigação se faz necessária principalmente quando este apagamento ocorre
em circunstâncias misteriosas. É como se estivéssemos não diante de algumas
obras de arte, mas diante da sonegação de provas de um crime. Miceli
interpreta assim a revisão perpetrada por Borges tendo em vista a reedição
de um conjunto de suas obras no ano de 1930: "Teve a cautela de borrar os
vestígios afetivos, pessoais e profissionais – ao eliminar dedicatórias, ao
omitir nomes de pessoas próximas, ao renomear certos poemas, como se
quisesse eliminar o bagaço de uma multifacetada experiência social..."[7].
No que parece ser simplesmente o trabalho do poeta no exercício de um
decoro estético, isto é, no movimento de reduzir seus escritos à sua
essência, o sociólogo detecta uma censurável sonegação de provas. Outro
exemplo desse procedimento de crítico legista, adotado por Miceli, está na
passagem relacionada a uma série de eventos sucedidos na infância do autor
de Fervor de Buenos Aires. A experiência de nomadismo familiar de Borges
que se efetiva em função da busca da cura para a cegueira do patriarca, as
inúmeras cirurgias, os fracassos resultantes, tudo isso, de acordo com
Sergio Miceli, "deve ter infundido certa dose de suspense e irrealidade na
educação dos filhos"[8]. O sociólogo, pelo menos aparentemente, não chega à
conclusão de que estaria aí a raiz da literatura do argentino, mas deixa
sugerido ao leitor, numa espécie convencimento subjacente (e reza a locução
popular: "como quem não quer nada..."), que não julgue apenas que isso seja
possível, mas, antes, que sem tais eventos ocorridos na vida do jovem Jorge
Luis Borges, conclua que, efetivamente, o argentino não escreveria tudo o
que escreveu nem como escreveu.
Miceli analisa essas realizações poéticas pela fechadura da história
e das práticas sociais e julga a relevância delas a partir do momento em
que se originaram. Só que a permanência de muitas dessas obras, a
vitalidade de umas e/ou a obsolescência de outras não merece do sociólogo
uma análise satisfatória. Se, do ponto de vista historiográfico, o crítico
demonstra coerência, e a visão aristotélica o abona, já que Sergio Miceli
foca o seu interesse na narração de acontecimentos e fatos particulares em
que se envolveram os vanguardistas argentinos e brasileiros na afirmação de
sua importância, por outro lado, em uma visada em perspectiva a abordagem
decai em miopia revanchista. Sua leitura, vazada num discurso prêt-à-porter
rente ao academicamente tolerável, ao contrário da leitura interessada nos
aspectos estritamente poéticos e construtivos (votados a orientar e/ou
radicalizar a produção de obras do presente que se referem à tradição), não
ajuda a pôr em movimento a literatura nem a arte em geral, pois aquilo que
advoga não gera maiores consequências a não ser talvez para a retórica do
controle institucional da interpretação.
Antonio Candido, crítico que, notoriamente, não descura das questões
sociais no estudo do texto literário, admite que "há sem dúvida mais
estudos sobre prosa do que sobre poesia; mas os estudos mais
revolucionários e talvez os mais altos dos nossos dias, até bem pouco,
foram de crítica de poesia"[9]. Estudos que, com efeito, reconheceram-na
como um fato estético cuja finalidade não condiz com a demonstração nem com
a exposição do que quer que seja. A linguagem poética (poema, sistema de
signos estéticos) se resolve num objeto expressivo, fictício na maior
parte. Portanto, mesmo em menor número, esses estudos são de efetiva
consequência para a discussão da arte da literatura e servem de visada
inovadora inclusive para a prosa. Nessa perspectiva o fato estético não
fica relegado a um plano de coadjuvância. A aproximação a esse tipo de
texto requer uma jogada isomórfica ligada à fruição. Após determinado
momento a interpretação se apresenta como um reforço da fruição, jamais
como seu sucedâneo ou diminuição. De acordo com o antigo adágio "existem
dois tipos de mentes poéticas: uma apta a inventar fábulas e outra disposta
a crer nelas". A este propósito, o poeta argentino investigado em
Vanguardas em retrocesso, escreve o seguinte: "Peter, em 1877, afirmou que
todas as artes aspiram à condição da música, que é apenas forma." A música
e outros eventos e seres sagrados, segundo Borges, "querem dizer algo, ou
algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão prestes a dizer
algo; essa iminência de uma revelação, que não se produz, é talvez o fato
estético"[10]. A mente prosaica de Sergio Miceli não se dispõe a crer
nessas fábulas ou fruí-las; farejando vestígios em torno às produções das
vanguardas, Miceli tenta recuperar algo adjacente a elas, mas que sempre se
perde justamente porque ninguém compra o que não está à venda. Não há nada
a ser revelado. Seu esforço de interpretação em Vanguardas em retrocesso é
semelhante ao do criado de servir que passa desde os antros da academia
para o mundo aqui fora as iguarias de uma linguagem estranha ao seu próprio
apetite.
Desde um ponto de vista semiótico temos, de um lado, a parataxe das
experiências artísticas das vanguardas latino-americanas: toda uma
precipitação para a analogia, o estranhamento, a forma, a síntese. De
outro, a suspicácia sociológica da hipotaxe discursiva e obediente de
Miceli cujo democratismo vagamente intolerante considera os objetos de sua
pesquisa apenas como meros representantes disso e daquilo e nesse movimento
de tentativa de controle do imaginário parece enveredar mais para a
esquerda do leque ideológico, e assim temos: um pendor para os aspectos
lógicos, a ciência, o "conteúdo", a análise. Em outras palavras, em relação
ao policiamento hipotático dos scholars estabelecidos, sempre ciosos de
seus acordos e interesses – sejam estes corretos ou não –, a inutilidade e
o escapismo da poesia, da arte, continuarão sendo tolerados, mas sempre
como linguagem sob suspeição.
Jacques Derrida, expropriando Walter Benjamin, escreve: "Mas o que
'diz' uma obra literária (Dichtung)? O que ela comunica? Muito pouco a quem
a compreende. O que ela tem de essencial não é comunicação, não é
enunciação"[11]. De outra parte, para os que, feito Miceli, não a
compreendem (os que encarecem sua pertinência referencial) a obra poética
parece dizer muitas coisas, principalmente aquelas que tais mentes
desentranham antes e depois da presentificação mesma da obra em sua
integridade semiótica. Miceli não alcança o durante irredimível da obra
literária, em outras palavras, não se permite ler o que está de fato
inscrito (essa materialidade que inaugura um espaço significante); não se
acerta com esse ser de linguagem a um só tempo passivo e fugidio com que se
defronta o leitor em fruição no momento em que é levado a erguer a fronte,
inclinada, até há pouco, sobre linhas e versos. O que se situa antes e
depois do objeto verbal (objeto estético) em sua condição performativa de
coisa fruível é o conteúdo comunicável ou inessencial, algo que não tem
valor senão associado. Uma demão interpretativa que se acrescenta à obra
artística, e como não lhe é intrínseca pode muito bem ser descartada no
momento seguinte.










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[1] Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta,
músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao
Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões
Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e
Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blogwww.poesia-pau.blgspot.com e
é diretor associado do website WWW.sibila.com.br



[2] MICELI, Sergio. Vanguardas em retrocesso. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012. p. 43

[3] JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Editora Cultrix,
s/d. p. 128.

[4] O leitor não precisaria ficar a par disso, mas Sergio Miceli faz
questão de lembrá-lo. Segue um breve apanhado dos desafios enfrentados pelo
sociólogo na confecção de Vanguardas em retrocesso: (1) em parceria com
pesquisadores argentinos começa em 2003 a delinear "um projeto ambicioso de
intercâmbio". p. 11; (2) estudar a história social de Borges exigiu de
Miceli "um empenho extraordinário na coleta de materiais biográficos", pois
a "colossal literatura que lhe foi consagrada barrava" o tipo de indagação
que interessava ao pesquisador brasileiro. p. 12; e (3) "Sem dispor de
salvo-conduto de acesso a esse halo inefável [os universos simbólicos de
uma originalidade irredutível que se entende por cultura nacional], o
observador estrangeiro [o sociólogo diante das vanguardas argentinas] seria
destituído dos códigos e respiros indispensáveis à captura dos segredos".
p. 13. Sergio Miceli conclui dizendo que foi esse "o mais robusto empecilho
ao desígnio comparativo" de Vanguardas em retrocesso, mas que, pelo visto,
foi ultrapassado cum laude.

[5] WILSON, Edmund. O Castelo de Axel: estudo sobre a literatura
imaginativa de 1870 a 1930. São Paulo, Editora Cultrix, s/d. p. 24.



[6] MICELI, Sergio. op. cit., p.: 23

[7] Id. Ibid. p.: 46

[8] Id. Ibid. p.: 50

[9] CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação
Editorial Humanitas, 2006. p. 17 .
[10] BORGES, Jorge Luis. Obras Completas de Jorge Luis Borges, vol. 2. São
Paulo: Editora Globo, 1999. p. 11.
[11] DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
p. 36.
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