A Tecelagem Tradicional do Algarve A Última Tecedeira da Serra de Monchique

May 26, 2017 | Autor: Selma Pereira | Categoria: Textiles, History of Textiles, História Do Algarve
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UNIVERSIDADE DO ALGARVE FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

A Tecelagem Tradicional do Algarve A Última Tecedeira da Serra de Monchique SELMA EDUARDA MOITA DA SILVA PEREIRA

TESE MESTRADO EM HISTÓRIA DO ALGARVE

Trabalho efetuado sob orientação de: Professora Doutora Susana Gómez-Martínez, Universidade de Coimbra – CEAUCP / Campo Arqueológico de Mértola FARO 2012

UNIVERSIDADE DO ALGARVE FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

A Tecelagem Tradicional do Algarve A Última Tecedeira da Serra de Monchique SELMA EDUARDA MOITA DA SILVA PEREIRA

TESE MESTRADO EM HISTÓRIA DO ALGARVE

Trabalho efetuado sob orientação de: Professora Doutora Susana Gómez-Martínez, Universidade de Coimbra – CEAUCP / Campo Arqueológico de Mértola FARO 2012

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A TECELAGEM TRADICIONAL DO ALGARVE A ÚLTIMA TECEDEIRA DA SERRA DE MONCHIQUE

Declaração de autoria do trabalho

Declaro ser a autora deste trabalho, que é original e inédito. Autores e trabalhos consultados estão devidamente citados no texto e constam da listagem de referências incluída.

Copyright

A Universidade do Algarve tem o direito, perpétuo e sem limites geográficos, de arquivar e publicitar este trabalho através de exemplares impressos reproduzidos em papel ou de forma digital, ou por qualquer outro meio conhecido ou que venha a ser inventado, de o divulgar através de repositórios científicos e de admitir a sua cópia e distribuição com objetivos educacionais ou de investigação, não comerciais, desde que seja dado crédito ao autor e editor.

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Dedico este trabalho à minha mãe

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AGRADECIMENTOS À Professora Doutora Susana Gómez-Martínez pela sua orientação e apoio na realização deste projeto. À D. Maria Nunes, e marido, pela disponibilidade e paciência demonstrada durante a investigação de campo. Em especial, o meu obrigado por terem tornado esta investigação possível. À colega Helena Cabrita pela amizade e apoio na revisão de texto. Ao Sr. Eduardo Neves pela preciosa ajuda na tradução do texto. À Professora Doutora Ana Margarida Fernandes pelos ensinamentos das técnicas da tecelagem, durante a licenciatura. Aos colegas de mestrado em História do Algarve, da Faculdade de Ciências Humanas e Socias da Universidade do Algarve. Aos meus pais, familiares e amigos. A todos aqueles que direta ou indiretamente se cruzaram no meu percurso.

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RESUMO A tradição têxtil no Algarve, apesar de não ter uma grande visibilidade atualmente, tem antepassados muito remotos. O trabalho realizado é um estudo sobre a atividade artesanal da última tecedeira de Monchique. A última tecedeira tradicional da Serra de Monchique que ainda se dedica ao cultivo, produção e tecelagem do linho. A investigação pretende compreender as características que identificam e singularizam a tecelagem tradicional da região. Através do estudo da última tecedeira analisamos o ciclo do linho na região algarvia, as técnicas e as tecnologias utilizadas, pretendendo assim contribuir para o estudo da tecelagem tradicional no Algarve. Termos chave: Tradição, Tecelagem Tradicional, Tecnologia regional, Linho

ABSTRACT The textile tradition in the Algarve despite, currently, not having great visibility, has very remote ancestors. The study realized, is on the craftsmanship of the last weaver of Monchique. The last traditional weaver from Serra de Monchique is still engaged in the cultivation, production and weaving of linen. The research aims to understand the characteristics that identify and individualize the traditional weaving of the region. Through the study of the last weaver, we analysed the cycle of linen in the Algarve, techniques and technologies used, intending thereby to contribute to the study of traditional weaving. Keywords: tradition, traditional weaving, regional technology, linen

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ÍNDICE Agradecimentos .......................................................................................................... 6 Resumo ....................................................................................................................... 7 Abstract ....................................................................................................................... 7 Introdução ................................................................................................................. 11 Capítulo 1: Delimitação e justificação do tema....................................................... 14 1.1 Objeto de estudo ............................................................................................... 14 1.1.1

Porquê esta tecedeira? .......................................................................... 14

1.1.2

A tecelagem tradicional no Algarve ........................................................ 14

1.1.3

O tear tradicional do Algarve ................................................................. 15

1.1.4 O ciclo do linho ........................................................................................... 16 1.2

Metodologia da investigação......................................................................... 18

1.3

Revisão Bibliográfica .................................................................................... 23

1.3.1

Enquadramento geográfico e socioeconómico ...................................... 23

1.3.2

Etnografia .............................................................................................. 24

1.3.3

O ciclo do linho ...................................................................................... 25

1.3.4

A tecelagem........................................................................................... 26

1.3.5

A produção têxtil na história do Algarve ................................................. 28

Capítulo 2. A tecelagem na história do Algarve...................................................... 31 2.1. Enquadramento geográfico e socioeconómico .............................................. 31 2.1.2. A Serra ...................................................................................................... 32 2.1.3. A Serra de Monchique ............................................................................... 33 2.1.4. A população da Serra de Monchique ......................................................... 34 2.1.5. Influência do Baixo Alentejo ....................................................................... 35 2.2. A indústria têxtil no Algarve .............................................................................. 37 2.2.1. Têxteis no Algarve pré-industrial ................................................................ 37 2.2.2 O Algarve Moderno ..................................................................................... 43 2.2.3. As importações de tecidos no Algarve e a “dependência” de Castela ........ 47 2.2.4. A influência dos mercadores ingleses ........................................................ 49 2.2.5. O Algarve Pombalino ................................................................................. 51 2.2.6 A indústria têxtil algarvia no século XIX ...................................................... 51 2.2.7. O século XX na indústria têxtil algarvia ...................................................... 54 2.3 A evolução da profissão de tecedeira ................................................................ 57 8

Capítulo 3. A tecedeira de Monchique ..................................................................... 59 3.1. A biografia de D. Maria Nunes .......................................................................... 59 3.2. O ciclo do linho em Monchique ......................................................................... 62 3.2.1. O linho ....................................................................................................... 62 3.2.2. O ciclo do linho .......................................................................................... 63 3.2.3 Como se tece em Monchique...................................................................... 65 3.3. Tecnologias e instrumentos empregues na produção do linho ......................... 67 3.3.1. A maçagem do linho .................................................................................. 67 3.3.2. Limpeza e seleção das fibras ..................................................................... 70 3.3.3. Fiação ........................................................................................................ 72 3.3.4. Instrumentos de elaboração de meadas .................................................... 78 3.3.5. Preparação da trama ................................................................................. 80 3.3.6. O tear......................................................................................................... 83 3.3.7. Os acessórios do tear ................................................................................ 86 3.4. Outras fibras utilizadas na serra de Monchique ................................................ 88 3.4.1. O algodão .................................................................................................. 88 3.4.2. A lã ............................................................................................................ 89 3.4.3. Os trapos ................................................................................................... 92 3.5. Características e particularidades da tecelagem algarvia ................................. 95 3.5.1 Análise dos produtos tecidos ...................................................................... 95 3.6. Inovações inseridas na produção dos objetos estudados ................................. 97 3.6.1. O algodão na urdidura dos teares tradicionais ........................................... 97 3.6.2. Desenhos e motivos ornamentais nas tecelagens de trapos ...................... 98 3.6.3. Comparação com outras tecelagens nacionais .......................................... 98 Considerações finais .............................................................................................. 100 Anexos: Glossário ilustrado .................................................................................................... 104

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INTRODUÇÃO Em 1864 foram recenseados 83 teares, em atividade, na Serra de Monchique. Atualmente só resta uma tecedeira ativa no concelho. Nascida em 1934, D. Maria Nunes continua a trabalhar o ciclo do linho, desde da plantação à venda das peças em feiras de artesanato da região. O ciclo do linho é muito complexo e obriga a várias fases de produção: a plantação, a maçagem1, a limpeza e seleção das fibras, a fiação, a elaboração de meadas, a preparação da trama e, por fim, a tecelagem do linho e da estopa. O cultivo e a plantação do linho no Algarve têm características que o diferenciam das restantes regiões portuguesas. A tecnologia empregue e o modo como é usada tem tradições muito remotas, no entanto é uma área muito esquecida pelos investigadores e da qual existem poucos estudos. Neste contexto surge o trabalho aqui apresentado, cujo objeto de estudo é a atividade artesanal da tecedeira de Monchique, mais concretamente, a última tecedeira tradicional do concelho que ainda se dedica ao cultivo, produção e tecelagem tradicional do linho. Desde logo, é preciso ter em conta as características desta atividade: no Alentejo e no Algarve a tecelagem doméstica fora um trabalho complementar às atividades agrícolas, sempre merecedora de menos atenção que a tecelagem da lã. A tecelagem do linho e dos trapos destinava-se primordialmente a servir as necessidades do lar, das povoações rurais e das classes mais desfavorecidas da região. A temática da presente investigação centra-se nas particularidades das tecnologias usadas na produção e tecelagem do linho e resultam numa questão central: que características identificam e singularizam a tecelagem tradicional da Serra de Monchique? A resposta a esta questão central da investigação pode contribuir para a discussão em torno de um tema que tem sido esquecido e a que não se costuma dar muita importância. Os estudos precedentes sobre a tecelagem

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Consulte a definição dos termos técnicos no glossário ilustrado em anexo. 11

tradicional do Algarve são escassos e os dados recolhidos sobre estas técnicas são ainda insuficientes. A investigação tem assim, como objetivo principal compreender as particularidades e as inovações nas técnicas da tecelagem tradicional do linho na Serra de Monchique, através do estudo da sua última tecedeira D. Maria Nunes, evidenciando o ciclo do linho na região, as técnicas e as tecnologias utilizadas e, de uma forma mais geral, contribuir para o estudo da tecelagem tradicional do Algarve. Para tal é preciso alcançar quatro objetivos intermédios: a) Documentar uma realidade histórica que está a desaparecer; b) Identificar as características da tecelagem algarvia e das tecnologias envolvidas; c) Caracterizar o impacto das indústrias têxteis algarvias, do início do século XX, na tecelagem tradicional; d) Contextualizar a tecelagem tradicional na história do Algarve. Para atingir estes objetivos, a análise dos aspetos tecnológicos do ciclo do linho ocuparam um ponto fulcral na tese, para o qual foi fundamental a descrição pormenorizada dos processos e ferramentas utilizadas. As razões que motivaram a escolha do objeto e dos objetivos da presente investigação estão relacionados com a minha anterior formação académica em design de moda e têxtil e com o interesse pelas tradições artesanais da região, mas também está relacionada com a pertinência da investigação numa época em que a tecelagem do linho, nos moldes tradicionais, está prestes a se extinguir e para a qual é urgente a recolha da informação, ainda existente, destes saberes tradicionais. Não só a tecelagem, mas, de uma forma mais generalizada, os saberes tradicionais e as atividades artesanais estão a desaparecer de uma forma acelerada e irreversível. Artesãos como os carpinteiros, ferreiros, e oleiros, por exemplo, estão extintos ou em vias de desaparecimento, dificultando e levando mesmo à cessação da chaine productive com intrincadas tradições seculares, como é o caso do ciclo do linho. A escolha do período contemporâneo em análise deve-se, em primeiro lugar, ao facto de se pretender recolher a informação oral da tecedeira. É, pois, 12

a partir dos depoimentos da tecedeira D. Maria Nunes que o trabalho se estrutura. No entanto, em toda a investigação teve-se em conta a história e a contextualização da atividade em estudo. Entre as dificuldades encontradas nesta investigação destaca-se a ausência de estudos precedentes sobre o nosso objeto de estudo e sobre a tecelagem regional. A alternativa passa por estudar o nosso objeto comparando-o com os estudos existentes sobre outras regiões do país, nomeadamente Baixo Alentejo e Vale do Ave.

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CAPÍTULO 1: DELIMITAÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO TEMA 1.1 OBJETO DE ESTUDO O objeto de estudo da presente investigação é a tecedeira de Monchique, D. Maria Nunes. D. Maria é a última tecedeira do concelho de Monchique a continuar a plantar, preparar e a tecer o linho utilizando as antigas tecnologias e métodos artesanais tradicionais da região. O estudo da tecedeira serviu também de pretexto para analisar de uma forma mais ampla a tecelagem tradicional no Algarve e em Portugal, sob os pontos de vista: histórico, social e técnico.

1.1.1 PORQUÊ ESTA TECEDEIRA ? Em 2008 e 2009 começamos a investigar as tradições têxteis do Algarve no âmbito do projeto final de licenciatura em Design Têxtil. Conhecemos D. Maria Nunes na Feira de Artesanato Fatacil de 2009, em Lagoa. D. Maria estava a demonstrar a tecelagem do concelho no stand da Câmara Municipal de Monchique. Por ser a última tecedeira tradicional em atividade no barlavento algarvio interessamo-nos pelo seu trabalho. Em 2010 quando a investigação para esta tese se iniciou escolhemos a tecelagem de D. Maria Nunes como objeto de estudo por vários motivos: em primeiro lugar a urgência de um estudo sobre uma atividade que está a desaparecer na região; em segundo lugar, existia a pertinência de registar os conhecimentos e as técnicas desta tecedeira; e por último, motivou-nos a falta de estudos precedentes sobre a tradicional tecelagem do linho no Algarve.

1.1.2 A TECELAGEM TRADICIONAL NO ALGARVE Entendemos a tecelagem tradicional como uma atividade com tradições seculares, realizada com matérias-primas cultivadas ou adquiridas na região, 14

utilizando instrumentos e tecnologias artesanais característicos de cada concelho ou distrito, fabricados, total ou parcialmente, na região, e que podem ser adquiridos em peças soltas ou tratar-se de acessórios complementares. Excluímos da tecelagem tradicional o uso de tecnologias que não sejam as tradicionais, como por exemplo, rodas de fiar mecânicas ou teares horizontais pré-fabricados em série.

1.1.3 O TEAR TRADICIONAL DO ALGARVE O tear é o instrumento fundamental para a tecelagem, pois é a tecnologia que permite transformar as fibras têxteis em tecidos. Embora mantenha sempre a mesma função, a forma do tear varia consoante as regiões. O tear é um aparelho complexo que produz tecidos a partir do cruzamento de fios de duas espécies: fios da urdidura (fios longitudinais) e fios da trama (fios transversais). Em Portugal existem três tipos de teares tradicionais com finalidades e processos de tecelagem distintos: o tear de pedal, o tear vertical e o tear de grade2. Os teares tradicionais portugueses mais comuns são os teares de pedal em madeira robusta e com uma estrutura em forma quadrangular, que apresentam pequenas variações regionais no plano formal, isto é nos elementos de suspensão dos liços3 e no pente4, mas que não tem relação com o tipo de tecido produzido. Quanto ao tipo de tecido produzido, os teares tradicionais nacionais podem ser divididos segundo o número de liços que possuem. Os teares com dois liços são utilizados para o fabrico de tecidos com estrutura simples, designados por tafetás, enquanto os teares com quatro ou

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Veja-se IPM, 2011: 108-109

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Liços: Componente do tear constituído por fios de linha suportados por canas e cuja finalidade é fazer subir ou descer os fios da teia para possibilitar a inserção dos fios da trama, fazendo o tecido. 4

Pente: Componente do tear, com a função de manter a distância entre os fios da teia, e de bater a trama dando mais consistência ao tecido. 15

mais liços destinam-se à produção de tecidos estruturalmente mais complexos, como a sarja e os seus derivados. No Algarve, encontram-se teares tradicionais verticais e horizontais, os teares verticais são raros e utilizados apenas para o fabrico de cilhas e atafais de cavalgaduras. Os teares tradicionais de Monchique enquadram-se nos teares de pedal tradicionais portugueses e possibilitam o fabrico de tecidos de estrutura simples. O tear analisado é construído em madeira de castanho e são constituídos por armação, órgãos e mecanismo do pente e dois liços. O pente é formado por talas de cana, ligadas através de uma corda à mesa superior. As talas da cana seguram uma série de puas de canas verticais. Os dois ou mais liços são suspensos por ciganas e acionados pelos pedais ou premedeiras. Os liços são constituídos por duas talas de cana horizontais e paralelas, unidas por uma série de fios de linho ou algodão enlaçados com uma pequena aselha a meia altura por onde passam individualmente os fios da urdidura.5

1.1.4 O CICLO DO LINHO6

O ciclo do linho é composto por variadas fases, recorre a tecnologias tradicionais e tem origens centenárias. Até há uns anos atrás o ciclo do linho fazia-se de Norte a Sul de Portugal. Atualmente este processo está a cair em desuso, as plantações perderam-se, os seus intervenientes envelheceram e abandonaram a atividade, ou procuraram outra profissão mais lucrativa. Em Portugal existem três variedades de linho indígena: galego, mourisco e de riga nacional. Estas variedades podem ser cultura de Primavera/Verão ou de Outono/Inverno. Na Serra Algarvia, a variedade de linho cultivada é o linho mourisco, típico do Nordeste Transmontano e do Sul Mediterrânico. O linho mourisco é

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A descrição mais pormenorizada encontra-se no cap. 3.3

6

Com base em IPM, 2011: 149-156. 16

uma variedade de Inverno, cultivada em terrenos agrícolas frescos, estrumados de anteriores culturas. Em Outono e Novembro 7 é feita a sementeira, e a semente é lançada à terra. Esta variedade é a menos exigente e dispensa a rega. Em Maio, o linho é colhido, manualmente desenterrando-o pela raiz. Em Maio e Junho, o linho é sujeito à curtimenta ou enlagamento. Tradicionalmente nos meses de Agosto a Outubro, o linho é transformado em fibra, através da maçagem, gramagem e assedagem. A fibra é transformada em fio através da fiação manual. Em Março, a fibra é ensarilhada, branqueada, e dobada. Entre Março e Abril, o linho é preparado para a trama e ainda em Abril é tecido. Entre Abril e Maio, o tecido é branqueado.

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1.2

METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO

Sendo o objeto de estudo desta investigação a tecedeira de Monchique, para além da análise aos estudos científicos precedentes, baseamo-nos primordialmente nas fontes orais: nos relatos e entrevistas que nós realizamos à tecedeira D. Maria Nunes e ao seu marido, Sr. José, na observação direta da produção e tecelagem de linho e trapos e na análise dos materiais e tecnologias relacionadas com a atividade. As informações recolhidas nesta fase foram estudadas sob o ponto de vista de disciplinas científicas de várias áreas: História das técnicas de tecelagem, Etnografia, História contemporânea, e Tecnologia Têxtil, numa perspetiva multidisciplinar. No entanto, sendo a “indústria” têxtil a área de especialização os aspetos tecnológicos são fundamentais nesta tese, também porque a tecnologia, imprescindível para entender o ciclo, está a cair em desuso e em risco de desaparecimento, daí a importância de estudá-la pormenorizadamente. A investigação foi iniciada com a questão: O que caracteriza e distingue a tecelagem tradicional do linho no Algarve? Uma vez que existiam poucos estudos específicos sobre o tema, a seleção de estudos nesta primeira fase não foi difícil. Começamos por analisar os estudos precedentes sobre a atividade da tecelagem em variadas épocas na região do Algarve. É de salientar a importância, nesta fase dos estudos de Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira, Cláudio Torres, Manuel Retuerce Velasco e Carlos Pedro. Durante a fase inicial de revisão bibliográfica, deparámo-nos com a ausência de estudos específicos sobre a tecelagem do linho na Serra de Monchique. Sabíamos da existência da tecedeira D. Maria Nunes, e que seria esta a última tecedeira de Monchique em atividade. Os estudos existentes sobre a tecelagem de Monchique são vagos, focando apenas ideias gerais sobre a tecelagem do linho, sem nunca a aprofundar. Uma breve biografia sobre a tecedeira de Monchique D. Maria Nunes fora publicada em 2008, escrita por Sara Duarte, no âmbito do curso de Educação e Intervenção Comunitária. Embora a abordagem de Sara Duarte 18

aprofunde pouco os saberes e as técnicas de D. Maria Nunes, é a única bibliografia existente dedicada à tecedeira. As entrevistas publicadas em anexo neste livro foram importantes na preparação das entrevistas exploratórias da presente investigação. O catálogo publicado em Artesanato na região do Algarve, onde constam algumas peças tecidas por D. Maria Nunes, e as memórias registadas por Glória Marreiros, em Um Algarve Outro. Contado de boca em boca, onde são abordadas as antigas tecedeiras no concelho de Monchique com o objetivo de divulgação do artesanato local, mas com pouca profundidade científica. Dêmos início às entrevistas exploratórias com a tecedeira D. Maria Nunes e o marido Sr. José. Nesta fase abrangemos também as tecedeiras da Oficina de Tecelagem de Mértola, e as tecedeiras do concelho de Tavira D. Beatriz e D. Otília. Contactamos ainda com Dr. Carlos Pedro e Arq. Marta Santos., que nos ajudaram a melhorar o conhecimento sobre o tema e também a escolher os procedimentos e metodologia mais adequados para a interpretação da investigação antropológica e para a recolha da informação oral. A informação adquirida com a análise de fontes e com as entrevistas exploratórias permitiu-nos definir os conceitos fundamentais e reformular a pergunta de partida da investigação e restringir a nossa área de estudo, focando-nos prioritariamente no concelho de Monchique. A questão central reformulada passou assim a ser: Que características identificam a tecelagem tradicional na Serra de Monchique? com o objetivo principal de compreender as particularidades e inovações técnicas da tecelagem tradicional do linho na Serra de Monchique, através do estudo da tecedeira D. Maria Nunes. Definimos ainda quatro objetivos intermédios: documentar uma realidade histórica que está a desaparecer; identificar as características da tecelagem algarvia e das tecnologias envolvidas; caracterizar o impacto das indústrias têxteis algarvias do início do século XX, na tecelagem tradicional; e contextualizar a tecelagem tradicional na história do Algarve. A partir daí analisamos as fontes mais específicas sobre Monchique, de destacar José A. Guerreiro Gascon, e aprofundamos o conhecimento sobre a 19

produção do linho em Portugal. Recolhemos o discurso oral da tecedeira, através de entrevistas sem um questionário pré-determinado e da observação direta das suas técnicas. Optámos por este método para podermos analisar os pontos de vista da tecedeira, sem perdermos o seu discurso fluido e espontâneo, permitiu-nos perceber os seus critérios de valorização das atividades envolvidas, assim como nos possibilitou uma futura reconstituição dos processos e experiências vividas com esta atividade. Para registo das entrevistas utilizamos inicialmente uma máquina de filmar, para recolher os depoimentos e registar as técnicas e tecnologias associadas, no entanto este processo retirou alguma espontaneidade ao discurso oral. Por esta razão nas entrevistas seguintes optámos pelo gravador de voz, de menores dimensões e causador de menores constrangimentos. Foi também nossa opção recorrer à observação direta da produção, preparação e tecelagem do linho e dos trapos, e venda em feiras de artesanato locais, o que nos permitiu a compreensão das técnicas e das dificuldades da atividade. Para registo recorremos a notas transcritas após a observação e ao registo fotográfico. A informação após analisada foi sistematizada em fichas técnicas. Recolhemos dados sobre a mesma atividade em outras zonas do país, nomeadamente Baixo Alentejo e Beiras. Analisamos e investigamos fontes documentais do Museu de Lanifícios da Beira Interior, e publicações de artigos científicos sobre a tecelagem e o linho, em revistas da especialidade. Simultaneamente, investigámos as indústrias têxteis que existiram no Algarve durante o século XX, detetámos uma predominância de indústrias deste sector em Vila Real de Santo António, Tavira, Loulé e Monchique. Estudámos de seguida as condições que existiriam nesses concelhos para o desenvolvimento da atividade, nesta área é de salientar a importância dos autores Fernanda Matos, Eduardo de Freitas e Vítor Matias de Freitas, António M. A. Nunes, e Cristiana Bastos. Procurámos também dados que nos pudessem ajudar a compreender como a tecelagem do linho têm sido encarada ao longo da história do Algarve, deparámo-nos com uma bibliografia muito dispersa, escassa e para algumas 20

épocas mesmo inexistente, o que nos apresentou desde logo algumas dificuldades, que voltaremos a abordar na revisão bibliográfica. Após esta fase, analisámos a informação recolhida, descrevemos os dados obtidos durante as fases de observação e comparámos com os resultados das informações que nos foram transmitidas pelas fontes bibliográficas. As

fichas

técnicas

relativas

às

tecnologias

utilizadas

para

a

transformação do linho foram comparadas às normas definidas anteriormente por Benjamim Pereira, assim como às tecnologias de outras regiões e de outros tempos. Relativamente a alguns objetos, conseguimos dados que nos permitiram analisar a sua evolução desde décadas remotas, como é o caso do fuso que deriva dos fusos utilizados na época romana. Nesta etapa, defrontámos algumas dificuldades na datação de alguns objetos utilizados na produção do linho, muito antigos que passaram de geração para geração e atualmente já não se sabe quando foram construídos nem como foram construídos. O estudo de Marta Santos sobre o tear tradicional de Tavira e a investigação sobre a tecelagem de Mértola de Carlos Pedro foram-nos muito úteis nesta fase, pois permitiram-nos comparar as tecnologias utilizadas em Monchique com as tecnologias em uso em concelhos próximos. Ao analisar as entrevistas efetuadas a D. Maria Nunes evidenciou-se a partilha de uma base cultural e civilizacional comum entre o Baixo Alentejo e o Algarve, muito clara nas atividades relacionadas com o ciclo do linho. Era do Baixo Alentejo que vinham as encomendas, era lá que participavam nas fiadas e até era lá que trocavam produtos. Esta influência já não é tão clara no presente, mas fora fundamental no tempo em que a mãe de D. Maria Nunes tecia. Esta comparação foi possível através dos estudos precedentes de João Evangelista F. da Ascensão e Sá, Paulo Guimarães e Ana Maria Cardoso de Matos. Os produtos tecidos e os equipamentos utilizados para a sua produção permitem-nos fazer a comparação com a tecelagem da vizinha Espanha, cuja tecelagem tradicional de linho e de trapos têm muito em comum com a que 21

encontramos na região do Algarve, para tal recorremos à investigação de Guadalupe González-Hontoria e María Pia Timón Tiemblo. A informação foi organizada em quatro capítulos. O presente capítulo sobre a delimitação e justificação do tema, metodologia da investigação e revisão bibliográfica. Um segundo sobre a contextualização da tecelagem na história do Algarve, englobando o enquadramento geográfico e a indústria têxtil no Algarve. O terceiro capítulo é inteiramente dedicado à última tecedeira Serra de Monchique, inicia-se com um enquadramento socioeconómico, seguindo-se uma breve biografia de D. Maria Nunes e a análise detalhada das técnicas e instrumentos utilizados no ciclo do linho, desde a plantação à tecelagem. No capítulo final apresentamos as nossas considerações sobre os objetivos iniciais da investigação. Nos anexos, criamos um glossário ilustrados sobre a terminologia têxtil presente neste estudo, para que um leitor não iniciado na área têxtil possa compreender rapidamente os aspetos técnicos destas atividades.

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1.3

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Pouco se escreveu sobre a história dos têxteis portugueses e ainda muito falta investigar. Os estudos precedentes são escassos e os dados recolhidos sobre estas técnicas são ainda insuficientes. Durante esta investigação recorremos a bibliografia de várias disciplinas científicas, para facilitar a leitura apresentamos a revisão da bibliografia por áreas de estudo.

1.3.1 ENQUADRAMENTO GEOGRÁFICO E SOCIOECONÓMICO Para o enquadramento geográfico do Algarve e, particularmente, da Serra do Algarve recorremos sobretudo a três autores: Carminda Cavaco, Amorim Girão e José A. Guerreiro Gascon. No primeiro volume de O Algarve Oriental. As vilas, o campo e o mar, Carminda Cavaco (CAVACO, 1976) analisou, de uma forma resumida, a diversidade geográfica do Algarve, com as diferenças entre a Serra e o Baixo Algarve, e o Barlavento, Centro e Sotavento. Amorim Girão (GIRÃO, 1941) investigou a geografia e as formas de povoamento da região do Algarve. São de destacar também os estudos do Artur Martins, Celestino de Castro e Fernando Torres publicados em A arquitectura popular portuguesa (AAVV, 2004). Em 1955, Joaquim A. Guerreiro Gascon estudou aprofundadamente o concelho de Monchique publicando Subsídios para a monografia de Monchique (GASCON, 1955), de grande importância no decorrer desta investigação. Cristiana Bastos (BASTOS, 1993) investigou as sociedades do nordeste algarvio, refletindo sobre a forma de os “serrenhos” encararem o Baixo Algarve, e o Alentejo. Embora o estudo não incida sobre a Serra de Monchique, a falta de estudos antropológicos sobre Monchique tornou a obra de Cristiana Bastos uma referência para a presente investigação. Em Portugal Meridional (MEAUSURES e MEAUSURES, 1985) são dedicadas algumas páginas a Monchique analisando sumariamente a paisagem e o artesanato deste concelho algarvio. 23

1.3.2 ETNOGRAFIA As investigações levadas a cabo por Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira e Fernando Galhano, nas décadas de 1960/70, são as mais importantes nas áreas da etnografia e tecnologia têxtil. Estes autores registaram as tecnologias empregues nesta atividade por todo o território nacional, contudo atribuíram menor relevância às tecnologias das regiões do Baixo Alentejo e Algarve. Em 1977, Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (OLIVEIRA, GALHANO, 1977: 19-24) analisaram o Pisão do Barranco dos Pisões, no concelho de Monchique, classificando-o como pisão de pancada horizontal. Conforme foi referido pelos autores, no final da década de 1920 ainda existiriam cinco ou seis pisões em atividade no concelho, mas em 1977 já nenhum dos pisões funcionava, encontrando-se já abandonados.8 Em Tecnologia Tradicional Portuguesa: O linho (OLIVEIRA, GALHANO, PEREIRA, 1978) os equipamentos utilizados na transformação do linho em Portugal são abordados, e são estipuladas as respetivas tipologias. A transformação do linho apresenta muitas diferenças no conjunto nacional, no entanto é dada maior importância à análise das tecnologias das zonas norte e interior do país, abordando apenas a tecnologia do Baixo Alentejo e Algarve em linhas gerais. Sobre a tecelagem do sul do país, os autores referem-se à origem romana do fuso utilizado ainda hoje na região do Algarve, às tipologias das rocas tradicionais portuguesas e ao tear tradicional de Mértola, descrito e acompanhado por ilustrações técnicas. Também Benjamim Pereira investigou e publicou diversos estudos sobre as tipologias das tecnologias têxteis tradicionais, de destacar Têxteis. Tecnologia e simbolismo (PEREIRA, 1985), aqui a tecnologia tradicional do Algarve continuou a ser pouco aprofundada.

8

Veja-se também a descrição de Ernesto Veiga de Oliveira, sobre os pisões portugueses (OLIVEIRA, 1985) 24

O Instituto Português de Museus disponibilizou as Normas de Inventário. Tecnologia Têxtil (IPM, 2007), com indicações e regulamentação específica para a inventariação e descrição das peças etnográficas ligadas a esta atividade. No mesmo livro consta as tipologias aceites para diversas tecnologias têxteis desenvolvidas por Benjamim Pereira em 1960-61, assim como a descrição da roda de fiar utilizada em Alcoutim e Tavira que curiosamente não existe em Monchique. Mário Araújo (ARAUJO, 1982) apresenta-nos um estudo técnico sobre a evolução das tecnologias têxteis, focando também os avanços e os benefícios que a introdução das máquinas produziu nesta indústria. Os dados fornecidos por Mário Araújo permitem-nos comparar os problemas e as potencialidades da tecelagem tradicional face à realidade industrial. Em Artesanato da região do Algarve (CUNHA, RAMOS, 2005) são publicados alguns produtos tecidos por Dona Maria Nunes e as rocas tradicionais construídas pelo seu marido, o Sr. José. Na mesma publicação, são publicados outras peças tecidas, umas segundo os moldes tradicionais outras não, de outras zonas do Algarve, contudo não é apresentada nenhuma análise científica. Carlos Pedro (PEDRO, s.d) investigou a tecelagem tradicional de Mértola em lã, focando todo o processo produtivo e tecnologias envolventes no trabalho da lã neste concelho. O estudo de Carlos Pedro foi de grande importância, pois permitiu-nos perceber as semelhanças entre as tecnologias da tecelagem do concelho de Monchique e do concelho de Mértola, assim como identificar as tecnologias comuns para a tecelagem do linho e da lã. Marta Santos estudou as características do tear tradicional do concelho de Tavira, publicado no catálogo de Cidades e Mundos Rurais. Tavira e as sociedades agrárias (SANTOS, 2010: 215-217), no âmbito da exposição sobre o tema no Museu Municipal de Tavira. Também neste catálogo Jaquelina Covaneiro e Sandra Cavaco apresentam torres de rocas, agulhas e dedal pertencentes ao período almóada no Algarve (QUEIROZ, 2010: 210-214).

1.3.3 O CICLO DO LINHO 25

Existe diversa bibliografia sobre o ciclo do linho, no entanto a maioria foca apenas ideias gerais, sem aprofundar as técnicas e os saberes necessários para estas atividades. É de salientar os estudos de Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, citados anteriormente e acrescentar, Engenheiro D. Rodrigo de Castro (1943), Estevens Lança e Fernandes Baptista (1993). Fernandes Baptista (LANÇA e BAPTISTA, 1993) investigou a cultura do linho com uma abordagem técnica sobre a planta do linho, desde as suas características botânicas às técnicas culturais relacionadas com este ciclo. Este estudo foi-nos fundamental para compreender as variedades nacionais da planta do linho e principais características da sua cultura. O linho em Portugal (ME, 1943) aborda a história do linho, e através dos resultados dos inquéritos de 1940 sobre a cultura do linho em Portugal, dá-nos a conhecer de uma forma precisa o panorama nacional da produção em questão.

1.3.4 A TECELAGEM Marylène Brahic (BRAHIC, 1988) estudou o funcionamento e respetivos componentes do tear horizontal de pedal, focando, ainda que de uma forma generalista, os principais pontos e tipos de tecidos. O seu estudo, embora não incidisse sobre os teares tradicionais portugueses, foi-nos muito útil pela qualidade dos esquemas e gráficos sobre a construção e montagem dos teares horizontais de pedal. Guadalupe González-Hontoria e María Pia Timón Tiemblo (GONZÀLEZ, TIMON, 1983) investigaram a tecelagem tradicional em Espanha. Apesar de este estudo incidir sobre o nosso país vizinho existem semelhanças em algumas características das tecnologias empregues, assim como em técnicas de produção e ornamentação. É de salientar as semelhanças entre os dois países na produção de tecelagens de trapos, assim como nas tecnologias empregues para a preparação do linho e lã. Carlos Bastos (BASTOS, 1950) analisa, ainda que de uma forma breve, as origens da indústria têxtil, focando com mais detalhe o aparecimento e a 26

história da indústria algodoeira em Portugal. Neste estudo Bastos faz uma análise histórica à indústria têxtil, esquecendo-se, contudo, das tecnologias e os processos de produção envolvidos. Em Tesouros do Artesanato Português (PERDIGÃO e GALVET, 2002) são apresentadas, em formato de catálogo, as principais tecelagens tradicionais portuguesas, de onde constam a Cooperativa Oficina de Tecelagem de Mértola e a tecelagem de Ti Senhorinha, tecedeira do concelho de Alcoutim, hoje já em inatividade, todavia não é feita qualquer análise às tecelagens e tecedeiras apresentadas. 1.3.4.1 A tecelagem no Algarve Deparamo-nos com falta de fontes diretamente relacionadas com as atividades de fiação e tecelagem no Algarve durante algumas épocas. A tecelagem tradicional sempre fora, maioritariamente, uma atividade caseira e doméstica, realizada sobretudo por mulheres, daí a falta de documentação escrita referente a esta atividade, como por exemplo, contratos de aprendizagem, registos de encomendas e pagamentos. A tecelagem de Mértola é a tecelagem regional mais estudada e apresenta variadas semelhanças com a tecelagem praticada na Serra de Monchique. Carlos Pedro, na sua tese Tecelagem Tradicional de Mértola (s.d.) registou o processo e as tecnologias empregues na obtenção e tecelagem da lã. Ângela Luzia, Isabel Magalhães e Cláudio Torres (LUZIA, MAGALHÃES e TORRES, 1984) investigaram as características e particularidades das tecelagens do concelho de Mértola, questionando-se sobre os antepassados desta atividade, onde Cláudio Torres reconhece fortes influências islâmicas relativamente aos processos produtivos e padrões envolvidos. Glória Marreiros (MARREIROS, 1999) registou as memórias do povo e dos modos de viver de Monchique. Numa obra eclética, entre ente outros assuntos, Glória Marreiros foca, através do testemunho de locais, os vários pisões que aqui funcionaram (MARREIROS, 1999: 111-113), a produção do linho e lã (MARREIROS, 1999: 221-223) neste concelho durante as primeiras décadas do século XX, a necessidade de reaproveitar os trapos (MARREIROS, 27

1999: 62-65) e os preceitos do traje regional (MARREIROS, 1999: 286-287). Os estudos de Glória Marreiros possibilitaram-nos o acesso a depoimentos de populares sobre a história têxtil local, o que nos levou a compreender o impacto que estas atividades tiveram junto da população. Sara Duarte (DUARTE, 2008) investigou a tecedeira D. Maria Nunes, no âmbito do curso de Educação e Intervenção Comunitária, embora o estudo da autora não aprofunde os conhecimentos técnicos e saberes da tecedeira, é a única bibliografia existente sobre a tecedeira. Como já foi referido na metodologia da investigação, as entrevistas publicadas no estudo de Sara Duarte ajudaram-nos na fase inicial da investigação.

1.3.5 A PRODUÇÃO TÊXTIL NA HISTÓRIA DO ALGARVE A história da tecelagem apresenta-nos à partida algumas dificuldades. No Algarve, assim como nas restantes regiões portuguesas, os estudos sobre esta atividade são escassos, e os testemunhos destes saberes e dos equipamentos a eles associados são raros e em alguns casos inexistentes. Carmen Alfaro Giner (ALFARO, 1997) analisou as fontes arqueológicas e publicou a sua investigação sobre a tecelagem na época romana. Uma obra necessária para podermos conhecer as origens das nossas tecnologias tradicionais. Mariana Pereira (PEREIRA, 2010) e Catarina Costeira (COSTEIRA, 2010) investigaram os vestígios arqueológicos, relacionados com as atividades da tecelagem, pertencentes à pré-história recente, o que as permitiu distinguir em Portugal duas áreas de tecelagem distintas: a área Norte e a área do Alentejo e Andaluzia. No período islâmico, Mértola fora um importante ponto de passagem para muitos mercadores do Oriente e do Norte de África. Contudo Cláudio Torres refere que a Serra Algarvia não terá sido um alvo preferencial de assentamento (TORRES, 1992), mantendo-se desta forma processos de fabrico e padrões de origens berberes comuns aos dois lados do Mediterrâneo (TORRES, 1984) tanto na tecelagem como em outras atividades produtivas artesanais que envolviam os elementos familiares, as populações locais, e em 28

alguns casos, contava com as ligações estabelecidas entre as populações da Serra Algarvia e do Baixo Alentejo. Manuel Retuerce Velasco (RETUERCE VELASCO, 1987) questiona a datação dos vestígios arqueológicos relacionados com os teares horizontais de pedais. São conhecidos tempereiros pertencentes a estes teares mas a sua classificação não é clara, levando alguns investigadores a identificá-los como romanos e enquanto outros os consideram como pertencentes ao período islâmico. Contudo, as fontes escritas deixadas por Abu’Abd Allah al Rusafi comprovam que o uso do tear horizontal de pedais no Al-Andaluz é anterior ao século XIII (COELHO, 1989). Cláudio Torres (TORRES, 1986) também esclarece alguns equívocos em relação às torres das rocas anteriormente classificadas como cabos de facas e peças de jogo. Joana Sequeira e Arnaldo de Sousa Melo (SEQUEIRA e MELO, 2012) investigaram a produção têxtil nacional na época tardo-medieval, comprovando a sua importância na economia do reino. O estudo possibilitou-nos comparar o processo e cultivo do linho com os métodos de produção da Idade Média. João Carlos Garcia (GARCIA, 1986) e Ana Maria Pereira Ferreira (FERREIRA, 1983) também publicaram as investigações sobre a indústria e o comércio têxtil em Portugal durante os séculos XV e XVI. Para o nosso estudo da produção têxtil nas épocas modernas foram fundamentais os estudos precedentes de Joaquim Romero Magalhães, João Baptista Silva Lopes, o já citado Guerreiro Gascon, e Fernanda Matos. Joaquim Romero Magalhães apresenta-nos o panorama da economia no Algarve dos séculos XVI a XVIII, em Para o estudo do Algarve económico durante o séc XVI (MAGALHÃES, 1970) e em O Algarve económico: 16001773 (MAGALHÃES, 1988), com foco nas formas de povoamento e atividades praticadas por esta gente. João Baptista Silva Lopes (LOPES, 1841) testemunha um Monchique rural, onde as mulheres trabalhavam no fabrico de fazendas grosseiras, recorrendo a tecnologias toscas e imperfeitas para as quais lhes faltava

29

instrução, no entanto existia já um pisão no concelho e condições necessárias para a criação de uma fábrica de lanifícios. José A. Guerreiro Gascon (GASCON, 1955) refere a existência de noventa tecedeiras no ano de 1880 no concelho de Monchique. Dessas noventa, hoje apenas nos resta um tear tradicional em atividade. O mesmo autor relata a presença, no final do século XIX, de duas fábricas de fiação e tecelagem de linho e um pisão para tecidos de lã. Em pleno século XX, continuavam a ser realizadas fiadas. Fernanda Matos (MATOS, 1988) analisa minuciosamente os dados existentes sobre a indústria têxtil e respetivo património industrial louletano, e é o estudo mais completos sobre a indústria têxtil no Algarve.

30

CAPÍTULO 2. A TECELAGEM NA HISTÓRIA DO ALGARVE 2.1. ENQUADRAMENTO GEOGRÁFICO E SOCIOECONÓMICO 2.1.1 O Algarve “A Oeste e a Sul cercam-na o Oceano Atlântico. A Este o rio Guadiana separa-a da Andaluzia, a Norte toca no Alentejo, mas o limite deste lado é pouco natural e administrativamente mal determinado. A separação destas duas províncias faz-se por uma linha que começa na embocadoura da pequena ribeira de Odeceixe, remonta o seu curso até perto da nascente, depois segue pouco mais ou menos a crista da Serra de Monchique até às nascentes do Vascão e persegue o curso deste rio até à sua foz no Guadiana.” (BONNET, 1850)

O Algarve distingue-se das restantes regiões do país pelo seu clima moderado e temperado, com a costa ocidental e o extremo sudoeste com uma humidade relativa e uma precipitação escassa no período de estio. CAVACO, 1976: 13-22). As Serras de Monchique e do Caldeirão, ao mesmo tempo que separam o Algarve do peneplano Alentejo, subdividem a própria região algarvia em Baixo Algarve e Serra. O Baixo Algarve estende-se ao longo da costa marítima desde do Cabo de São Vicente até Vila Real de Santo António, com terrenos mais apropriados ao cultivo, e maior densidade populacional. A Serra é mais extensa, inculta e menos povoada. (BONNET, 1850:49-50). 31

Na serra, distingue-se a Serra de Monchique e no Baixo Algarve separase o Barrocal, com colinas e planaltos calcários, do Algarve litoral, costeiro e quase sem relevo. (CAVACO, 1976:15). Se tivermos em conta as diferenças climáticas da região deparamo-nos então com uma sub-divisão longitudinal: o Barlavento, o Centro e o Sotavento. O Sotavento está mais exposto ao levante e ao clima tropical continental, o Barlavento está sujeito às nortadas e à humidade do nordeste e do oeste, o Centro é mais protegido, com um clima continental. (CAVACO, 1976: 16). Estas características climatéricas conjugadas com a abundância de cursos de água favorecem o cultivo do linho mourisco por todo o Algarve, com as sub-variantes abertiço e serrano. O linho mourisco é um linho indígena característico do território nacional a Sul do Tejo. Trata-se de uma espécie pouco exigente semeada sobretudo em terrenos frescos e agrícolas próximo a cursos de água, condição fundamental para a transformação do linho. 9 As fontes revelam a cultura do linho, durante o século XVI, em Bensafrim, Aljezur, S. Bartolomeu de Messines, Deleite, Machial, Pereiro e Alcoutim (MAGALHÃES, 1988).10

2.1.2. A SERRA A Serra é constituída por montanhas xistosas à exceção dos seus dois pontos culminantes graníticos. Abrange o Noroeste, o Norte e o Nordeste da região. A Serra de xisto forma uma barreira montanhosa quebrada apenas pela depressão tectónica entre São Marcos e São Bartolomeu de Messines. A serra manteve-se até aos meados do século XX em acentuado isolamento. O. Ribeiro justifica por faltarem os motivos de abertura de estradas que beneficiaram outras áreas do país A Serra tem uma cobertura vegetal espontânea, degradada pelo pastoreio, onde, entre as espécies mais

9

Veja-se Capítulo 3.2

10

Veja-se Capítulo 2.2.2 32

características, figuram o sobreiro e a azinheira mas sem uma distribuição uniforme, já que o medronheiro e o sobreiro só se desenvolvem bem nas áreas mais húmidas, na alta Serra Chã, na vertente meridional e ocidental do Caldeirão e nas áreas de Monchique.” (CAVACO,1976: 17).

2.1.3. A SERRA DE MONCHIQUE Na Serra de xisto destaca-se o maciço de sienítico de Monchique, que alcança 902 m na Foia e 774 m na Picota. O clima super-húmido 11 , com frequentes nevoeiros e granizos, altos valores de nebulosidade, e uma temperatura amena de Inverno e fresca no Verão é propício à vegetação natural que cobre a serra. “Nos seus limites brotão a todos os cantos nascentes de agoasferreas e comuns em tal abundancia, que formão caudelosas ribeiras” [sic] (LOPES, 1841: 247). Na Serra de Monchique, com os “solos espessos, de composição equilibrada, desenvolvidos na camada de alteração profunda de sieníticos, e facilmente irrigáveis no Verão […] foi possível a criação duma outra paisagem agrária,

sempre

verdejante,

com

culturas

promíscuas,

em

terraços

escalonados, regados e explorados de uma forma intensiva durante todo o ano.” (CAVACO, 1976: 18), onde, em 1841 Silva Lopes referira a existência de “frondosos castanheiros, […] que baixando das serras serpenteão, e fertilizão todo o terrenos semeado simultaneamente de vários e numerosos cazaes” [sic] (LOPES, 1841: 248). Aqui predominara o castanheiro, que tivera uma importância de destaque entre a população12, e com um papel importante para a tecelagem, pois a sua madeira é usada para o fabrico de teares. “He o único sitio no Algarve, onde há castanheiros para córte de madeira, e em tal abundância que della se provê, nem só todo o Algarve, e Alem-Tejo Baixo, mas ainda exporta pelo rio de Portimão […] Tem gado vacum e cabrum, que exporta muito; lanígero e suíno bastante para si, assim como muar e asneiro: alguns

11

Classificação de Reis Cunha, citado em CAVACO, 1976:18

12

Veja-se CAVACO, 1976:18 33

javalis, rapozas, gatos bravos e lobos: caça miúda em abastança”[sic] (LOPES, 1841: 249).

2.1.4. A POPULAÇÃO DA SERRA DE MONCHIQUE Monchique tem uma área de 395,26 km2 dividida em três freguesias: Alferce, Marmelete e Monchique. De acordo com o Anuário estatístico da região do Algarve (INE, 2011), Monchique conta com 5801 habitantes residentes, 2099ha são utilizados para a agricultura, dos quais 44ha são ocupados por hortas familiares.13 A idade média de um agricultor singular, no concelho, é de 66 anos e na mão-de-obra agrícola familiar a idade média é de 60 anos.14 Em relação aos abundantes ovinos que existiram em Monchique só restam 10,6 ovinos por exploração.

15

Em consequência destes valores,

encontramos as atividades agrícolas a escassear e exercidas por uma população envelhecida com poucas expetativas de continuidade. A população da Serra de Monchique, muito mais numerosa e densa que a da serra de xisto, sobrevivera até à segunda metade do século XX afastada da vida do Baixo Algarve. “Até 1951 não havia estrada para Alferce. A única via para o mundo exterior eram os caminhos de burros, impossíveis de percorrer, mesmo com uma carroça puxada por um cavalo. Toda a região se encontrava cortada do exterior, sendo auto-suficiente na maioria dos aspectos” (JENKINS, 1983:12)16. A produção tradicional dos camponeses da Serra de Monchique está organizada de forma a produzir os meios de sobrevivência necessários de uns

13

O Algarve tem 88297ha utilizados para a agricultura, dos quais 628ha são ocupados por hortas familiares. 14

No Algarve, a idade média de um agricultor singular é de 67 anos, enquanto a idade média da mão-de-obra agrícola familiar é de 62. 15

Valor contrastante quando comparado com os 227,8 ovinos por exploração do concelho de Vila do Bispo. 16

A falta de estradas também é referida por Silva Lopes que sugeria uma fácil construção (LOPES, 1841: 250). 34

anos para os outros, (BASTOS, 1993:108) sem produzir excedentes 17 , “praticamente nada sai do local de produção e também quase nada entra” (JENKINS, 1983:124)18. As

necessidades

que

não

conseguiam

suprir

chegavam-lhe

transportadas por burros (BASTOS, 1993:108), importavam trigo, vinho, azeite, pescarias, linho e lã (LOPES, 1841:249-250). Também alguns profissionais viajavam entre vários montes “de carda na mão, o cardador de lã ia de monte em monte cardando a lã que em cada casa seria fiada; outros tantos o faziam o alfaiate e o sapateiro, que em cada sítio paravam uns dias a atender as encomendas, levando consigo os instrumentos necessários, entre os quais se contava, mal apareceu no mercado, a máquina de costura. Ainda não há muito tempo andava pelos montes um “dentista” a tirar os dentes com a sua turquês” (BASTOS, 1993:109).

2.1.5. INFLUÊNCIA DO BAIXO ALENTEJO

O Baixo Alentejo e a Serra Algarvia partilham uma base cultural e civilizacional comum, muito evidente nas atividades relacionadas com o ciclo do linho. D. Maria relata as encomendas de tecidos de linho, que a mãe recebia, provenientes do Baixo Alentejo. Era também no Baixo Alentejo que participavam em fiadas e era lá que trocavam os produtos. Esta partilha tem origens centenárias. As terras ásperas da Serra mantiveram as populações autóctones longe dos colonos e povoadores, romanos, islâmicos e feudais, resistindo à evolução do restante Algarve, mantendo assim os seus costumes e tradições (TORRES, 1992:189-202).

17

No entanto, Silva Lopes faz referência à exportação de: madeira de castanheiro, alguns legumes, gado vacum e cabrum (LOPES, 1841:250). 18

A necessidade desta autossuficiência também é referida por Glória Marreiros (sic.): “também nunca era grandes farturas que os dinheiros eram poucos e a gente furtavase aos gastos de tudo o que não fosse da nossa colheita” (MARREIROS, 1999:234235). 35

Na segunda metade do século XIX19 a maior parte da indústria têxtil do Algarve e do Alentejo encontrava-se reduzida a trabalhos domésticos ou a pequenos estabelecimentos fabris onde só trabalhavam os próprios donos. O Inquérito de 1881 (MATOS, 1988) adverte para o facto de, nos distritos de Portalegre, Évora, Beja e Faro, existirem sobretudo indústrias caseiras, com grande importância no seu conjunto, disseminadas pelas povoações, onde cada casa era uma oficina. Os rendimentos dos operários eram muito baixos contribuindo para a pobreza do próprio meio. Em 1864, a grande concentração algarvia de teares encontrava-se na Serra. Os maiores centros produtores eram Monchique, com 83 teares e Castro Marim com 79 teares. Estes teares não teciam apenas lã e não trabalhavam continuamente. No mesmo ano, Fradesso da Silveira refere 292 teares em Almodôvar, 81 teares em Mértola e 71 em Odemira, que produziam panos, mantas, alforges que se vendiam pelas feiras regionais. Em 1880, nos concelhos de Mértola e Almodôvar encontravam-se 724 casas de trabalho e oficinas de tecelagem. Estes números colocam o Alentejo a um nível próximo das Beiras. No entanto incapaz de competir com a indústria fabril, a indústria da tecelagem alentejana, entrou em decadência durante as primeiras décadas do século XIX. Fradesso da Silveira, nos finais da década de 1860, referia como responsável pelo estado de decadência, o tratado comercial de 1810 com a Inglaterra, não considerando a decadência ser apenas uma consequência do Tratado de Methuen. Durante a primeira metade do séc. XIX, a mecanização conduziu ao desaparecimento

do

anteriormente

referido

“putting

out

system”,

consequentemente os centros de produção que estavam na sua direta dependência gradualmente acabaram por desaparecer. Aljustrel fora no século XVIII um centro de produção de linho, no entanto também no Alentejo a cultura do linho não despertara muito interesse aos

19

Veja-se capítulo 2.2.6 36

lavradores nem aos investidores. No início de oitocentos faltava praticamente tudo na produção do linho no Alentejo: matérias-primas, capitais, falta de escolarização e de formação. A tecelagem da lã, do linho, da estopa e dos trapos sobrevivera nas zonas mais pobres mantendo as suas formas de produção pré-capitalista. A fiação e tecelagem eram feitas por mulheres nas suas próprias casas, nos tempos livres da atividade agrícola, de modo a tecedeira conseguir pagar-se um salário muito baixo ocupando assim os seus tempos livres. As mantas de retalhos e os tecidos de lã, linho e algodão, muito populares entre aa classes desfavorecidas eram encomendadas por moradores locais ou por mercadores. O preço final resultava assim do cálculo dos fracos rendimentos, com a matéria-prima e os baixos investimentos.

2.2. A INDÚSTRIA TÊXTIL NO ALGARVE 2.2.1. TÊXTEIS NO ALGARVE PRÉ-INDUSTRIAL Pensa-se que o linho tenha sido utilizado para produzir fibra têxtil primeiramente na Ásia e no Norte de África durante o Neolítico. Do ponto de vista de Carmen Alfaro Giner, ao analisar as fontes arqueológicas, o linho será a fibra têxtil mais abundante entre os vestígios de tecidos antigos (ALFARO, 1997:23). Mariana Pereira (PEREIRA,2010) e Catarina Costeira (COSTEIRA,2010) recolhem vestígios arqueológicos da atividade da tecelagem pertencentes à pré-história recente, contestando classificações anteriores destes objetos, entre os quais pesos e componentes de teares. A análise aos elementos integrantes dos teares da pré-história recente identificou duas áreas com tecelagens distintas no território nacional: a área norte (correspondente às Beiras e Estremadura) e a área do Alentejo e Andaluzia 20 . Os “crescentes” são

20

“Os contactos que […] existiram entre a estremadura e o sul não tornaram estas comunidades permeáveis às distintas tradições de tecelagem”, M.Dinis segundo PEREIRA, 2010:14. 37

característicos das estações arqueológicas do Sul do país, provavelmente correspondentes a uma tradição de tecelagem específica das zonas do Sul, remetidos para a transição do IV para o III milénio21. O Sul era uma área privilegiada de trocas e bens, provavelmente nesta região a prática da tecelagem tenha sido anterior à região norte do país, no entanto nos inícios do III milénio, a atividade da tecelagem é generalizada por toda a faixa ocidental da Península Ibérica. A tradição têxtil no Algarve, apesar de não ter atualmente uma grande visibilidade tem antepassados muito remotos. Ernesto Veiga de Oliveira (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978) data o inicio do cultivo do linho nas Caldas de Monchique na primeira fase do Bronze Mediterrâneo Peninsular, comprovado por um pequeno farrapo de linho envolto num machado de cobre, datado de 2000 a. C. A prática da fiação é referenciada em estações castrejas, onde foram encontrados verticilli e pondera22. Os estudos de Alfaro Giner descrevem que durante a ocupação romana, o cultivo do linho e as suas utilizações ganharam importância económica, tal como acontecera com outras atividades agrícolas. Nesta época, a produção têxtil era já uma ocupação para muitos homens e mulheres que produziam e comercializavam tanto as fibras têxteis como os tecidos (ALFARO,1997:9) Alberto Sampaio realça que a terminologia utilizada na produção do linho (“bragal e braga, estopa, tomentos e estriga, maçar, espadela, espadelar e espadar, maúnca ou mainça, peso, etc.”) deriva do latim. O mesmo autor menciona que o linho de inverno, a variedade encontrada nas regiões a sul do Tejo, provém, possivelmente, das províncias italianas, onde também os panos

21

Mariana Pereira fundamenta esta tese com as teorias de Vitor S. Gonçalves e M. Diniz, veja-se PEREIRA, 2010:12-20. 22

Verticilli , ou cossoiros,“são pequenos discos ou esferas achatadas , com um furo no centro, na maioria dos casos feitos de barro, geralmente interpretados como sendo pequenos volantes que se aplicam à ponta inferior do fuso a fim de manterem a rotação”, e os pondera, são peças de barro com uma forma de piramide quadrangular truncada ou de paralélipipedo, com 10 a 12 cm de altura, usados, provavelmente, como pesos de tear vertical, veja-se OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:9. 38

grossos de linho eram preparados e tecidos em casa (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:11) Carmen Alfaro Giner, em El tejido en época romana, descreve o processo da apanha do linho com características idênticas ao descrito actualmente por D. Maria Nunes 23 : “El arrancado se hizo siempre manualmente, estirando com las manos, seguramente tras un riego para ablandar la tierra y evitar que la planta se rompiera. Aparte de la óbtención de hilaza se hacía acopio de semillhas” (ALFARO, 1997:25). Alfaro Giner cita Plínio (NH, XIX, 16-18), que descreve de forma precisa a apanha do linho: “se arranca la planta y se la ata en manojos que quepan en la manos poniéndolos, colgando, a secar al sol com las raíces vueltas hacia arriba durante un dia; después, durante otros cinco dias, oponiendo las cabezas de los hatillos a fin de que el grano caiga en medio[...]después los tallos son colocados en agua tibia al sol y mantenidos en el fondo mediante un peso, pues no hay material más ligero. Cuando la corteza está suelta ya están bastante enriados; entonces se les hace secar outra vez at sol, boca abajo como antes. Después, una vez secos, se les muele sobre piedra com una maza al efecto (stupparius malleus). La parte más próxima a la corteza recibe el nombre de estopa; su lino es de calidade inferior, y ordinariamnete más próprio para hacer mechas de lámparas” (ALFARO, 1997:25). O próprio fuso típico das regiões do Algarve e do Alentejo, apresenta uma forma definida já no período romano (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:77), se os compararmos com os fusos expostos no Museu Municipal de Lagos Dr. José Formosinho, identificados como pertencentes à época romana e visigótica.24

23

Veja-se capítulo 1.1.4.

24

Confronte-se nota 112 e imagens 33 e 34, OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:77 com a fotografia dos fusos disponível em FORMOSINHO, 2012. 39

O Garb al-Ândalus fora um “herdeiro natural” da antiga Lusitânia. As populações autóctones mantiveram-se e os moçárabes estavam ainda em maioria, até ao início do século X, embora perante um rápido processo de arabização. (TORRES e MACIAS, 1998:21). Mértola atingiu uma grande importância durante o período islâmico, era uma porta marítima por onde passaram muitos mercadores do Oriente e Norte de África. Para percebermos a influência que as tradições islâmicas possam ter exercido na tecelagem tradicional de Mértola interessa-nos focar especialmente nas sociedades agro-pastoris de Alcaria Longa, concelho de Mértola (TORRES, 2004:379). Cláudio Torres considera Alcaria Longa como sendo um dos raros exemplos conhecidos no território português de um povoado de modelo rural, habitado até à segunda metade do século XI. Tratava-se de uma comunidade arcaica, familiar, que vivia das atividades agrícolas e da pastorícia. Os homens partiam sazonalmente para a transumância e o trabalho ficava habitualmente a cargo das mulheres da família: avó, mãe, filha e netas. Nas horas livres do trabalho agrícola e das tarefas do lar, estas mulheres trabalhavam o linho e a lã transformando-os em vestuário necessário para o grupo familiar, “as estopas e linhos para as camisas e saias, os sorianos e surrobecos para o inverno e as quentes mantas de lã, utilizadas pelos pastores nas suas noites ao relento e também serviam como moeda de troca nas feiras e mercados.” (TORRES, 2004:380). Nas escavações do território do Al-Andalus foram encontrados vestígios de agulhas, dedais, alfinetes, fusos, tempereiros e pesos de tear, que testemunham a ligação entre a produção de tecidos e as atividades familiares. Os tempereiros são peças dos teares horizontais de pedais, comuns entre os teares da Península Ibérica. O seu nome deriva do latim “templum”, e em Marrocos surge com o nome de “mdid”. A existência deste objeto só pode ser feita pelos vestígios dos “dentes” de ferro existentes nas extremidades das peças, Retuerce Velasco (RETUERCE, 1987:71-77) referiu-se a Conímbriga, Vascos e da Cidade das Rosas, em Serpa, mas atualmente já são conhecidos outros exemplos.

40

Não existem claras evidências arqueológicas sobre as datas dos primeiros teares horizontais na Europa. Forbes e Wild consideram como muito provável o uso do tear horizontal na Europa durante o domínio romano, mas Retuerce Velasco contesta esta hipótese, remetendo o tear horizontal para o período islâmico, defendendo que o tear horizontal de pedais no ocidente não deve ser anterior ao século VIII d.C., mas certamente será anterior ao século XII d.C. (RETUERCE, 1987:71-77). O uso do tear horizontal de pedais e, mais precisamente no al-Andalus, é claramente anterior ao século XII. As fontes escritas deixadas por Abu'Abd Allah al Rusafi25, morto em 1177, comprovam a existência destes teares no século XI d.C. ou início do século XII d.C. Os vestígios de rocas também geraram algumas confusões. Os estudos realizados por Cláudio Torres (TORRES,1986:331-339) revelam que as torres de roca pertencentes ao período islâmico foram anteriormente identificadas como cabos de facas ou peças de jogo. As torres de roca 26 “são objetos de osso trabalhado ao torno e talho de faca com decoração incisa de pequenos e grandes círculos com furo central, organizados em registos. A altura média dos fragmentos estudados varia entre os 8 e os 10 cm de altura e 2 cm de largura” (TORRES, 1986:331). A roca, para além da sua função na fiação, tinha valores simbólicos atribuídos: “era o objecto-promessa, oferta do pretendente à mulher desejada.” (TORRES, 1986:333). Segundo A. H. de Oliveira Marques, se a organização industrial muçulmana tivesse persistido provavelmente teria conseguido vencer as adversidades nas épocas seguintes. “Porém o seu inevitável declínio era já um facto na segunda metade do século XIII, depois das destruições da Reconquista, da fuga ou da morte de muitos artífices, das dificuldades ao livre florescimento do trabalho mouro e sobretudo da quebra ou rarefacção das

25

Poema de Abu'Abd Allah al Rusafi traduzido em: COELHO, António Borges, Portugal na Espanha Árabe, vol. 1.1 e 2, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, pp. 260 e 261. 26

Veja-se também MACIAS e TORRES, 1998: 70-71, GOMES e GOMES, 2001: 125129 e QUEIROZ, 2010:210- 214. 41

ligações económicas com os centros produtores de matérias-primas de todo o Islão.” (MARQUES, 1985:301)27. A produção têxtil medieval, embora fosse em muitos aspetos ultrapassada quando comparada com França e Flandres (MARQUES, 1985:301), tinha importância na economia do reino, e seria provavelmente o sector artesanal que empregava mais mulheres. As fontes sobre a produção, durante a época medieval, são escassas, mas segundo se sabe, a maioria da produção seria doméstica (SEQUEIRA e MELO, 2012). As matérias-primas escasseavam, a criação de gado lanígero era fraca e a qualidade dos tecidos daí resultantes era média ou baixa, destinada primordialmente ao autoconsumo. A seda era ainda de qualidade grosseira, embora fosse a fibra com um mercado mais alargado. A produção do linho estava dispersa por todo o país, integrada na estrutura agro-económica e no sistema produtivo doméstico, os tecidos fabricados eram grosseiros, produzidos de forma rudimentar, com o emprego dominante da roca e do fuso e de toscos teares de madeira instalados em lares das famílias camponesas.(CASTRO, 1985:528-529; OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:nota 58). O linho, quer se tratasse das variantes do linho galego ou do linho mourisco, era de má qualidade, provavelmente pelo tratamento da fibra e pela falta de especialização da mão-de-obra, não podendo assim competir com os tecidos importados (GARCIA, 1986, 331). Joana Sequeira e Arnaldo Sousa Melo (SEQUEIRA e MELO, 2012) descrevem-nos o processo de cultivo e produção do linho na época tardomedieval. O linho era cultivado juntamente com os cereais e as vinhas, e a sua produção estava relacionada com o trabalho agrícola. As mulheres tinham o papel dominante, embora não trabalhassem a tempo inteiro, a produção do linho servia para consumo familiar, ou da unidade produtiva doméstica, sendo

27

Contudo, o mesmo autor menciona a existência de tradições artesanais muçulmanas a Sul do Tejo em finais do séc. XIV. Mouros e Judeus controlavam em Évora o monopólio de indústrias como a do ferro, para além de exercerem atividades como alfaiates e sapateiros. 42

também utilizados como pagamento da renda. Os excedentes, quando existiam, eram também vendidos. A necessidade de importação de tecidos faz levantar algumas questões: “Efectivamente não se sabe se é a importação de têxteis que inviabilizava a sua produção artesanal e manufactureira, ou se, pelo contrário, é a incapacidade desta, a partir de determinado momento, para concorrer em qualidade e preços com os panos estrangeiros, que estimula a importação têxtil.” (RODRIGUES E MENDES, 1999:55). Nos finais do século XIV, artífices estrangeiros 28 começaram a ser “importados” para Lisboa ou Porto, a fim de fomentar a indústria portuguesa e de ensinar as técnicas europeias (MARQUES, 1985:302). A tecelagem existia tanto no espaço rural como no espaço urbano. “Não havia aldeia que não tivesse um ou mais teares e nas cidades e vilas multiplicava-se o estabelecimento de preços relativos ao trabalho dos tecelões e tecedeiras a partir do século XIV” (SEQUEIRA e MELO, 2012). Afonso V concedeu privilégios comerciais por todo o reino a judeus. É de salientar a importância que os judeus tiveram na produção têxtil, tanto na tecelagem como na confeção de vestuário e tinturaria, destacando-se pelos seus conhecimentos técnicos.29 A costa do Algarve quinhentista recebera muitas importações têxteis dificultando assim o comércio das tecelagens locais.30

2.2.2 O ALGARVE MODERNO

28

São “importados” artífices oriundos de Itália, Flandres, Alemanha e Espanha.

29

Veja-se nota 39, SEQUEIRA e MELO, 2012

30

Veja-se a investigação de João Carlos Garcia sobre os têxteis portugueses dos séculos XV e XVI (GARCIA; 1986:336). Também Ana Maria Pereira Ferreira estudou o tema em A importação e o comércio têxtil em Portugal no século XV (1351 a 1481) (FERREIRA, 1983). 43

Geograficamente isolado e periférico, o Algarve sempre fora uma região pobre em matérias-primas, afastado do desenvolvimento do país, sem um lugar de destaque na economia e na sociedade portuguesa (MAGALHÃES, 1999). Com uma situação geográfica favorável ao comércio marítimo, pela existência de portos cujas tradições são seculares. O Algarve desenvolve-se principalmente junto à costa 31 , onde se formam as principais sedes de concelho. Citando Romero Magalhães: “das quatro sedes de concelho situadas no interior apenas Loulé atinge 500 fogos em 1527, ainda tendo 526 em 1564, para estar apenas com 420 em 1621. As demais – mesmo a cidade de Silves – são pequenas aldeias com funções administrativas. Mas em todas elas, e Loulé em 1564 já tem 671 moradores no termo, as populações rurais são superiores às aglomerações nas cabeças dos concelhos. O contrário se passa no litoral, onde o centro, agora urbano ou para-urbano, ultrapassa em muito a população rural.” (MAGALHÃES, 1941: 35). Às duas subdivisões do Algarve correspondentes à serra de xisto e ao litoral calcário, Romero Magalhães relaciona duas economias, e géneros de vida, distintas (MAGALHÃES, 1970:35). 32 Na época de quinhentos, a serra contava com pequenos aglomerados e uma dispersão habitacional, apenas raras aldeias: Martim Longo, Odeleite, Alte, S. Bartolomeu de Messines e Monchique 33 , mas nenhuma grande povoação, provavelmente “incompatível com as fracas culturas cerealíferas, a pastorícia e o eventual aproveitamento dos matos e bosques. As dificuldades de transportes, o acidentado do relevo

31

“Confirma-se a afirmação de Frei João de S. José de que o principal do Algarve jaz na ourela do mar”, MAGALHÃES, 1970: 35. 32

Veja-se também a análise da cartografia das densidades populacionais: MAGALHÃES, 1988: 116 a 118. 33

Monchique foi elevado a Vila por D. Sebastião em 1573, Veja-se MAGALHÃES, 1988: 112. 44

levam o vizinho a estabelecer o seu fogo junto das suas terras, disseminando forçosamente o habitat.” (MAGALHÃES, 1970:37). Distingue-se da população da orla marítima, com um crescimento equilibrado, mas aproxima-se em muito da “distribuição populacional nos concelhos limítrofes do Alentejo, na mesma serra, com uma economia e um modo de vida idênticos aos que se situam no Algarve” (MAGALHÃES, 1970:36). O aumento da produção cerealífera na serra, entre 1631-1672, provoca um crescimento das populações serrenhas e a criação de um povoamento que ainda hoje encontramos nestas zonas: pequenos núcleos dispersos, com uma ou outra aldeia, como Martim Longo, Monchique, Aljezur e Alcoutim (MAGALHÃES, 1988:126). Por toda a região, tecia-se linho e lã 34 . O linho era cultivado “em Bensafrim, S. Bartolomeu de Messines, Deleite, Machial, Pereiro e Alcoutim, de certeza” (MAGALHÃES, 1988:218). O linho produzido no Algarve é referido pela Inquisição de Évora, assim como o gado lanígero que atravessava os campos alentejanos na transumância (COELHO, 1987:28). O linho era depois transformado em fio e em panos “linho delgado, linho fiado redondo, estopas várias, toucas e toalhas” (MAGALHÃES, 1970:173). Mas, embora no princípio de XVII Henriques Fernandes Sarrão tenha considerado o linho de Aljezur como o melhor do mundo, fino como seda. No Algarve, a planta do linho, diziam-na mal preparada, geradora de “uma fibra áspera e trigueira”, mal fiada, a roda de fiar era ignorada na região, originando um pano muito grosso. “Falta no Algarve o pano do linho, que vai da Beira, e se vende por preço muito caro” (MAGALHÃES, 1988: 218). A informação sobre a tecelagem de lã, durante a época moderna, é ainda mais escassa. Existiam ovelhas e lã era tecida “para sacos e, para roupa, em duas qualidades: picote e soriano” (MAGALHÃES, 1970: 173).

34

O linho era a fibra mais tecida na região, a tecelagem desta fibra é referida em disposições sobre o seu alagadoiro e nas posturas municipais. (MAGALHÃES, 1970: 172; MAGALHÃES, 1988: 218). 45

Os “panos da terra” destinavam-se a vestir os pobres, era de qualidade mais grosseira e preço mais baixo. Romero Magalhães refere que no ano de 1572, em Lagos, comprava-se “pano da terra” a 8 vinténs o côvado35, e, no ano seguinte, o soriano custava 70 rs a vara 36. Ao compararmos os preços dos tecidos locais com os importados reparamos que os “panos da terra” eram mais baratos. (MAGALHÃES, 1970: 173). Em 1716 comprava-se, em Faro, uma capa de soriano por 120 rs., “metade do preço de uma saragoça, que também não era de grande qualidade (MAGALHÃES, 1988:219). Romero Magalhães conclui: “a tecelagem local vestiria os pobres; aos outros o consumo de tecidos estrangeiros. Natural num Algarve que desde sempre esteve implicado no comércio internacional. Talvez daí não encontrar tentativa alguma de instalar manufacturas têxteis. Para quê?” (MAGALHÃES, 1988:219). A tecelagem local continuara a ser doméstica, funcionando como complemento de outra atividade. A produção local, pensa-se, não era grande, “em Tavira ainda se referem tecelões; em Loulé, onde se tece, não figura a profissão em documento algum” (MAGALHÃES, 1970:174). Na década de 1670, o bacharel José Viegas de Andrade refere a qualidade das lãs do Algarve para tecer baetas, propondo uma manufatura em Monchique que receberia as fibras do Algarve, Andaluzia e Berberia, mas tal manufatura não chegara a ser criada, “nem o facto de haver greda, azeite e alguns pisões – pelo menos Monchique, Alte e Desseixe- suscitou o arranque para o estabelecimento

de

manufacturas”

(MAGALHÃES,

1988:

219).

Em

contrapartida, um grupo que ganhava importância, os tosadores que trabalhavam panos importados: “aparavam e frisavam tecidos estrangeiros vários: panos finos, panos de grã, trofim, ypretum, ypres e inhoquerquas, londres vilagens e londres finos, guardalates de londres e baxos, quartilhas e

35

Côvado: medida aproximada, baseada no comprimento do antebraço, da ponta do dedo médio até ao cotovelo. 36

Vara: Medida de comprimento correspondente a 1,10m. (UMINHO, 2005:6) 46

arbim, finos panos de Castela ou saragoças, Perpinhão e barcelonas, entre outros” (MAGALHÃES, 1970:174).

2.2.3. AS IMPORTAÇÕES DE TECIDOS NO ALGARVE E A “DEPENDÊNCIA” DE CASTELA O linho de qualidade vinha do Norte, de França, da Alemanha e da Holanda (MAGALHÃES, 1988: 219). Os portos do Algarve importavam panos provenientes de Flandres, Bretanha, Inglaterra e Castela (MAGALHÃES, 1970: 195). Os portos algarvios “localizados no caminho que conduzia do Mediterrâneo ao Mar do Norte, possuíam para mais muitos dos produtos que interessavam a este último mercado. Assim, frequentemente, os mercadores catalães e genoveses dizimavam em primeiro lugar os panos no Algarve antes de aportarem a Lisboa ou Setúbal. Os venezianos descarregavam-nos em Lagos, porto

também

frequentado

pelos

ingleses.

Tavira

mantinha relações com a Flandres. Faro recebia-os por intermédio de ingleses, flamengos e “doutras naçõens”. Entre Silves e Portimão desencadeou-se na segunda metade do século XV uma certa rivalidade, devido ao facto da última monopolizar navios que descarregam os têxteis” (FERREIRA, 1983:49-59). A estes portos soma-se ainda o de Mértola que recebia, através do Guadiana, panos de Castela.37 Romero Magalhães chama a atenção para “a entrada de panos ingleses – e em menor quantidade flamengos – em Portugal, através de Espanha, conhecido fenómeno quinhentista” (MAGALHÃES, 1970:196). O Algarve era

37

Veja-se o mapa “Entrada de panos pelos portos molhados séc XV” : FERREIRA,

1983:51. 47

ainda uma “península” da Andaluzia.“Estamos uma vez mais, na dependência comercial do Algarve relativamente à vizinha Castela, linha que permanece, e até se acentua ao longo do século” (MAGALHÃES, 1970:197). Luís Adão da Fonseca (FONSECA, 1999;131-137) também destaca a importância das trocas com a Andaluzia, no conjunto da atividade marítima e comercial algarvia: “certamente intensas, devem ser situadas no quadro dos intercâmbios de âmbito regional entre áreas muito próximas, com raízes anteriores à conquista cristã” (FONSECA, 1999;131), e com uma continuidade comprovada “na documentação desde o séc. XIII e que se prolonga até ao séc. XX” (FONSECA, 1999;131). Temos também conhecimento de relações de contrabando entre portugueses e andaluzes, confirmadas desde a época de quatrocentos, segundo Luís Adão da Fonseca: “cereais e peixe seriam possivelmente os produtos fortes deste comércio” (FONSECA, 1999;131), também Romero Magalhães refere: “o abastecimento do Algarve em trigo é há muito a mola propulsora do comércio de importação” (MAGALHÃES, 1970:194). No entanto, no séc. XVII o Algarve beneficiou durante breves anos do contrabando da prata com os franceses, “a troco de tecidos e bacalhau, que tinha largo consumo, vinha a prata trocada ilegalmente em Faro com destino à Andaluzia” (MAGALHÃES, 1970: 259). Claramente Castela vira em Portugal uma zona básica de exportação. Já Romero Magalhães questiona, “qual o motivo deste movimento indirecto, que as dificuldades de transporte não explicam?” (MAGALHÃES, 1970:196). E não fora o único autor a questionar, já J. Vicens Vives relaciona a expansão da indústria têxtil castelhana com o evoluir do mercado português.38 Romero Magalhães procura justificar o fenómeno, enumerando dois grandes fatores: “temos, portanto, dois aspectos: o primeiro, mais visível, que atribuí aos grandes direitos fiscais, vinte por cento do valor da mercadoria, o movimento estudado;

38

Veja-se nota 9 da Introdução de FERREIRA, 1983, 17 48

em segundo, não menos importante, reside na diferença dos preços entre a Andaluzia e o Algarve. Sendo ali mais altos, a ela concorriam os mercadores estrangeiros, onde além do mais encontravam as mesmas, e outras mercadorias para levarem o retorno. Mas apesar disso não deixam de vir ao Algarve, trazendo o refugo. É que sendo aqui os géneros mais baratos havia vantagem em fazer a carregação. E a entrada de panos, agora indirecta, por mar ou por terra, e muitas vezes fraudulentamente,

lesava

a

fazenda

real”.

(MAGALHÃES, 1970: 197) Esta entrada de panos estrangeiros justificará a fraca produção local? De facto, “os interesses dos mercadores, conjugam-se com os interesses da realeza na percepção dos direitos alfandegários, que não eram pequenos” ( (MAGALHÃES, 1970:174).

2.2.4. A INFLUÊNCIA DOS MERCADORES INGLESES Na década de 1650 a presença inglesa começa a fazer-se sentir no Algarve, sobretudo pela presença de mercadores, que se vai prolongar até aos finais do séc. XVIII (MAGALHÃES, 1999:260). Com a inquisição dos anos 30,

39

Faro perdera praticamente todos os mercadores judeus, “só lá para os anos de 1650 começaram a aparecer os ingleses para os substituir” (MAGALHÃES, 1999. A:277) que, regra geral, não se integram na sociedade local. “Apesar de tudo, em 1679, o Algarve importava 3,2% e exportava 2,9% do todo em Portugal. Não era muito, mas alguma coisa contava. Sobretudo, importação de tecidos e de metais trabalhados” (MAGALHÃES, 1999:260). A presença inglesa

pode

contribuir

para

justificar a

falta

de

desenvolvimento da produção industrial local, mas não é suficiente: “não há

39

“Porque deixara de haver mais mercadores naturais ou sequer portugueses com cabedais para o exercício. Porque a razia inquisitorial tinha sido tremenda, nos anos 30 do século XVII” (MAGALHÃES, 1999: 260) 49

capitalismo sem capitalistas, e estes não dão sinal de aparecimento no Algarve. As transformações de produtos quedam-se pela pequena oficina, pelo pequeno artesão” (MAGALHÃES, 1999:261). No entanto, e contrastando com a ausência de mercadores naturais, encontramos um numeroso grupo de oficiais mecânicos, onde constam as tecedeiras (MAGALHÃES, 1999. A: 278), organizados por vereações, com presença em procissões e em manifestações religiosas ou cívicas, e com representação política nas câmaras através dos procuradores dos mesteres. 40 O papel que estes mesteres desempenham na sociedade portuguesa ganha relevância a partir do séc. XVI. De um modo geral, a fiação e a tecelagem do linho do séc. XV, por todo o país, manteve-se rudimentar com características de fabrico domésticas onde predominava a roca, o fuso e os teares toscos de madeira, que impediam a evolução da atividade. “É isto mesmo que explica a política de fomento económico industrial aplicada, com amplitudes e sortes várias desde os finais do século XVII, incluindo o período pombalino e pós-pombalino, tenha praticamente ignorado este ramo” (CASTRO, 1985: 528). Encontramos, no séc. XVII e XVIII, um Algarve ruralizado, onde: “só se mantém a procura dos produtos agrícolas como uma continuidade. As escassas inovações, mesmo em diferentes produtos, regulamentações determinações mudanças

oficiais dos

afectavam

vão e

poderes

ser

impedidas pelas

contratuais

e

locais,

possíveis

cobranças

de

as

rendas

pelas

e

o

cumprimento de obrigações assumidas. O regime de exploração das terras queria-se estável, com resultados antecipadamente conhecidos e provados. E a isso os

40

“Em algumas, como a de Tavira, que em 1539 assim o manda a realeza. Procuradores que requerem em nome dos oficiais e, por vezes, do interesse popular. Podem mesmo assistir às reuniões da vereação. Sem direito ao voto. Eram, porém, obrigatoriamente ouvidos quando se tratava da imposição de taxas a trabalhos ou a serviços que prestavam” (MAGALHÃES, 1999:278). 50

demais interesses e motivações se viam submetidos com o efeito de bloquear o crescimento” (MAGALHÃES, 1999:261).

2.2.5. O ALGARVE POMBALINO O Algarve Pombalino atravessara uma profunda recessão económica (RODRIGUES, 1999 A:393).“Pombal deparou com uma indústria fervilhante, mas do tipo familiar, tradicional, pouco produtiva, não especializada, de fraca qualidade e, por isso, de difícil escoamento nos mercados. Além disso, as dificuldades de comunicação entre o litoral e o interior impediam a distribuição e o desenvolvimento económico dos centros de produção” (MESQUITA, 1999:40). Entre outras medidas de fomento à indústria algarvia, Pombal “concedeu privilégios aos plantadores de amoreiras e produtores de seda, proibindo a exportação deste produto “em rama, fio ou casulo”” (MESQUITA, 1999:394). Nesta época existira, no Algarve, alguma lã e muitas amoreiras e bichos da seda, daí resultar o “alvará de 31/5/1776, estabelecendo uma das primeiras proto-indústrias algarvias, a “fábrica de Tavira” para confeccionar produtos, precisamente, com base na lã e na seda” (MESQUITA, 1999:394). A fábrica funcionou apenas até 1783.41 Porquê a aposta na seda? A seda exige menos cuidados, e como Silva Lopes explica: “os primeiros processos de preparação da seda fazem-se com os mais simples maquinismos, assim em grande como em pequeno, o que não acontece a outros muitos artigos de produção, como o algodão, lã e linho. A criação dos bichos he nem só fácil, mas huma ocupação de mulheres e criança, que servindo-lhe de honesto entretimento augmenta o produto das famílias pobres, e não causa desdouro às ricas” [sic] (LOPES, 1841:195).

2.2.6 A INDÚSTRIA TÊXTIL ALGARVIA NO SÉCULO XIX

41

A fábrica foi arrendada ao francês Pedro Leonardo Mergoux, e a Teotónio Pedro Heitor, que receberam o empréstimo de 6 contos de réis da Junta do Comércio. 51

O principal problema do Algarve, no início do séc. XIX, fora a ausência de indústrias, assim o mencionara Silva Lopes (LOPES, 1841:134-200), e mais tarde reafirmara António Pedro Manique (MANIQUE, 1999: 365) e Joaquim Manuel Vieira Rodrigues (RODRIGUES, 1999 A: 393-404), a indústria manufatureira regional resumia-se apenas ao fabrico de panos grosseiros, cerâmica e palma, 42 havia carência de matérias-primas e falta de capital, a que Joaquim M. Vieira Rodrigues acrescenta, “a pouca propensão dos industriais algarvios para o investimento, a subordinação do mundo da produção aos interesses mercantis, nomeadamente estrangeiros e a ausência de uma “revolução agrícola” regional” (RODRIGUES, 1999 A: 397). Em 1852, esta situação é confirmada pelo Governador civil no distrito de Faro que declara a inexistência de fábricas, “reduzindo-se os estabelecimentos fabris a poucos teares de panos grosseiros de lã e linho em que trabalham seus próprios donos, e algumas olarias em que se fabrica louça de barro” (MANIQUE, 1999:366)43. A tecelagem de linho continuava tradicional, como complemento de outras atividades agrícolas, como confirma Joaquim M. Vieira Rodrigues, “no Algarve, cerca de 1820, designadamente na Serra, “as mulheres dedicavam-se com frequência à tecelagem caseira e aparecem referências às tecedeiras de linho e estopa” (RODRIGUES, 1999:394). O linho também era utilizado para o fabrico de redes de pesca, produzido por mulheres nos concelhos de Faro e Vila Real de Santo António (RODRIGUES, 1999 A:394). Em 1829, encontravam-se ainda 38 tecedeiras em atividade no concelho de Loulé. Em 1870, o distrito de Faro produzia 17451 litros de linho (MATOS 1988:11). Os maiores produtores regionais eram Castro Marim (5830 l.), Loulé (4045 l.) e Lagos (2000 l.). Em 1864, um estudo de Fradesso da Silveira revela uma produção de 15 374 kg de lã branca e 31 145 kg de lã preta, no distrito de Faro, onde 42

Charles Bonnet (1850) citado por MANIQUE, 1999: 365 e 366.

43

Governador Civil do distrito de Faro em 1852 citado em MANIQUE, 1999:366. 52

constavam 384 teares registados. A produção era muito baixa quando comparada com os 1 355 437 kg de lã preta do Alentejo ou com os 1 726 616 kg de lã preta da Beira.44 A grande concentração algarvia de teares encontrava-se na Serra Algarvia, os maiores centros produtores eram Monchique, com 83 teares e Castro Marim com 79 teares. Estes teares não teciam apenas lã e não trabalhavam continuamente. (MATOS, 1988: 13) Em 1841, Silva Lopes testemunhou a tecelagem de linho e lã no concelho de Monchique, a cargo das mulheres locais, nos intervalos dos campos e preparo dos frutos, “aproveitando

a

excellencia

das aguas para

embranquecer o linho e estopa, trabalhão em teias, nas quaes consomem mais de 100 arrobas de linho, que se importa, afóra o que se colhe nos arredores. Fabricão fazendas

grosseiras

de

lã,

saragoças,

surianos,

estamenhas, e cobertores, listrados alguns de azul, branco, ou vermelho, para cujas cores usão da ruiva, que por alli não falta, e outras preparações com verdete, as quaes muito melhoramento poderião adquirir, se lhes fosse fornecida a instrução necessária. Os teares são toscos e imperfeitos; faltão os utensílios preciosos para aperfeiçoar este género d’industria: todavia acodem aos pizões que alli há todas as fazendas de lã fabricadas nas aldeãs visinhas. Assim mesmo consomem a lã do termo e visinhanças, importando aia la mais de 600 arrobas do Campo de Ourique, que lhe dá consumo depois de reduzida a obra, e se vende em todas as feiras dos arredores.” [sic] (LOPES,1841)

44

Fradesso da Silveira, As fábricas em Portugal- Indagações relativas aos tecidos de lã, 1864, citado em MATOS, 1988:13. 53

O mesmo autor refere a existência da tecelagem de sorianos e estamenhas na Vila do Bispo (LOPES,1841:210), de sorianos, estamenhas e panos grosseiros de linho e estopa, para uso doméstico e para venda, em Santa Catarina (LOPES,1841: 377), e do fabrico de fazendas grosseiras de linho e estopa em Cachopo, onde “concorre não pouca gente de Campo de Ourique” (LOPES,1841:377). O Inquérito industrial de 1881 refere uma Fábrica de Fiação de lã e apisoamento de panos em Monchique, criada em 1870, propriedade de Francisco do Carmo. Empregava 5 homens, 7 mulheres e 1 menor, e contava com uma máquina a vapor de 6 cavalos e em 1880 aguardava a chegada de outra máquina com a força de 20 cavalos, encomendada a Inglaterra (RODRIGUES, 1999 A:394). O inquérito acima citado revela que em Monchique de 1880 predominava ainda a indústria caseira, de lã, com 90 teares, que fabricavam 4350m de tecido (RODRIGUES, 1999 A:394). Em 1879, em Vila Real de Santo António iniciou atividade uma fábrica de tecidos de linho, fundada por Sebastião Ramirez. Nessa data a fábrica apenas contava com um único tear. Em 1881 a fabrica já possuía 10 teares e empregava apenas espanhóis. Na mesma cidade existiu outra fábrica de tecidos de malha, fundada pelo Barcelonês Marcelini y Gomes, com 4 teares mecânicos45 e empregando 6 trabalhadores (RODRIGUES, 1999 A:395). No Algarve não existiram grandes investidores interessados em apostar nas indústrias têxteis. Embora com pequenas dimensões, é no final do século XIX que se inicia a indústria têxtil no Algarve.

2.2.7. O SÉCULO XX NA INDÚSTRIA TÊXTIL ALGARVIA Nos finais do séc. XIX e inícios do séc. XX a maioria dos operários do setor secundário trabalhavam por conta própria, em pequenas oficinas e casas

45

Uma exceção numa época onde na região algarvia “todas as fábricas, pois, trabalhavam com teares manuais”, veja-se TENGARRINHA, 1999:465-468. 54

de trabalho, dispersas por todo o território algarvio, e respondiam às necessidades dos centros populacionais onde se inseriam. Encontrava-se ainda muito o fabrico domiciliário, principalmente de trabalhos de fiação e tecelagem doméstica, redes de pesca para galeões espanhóis, assim como obras de palma e juta (TENGARRINHA, 1999:466467). A fiação de tecelagem de linho em Loulé, de lã em Monchique, de algodão em Vila Real de Santo António e de juta em Portimão apresentavam dimensões superiores, com mais de seis trabalhadores, produzindo para um mercado mais amplo e aproximando-se do conceito de proto-indústria (TENGARRINHA, 1999:466-467). A mão-de-obra feminina, ao contrário do que acontece noutros sectores, está presente e por vezes em maioria, na fiação e tecelagem de lã, linho, algodão e juta,46assim como na alfaiataria, na padaria e nos fumeiros de figo. Curiosamente encontram-se mais mulheres letradas, na classe dos artesãos, no fabrico de redes de pesca, alfaiataria, confeção, cordoiros e correiros, “onde as trabalhadoras letradas superam em muito os homens” (TENGARRINHA, 1999:468). Este facto poderá estar relacionado à “continuidade de uma certa tradição secular de formação autodidáctica dos artesãos” (TENGARRINHA, 1999:468). Em 1915, no Algarve “vigorava um autêntico trust industrial, conquanto limitado, o de Modesto Gomes dos Reis, que agrupava fábricas têxteis em Loulé, Faro, Silves, Vila Real de Santo António”47. Fernanda Matos estudou as indústrias da tecelagem no concelho de Loulé, apresentando os resultados de cinco fábricas que funcionaram no concelho entre 1919 e 1936, produzindo tecidos de juta, linho e algodão.

46

Veja-se o exemplo da Fábrica de tecidos de linho de Sebastião Ramirez, em Vila Real de Santo António, que em 1907, dispunha “de 36 teares e ocupava 50 operários de ambos os sexos, embora uns e outros já tivessem sido em número maior” (RODRIGUES, 1999:395) 47

A. H. de Oliveira Marques citado em RODRIGUES, 1999:395. 55

O Inquérito de 1940 (ME, 1943) revela a existência de 137 teares no Algarve, e o cultivo do linho em 15 concelhos, ocupando um total de 20,8 hectares. As respostas ao inquérito revelam que o linho era produzido no concelho apenas para consumo dos produtores. Se compararmos estes valores com os resultados do restante país, verificamos que a área cultivada de linho no distrito de Faro está em 11ºlugar dos 18 distritos analisados, e em 12º em relação ao nº de teares recenseados. No total Portugal Continental apresentou 1668,92 hectares cultivados de linho, e 10874 teares registados. Curiosamente o inquérito citado não mostra existência do cultivo do linho, nem a existência de teares em Monchique, assinalando apenas o cultivo desta fibra nos concelhos de Alcoutim, Alportel, Castro Marim, Loulé e Tavira. Contudo conhecemos a existência da produção e tecelagem do linho no concelho de Monchique, testemunhado pela tecedeira D. Maria Nunes que assistiu e ajudou a sua mãe, também tecedeira, a tecer muito linho para o Baixo Alentejo. Também Glória Marreiros registou a tecelagem de linho para as fábricas do concelho assim como para o consumo local (MARREIROS, 1999: 111-113 e 221-223).

56

2.3 A EVOLUÇÃO DA PROFISSÃO DE TECEDEIRA

A atividade de tecedeira está comprovada por todo o território português, desde

os

tempos

ancestrais,

embora

a

tecelagem

do

linho

seja

predominantemente uma produção doméstica familiar (MADUREIRA, 2001: 77). Desde o Antigo Regime, que a tecelagem doméstica compete com a indústria. A tecelagem rural, de natureza sazonal e complementar está dependente dos ritmos de trabalho nos meios rurais. Até 1870, as unidades artesanais da tecelagem, com excepção dos lanifícios, não desenvolveram formas de organização, nem de ação coletiva, para além do mutualismo cooperativo (MADUREIRA, 2001: 89). A indústria caseira e domiciliária da tecelagem manteve-se afastada dos parâmetros institucionais, preocupando as autoridades e os industriais até cerca de 1970 (MADUREIRA, 2001: 9). Certamente, foi essa a razão que a tecelagem do linho não tece uma associação que as representasse nas greves no início de 1900.48 As tecedeiras resistiram ao passar dos tempos e continuaram a produzir e a vender nas feiras. O processo e a organização de tarefas de tecelagem não sofreu transformações repentinas e não variou muito, quer se tratasse de linho, lã, trapos ou algodão. Este aspeto permitiu, por um lado, as tecedeiras tecerem no mesmo tear lã, linho ou trapos, mas por outro lado, facilitou a criação de tecidos mistos: de lã e algodão ou de linho e algodão, assim como permitiu a fácil inserção de fibras sintéticas e industriais (MADUREIRA, 2001: 85). Contrastando com o aperfeiçoamento técnico das tecedeiras/tecelões industriais, as tecedeiras das indústrias domésticas recorreram muito ao simples ponto de tafetá, para os panos de linho ou de trapos, muito simples, repetitivo e rápido, adequado às tecedeiras que aproveitavam os tempos

48

Durante essa época foram criadas quatro associações a representar o sector do algodão do norte, dos tecidos de lã, dos tecidos mistos e das passamanias. 57

mortos das lides domésticas ou dos trabalhos nos campos, pois permitia que retomassem automaticamente o trabalho depois de cada repetição. É de salientar que a tecelagem de lanifícios em indústrias domiciliárias atingiu uma maior complexidade, exigindo uma maior concentração e experiência das tecedeiras. O ensino da tecelagem é testemunhado desde o séc. XVI, com o Regimento dos Tecelões de 1559 onde eram apresentados critérios de exame que abrangiam: “saber assentar um tear nivelado, saber enliçar e apertar um pente, saber urdir uma teia, saber a conta dos fiados e saber tecer toda a sorte de panos” (MADUREIRA, 2001: 81). No Regimento dos Tecelões de 1782 foi determinado “quatro anos de ensino para os tecelões, mas apenas três para as tecedeiras; dois anos de trabalho efetivo obrigatórios, prévio exame para mestre de ofício” (MADUREIRA, 2001:82). O Sul de Portugal mantivera-se afastado dos polos de transformação têxtil, mas também em Campo de Ourique existiram duas mestras tecedeiras, no século XVIII, além de ensinarem as jovens tecedeiras, era necessária a autorização das mestras para exercerem a atividade (SÁ, 1863). Nas povoações rurais mais afastadas a aprendizagem continuava a dar-se dentro do seio familiar, ensinado nos tempos livres e praticado principalmente enquanto jovens, antes de se casarem e se ocuparem do lar.

58

CAPÍTULO 3. A TECEDEIRA DE MONCHIQUE 3.1. A BIOGRAFIA DE D. MARIA NUNES49 D. Maria Nunes nasceu em 1934, no concelho de Monchique. Filha de tecedeira talentosa, cedo começou a aprender as artes da fiação. Ainda muito jovem, D. Maria gostava de ver a mãe tecer, começou a entrar no tear por brincadeira e aperfeiçoar a ourela dos seus tecidos. A mãe da D. Maria adoeceu, tinha uma encomenda para o Alentejo por terminar. Na altura, D. Maria tinha 14 anos, com pouca prática ainda, aventurou-se no tear e seguindo os ensinamentos da mãe acabou o trabalho, e continuou a sua aprendizagem em tecelagem. Em 1948, existiam em Monchique muitas tecedeiras, segundo nos conta D. Maria, era uma zona pobre, com poucos ganhos “e elas coitadinhas, aquele pouco que vinha era bom, dava para comprar um panito”. 50 Com a falta de trabalho e os fracos rendimentos provenientes desta atividade muitas tecedeiras desistiram, outras morreram, atualmente a única tecedeira em atividade no concelho de Monchique é D. Maria Nunes. A mãe de D. Maria fora uma tecedeira com muita experiência, que dominava as técnicas da fiação, da tecelagem e mesmo da montagem do tear, teceu para as necessidades do lar e para fora, tinha encomendas do Baixo Alentejo e chegou mesmo a tecer para uma loja. D. Maria não se considera tão boa tecedeira como a mãe fora. Fez um intervalo na época em que casou e quando a filha nasceu, os afazeres domésticos sobrepuseram-se à atividade que poucos lucros dava. Recomeçou mais tarde a convite da Câmara Municipal de Monchique com as feiras destinadas ao Turismo.

49

Com base nas entrevistas realizadas à tecedeira, em anexo.

50

Citação de D. Maria Nunes durante a segunda entrevista 59

O marido, Sr. José, auxilia a D. Maria nas plantação e produção do linho, assim como em pequenos arranjos de equipamentos, e na montagem do tear em feiras. É o sr. José que produz o linho até á sedagem e que auxilia, juntamente com a filha, a montagem da teia no tear. A filha do casal aprendeu a tecer com D. Maria, mas escolheu outra profissão, hoje ajuda-a a montar a teia no tear. Atualmente já não planta o linho todos os anos, plantam o linho para as necessidades e guardam os excedentes para irem trabalhando nos anos seguintes. D. Maria produz para as necessidades do lar e para vender nas feiras de Monchique 51 e nos concelhos vizinhos 52 . Continua trabalhar nos tempos livres porque gosta e também porque ainda faz algum dinheiro com a venda dos produtos. O único apoio que recebe é o transporte e o stand nas feiras a que vai.53 Vende os seus produtos sem dificuldades a um público que identifica o seu trabalho como sendo “do tempo da minha avó”. Há uns anos atrás a Fatacil atribuía-lhe, para além do jantar, um subsídio de dez mil escudos pelos dez dias de feira,54hoje o apoio resume-se às entradas dos artesãos na Fatacil, e ao transporte garantido pela Câmara Municipal de Monchique. A montagem do tear nas feiras demora cerca de 4 horas, para obter a estabilidade necessária para que D. Maria possa trabalhar. Este processo é

51

Artechique e Feira dos enchidos, em Monchique

52

Fatacil, em Lagoa

53

Chegou a participar em feiras de artesanato em Santarém, na FIL, e em Tavira, mas como a D. Maria nos conta “não tenho poderes para ir […] eu tenho convites aí por todo o lado, mas, prontos, as pessoas às vezes querem que uma pessoa vá à feira, vá aqui e vá ali, mas às vezes também não dão condições. As condições é darem-me, pelo menos, o transporte, e se não tiver condições de vir a casa, darem-me a comida, a dormida e a comida, mais nada. Não é para enricar dali, é só para sobreviver”, vejase primeira entrevista a D. Maria 54

D. Maria conta-nos que pagavam-lhe dez mil escudos, e os jantares, por dez dias de feiras, das 18 horas às 2 horas. 60

garantido pelo marido, Sr. José, que desmonta o tear rapidamente, em menos de uma hora.

61

3.2. O CICLO DO LINHO EM MONCHIQUE 3.2.1. O LINHO O linho pertence à família das Lináceas e é conhecida entre os botânicos como Linum usitatissimum L., é uma planta herbácea, com uma altura entre os 0,30 a 1,10m, “dicotiledónea, geralmente unicaule, de folhas inteiras, alternas, sesseis, e sem estípulas. As flores são hermafroditas, brancas, azuis, violáceas, e com cinco pétalas” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:5).55 De um modo geral, o linho é composto, no interior, por uma substância lenhosa, e no exterior por uma substância filamentosa ou fibrosa, de onde se extraí a fibra têxtil.56 Os linhos indígenas portugueses têm três variedades: galego, mourisco e de riga nacional. Estas variedades podem ser de cultura de Primavera/Verão ou de Outono/Inverno. O linho mourisco é a variedade cultivada nos climas mais quentes. Encontramos esta variedade a sul do Tejo, e nos distritos de Bragança, Santarém e Castelo Branco. Esta espécie possuí uma fibra comprida, escura e grosseira. No Sul do país encontramos também as sub variedades do linho mourisco: abertiço e o serrano. Tanto o linho mourisco como as suas subvariantes são culturas de Outono, semadas após as primeiras chuvas, nos meses de Outubro e Novembro e colhidas em Maio. Adaptam-se a terrenos argilosos, compactos ou pobres, e não têm propriedades que se adaptem à produção de fibras com fins industriais(OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:5-7). No Alentejo e no Algarve, o linho é cultivado57 em terrenos agrícolas

55

Flávio Martins, citado em OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:5

56

“O linho quando seco a 100º contém 25 a 30% de substância filamentosa e 70 a 75% de substância lenhosa”. Flávio Martins, citado em OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:6

62

e frescos, que já se encontram razoavelmente estrumados de anteriores culturas.

3.2.2. O CICLO DO LINHO58 No início do Outono, logo após as primeiras chuvas, a tecedeira D. Maria e o marido semeiam o linho.59 O linho é plantado, a uma profundidade com cerca de 3 cm, em leiras anteriormente utilizadas também para outras plantações agrícolas. Se o Outono e o Inverno for chuvoso, não é necessário regar a plantação.60 O linho é apanhado no final da Primavera, as datas variam consoante as condições climatéricas, quando o Inverno é muito rigoroso, as chuvas e as geadas estragam a cultura. Quando a flor azul fica com um tom amarelo, o linho é arrancado com as mãos e deitado em cima de um pano, ao sol, para que as sementes não se percam e possam ser reaproveitadas. Ao final do dia, o linho é batido com um pau para que largue as restantes sementes, este processo é repetido durante oito dias. Em Agosto, o linho é enlagado, ou seja, é mergulhado numa ribeira ou num tanque, durante 12 dias, numa zona com um baixo nível de água e muita exposição ao sol, para que a “casaca” apodreça e fique só a fibra. Após o enlagamento o linho fica a secar na eira, apoiado numa estrutura de três paus, de modo a não se sujar, nem a apanhar orvalho61 durante a noite. Quando o linho está seco, é dividido em pequenos molhos e transportado para casa. Inicia-se o processo de transformação do linho em fibra têxtil. A primeira etapa é a maceração do linho. O linho é batido com um maço sob uma pedra lisa para esmagar a fibra. A maçagem com maço é feita pelo Sr José, que com

58

Com base nas entrevistas realizadas à tecedeira, em anexo.

59

Sobre a cultura do linho em Monchique, veja-se DUARTE, 2008, e entrevistas em anexo nº 2 e 3. 60

Veja-se entrevista 3, descrição feita pelo Sr. José Nunes.

61

Nesta fase o linho escurece com o orvalho. 63

a mão esquerda agarra um pequeno molho de linho e esmaga-o com o maço contra a pedra, repetindo o processo até esmagar todas as palhas. De seguida passa pela grama, o Sr. José passa um molho de linho pela grama, enquanto pressiona o graminho de modo a limpar as arestas e as fibras mais curtas do linho. A fase seguinte tem como objetivo a limpeza e a separação entre as fibras mais finas do linho e as fibras mais curtas, a estopa 62. Esta limpeza é feita através do sedeiro. Para assedar a D. Maria senta-se à frente do sedeiro, e com uma estriga de linho na mão, endireita-a e passa-a pelos pregos do sedeiro, com movimentos leves, preparando assim o linho para a fiação. Para transformar o linho em fio, o linho é fiado com a roca e o fuso. A D. Maria utiliza também uma tecnologia mais em desuso para fiar fios grossos, a fiandeira. A obtenção do fio é conseguida puxando do manelo uma mecha de fibra, distorcendo-a e torcendo-a repetidamente entre os dedos, e enrolando-a posteriormente na ponta do fuso, em movimento rotativo. O linho fiado vai para o sarilho fazer a meada. Para embranquecer, o linho em meadas é cozido com água e cinza, volta a ser lavado, e é de novo exposto a uma preparação de água e sabão azul e branco63 , e volta a ser lavado.64 Quando seco é transformado em novelos com a dobadoura e está pronto para ser montado no tear. Os novelos vão à urdideira para serem organizados e formarem a teia, este processo é feito com o auxílio da espadilha, para que os fios não se empecem enquanto são distribuídos na urdideira.

62

A estopa, quando se destina para a tecelagem, passa também pela fiação e branqueamento. Era utilizada para produzir os sacos dos moinhos, mas não encontramos presentemente tecelagem de estopa em Monchique. 63

Designado, em Monchique, por choco.

64

Quando pretendem que o pano fique mais branco expõem-no ao orvalho da noite. Após cozido o linho aclara com o orvalho, ao contrário do que acontece antes da cozedura. 64

Na montagem da teia no tear os fios são presos no compostoiro 65, e colocado no órgão da urdidura. Para a montagem da teia no tear são preciso três pessoas, D. Maria costuma-a montar com o apoio do Sr. José e da filha.

3.2.3 COMO SE TECE EM MONCHIQUE66 A tecelagem é um processo de produção de tecidos mediante o cruzamento ordenado de dois conjuntos de fios: os fios de urdidura (longitudinais) e os fios da trama (transversais). A urdidura, também designada por teia ou urdume, é o conjunto de fios paralelos, colocados previamente no sentido do comprimento do tear, separados em dois grupos: pares e ímpares. A trama são os fios que atravessam perpendicularmente entre os dois grupos da urdidura, através da abertura da cala. Na Serra de Monchique, o tear, ainda em atividade, funciona com dois liços produzindo, deste modo, só tecidos de estrutura simples, tecnicamente designados por tafetás. As urdiduras de linho são hoje substituídas por urdiduras em linha de algodão industrial com tom creme, mantendo apenas o linho nos fios da trama. Atualmente a D. Maria produz principalmente para vender em feiras locais e em eventos em que é convidada. Sem apoios e sem garantias de vender os seus produtos, a sua produção é pequena e apenas de produtos mais comerciais. Em linho produz, principalmente, panos de cozinha e individuais, em ponto de tafetá, sem tingimento e finalizados com croché em linha de algodão industrial creme. Os motivos da renda são diversos, mas os pontos são básicos, com a excepção da renda “segredos do algarve”, produzida com o auxílio de uma cana, e executada também em linha de renda em algodão comprada nas retrosarias locais.

65

Veja-se capítulo 3.3.

66

Com base nas entrevistas realizadas à tecedeira, em anexo. 65

Produz ainda alforges e alforginhos em fibras comerciais diversas, com aplicação de feltro vermelho bordado com os motivos tradicionais e remate com a regional bainha em ponto de espiga. Estas peças são mais caras, demoram mais tempo a serem produzidas e requerem um maior investimento monetário por parte de D. Maria, porque tem de comprar as fibras e o feltro. Assim sendo, a tecedeira só produz uma após vender a anterior, ou por encomenda. Não usa moldes, nem desenhos previamente definidos para os bordados e rendas aplicadas, e não guarda qualquer registo que permita executar outra peça igual. Como a tecedeira explica: “Eu até posso fazer outra e não ser igual, não me importo, pode até ser mais bonita, ou pode ser mais feio.” 67 A sua maior produção é de tapetes de trapos, feitos com tiras de tecidos diversos sob uma teia de algodão. Os tapetes são os produtos que mais vende nas feiras. Os trapos mais pequenos são guardados para os tapetes de trapos presos. Não são feitos no tear. Os tapetes de trapos presos têm uma base de serapilheira, onde são dispostos em carreiras horizontais e presos através de pontos manuais. A serapilheira, já com os trapos presos, é forrada com tecido de algodão, de fabrico industrial. Estes tapetes também são só produzidos quando vende um, ou quando lhe encomendam. As suas grandes dimensões tornam o trabalho demorado e muito quente, daí a D. Maria optar por só os fazer no Inverno.

67

Citação de D. Maria Nunes em entrevista 1. 66

3.3. TECNOLOGIAS

E INSTRUMENTOS EMPREGUES NA PRODUÇÃO DO

LINHO

3.3.1. A MAÇAGEM DO LINHO Operação que consiste em maçar o linho até separar as fibras lenhosas das fibras têxteis. 3.3.1.1. Maço de madeira

Figura 1 Maço de Madeira, MNE AS. 176, Des. de Fernando Galhano (IPM, 2007:48)

O maço de madeira é feito em madeira resistente e pesada, em forma de cilindro, onde é talhado um cabo na própria peça do maço. Tem cerca de um quilograma de peso. Os maços registados são semelhantes por todo o país.68 Nas regiões do Alentejo e Algarve, a operação de maçagem do linho é efetuada por homens, que firmam fortemente o maço de madeira contra uma pedra lisa, também designada por maçadoiro. O homem agarra um pequeno

68

Compare-se Maços de Madeira utilizado em Monchique (Ficha de Análise de Tecnologia – Maço de madeira), com Maço de Madeira de Vila Nova de Paiva (Museu de Etnologia MNE AS. 176, publicado em IPM, 2007 67

molho de linho, com a mão esquerda, acertando as pontas, e esmaga-a com o maço contra o maçadoiro, de forma a abranger neste processo todas as palhas. O movimento é repetido sempre de dentro para fora, invertendo constantemente a posição do molho.69 Esta operação é efetuada por todo o país, com exceção nos casos em que é o usado o engenho, de tração humana, animal ou hidráulica 70 . No Algarve não se encontra registos do uso do engenho (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978: 44), que aparece apenas no Nordeste e na Beira Litoral, e teve uma difusão apenas nos meados do século XIX (PEREIRA, 1985, 16). 3.3.1.2. Grama

Figura 2 Grama utilizada na Serra de Monchique, Desenho de Selma Pereira

A grama é constituída por um galho de madeira tosco, com um rasgo a todo o comprimento onde é colocado um outro galho, também designado por graminho. A grama é apoiada em duas pernadas bifurcadas, com cerca de 60 cm de altura.

69

Veja-se fotografias 16 e 17 de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA,1991

70

Veja-se glossário: definição de engenho 68

O graminho é manejado com a mão direita, enquanto a mão esquerda assenta o linho sob o rasgo da graminha. O graminho dá sucessivas pancadas no linho à medida que este vai rodando. No final do processo, o homem pressiona o graminho e passa o linho pela grama de modo a limpar as arestas e as fibras mais curtas do linho. Esta operação é realizada por homens. Temos conhecimento que em várias regiões do Algarve esta operação era realizada por homens vindos do Alentejo, que traziam grama própria e trabalhavam mediante remuneração (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA,1991: 57). Existem duas tipologias aplicadas às gramas nacionais, segundo o modo como assentam, as gramas podem assentar no chão ou parede ou serem apoiadas em bancos ou ramos. No entanto os modelos descritos são idênticos (IPM, 2007: 47). Em Espanha encontramos as mesmas tipologias de gramas, sendo a tipologia do Algarve, também comum às zonas de Alto Aragón, Navarra e País Vasco, usadas para o linho e para o cânhamo (GONZÀLEZ e TIMÓN, 1983:56). A gramagem do linho foi corrente no Sul do país (da Beira Baixa ao Algarve) e nas ilhas da Madeira e Açores. Não são encontradas gramas na restante área nacional, no entanto aparecem gramas em vários países da Europa, por vezes com uma forma e um acabamento mais cuidado. Fritz Kürger 71 refere-se a este instrumento como sendo uma importante aquisição inventada no Norte da Europa chegada ao nosso território muito tempo depois.

71

Fritz Kürger citado em OLIVEIRA, 1991:58 69

3.3.2. LIMPEZA E SELEÇÃO DAS FIBRAS Nesta fase é feita a limpeza e a separação entre as fibras mais finas do linho e as fibras mais curtas e grosseiras, também designados por estopa. 3.3.2.1. Sedeiro

Figura 3 Sedeiro utilizado na Serra de Monchique, Desenho de Selma Pereira

O sedeiro, característico da região do Algarve, é uma pequena tábua quadrada com pregos redondos, implantados de forma a ficarem com as pontas salientes. A esta tábua são pregados quatro lados e é elevada sob um banco de madeira. Para assedar a mulher senta-se diante o sedeiro, solta uma estriga de linho, endireita-a e passa-a pelos pregos do sedeiro em movimentos leves, acompanhando a estriga com as mãos, enquanto a asseda de ambos os lados. No final desta etapa, o linho e a estopa são colocados em pequenos molhos e estão prontos para serem fiados. Esta operação é realizada por mulheres. O sedeiro tem características físicas diferentes de região para região, mas o seu manuseamento é

70

semelhante. 72 De um modo geral os sedeiros são objetos de madeira com pregos embutidos, assentes sobre estruturas com pés ou cingindo-se a uma tábua de madeira.73 Durante a investigação de campo, não nos foi possível apurar dados sobre a construção do sedeiro, pois o sedeiro utilizado pela D. Maria Nunes foi construído há várias gerações atrás.

72

Compare-se o sedeiro utilizado em Monchique (Ficha de Análise de Tecnologia – Sedeiro) com o Sedeiro de Esposende e com o Sedeiro de Miranda do Douro (Museu de Etnologia MNE AQ. 203 e MNE AY. 157, respetivamente, publicados em OLIVEIRA, GALHANO, e PEREIRA, 1978:72. 73

O sedeiro característico do Algarve apresenta várias diferenças quando comparado com o sedeiro de Trás-os-Montes. Veja-se OLIVEIRA, GALHANO, e PEREIRA, 1978:73.

71

3.3.3. FIAÇÃO Depois de penteado, o linho é transformado em fio através da fiação manual, com roca e fuso, ou mecânica, com a roda de fiar. 3.3.3.1. Fuso

Figura 4 Fuso, Des. Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:77)

Para os fusos portugueses existem três tipologias propostas por Benjamim Pereira, onde varia os materiais e a forma de construção dos fusos. O fuso tem dois elementos constituintes, a haste e o volante ou cossoiro (IPM, 2007:68-69). “O fuso de tipo 1) é constituído por uma haste em madeira, que pode ou não apresentar um sulco helicoidal na extremidade superior e por um volante que toma diversas formas: piramidal, pirambular, circular, etc.. Estes dois elementos podem ser talhados na mesma peça ou constituírem partes distintas. O fuso de tipo 2) pode ser inteiramente de madeira, ou possuir na parte superior uma ferreta ou espigão metálico, com ou sem sulco helicoidal. É

72

desprovido de volante e a extremidade inferior é muitas vezes revestida de latão. O fuso de tipo 3) é geralmente de ferro, apesar do volante ser por vezes de madeira ou de cortiça. Tem um sulco helicoidal maior e mais pronunciado que o dos fusos das categorias anteriores, o qual é designado, na bibliografia de referência, como “rosca helicoidal”.” (IPM, 2007:68-69) Os fusos característicos do Alentejo e do Algarve são do tipo 3. À anterior descrição, é acrescentado que o cossoiro pode ser de chapa vazada com dois, quatro ou mais raios, pode ainda apresentar rosáceas sexifólias, corações e pétalas intervaladas. Quando são de madeira ou cortiça terão uma forma cónica e apresentam decorações na base e nos lados (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:77). Acredita-se que este tipo de fuso, quase exclusivo das regiões alentejanas e algarvias, tenham origem romana. Nestas províncias foram encontrados fusos de ferro, classificados como pertencentes à época romana e visigótica, expostos no Museu de Lagos, com características idênticas aos fusos acima descritos (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:77). O fuso, utilizado na Serra de Monchique, é de ferro com um sulco helicoidal bem definido e com o cossoiro de chapa vazada com dois raios. Para além deste fuso utilizado na Serra de Monchique encontramos outras variantes da mesma tipologia, como apresentado no fuso de Loulé, pertencente ao Museu de Etnologia, com um cossoiro em cortiça de forma cónica invertida, encaixado na extremidade inferior.74 A obtenção do fio pelo fuso consiste “em puxar do manelo uma mecha de fibra distorcendo-as e torcendo-as entre os dedos, e enrolando-a seguidamente à ponta do fuso e fazendo-o rodar.” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:78).

74

Veja-se Fuso de Loulé MNE AO. 827 publicado em IPM, 2007:70. 73

3.3.3.2 Roca

Figura 5 Roca, Des. Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:87

Benjamim Pereira em 1960-1961 definiu quatro tipos de rocas baseados nos seus elementos constituintes: “Categoria A) roca constituída apenas pelo cabo; Categoria B) roca formada por um cabo com hastes numa das extremidades; Categoria C) roca composta por um cabo, roquil e torre; Categoria D) roca com ou sem cabo, constituída por uma tábua espalmada.” (IPM, 2007:63) Em Portugal as rocas enquadram-se, na sua maioria, na categoria C: “roca composta de cabo, roquil e torre.” (IPM, 2007:63). Dentro desta categoria

74

o mesmo autor definiu vários subtipos e correspondem a áreas regionais determinadas. As rocas caraterísticas da região do Algarve são identificadas na subcategoria Ca: rocas com “um roquil de um só bojo, formado por fugas, fendidas longitudinalmente no próprio cabo” (IPM, 2007:64). Sobre estas rocas Ernesto Veiga de Oliveira acrescenta: “na serra algarvia, o cabo é bastante grosso, e o roquil tem quatro fugas, ornamentadas nas extremidades, assim como a torre e parte superior do cabo, com motivos geométricos insculpidos” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:88). A roca utilizada na Serra de Monchique, curiosamente, não corresponde a esta subcategoria da região do Algarve, sendo idêntica à roca Cb2, “rocas de dois bojos, abertos ou fechados, em cana ou verga, conhecidos como “rocas cabecinhas”” (IPM, 2007:66), que corresponde às áreas das províncias do Alto Alentejo e Beira Baixa.75 O cabo é grosso e o roquil de dois bojos, com um total de trinta e oito fugas e torre esculpida no próprio cabo. As rocas eram geralmente feitas por curiosos locais, por encomenda, para oferta ou por familiares. A roca analisada é feita pelo Sr. José, marido da tecedeira de Monchique, que também comercializa rocas em feiras da região, para fins decorativos. Pode considerar-se que no território português a fiação é um trabalho feminino. Desde épocas recuadas que a roca e o fuso são símbolos femininos. No entanto, em algumas zonas como Benavente, Espanha, e em alguns grupos angolanos, esta tarefa também é exercida por homens (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:100-101). A roca está documentada a partir da época grega. Não sabemos se a fiação com roca com suporte de manelo corresponderá a uma fase mais antiga. De qualquer forma, Ernesto Veiga de Oliveira

75

(OLIVEIRA, GALHANO e

Na serra de Monchique existe também a roca com um único bojo, também produzida pelo Sr. José, mas a sua utilização é preterida em relação à roca de dois bojos.

75

PEREIRA, 1978:82) admite a difusão da roca no mundo ocidental se tenha dado sobretudo a partir da Antiguidade Clássica, principalmente por ser prática comum entre as damas nobres. 3.3.3.3. Roda de fiar

Figura 6 Roda de fiar utilizada em Alcoutim, Corte Serrano, ETN. AY.268, extraído de IPM, 2007: 73)

Existem dois tipos de rodas de fiar76, um, mais simples, composto por um fuso de madeira ou ferro, implantado num pequeno carretel disposto horizontalmente, e de uma roda raiada, com eixo e manivela, montados sob uma mesa que suporta o fuso e a roda. A roda é acionada manualmente pela manivela, e o movimento é transmitido através de cordas ao carretel do fuso, girando-o. Este tipo era comum em várias regiões do país, principalmente no Nordeste Transmontano, na Serra Algarvia e na zona fronteiriça Alentejana. Não encontramos rodas de fiar em uso na Serra de Monchique, 77 Romero

76

“Em Portugal encontram-se representados os dois tipos de rodas de fiar conhecidos em todo o mundo.” OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:104. 77

Embora não estejam a ser usadas em Monchique encontramos ainda em uso no concelho de Loulé e de Mértola. 76

Magalhães refere que no século XVII a roda de fiar era ignorada no Algarve, (MAGALHÃES, 1988:218) curiosamente Fradesso da Silveira no Inquérito de 1862-1865 afirmou que “as rodas de fiar são quase todas fabricadas em Monchique”(OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:105)78. O segundo tipo de roda de fiar é mais complexo e tecnologicamente mais desenvolvido, encontrando-se em uso principalmente no concelho de Chaves (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:108).

78

“Em Portugal encontram-se representados os dois tipos de rodas de fiar conhecidos em todo o mundo.”, Fradesso da Silveira citado em OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:105. 77

3.3.4. INSTRUMENTOS DE ELABORAÇÃO DE MEADAS 3.3.4.1. Sarilho

Figura 7 Sarilho, Des. Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA 1978: 111

Existem dois tipos de sarilho, o sarilho de rotação vertical e o sarilho de haste de madeira (IMP, 2007:75). No Algarve encontramos apenas o segundo tipo, também utilizado no Alto e Baixo Alentejo, no entanto o sarilho da Serra Algarvia é menos decorado. O sarilho em uso na Serra de Monchique é de madeira, formado por uma haste com cerca de 60 cm com dois braços atravessados a cada extremo, em posições opostas, sem decoração na haste, de secção quadrada. O topo é rematado por uma figa esculpida. Encontramos o mesmo tipo de sarilho em Espanha, nas zonas de Orense, e na Galiza (GONZÀLEZ e TIMÓN, 1983:60-61). 3.3.4.2. Dobadoura

78

Figura 8 Dobadoura, Des. Fernando Galhano, OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978: 116

A dobadoura 79 é um instrumento passivo, acessório do sarilho, que transforma o fio das meadas em novelo, rodando livremente enquanto o fio é novelado. Ernesto Veiga de Oliveira distingue dois tipos fundamentais de dobadouras (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:115-118). A dobadoura utilizada na Serra de Monchique identifica-se com o segundo grupo: dobadoura “de quatro braços em cruz, duplos e paralelos, dispostos igualmente na horizontal, distanciados os de baixo dos de cima cerca de 40-50 cm” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:116). O sarilho analisado não apresenta decorações e o eixo vertical é fixo numa caixa que permite fixar os novelos já dobados.

79

Nos registos bibliográficos encontrámos referência a este objeto tanto com o nome de dobadoura com dobadoira. Optamos por o termo dobadoura, utilizado pelo IPM, 2007:78. 79

3.3.5. PREPARAÇÃO DA TRAMA 3.3.5.1. Urdideira

Figura 9 Urdideira, Des. Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:139

Em Tecnologia Tradicional Portuguesa: O Linho, a urdideira apresenta duas formas distintas: “numa, mais arcaica esses prumos são dois barrotes grossos verticais, de madeira, distanciados um do outro cerca de 3 a 4 metros, encostados contra uma parede à qual são fixos (…) Em cada um destes prumos são cravados de cima a baixo uma série de tornos de cerca de 25 cm de comprimento, afastado um dos outros uma distância equivalente.” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:138). “Numa segunda forma, mais elaborada, a urdideira apresenta-se com o aspecto de uma enorme dobadoira, composta de dois pares de braços horizontais em cruz, ligado por quatro prumos, aos cantos, com um eixo em volta do qual ela gira” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:116). Na Serra Algarvia encontramos ainda outra forma de urdideira, que pensamos ser mais antiga. Os tornos onde passam os fios são fixos em buracos, feitos previamente na parede exterior à habitação.80 De um modo generalizado, a operação de urdir a teia é condicionada pelo tear a ser utilizado e pelo tipo de tecido a ser produzido.81 Esta fase consiste em preparar os

80

Veja-se VAZ, 1995. 80

fios para a posterior colocação no tear, ou seja, tornar os fios paralelos entre si e com um comprimento igual, separados em duas séries alternadas que permitem o entrecruzamento da trama. Antes de começar a urdir, os novelos (normalmente doze novelos) são colocados no casal, também designado por noveleiro 82, e as pontas de cada novelo atravessam, isoladamente, a espadilha. Ernesto Veiga de Oliveira descreve detalhadamente a utilização da urdideira da seguinte forma: “Obtida a passagem de todos os fios através da espadilha, as doze pontas são atadas conjuntamente, separam-se 6 fios para cada lado, e enfiam-se no primeiro torno, dando sobre este duas voltas e, com as pontas dos dedos contra o cabo da espadilha, segura pela mão esquerda, e, com os dedos indicador e polegar da mão direita, separam-se os 12 fios em dois grupos de 6 fios cada, cruzandose um a um, alternadamente: o primeiro fio a contar do cabo da espadilha passa sob o indicador; e assim sucessivamente. Transpõe-se essa cruz para os tornos onde se arma a cruz do tear, os fios do polegar para o torno do meio, os do indicador para o de fora. Seguidamente os fios são lançados longitudinalmente de torno a torno de um prumo ao outro, em várias voltas, conforme o comprimento da teia, até ao último torno inferior do prumo direito, onde se arma a cruz dos cadilhos (um cadilho é o conjunto dos 24 fios que entram em cada volta completa da urdidura, 12 à descida e 12 à subida), cruzandose; ao descer, o conjunto dos fios passa pelo lado direito do torno do meio, dobra sobre o último e passa, ao subir, pelo lado esquerdo daquele. A razão de ser da cruz dos cadilhos é individualizá-los um a um, e, como veremos, permitir assim a sua distribuição perfeitamente alinhada e ordenada ao longo do restilho. Neste tipo de urdideira, a mulher tem de andar de um prumo ao outro tantas vezes quantas o comprimento da teia requer; e repetir esse percurso de acordo com a largura da mesma teia, isto é: se a teia tem 20 cadilhos, tem de repetir-se 20 vezes.” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:138-141). Geralmente a urdidura está a cargo das tecedeiras, mas é uma das etapas mais complicadas que requer conhecimentos técnicos aprofundados, por essa razão existem tecedeiras que não a sabem realizar. Temos conhecimento da existência de tecedeiras 81

Sobre o cálculo do comprimento da urdidura, veja-se BRAHIC, 1998:49.

82

Casal ou noveleiro são caixas individuais onde cada novelo é colocado. 81

conhecedoras deste processo que por vezes se fazem pagar para urdirem a teia (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:148).

3.3.5.2. Espadilha Ferramenta comum em todo o país utilizada para urdir a teia. A espadilha é uma peça de madeira de secção quadrangular, com cerca de 50 cm de comprimento e 2 a 5 cm de largura, com furos no sentido longitudinal. Por cada furo da espadilha passa, individualmente, um fio de cada um dos novelos (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:148).

82

3.3.6. O TEAR

Figura 10 Tear tradicional do Baixo Alentejo e Serra Algarvia, Des. Fernando Galhano, OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:131

O tear é o aparelho mais complexo de todo o processo da tecelagem. Ao longo da história foram aparecendo sucessivamente vários tipos de teares, em Portugal encontramos, principalmente, 83 os teares de pedal (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:128).

83

Temos conhecimento da existência ainda de teares verticais, contudo não encontramos na atualidade nenhum tear vertical em uso para tecelagens tradicionais, são usados principalmente para atividades ligadas à tecelagem artística contemporânea e às artes visuais e educativas. 83

Os teares portugueses são construídos “em madeira robusta que forma um quadrângulo, com dispositivos que permitem o fabrico de peças de pano extremamente compridas sem necessitarem de ultrapassar os limites desse quadrângulo.” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:128). Existem diferenças nos teares nacionais de região para região quanto ao plano formal, distinguindo-se pelos elementos de suspensão dos liços e do pente, no entanto o seu funcionamento é idêntico. Os teares tradicionais da região do Algarve são constituídos por armação, órgãos e mecanismo do pente e dos liços. A armação é constituída por quatro prumos verticais, também designados por pernas, feitos de barrotes grossos de madeira de castanho, dispostos em quadrângulo. Lateralmente, os prumos são unidos a meia altura e no topo por mesas paralelas. Na frente e na traseira do tear, os prumos são unidos por duas travessas na extremidade superior, abaixo da mesa. As mesas do tear consistem em duas traves paralelas, que sustentam os órgãos da urdidura e da frente. O banco, situado na frente, pode ser parte integrante do tear ou ser uma peça isolada. Diante do banco, localiza-se o órgão da frente. À altura dos joelhos, abaixo da mesa, situa-se o órgão do tecido, suportado por dois barretos verticais. Com excepção do órgão de peito, os órgãos são peças giratórias, de secção oitavada na sua extensão central, e de secção quadradas junto às extremidades cilíndricas. As extremidades do órgão giram sobre os pombos de madeira, um dos quais totalmente fechado e outro aberto, permitindo assim a remoção do órgão. A extremidade do órgão que gira sobre o pombo é perfurada transversamente, de forma desencontrada, para colocar a espera de braços curvos, com o qual se imobiliza o órgão. Na parte posterior do tear, situa-se o órgão da urdidura, idêntico ao órgão do tecido, assente nos pombos, com entradas para a espera de braços curvos. Os órgãos apresentam pequenos tornos onde se encaixa o compostoiro, ligado ao órgão por meio de cordas, que é o local onde se fixa as extremidades da urdidura durante a montagem da teia.

84

No espaço existente entre as mesas e o órgão situa-se o mecanismo dos liços e do pente. O pente é formado por duas réguas, ou talas de cana, presas por meio de cordas a uma travessa assente na mesa superior. Entre as duas réguas, ou queixas, é colocado uma série interligada de tiras verticais e laminadas de cana, também designadas por puas. Na queixa superior existe uma pega para facilitar o manejamento. Os mecanismos de liços são compostos por dois ou mais liços, suspensos pelas ciganas e acionados pelos pedais ou premedeiras. As premedeiras são constituídas por tábuas paralelas, no mesmo número que os liços, fixas numa das extremidades a uma travessa que une as pernas da frente do tear, e na outra extremidade é ligada através de cordas aos liços, fazendo-os subir ou descer durante a tecelagem. Os liços são constituídos por duas talas de cana horizontais e paralelas, unidas por uma série de fios enlaçados com uma pequena aselha a meia altura por onde passam individualmente os fios da urdidura. Os liços estão suspensos pelas ciganas, pequenas roldanas ligadas, por uma corda, a uma travessa assente na mesa superior. O tear tem ainda os acessórios: lançadeira, peso em ferro com forma piramidal, e o esticador.84

84

Sobre teares portugueses veja-se OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:128-137 85

3.3.7. OS ACESSÓRIOS DO TEAR 3.3.7.1. Lançadeira

Figura 11 Lançadeira, Des. Fernando Galhano, extraído de IPM, 2007: 99

A lançadeira é uma peça de madeira, fusiforme, com uma cavidade elíptica na face superior onde é colocada a canela sob uma varinha. A lançadeira é projetada através da cala da urdidura fazendo passar o fio da trama. 3.3.7.2. Peso Os pesos de tear podem ser de madeira, barro, pedra ou ferro e tem frequentemente a forma do tronco de uma pirâmide. Os pesos têm a finalidade de servir de contrapeso à cruz do tear, impedindo-a de aproximar dos liços. 3.3.7.3. Esticador

Figura 12 Esticador utilizado na Serra de Monchique, representação gráfica

Os esticadores são formados por duas varetas de ferro e que têm nas extremidades um anel e um espigão que as liga. As varetas apresentam filas transversais de orifícios que permitem regular a dimensão do esticador consoante as dimensões do tecido a manter esticado. 86

Os esticadores são utilizados para manter o tecido esticado, no sentido da largura, e é deslocado à medida que a tecelagem avança. Esta peça também é designada por tempereiro.

87

3.4. OUTRAS FIBRAS UTILIZADAS NA SERRA DE MONCHIQUE 3.4.1. O ALGODÃO O algodão85 é a fibra mais usada, atualmente, nas urdiduras dos teares que analisamos nesta tese. A seu favor, o algodão tem o preço, a resistência, a tensão e a falta de elasticidade (BRAHIC, 1998:40). Pensa-se que o algodão seja originário do Sudão Ocidental, tendo sido mais tarde transmitido para a Índia, daí desenvolve várias variedades e tornase a fibra têxtil por excelência 86 .Existem referências ao algodão feitas por Heródoto, sobre o seu cultivo na Índia, Teofrasto, que a considerada originária do Turquestão, e Plínio, descrevendo o algodão no Alto Egipto (TENREIRO, 1985:102). Os portugueses aperceberam-se da importância desta fibra desde os primórdios da colonização africana. No século XVI, Portugal importava quantidades maciças de algodão do Brasil, e reexportava para a Europa, especialmente

França.

O

contributo

dos

escravos

africanos

no

desenvolvimento da produção do algodão parece ser fundamental, como explica Benjamim Pereira: “a actividade têxtil algodoeira no Brasil da época colonial estava a cargo dos escravos; e os tecidos ali produzidos, usados em geral pelos forros, eram mesmo designados por panos da costa (da Guiné). Serão ainda os africanos, escravizados, que, na América, darão uma contribuição fundamental na instauração da cultura algodoeira em moldes industriais, permitindo aos Estados Unidos da América ascender ao primeiro plano com 50% e mais da produção mundial.” (PEREIRA, 1985:29). Em Portugal, o algodão está relacionado com a instauração da indústria têxtil, confirmado pelo pedido de D. João III para receber, da Alemanha, fiadeiras e tecelões para ensinarem os portugueses a utilizar a roda de fiar e a tecer algodão, em 1573. Contudo o algodão era já conhecido no território 85

Sobre a plantação e produção do algodão, veja-se GONZÀLEZ e TIMÓN,1983: 54.

86

À excepção da Europa, Ásia e América Setentrionais (PEREIRA, 1985: 29-30). 88

português pela atividade mercantil e manufatureira muçulmana, marcando presença em tecidos mencionados no foral do Porto de 1123 (PEREIRA, 1985:30). Os finais do século XVIII ficam marcados pelo grande desenvolvimento da indústria da tecelagem de algodão em Portugal, sobretudo em distritos pertos do mar ou da costa, como os casos de Lisboa, Tomar, Azeitão e Sobral de Mont'Agraço, e pela instalação das primeiras máquinas inglesas em Portalegre (MACEDO, 1985:208). A preferência do algodão, que se torna a fibra primordial da industrialização, é explicada por Ernesto Veiga de Oliveira, o algodão “é uma matéria-prima mais barata e de mais fácil manipulação, que se relaciona com as explorações dos recursos das áreas coloniais e os transportes maciços, e com uma economia capitalista de grande amplitude, em que um sistema produtivo de carácter industrial e mecânico trabalha para o mercado mundial, impessoal e desconhecido.” (OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:26). É preciso também ter em conta que no século XVIII, a indústria têxtil nacional encontrava-se

ainda

dentro

de

uma

estrutura

rural,

que

visava

o

aproveitamento de matérias-primas locais e se destinava a um mercado nacional (MACEDO, 1985: 208). No Algarve, pensa-se que o algodão vindo do Al-andaluz (TENREIRO, 1985:100). A cultura do algodão deverá se ter mantido nesta região durante vários séculos. Em 1855, o algodão consta na lista de produtos portugueses participantes na Exposição Universal de Paris, com o nº 406, intitulado: o algodão do Algarve. No início do século XX, ainda existem referências à cultura do algodão como um “vegetal exótico na zona do barrocal louletano”(MATOS, 1988:14). No século XIX, a mecanização da indústria têxtil e o consumo de algodão como fibra têxtil primordial são causadores da decadência da produção do linho, e de fios e tecelagens caseiras.

3.4.2. A LÃ

89

Atualmente não encontramos produção de lã, destinada à tecelagem tradicional, em Monchique. A tecelagem de lã ainda subsiste em Mértola e em Cachopo, embora em menor quantidade neste último. No século XII, os panos de lã já se produziam por todo o território, como demonstram os testemunhos arqueológicos. Até ao século XIV “fabricavam-se em Portugal panos de lã grosseiros, os buréis, amplamente empregados pelas camadas da população menos endinheiradas, ao passo que a classe senhorial e as camadas de tipo burguês se socorriam dos melhores panos produzidos no estrangeiro.” (CASTRO, 1985 A:432). Os principais centros produtores de lã, desde XVI, foram as Beiras e o Alentejo, de onde se destacava a Covilhã pela qualidade dos seus lanifícios. No entanto, conhece-se referência a pisões no Algarve, desde D. Afonso III (CASTRO, 1985 A:432-433). Existem referências, desde tempos muito recuados, ao uso da lã em regiões da Península Ibérica, que hoje correspondem ao Algarve, Baixo Alentejo e Alcácer do Sal (PEREIRA, 1985:24). No século XVI encontra-se já referências ao soriano fabricado no Algarve, era o tecido de lã mais barato destinado aos mais pobres. 87 Durante o reinado de D. Pedro II deu-se mais atenção aos lanifícios através das medidas para fomentar a produção nacional do Conde da Ericeira, que “importou” técnicos estrangeiros, com o objetivo de melhorar a qualidade dos tecidos nacionais, criando regras e proibições para a produção de lanifícios. O Tratado de Methuen de 1703 abriu o país aos tecidos britânicos. Nos começos do século XVIII “era, por isso, possível ver os Ingleses a comprarem a matériaprima no Alentejo para utilizarem na sua indústria.” (CASTRO A, 1985:433). Portugal não teve uma estrutura económica para desenvolver a indústria nacional, a produção de lanifícios não teve capacidade técnica para satisfazer

87

“uma capa de soriano, em Faro, comprava-se em 1716 por 120 rs, metade do preço de uma saragoça, que também não era de grande qualidade.” (MAGALHÃES, 1988: 219) 90

a procura interna, nem para concorrer com os preços dos tecidos estrangeiros (CASTRO, 1985:433). Em 1841, João Baptista Silva Lopes refere que na Serra de Monchique existia gado lanígero suficiente para o consumo local, no entanto para as atividades da tecelagem e pisoamento “consomem a lã do termo e vizinhanças, importando la mais de 600 arrobas do Campo de Ourique, que lhe dá consumo depois de reduzida obra, e se vende em todas as feiras e arredores.” (LOPES, 1841:250-251). Na mesma época, as mulheres de Monchique ocupavam-se da tecelagem, “fabricão fazendas grosseiras de lã, saragoças, surianos, estamenhas, e cobertores, listrados alguns de azul, branco, ou vermelho, para cujas côres usão da ruiva, que por alli não falta, e outras preparações com verdete, as quaes muito melhoramento poderião adquirir, se lhes fosse fornecida a instrucção necessaria.” [sic] (LOPES, 1841:250). Quanto ao equipamento utilizado para esta atividade, Silva Lopes menciona o uso de teares toscos e imperfeitos, “faltão utensilios, precisos para perfeiçoar este genero d'industria: todavia acodem aos pizões que alli há todas as fazendas de lã fabricadas nas aldeas vizinhas.” [sic] (LOPES, 1841:250). Já em 1841, Silva Lopes reflete sobre a necessidade de investimento que existe na tecelagem do concelho que tantas condições dispõe para a criação de uma fábrica de lanifícios: “neste sitio abundante de boas aguas e lenhas se propuzesse estabelecer huma fabrica de lanificios: aproveitaria as lãs desta parte do Algarve e Alem-Tejo Baixo, que lhes daria prompto consumo fabricadas. Não muitos cabedaes serião necessarios para esta empreza, que avantajados lucros daria em retribuição a quem a tentasse, ainda que formando associação. […] Alli perto, nos sitios da Nave, Alcaria e Buraco há excellente greda, huma esbranquiçada, outra azulada, proprias para as fabricas de lanificios.” [sic] (LOPES, 1841:251) Fradesso da Silveira, no inquérito que realizou sobre as fábricas de lanifícios portuguesas existentes em 1862, assinalou a existência da tecelagem tradicional em todos nos nossos distritos, salientando também o facto de 91

existirem muitas fábricas em que se continuavam a usar “processos manuais arcaizantes” (PEREIRA, 1985:25). No mesmo estudo, Fradesso da Silveira refere a muito baixa produção de lã na região do Algarve, quando comparada com as produções do Alentejo ou com as da Beira. No ano de 1862 foram recenseados no Algarve 364 teares, a grande concentração de teares encontrava-se na Serra Algarvia, principalmente em Monchique (83 teares) e Castro Marim (79 teares), possivelmente, por ser nesses concelhos que existiria a matéria-prima. O mesmo autor refere que esses teares não teciam apenas lã e não trabalhavam continuamente. A tecelagem era uma atividade secundária, praticada apenas nos intervalos das culturas dos campos, com uma produção artesanal em todas as fases: tosquia, cardação, fiação e tecelagem 88. A produção no distrito era de “cobertores, mantas, alforges e boreís ordinários, de diversas larguras e preços, sendo alguns apisoados e tintos.” (MATOS, 1988:13) Em 1883, chegou a estar em funcionamento, em Monchique, uma fábrica de fiação de lã e apisoamento, com uma máquina a vapor e treze operários. “Esta fábrica fiava a lã, mas os tecidos são feitos por empreita em teares caseiros, cujo número no concelho se eleva a 90, produzindo, durante o ano, 4.350 metros.” (GASCON: 1955:329-330). Sobre as peças produzidas na fábrica pouco se sabe, no entanto em 1875 existiam muitos almocreves no concelho de Monchique que “empregam-se constantemente em exportarem teias de linho, saragoças, sorianos, estamenhas e cobertores, tudo aqui fabricado.” (GASCON: 1955:329-330).

3.4.3. OS TRAPOS As mantas de trapos são um produto de menor valor social, mais esquecido e ignorado pelos investigadores portugueses, a bibliografia sobre a produção destas mantas em Portugal é escassa, como é um material também utilizado em Espanha, recorremos muito à bibliografia existente no país vizinho.

88

Sobre a tecelagem tradicional da lã veja-se: PEDRO, s.d. 92

Desconhecemos a data em que se começou a utilizar os trapos para tecer novos tecidos, sabemos que no século XVI os tecidos velhos eram já aproveitados para tecer as mantas da Catalunha (BRAHIC, 1998:16 e 45). As mantas da Catalunha, no século XVI, surgiram em resposta aos problemas económicos e de isolamento que dificultava o acesso dos camponeses a matérias primas. Quando uma peça estava velha ou perdia a sua utilidade era aproveitada em tecelagens com a trama de algodão. O resultado é um tecido grosso, pesado e irregular. A tecelagem de trapos mantém-se ainda em algumas zonas da Península Ibérica, maioritariamente em tapetes e mantas. Na Suíça existe também a tecelagem de trapos mas apenas para tapetes nas escadas (BRAHIC, 1998:17). No concelho de Monchique, as mantas de trapos89 destinavam-se aos homens que dormiam nas eiras ou no palheiro, e aos mais pobres: “as mantas de retalhos que era o aconchego dos pobres, porque não possuía ovelhas para dar lã, nem campos de linho para toalhas e lenções, sempre acareava uns trapinhos velhos para dar tiras para a tal mantinha de retalhos” (MARREIROS, 1999:63). Os trapos eram feitos de peças de vestuário envelhecidas ou de lençóis rotos, cortadas às tiras e preparadas pelo próprio cliente e só depois levadas à tecedeira. “Quando os lençóis se rompendo, levam uns meios e só quando estando muito puídos é que se tiravam de uso e se cortavam em tiras, aí com obra de um dedo de largura. Estas tiras eram cozidas umas às outras e enroladas em novelos, para levar à tecedeira para fazer as «ratalhêras» ou seja as mantas de retalhos.” (MARREIROS, 1999:63) Reaproveitar era uma atividade necessária numa sociedade de autossubsistência, como no concelho de Monchique. “As mulheres, noutro tempo, remendavam muito a roupa, para ela durar. Mesmo os mais ricos poupavam porque tinham que esperar pela venda da cortiça ou da aguardente

89

No concelho de Monchique, as mantas de trapos são também designadas por mantas de retalhos ou “ratalhêras”. 93

para

terem

mais

possibilidades.”

(MARREIROS,

1999:62),

“tudo

se

aproveitava. Até os trapinhos que sobravam de alguma peça de roupa que se talhava serviam, os maiorzinhos para fazer bolsas e os mais pequeninos, mais pequenos que um dedo ainda davam para tapetes e vistosos!” (MARREIROS, 1999:64).

94

3.5. CARACTERÍSTICAS

E

PARTICULARIDADES

DA

TECELAGEM

ALGARVIA

3.5.1 ANÁLISE DOS PRODUTOS TECIDOS Os produtos mais característicos produzidos por D. Maria Nunes são as tecelagens em linho e as de trapos. Atualmente vende principalmente objetos utilitários, como individuais, panos de cozinha e tapetes. Nas vendas destacase as tecelagens dos trapos, tapetes e passadeiras feitos de tiras de algodão sob uma urdidura de algodão. Embora sejam estes os produtos que mais vende nas feiras, nas vendas sente-se o peso da concorrência com os tapetes de trapos industriais, vendidos nas grandes superfícies comerciais produzidos em série e a preços mais baixos, e que levam alguns consumidores a se equivocarem quanto à produção e qualidade. As tecelagens de linho rematadas com rendas artesanais atraem apreciadores nacionais e turistas, mas a diferença de preço levam muitos a optarem pelas tecelagens de trapos. Os típicos alforges e alforginhos mantêm características formais com as dimensões, cores, padrões e decoração tradicionais, no entanto as fibras utilizadas nos alforges de Monchique já são de fabrico industrial, por vezes com mistura de fibras sintéticas, adquiridas em retrosarias locais. Estas peças exigem um maior tempo de produção, um maior investimento e um maior conhecimento das técnicas da tecelagem, do bordado e da costura. É importante salientar que no Algarve encontram-se hoje poucas pessoas a saberem fazer a característica bainha com costura em espiga, típica das peças rústicas da região algarvia. A bainha em espiga é mais duradora, confere uma maior estabilidade e segurança ao tecido, para além do seu valor decorativo. O preço e a falta de funcionalidade dos alforges e alforginhos nos dias de hoje fazem com que sejam peças raramente vendidas. D. Maria produz em número limitado os alforges para exposição nos stands onde vende, e só volta a produzir após venda ou por encomenda.

95

Também a técnica do tapete de trapos presos se está a perder e a se descaracterizar. São processos mais complexos e de aprendizagem mais demorada.

96

3.6. INOVAÇÕES INSERIDAS NA PRODUÇÃO DOS OBJETOS ESTUDADOS 3.6.1. O ALGODÃO NA URDIDURA DOS TEARES TRADICIONAIS Encontramos a utilização do algodão na urdidura dos teares tradicionais do Algarve, com excepção unicamente da Oficina Cooperativa de Tecelagem de Mértola que mantém o linho. Porque razão se alterou as tradicionais urdiduras de linho? O algodão é uma fibra mais barata, mais resistente, sem elasticidade, e de fácil compra. As urdiduras de algodão livram as tecedeiras de fiarem muitos metros de linho, além do mais o algodão resiste à tração evitando quebras, emendas e erros no tecido final. No século XIX, a mecanização na indústria têxtil e a utilização do algodão como fibra têxtil primordial provocou a decadência da produção do linho em fio ou tecelagens caseiras. Até ao século XVIII, a indústria têxtil portuguesa sobrevivia ainda com uma estrutura rural que visava o aproveitamento de matérias-primas locais e se destinava a abastecer o mercado nacional. A indústria não soube se adaptar ao impacto do algodão. Vila Real de Santo António e Loulé tiveram, no início do séc. XX, fábricas de algodão. Monchique albergava a Fábrica de fiação de lã e apisoamento de panos, criada em 1870. Não temos informação relativamente ao material utilizado nas urdiduras dos teares desta fábrica, mas se compararmos com o restante panorama industrial da região, certamente seriam utilizadas urdiduras de algodão. Estas fábricas, tal como as fábricas do Alentejo, funcionavam com o sistema putting out sistem, isto é, as operações que exigiam tecnologias mais complexas eram realizadas no espaço fabril enquanto as operações mais demoradas e menos exigentes eram entregues ao trabalho domiciliário das regiões próximas. As tecedeiras do concelho de Monchique recebiam não só encomendas para a fábrica local, mas também trabalhavam para o Baixo Alentejo. Terá sido este o maior meio de difusão das teias de algodão por entre a tecelagem doméstica local. 97

3.6.2. DESENHOS E MOTIVOS ORNAMENTAIS NAS TECELAGENS DE TRAPOS Como já referimos anteriormente a produção de alforges e de outras peças tradicionais não encontra um mercado assíduo, são produzidos para exposição nos stands e vendidos raras vezes para decoração. São peças que maioritariamente perderam a sua função primordial. Por essa razão, D. Maria Nunes necessitou de inovar e criar novos produtos seguindo os mesmos métodos de produção artesanal que já a sua mãe seguira. De entre as peças mais vendidas pela tecedeira hoje em dia consta tapetes e passadeiras em trapos, individuais, panos da loiça e bolsas em linho. Às tradicionais riscas dos tapetes de trapos, D. Maria Nunes inovou consoante o seu gosto pessoal. Atualmente ornamenta algumas das tecelagens de trapos com motivos geométricos e formas estilizadas, inspiradas nos objetos do dia-a-dia, como chávenas, cenouras, casas, em diversas escalas e em sequência. Nas tecelagens de linho, D. Maria Nunes remata com uma renda artesanal em croché ou com os “segredos do algarve”, renda típica da região algarvia derivada das técnicas de produção das redes de pesca. Cada renda é diferente, produzida sem molde ou desenho prévio e sem fotografia ou registo dos produtos acabados, tornando assim a peça impossível de voltar a reproduzir.

3.6.3. COMPARAÇÃO COM OUTRAS TECELAGENS NACIONAIS A tecelagem tradicional de Monchique têm muito em comum com as tecelagens de linho e de trapos da serra do Caldeirão, distinguem-se pelas inovações desenvolvida por cada tecedeira, que dessa forma dão um cunho pessoal ao seu trabalho. A fiação do linho de Monchique é facilmente reconhecível quando comparada com os linhos da serra do Caldeirão, pois em Monchique fia-se 98

ainda com roca e fuso enquanto em Cachopo e Alcoutim recorre-se à roda de fiar. Mértola é, pela proximidade geográfica e pelos estudos existentes, a tecelagem que permite uma comparação mais fiável. Ao contrário da tecedeira de Monchique. Na Oficina Cooperativa de Mértola não se utiliza o algodão na urdidura, preferindo-se os tradicionais linho e lã. A tecelagem de Mértola foi alvo de vários estudos, de salientar as investigações de Cláudio Torres e Carlos Pedro, em que se definiu a identidade e as características destas tecelagens a fim de as certificar e preservar. Estas investigações permitiram, para além da criação da Oficina Cooperativa de Tecelagem de Mértola e da criação de cursos profissionais de tecelagem, fornecer uma garantia aos consumidores que estão a adquirir um produto artesanal, produzido segundo as tradições seculares locais, possibilitando assim o comércio das peças a um preço justo, mais elevado que as de Monchique, mas que permite a subsistência desta atividade. Se compararmos as tecelagens de Monchique com as tradicionais tecelagens de Espanha encontramos semelhanças, nas decorações e remates, com os alforges de Santa cruz de Tenerife, Badajoz e Cáceres, embora estes últimos sejam mais decorados com motivos florais. Relativamente às mantas de trapos encontra-se semelhanças com as de Avila e Guadalajara. Muitos alforges tradicionais de Espanha são também produzidos com trapos, no entanto com recurso a cores mais fortes, garridas e contrastantes de acordo com os gostos locais. É também de salientar as semelhanças formais entre os teares tradicionais do Algarve e os teares tradicionais de Gomera e Zamora.

99

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do presente trabalho fomos apresentando as nossas conclusões,

assim

sendo

deixamos

para

este

capítulo

apenas

as

considerações finais. O ciclo do linho sobrevive no sul português apenas mantido pela teimosia e persistência de alguns agricultores e tecedeiras. Sem um público que valorize, reconheça e esteja disposto a pagar o valor real dos produtos artesanais sem menosprezar a sua mão de obra. As atividades envolvidas no ciclo do linho estão a desaparecer e porquê? Os trabalhadores rurais envelheceram, outros procuraram atividades que lhes permitissem vidas mais desafogadas. Os jovens desligaram-se dos mundos rurais, abandonaram os campos, estudaram e não aplicam estas técnicas tradicionais. Nesta investigação temos como exemplo a filha da tecedeira de Monchique, atualmente, enfermeira no Hospital de Portimão. O ciclo do linho funcionara, nesta região, como complemento à atividade agro-pastoril, não ocupando, deste modo, artesãos a tempo inteiro, no entanto, o ciclo do linho enquadrava-se no complexo sistema da economia rural. Não é só a tecelagem que está a desaparecer, mas de uma forma mais generalizada, os saberes tradicionais da cultura popular estão a acabar, vejase o caso dos ferreiros, pescadores, pastores, entre muitos outros, não podemos esquecer a relação do ciclo do linho com as outras atividades rurais. Não existe tecelagem tradicional sem os produtores das fibras têxteis, quer se trate do linho, da lã ou da seda. No caso da tecelagem em linho, para além da tecedeira é necessário existir quem semeie, colha, branqueie, mace, selecione, fie, urda e ajude na colocação da teia no tear. Tradicionalmente, o artesão é capaz de desenvolver quase todo, ou mesmo todo, o ciclo do linho dentro da sua unidade familiar. Mas também não é possível existir este processo se não houver quem fabrique e conserte os instrumentos, a tecelagem está assim dependente da existência de carpinteiros e ferreiros. Os instrumentos e tecnologias tem características próprias e necessitam de ser fabricados em materiais 100

específicos, por exemplo, no caso do ciclo do linho em Monchique, grande parte dos instrumentos são fabricados na madeira resistente do castanheiro, logo é necessário existirem castanheiros, área disponível para o cultivo, quem os plante, cuide e corte. A “morte” dos sistemas produtivos artesanais nos moldes tradicionais é previsível caso não sejam implementadas mais-valias de carácter cultural e turístico. Tomemos como exemplo a Oficina de Tecelagem de Mértola que mantém as tradições tanto na tecelagem com padrões centenários como no processo artesanal do ciclo da lã. O cultivo do linho na Serra de Monchique tem tradições milenares, testemunhado desde a primeira fase do Bronze Mediterrâneo Peninsular. A fiação da fibra têxtil era já uma prática comum na época romana, no entanto passado milénios de tradições têxteis, o ciclo do linho está prestes a morrer na região algarvia. Na história da economia e da sociedade portuguesa, o Algarve nunca tivera um lugar de destaque. Contando com uma situação geográfica favorável, o Algarve apostara, durante séculos, no comércio marítimo, e mais tarde no desenvolvimento turístico junto à costa. Apesar disso, a Serra Algarvia lutara para manter a sua autossubsistência, numa região pobre em matérias-primas. Em pequenos núcleos dispersos os “serrenhos” mantiveram os seus ciclos rurais ao longo dos tempos. Já na época moderna, os estudos revelavam problemas no cultivo do linho na Serra Algarvia. A fibra era mal preparada, áspera e grosseira. Alguns autores culpavam a má fiação que se fazia na região, contudo hoje sabemos que as fibras provenientes das variantes do linho mourisco nunca se adaptaram à fiação mecânica, por serem mais quebradiças, escuras e irregulares. Os panos de linho “da terra” destinavam-se aos pobres, os ricos importavam panos mais caros mas de melhor qualidade. A indústria de tecidos de linho não fora fomentada devidamente na região, faltaram investidores interessados. O ciclo do linho continuou nos moldes tradicionais, produzindo

101

roupa para a casa, vestuário, redes de pesca e panos para as atividades agropecuárias. Também a aprendizagem manteve-se dentro do seio familiar, seguindo os moldes tradicionais. Nos últimos anos surgiram alguns cursos de formação profissional na área do artesanato têxtil, mas poucos formandos continuam a atividade, a maioria preteriu a atividade de tecedeira tradicional em relação a atividades relacionadas com a hotelaria e o turismo. Os conhecimentos das atividades que integram o ciclo do linho fazem parte da história e do património imaterial português, como tal é fundamental que não caía em esquecimento. As entidades museológicas têm uma responsabilidade acrescida de apoiar e preservar estas tradições milenares. Durante a nossa investigação deparamo-nos com algumas alterações às características tradicionais das tecelagens tradicionais algarvias, como é o caso da utilização de fibras têxteis industriais em tecelagens tradicionais. Consideramos necessário a certificação dos produtos oriundos do ciclo do linho algarvio nos moldes tradicionais, assim como o fomento a estas atividades e ao seu ensino.

102

103

GLOSSÁRIO ILUSTRADO A Aduelas: (terminologia da fiação) Designação dada às fugas das rocas, quando são exteriores ao cabo e não feitas a partir desta.

Figura 13 Desenho de Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:87

Aguadouro ou Maçadouro: Local onde se coloca o linho para a curtimenta.

Alforges: Peças usadas para o transporte de produtos em burros. Tradicionalmente eram confecionadas em tecido de lã ou trapos. Consiste numa tira de tecidos com os extremos são dobrados e unidos, com bainha em espiga, de modo a formarem duas bolsas. Esta denominação é sempre usada no plural “alforges”, referindo-se à unidade.

104

Figura 14 Fotografia de Selma Pereira

Alforginho: Peças usadas para o transporte de produtos em cavalos. Semelhante ao alforges mas de menores dimensões. Tradicionalmente eram confecionadas em tecido de lã ou trapos. Consiste numa tira de tecidos com os extremos são dobrados e unidos, com bainha em espiga, de modo a formarem duas bolsas.

Alto liço (tear): Tear vertical utilizado para tapeçarias.

Figura 15 Desenho extraído de BRAHIC, 1998:9

Apertar: “Utilizando o batente e o movimento do batente, apertar é colocar a última passagem da trama no lugar, juntamente com a precedente. Pode apertar-se mais ou menos.” (BRAHIC, 1998: 186).

105

Apisoamento: Operação de pisoar: bater o pano com o pisão de forma a lhe dar mais corpo e resistência.

Armadura: Elementos fixos que formam o esqueleto do tear.

Arrinca: Arranque do linho

. Figura 16 Desenho de Selma Pereira

Atadilho: (terminologia de fiação) Correia da roca para prender o manelo.

Atadura: “É a operação através da qual se atam os fios da urdidura à travessa traseira [compostoiro]. A atadura é feita sempre com nós de tecelão” (BRAHIC, 1998: 186)

Assedagem: Limpar e selecionar as fibras longas do linho das fibras curtas e groseiras da estopa.

106

Figura 17 Desenho de Selma Pereira

B Baeta: Tecido grosseiro de lã ou de algodão.

Baganha: Cápsula que contém no seu interior a semente do linho.

Baixo liço (tear): Teares em que a urdidura está horizontal.

Figura 18 Desenho de BRAHIC: 1998:30

Barquinha: Veja-se definição de lançadeira.

Barrela: Lavagem do fio ou tecido com água quente, água fria, sabão e cinza de madeira.

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Bater o tear: “Após cada passagem da lançadeira, mudam-se os pés de premedeira e dão-se pancadas no tecido, com a queixa que suporta o pente. A essas pancadas chama-se bater e são elas que dão maior ou menor consistência ao tecido e com mais ou menos força” (PEDRO, s.d.:96).

Bojo: “Parte do roquil onde se coloca o manelo para ser fiado” (IPM, 2007: 140). (terminologia de fiação).

Figura 19 Desenho de Fernando Galhano, extraído de IPM, 2007:62

Braga: Calças interiores.

Bragal: “Pano grosseiro utilizado na confeção de bragas (calças interiores, largas e curtas); Tecido grosso, com cordões atravessados de que se faziam toalhas destinadas a cobrir a massa do pão durante a levedura; Unidade monetária ou preço de uma dada quantidade de tecido de bragal, utilizada como moeda de troca em certas transações comerciais, equivalente a sete ou oito varas; Enxoval. Conjunto da roupa branca de uma casa.” (COSTA, 2004) 108

Branqueamento: Branquear o linho, em fio ou em tecido, e torna-lo mais claro e maleável. Dependendo da fase, o branqueamento pode ser feito com água e sabão ou com cinza (barrela).

Burel: Tecido grosso de lã, geralmente pardo, castanho ou preto.

C Cadilho: Conjunto de 24 fios que entram em cada volta completa da urdidura. Também designado por cabrestilho.

Cala ou passo: Abertura da urdidura que permite a introdução da lançadeira.

Figura 20 Fotografia extraída de BRAHIC, 1998:8

Canela: Secção de cana com 1 cm de diâmetro e cerca de 8 cm de comprimento. O fio de linho ou lã é enrolado na canela, que é introduzida na lançadeira.

Caneleiro: Instrumento onde a canela é colocada para “encanelar” mais depressa.

109

Canhâmo: “Planta tropical da qual se extraí um fio rugoso e forte. Este fio é normalmente usado no fabrico de cordas, mas pode ser tecido, caso se pretenda um pano do tipo de juta” (BRAHIC, 1998: 187).

Capitéis ou parchadas: “Duas travessas dispostas em cutela, uma sobre cada mesa do tear, que suspendem entre si os mecanismos do pente e dos liços” (IPM, 2007: 145).

Carda: “Ferramenta para preparar a lã antes de a fiar. É semelhante a uma escova. Apresenta-se aos pares (um par de cardas)” (BRAHIC, 1998: 187).

Figura 21 Desenho de Fernando Galhano, extraído de IPM, 2007:61

Cardação (lã):Operação de pentear a lã através de cardas.

Carretel: “Peça da roda de fiar onde está cravado o fuso” (IPM, 2007:140).

Figura 22 Desenho de Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978: 105

Casaca do linho: Elemento lenhoso que envolve o linho.

110

Casal: Noveleiro; caixas individuais onde cada novelo é colocado para o processo de urdir.

Chaine Productive: Cadeia produtiva.

Cherga: Tecido de lã mal saí do tear.

Choco: Designação local para o preparado de água e sabão e azul e branco; barrela.

Cigana: “espécie de roldanas que facilitam o movimento ascendente e descendente dos liços” (PEDRO, s.d : 98.).

Figura 23 Desenho de Selma Pereira

Ciso: (terminologia da fiação) “Pedaço de cortiça ou de madeira, quadrangular ou circular onde se coloca as fugas, de modo a que estas fiquem arqueadas e formem o bojo do roquil” (IPM, 2007: 141).

Código de remissas: Forma de apontar a ordem dos fios da urdidura nos liços.

Colheita: Arranque das plantas do linho, desterrando-as pela raiz. 111

Compostoiro: Trave ou régua onde se fixa as extremidades da urdidura durante a montagem da teia. Ao montar a urdidura no tear o compostoiro é encaixado no órgão por meio de cordas.

Coradoura: Local onde as meadas coram ao sol.

Corar: Fase da lavagem em que o linho após ser lavado é exposto ao sol e ao orvalho da noite, para que branqueie.

Curtimenta ou maceração: separar através os elementos fibrosos dos lenhosos, através da fragmentação destes últimos por meio do seu apodrecimento dentro de água; também designado por enlagar.

D Dobadoura ou dobadoira: “estrutura formada por duas cruzes horizontais, uma em cima e outra em baixo, ligadas por travessas verticais, e com um eixo também vertical” (PEDRO, s.d.: 99).

Figura 24 Desenho de Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978: 116

112

Dobagem: processo de transformar a meada em novelo com a ajuda de uma dobadoura.

E Empeirar: “Introduzir os fios nas puas do pente” (BRAHIC, 1998: 187).

Encanelar: Enrolar uma quantidade de fio na canela.

Engenho: Instrumento rudimentar de tração animal, hidráulica ou humana que permite separar as fibras têxteis das lenhosas, através da fragmentação dos caules, por meio da sua trituração. (No Algarve não se utiliza o engenho, para esta função é usado o maço de madeira).

Enlagar ou alagar: separar através os elementos fibrosos dos lenhosos, através da fragmentação destes últimos por meio do seu apodrecimento dentro de água; também designado por curtimenta.

Ensarilhar: Arrumar o fio em meadas.

Figura 25 Fotografia de Selma Pereira

Esclarecimento: Denominação, do Baixo Alentejo, para o processo de branquamento. 113

Espadelar: Separar os tomentos das fibras mais finas por meio de pancadas com a espadela (processo não utilizado no Algarve).

Espadilha ou espalhadeira: “Pequeno instrumento em madeira com furos por onde passam os fios da teia, e cuja finalidade é evitar que estes de enleiem” (PEDRO, s.d: 99).

Estamenha: Tecido ordinário de lã pisoado, geralmente de lã preta, usado para confecionar vestuário feminino.

Espiga (bainha em espiga): Bainha tradicional decorativa de alforges e alforginho. Feita com linha de renda formando pontos em forma de V’s.

Figura 26 Fotografia de Selma Pereira

Esticador: Formado por duas varetas de ferro, com um anel e um espigão, nas extremidades, que as liga. As varetas tem orifícios que permitem regular a dimensão do esticador consoante as dimensões do tecido; Tem como função manter o tecido esticado, no sentido da largura. Também designado por tempereiro.

Figura 27 Desenho de Selma Pereira

114

Figura 30 Desenho de Fernando Galhano, extraído de IPM, 2007: 104

Estopa: Fio feito com o linho mais grosseiro, separado do linho com a assedagem; usado para sacos de cereais e outros produtos destinados aos trabalhos no campo.

Estopinha ou estopa sedeira: Estopa que resulta da segunda assedagem, de melhor qualidade.

Estriga:

Porção

do

linho

que

se

colocar

na

roca

para

fiar.

Figura 31 Fotografia extraída de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978: Figura 46/48

F Fiação: Processo de transformação do fio através da torção das fibras.

Fiandeira: Instrumento para fiar fios mais grossos. Constituído por uma base em cortiça e uma haste com cerca de 15cm.

115

Figura 32 Fotografia de Selma Pereira

Freio: Veja-se definição de garoucho.

Fuso: Objeto de forma cónica, em madeira, de metal ou combinando na mesma peça estas duas matérias. É constituído por uma haste e por um volante ou cossoiro. Utilizado para fiar linho e lã.

116

Figura 33 Desenho de Fernando Galhano, extraído de IPM, 2007:69

Fustão: Tecido misto, comum durante a Idade Média, com urdidura de algodão e trama de lã.

G Garrocho: “Peça de madeira curva que impede o órgão de rodar. Quando se quer rodar o órgão para poder continuar a tecer, desencaixa-se o garrocho, roda-se o órgão (geralmente ¼ ou meia volta), e volta-se a encaixar o garrocho no órgão. Chama-se a esta operação “dar uma garrochada”.” (PEDRO, s.d.: 100).

Figura 34 Fotografia de Selma Pereira

117

Grama: Instrumento de madeira, geralmente formado a partir de um ramo de árvore bifurcado, apresentando numa das extremidades um rasgo onde se encaixa o graminho. Utilizado na gramagem do linho.

Gramagem: “Separar as fibras têxteis das lenhosas, através da fragmentação dos caules, por meio da sua trituração, complementando a tarefa do maço quando não se utiliza o engenho” (IPM, 2007).

Graminho: Peça pertencente à grama. Lâmina com cabo que tritura o linho.

H I J Jarrapa: “Nome que se dá ao tapete de trapos na região central da Península” (BRAHIC, 1998: 187).

Juta: Substância têxtil fornecida por fibras de plantas originárias da Índia, China e Indonésia.

L Lançadeira: “Espécie de “barquinha” que contém e transporta a canela com o fio da trama no acto de tecer.” (PEDRO, s.d). Também designado por barquinha.

Figura 35 Desenho de Fernando Galhano, extraído de IPM, 2007:

118

Leira: Quadrado de terra com cerca de dois metro de largura, utilizado para a plantação do linho e de outros produtos agrícolas.

Liçado: Conjunto de liços.

Liçarol: Travessa que segura os liços.

Liço ou prachadas: “São peças do tear [tradicionalmente] constituídas por fios de linho ou “fio do Norte”, suportado por canas e cuja função é fazer subir ou descer os fios da teia para possibilitar inserir os fios da trama, fazendo o tecido” (PEDRO, s.d: 100).

Figura 36 Desenho de Selma Pereira

Linha: Fio de algodão.

Linhaça: Semente do linho.

Linho: “Planta de haste fibrosa da família das lináceas; designação pela qual são conhecidas as fibras mais curtas e mais finas desta planta” (IPM, 2007: 135). 119

Linho abertiço e linho serrano: Sub variantes do linho mourisco.

Linho coimbrão e linho verdeal: Sub variante do linho da riga nacional.

Linho galego e linho da riga nacional: Variedade do linho plantado na Primavera.

Linho mourisco: Variedade do linho plantado no Inverno.

M Maçadoiro: Pedra rija utilizada como suporte para as pancadas do maço de madeira.

Maçagem: “Separar as fibras têxteis das lenhosas, através da fragmentação dos caules, por meio das pancadas.” (IPM, 2007).

Figura 37 Desenho de Selma Pereira

Maçaroca: Designação dada ao fio fiado.

120

Maço: “São objectos de madeira, de forma geralmente cilíndrica, possuindo na parte inferior um cabo para o seu manuseamento.” (IPM, 2007).

Figura 38Desenho de Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978: 43

Manelo: Quantidade de linho a fiar que se envolve no roquil.

Manuços: Modo de disposição da estopa depois de assedada.

Marcha ou pedalagem: Ordem com que se pisam os pedais.

Meada: Organização dos fios em círculos concêntricos.

Mesa (de cima e de baixo): “Peças da estrutura do tear que se dispõem na horizontal e que fixam as pernas e suportam as peças móveis. As mesas situam-se a meia altura e as de baixo, e no alto as mesas de cima” (PEDRO, s.d: 101).

N Naveta: “Assemelha-se a uma agulha. É de madeira e utiliza-se quando o fio de trama é grosso, nas urdiduras de até 1 m de largura” (BRAHIC, 1998: 190).

Nó: Em tecelagem são utilizados três tipos de nós: o nó de tecedeira ou nó direito, utilizado na atadura, o de caracol, para pontos e franjas, e o de calhanda, para urdir na vara.

121

Figura 39 Fotografia extraída de BRAHIC, 1998:56

Nó direito: “Também chamado nó de tecedeira é um nó em que as duas pontas do mesmo fio estão para o mesmo lado. É um nó simples mas, puxando em sentido oposto os dois fios, o nó aperta, pelo que não se desfaz” (PEDRO, s.d.: 102).

Noveleiro: Caixas individuais onde cada novelo é colocado para o processo de urdir, também designado casal.

O Órgão: “Peças semi-móveis do tear, que podem ser rodadas, que se fixam às mesas de baixo pelas pombinhas, e que são impedidos de rodar pelos garouchos. No órgão de trás é enrolada a teia, no órgão da frente é enrolada a peça à medida que vai sendo tecida” (PEDRO, s.d.:102).

Órgão do peito ou órgão da barriga: Barrote fixo onde passa o tecido para o órgão do tecido.

Órgão do tecido ou órgão do pano: Peça giratória do tear onde o tecido é enrolado à medida que a tecedeira trabalha. 122

Órgão da urdidura: Peça giratória do tear onde a urdidura é enrolada à medida que a tecelagem decorre.

Ourela: Margem lateral do tecido, reforçada por um maior número de fios da teia.

P Parchada: Veja-se definição de capiteís.

Passagem: Denominação dada à extensão do fio deixado pela lançadeira ao passar pela cala.

Passo: Veja-se definição de cala.

Pedais: Também designado por premedeira; Controla o baixar ou levantar do liço ao qual está ligado e articulado por meio de uma cigana. Ao ser premido baixa o liço e provoca a subida do outro.

Pente: “Peça do tear que está junto aos liços e que é fixado pela queixa. O pente tem duas funções: manter regular e constante a distância entre os fios da teia; bater a trama por forma a dar mais consistência ao tecido” (PEDRO, s.d: 103.).

Picote: “Pano grosseiro, mais conhecido por picoto; Tecido de lã de ovelha, usado para vestimentas de pobres e religiosos. Também podia ser feito de lã de cabra.” (COSTA, 2004).

Pisão: Engenho para pisoar o tecido.

Pisoamento: Acto de pisoar 123

Pisoar: “ Bater o tecido que foi previamente embebido em água quente. Com esta operação visa-se compactar o tecido” (PEDRO, s.d: 103.).

Pombo: Peças que fixam os órgãos às mesas de baixo, permitindo a rotação dos órgãos.

Pondera: São peças de barro com uma forma de pirâmide quadrangular truncada ou em paralelepípedo usados como pesos de teares verticais.

Ponto: “nome da “malha” obtida nem tear” (BRAHIC, 1998: 191).

Pranchada: Denominação para liços, utilizada no Baixo Alentejo.

Premedeira: Também designado por pedais; Controla o baixar ou levantar do liço ao qual está ligado e articulado por meio de uma cigana. Ao ser premido baixa o liço e provoca a subida do outro.

Preparação da trama: Enrolar o fio nas canelas.

Preparação da urdidura: “Calcular o número de fios necessários para que o tecido possua a largura desejada e calcular o comprimento do mesmo” (IPM, 2007).

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Figura 40Desenho fe Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:139

Q Queixa: Peça que fixa o pente e onde a tecedeira segura para bater a trama no tear.

R Ratalhêra: Designação local para mantas de trapos produzidas com peças de vestuário velha.

Figura 41 Fotografia de Selma Pereira

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Rematar: “Atar e contar os fios da urdidura depois de retirar o trabalho do tear. Pode rematar-se com nós, franjas ou introduzindo cada linha no próprio tecido com uma agulha de lã”. (BRAHIC, 1998:191).

Figura 42 Fotografias extraídas de BRAHIC, 1998:70

Roca: Instrumento utilizado para fiar o linho. É constituído por cabo, o roquil e a torre.

Figura 43 Desenho de Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA,1978: 90

Roda de fiar: É composto por banco, roda e fuso. “Apoiada num banco, erguese, num extremo e na vertical, o suporte da roda, no outro extremo está apoiado o fuso. O movimento de rotação é transmitido por um fio que une a roda ao fuso” (PEDRO, s.d.: 104). 126

Figura 44Desenho de Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO, e PEREIRA, 1978: 105

Roquil: (terminologia da fiação) “Sector da roca onde se coloca o manelo para ser fiado” (IPM, 2007: 142).

S Saragoça: Tecido grosso de lã escura.

Sarilho: “peça constituída por uma haste central que outras duas mais pequenas, todas perpendiculares entre si. Serve para passar a maçaroca à meada” (PEDRO, s.d.: 105).

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Figura 2 Desenho de Fernando Galhano, extraído de OLIVEIRA, GALHANO e PEREIRA, 1978:111

Sarja: “Técnica caracterizada pelos efeitos oblíquos obtidos pela deslocação de um fio para a direita ou para a esquerda, em todos os cruzamentos de passagem de trama” (COSTA, 2004)

Figura 3 Estrutura de sarja

Sedeiro: Instrumento empregue na limpeza e seleção das fibras mais finas do linho, separando-as das mais curtas e grosseiras, a estopa.

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Figura 4 Desenho de Selma Pereira

Soriano: Tecido de lã pisoado, de uso frequente no vestuário masculino.

T Tafetá: “Técnica mais simples de formação de um tecido, resultante da passagem alternado de um fio de trama por cima ou por baixo de um fio de teia” (COSTA, 2004)

Figura 5 Estrutura de tafetá

Tear: “Instrumento que, fixando um conjunto de fios paralelos (a teia), permite que se vão cruzando outros (a trama) para fabricar um tecido. Os teares são compostos por várias peças” fixas, móveis ou semi-movéis (PEDRO, s.d.: 105). 129

Tear de grade: “Os teares de tipo de grade são usados no fabrico de franjas para guarnecer as colchas tecidas no âmbito da economia doméstica “ (IPM, 2007)

Figura 6 Desenho de Fernando Galhano, extraído de IPM, 2007:

Tear vertical: “Em Portugal, os teares deste tipo são usados no fabrico de ilhas e de atafais, tarefa a cargo do ofício de albardeiro e que competia inicialmente aos cordoeiros. Fisicamente, a peça consiste em dois prumos dispostos paralelamente e unidos, entre si, em ambas as extremidades por duas travessas que se destinam à fixação da urdidura. Ambas as travessas são amovíveis, podendo ser deslocadas ao longo dos prumos de acordo com a dimensão da cilha ou atafal que se pretende fabricar.

Figura 7 Desenho extraído de BRAHIC, 1998: 7

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Figura 8 Desenho extraído de BRAHIC, 1998:9

Teia: Também designado por urdidura ou urdume. É o conjunto de fios paralelos entre si, que formam a estrutura daquilo que é tecido. A teia é geralmente enrolada num dos órgãos do tear e o tecido no outro.

Tempereiro: Formado por duas varetas de ferro, com um anel e um espigão, nas extremidades, que as liga. As varetas tem orifícios que permitem regular a dimensão do esticador consoante as dimensões do tecido; Tem como função manter o tecido esticado, no sentido da largura. Também designado por esticador.

Tiras: Fitas de trapos cortados, com cerca de 1 cm de largura, utilizado na trama das tecelagens de trapos.

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Figura 9 Fotografia de Selma Pereira

Torre: (terminologia de fiação) “Sector da roca que encima o roquil” (IPM, 2007: 142).

Trama: “Fios perpendiculares à teia e que vão sendo inseridos um a um, por intermédio da lançadeira” (PEDRO, s.d.: 106).

U Urdideira: “Conjunto de pequenos paus espetados na parede que servem estender os fios da teia, possibilitando que estes fiquem paralelos (PEDRO, s.d: 106.).

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Urdidura: Também designado por teia ou urdume. É o conjunto de fios paralelos entre si, que formam a estrutura daquilo que é tecido. A teia é geralmente enrolada num dos órgãos do tear e o tecido no outro.

Urdir: Processo de estender os fios na urdideira.

Urdume: Veja-se definição de urdidura.

V Vara: Unidade de comprimento usada em tecelagem e equivale a 1,1metros.

Volante: Veja-se definição de cossoiro.

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