A temporalidade provisória do estético como performance

May 20, 2017 | Autor: Mariana Lage_Miranda | Categoria: Performance Studies, Paul Zumthor
Share Embed


Descrição do Produto

Anais eletrônicos do XV encontro ABRALIC – 19 a 23 de setembro de 2016

ISSN: 2317-157X

Expediente Diretoria do biênio 2016-2017 Presidente: João Cezar de Castro Rocha (UERJ) Vice-presidente: Maria Elisabeth Chaves de Mello (UFF) Primeira Secretária: Elena C. Palmero González (UFRJ) Segundo Secretário: Alexandre Montaury (PUC-Rio) Primeiro Tesoureiro: Marcus Vinicius Nogueira Soares (UERJ) Segundo Tesoureiro: Johannes Kretschmer (UFF) Conselho Deliberativo: Germana Maria Araújo Sales (UFPA) Marlí Tereza Furtado (UFPA) André Luís Gomes (UnB) Allison Leão (UEA) Ana Cristina Marinho (UFPB) Antônio de Pádua Dias da Silva (UEPB) José Luís Jobim (UFF) Suplentes: Diógenes Maciel (UFPB) Marisa Lajolo (UNICAMP/Universidade Mackenzie) Comissão Organizadora do XV Encontro: Alexandre Montaury (PUC-Rio) Ana Cristina Santos (UERJ) Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ) Darcília Simões (UERJ) Elena C. Palmero González (UFRJ) Fábio André Coelho (UERJ) Flavio García (UERJ) João Cezar de Castro Rocha (UERJ) Johannes Kretschmer (UFF) Marcus Vinicius Nogueira Soares (UERJ) Maria Elizabeth Chaves de Mello (UFF) Nabil Araújo de Souza (UERJ) Norma Lima (UERJ) Patrícia Alexandra Gonçalves (UERJ) Regina Michelli (UERJ)

Comitê Científico: Adriana Amante (Universidade de Buenos Aires) Anco Márcio (UFPE) Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra) Carlinda Nuñez Fragale Pate (UERJ) Eduardo Martins (USP) Eurídice Figueiredo (UFF) Fábio Almeida de Carvalho (UFFRRoraima) Germana Maria Araújo Salles (UFPA) Giovanna Ferreira Dealtry (UERJ) Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University) Jeffrey Schnapp (Harvard University) José Luís Jobim (UFF) Kathrin Rosenfield (UFRGS) Marcelo Pellogio (UFC) Maria Aparecida Andrade Salgueiro (UERJ) Marlí Tereza Furtado (UFPA) Paulo Asthor Soethe (UFPR) Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ) Roger Chartier (Collége de France) Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos (USP) Sandra Margarida Nitrini (USP) Silvana Oliveira (UEPG) Valdir Prigol (UFS) William Johnsen (Michigan State University) Zilá Bernd (UFRGS e UNILASALLE)

Palavras iniciais Em primeiro lugar, muito obrigado pela confiança na Associação Brasileira de Literatura Comparada num momento tão difícil para o país, em geral, e para o Estado do Rio de Janeiro, em particular. Nesse sentido, compreendemos que a grande solidariedade demonstrada para a realização do XV Encontro da ABRALIC na UERJ tem um alcance muito mais amplo. Trata-se de defender o ensino público, gratuito e de qualidade. A ABRALIC alinha-se com esse projeto. O XV Encontro ocorre num momento especial para a ABRALIC: em 2016, a Associação completa 30 anos. Por isso, apesar das dificuldades que enfrentamos, trabalhamos muito para oferecer uma programação à altura da ocasião. De igual modo, destacamos os 62 simpósios, instigantes e inovadores, que se desenvolverão durante o congresso. Reiteramos nosso compromisso: além da publicação dos trabalhos nos Anais, todo simpósio que retornar em 2017 terá um livro digital preparado pela ABRALIC. Além disso, para o XV Congresso Internacional (7 a 11 de agosto de 2017), estamos preparando um livro para os associados e as associadas, no qual resgataremos a história da Associação e dos congressos realizados nessas três décadas. A decisão de criar a ABRALIC foi tomada durante o XI Congresso da “International Comparative Literature Association” (ICLA), realizado em 1985, em Paris. No ano seguinte, no âmbito do “Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada”, em Porto Alegre, a ABRALIC foi fundada. O I Congresso da ABRALIC foi organizado na Universidade Federal de Rio de Grande do Sul, de 1 a 4 de junho de 1988, sob a presidência de Tânia Franco Carvalhal. O primeiro Encontro privilegiou discussões acerca de conceitos-chave para a disciplina: “Intertextualidade e interdisciplinaridade”. Ora, com este livro, desejamos tanto sistematizar a trajetória da ABRALIC quanto mapear os caminhos da disciplina Literatura Comparada no Brasil. Exercitar a memória coletiva é um gesto de história intelectual indispensável a fim de afirmar a importância do conhecimento produzido no âmbito da Universidade Pública. Tal propósito estimulou a criação dos “Prêmios ABRALIC”, cujo objetivo relacionase precisamente com a necessidade de fortalecer a comunidade dos estudos literários. Foram criadas 4 distinções. “Prêmio Tânia Franco Carvalhal”, pelo conjunto da obra. “Prêmio Blaise Cendrars”, reconhecimento a especialista estrangeiro. “Prêmio Eugênio Gomes”, concedido à obra publicada no ano anterior. “Prêmio Dirce Côrtes Riedel”, a ser oferecido para dissertação de mestrado e tese de doutorado na área de literatura comparada. Os Encontros de 2016 e de 2017 pretendem propor reflexões acerca do papel e da posição dos estudos literários na

contemporaneidade, articulando formas novas de teorizar e, sobretudo, questionar a própria disciplina Literatura Comparada. 2016 – EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS “Experiências Literárias”: em lugar de concepções normativas do estético e do literário, que reduzem drasticamente o horizonte de leituras, impedindo a renovação do repertório teórico e crítico, a ABRALIC abraça a pluralidade atual de valores e de interesses como uma alternativa a ser radicalizada. Na circunstância presente, um conceito monocromático de “literatura” não dá conta da diversidade e da intensidade das múltiplas “experiências literárias” que transformam o cenário das letras no mundo todo. Hoje em dia, e não apenas no Brasil, o que está ocorrendo é a expansão considerável da atividade crítica e a apropriação vigorosa da experiência literária, redimensionadas segundo interesses variados de comunidades interpretativas as mais diversas. E não se trata da emergência de um “novo” espaço, resgate da legitimação perdida do circuito fechado da “vida literária”. Pelo contrário, vivemos o período histórico do surgimento de territórios possíveis para intervenções pontuais: jornal, livro, revista, blog, vlog, Twitter, Facebook, Academia, listas de endereço eletrônico, televisão, rádio, webcanais, festivais literários, casas de saber, livrarias, clubes de leitura – e a lista poderia seguir nas ruas do sono. Não é tudo: mesmo historicamente, nunca existiu algo próximo a uma prática discursiva homogênea denominada “literatura”, assim como um exercício monolítico chamado “crítica”. A diversidade de modelos desde sempre constituiu o veio dominante; apenas nunca nos preocupamos em observar essa pluralidade constitutiva da experiência literária e da atividade crítica. Por que não pensar em termos de experiências literárias em lugar de terminar no eterno beco sem saída das definições normativas? 2017 – TEXTUALIDADES CONTEMPORÂNEAS “Textualidades Contemporâneas”: já passou da hora de reconhecer que não mais dispomos de um suporte único, definidor de uma hierárquica concepção de “texto”, cujo sentido deve ser “adequadamente” decodificado. Em resposta a esse entendimento normativo de uma prática hermenêutica domesticada, a ABRALIC propõe a noção de “textualidades contemporâneas”. Tal noção pretende caracterizar a pluralidade de suportes possíveis, a miríade de formas de inscrição e a multiplicidade tanto de produções de presença quanto de atribuições de sentido. Trata-se de dar conta da afirmação de um panorama cultural definido pela emergência de formas outras de expressão que, muito rapidamente, deslocaram a “literatura” do lugar central que ela desfrutou de meados do século XVIII às décadas iniciais do século XX. Isto é, desde o momento histórico em que o texto impresso – finalmente acessível, devido ao desenvolvimento de novas técnicas de

reprodução que, além de permitirem a criação de diferentes formas de difusão de material escrito, baratearam o custo do livro – tornou-se objeto do cotidiano até o instante em que novas formas de tecnologia e novos meios de comunicação assumiram o protagonismo na circulação e na transmissão de bens simbólicos. A análise da experiência literária, portanto, não pode prescindir de uma cuidadosa reconstrução da materialidade dos meios de comunicação. Eis o desafio atual: como lidar com as múltiplas formas do literário no mundo contemporâneo sem levar em consideração as diversas textualidades que compõem a complexa rede de discursos e de comunidades interpretativas que atravessam nosso dia a dia? Mais uma vez, muito obrigado pelo apoio! JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA (UERJ) Presidente MARIA ELIZABETH CHAVES DE MELLO (UFF) Vice-Presidente ELENA C. PALMERO GONZÁLEZ (UFRJ) Primeira Secretária ALEXANDRE MONTAURY (PUC-RIO) Segundo Secretário MARCUS VINICIUS NOGUEIRA SOARES (UERJ) Primeiro Tesoureiro JOHANNES KRETSCHMER Segundo Tesoureiro (UFF)

Sumário Simpósio 1 - A Atualidade De J. W. Goethe O ABISMO PSICOLÓGICO DE PESSOA E A RELIGIOSIDADE DE GOETHE NA CRIAÇÃO DO FAUSTO - Débora Domke Ribeiro Lima (USP) – p.43 O PAPEL DA MULHER E A CONSTRUÇÃO DO FEMININO EM GOETHE E F. VON SCHLEGEL - Juliana Couto (UzK, UERJ) – p. 50 DEMONISMO E HOMOSSEXUALIDADE, UM EXERCÍCIO DE LITERATURA COMPARADA - Maria Cecilia Marks (FFLCH/USP), Marcus Vinicius Mazzari (FFLCH/USP) – p. 57 O ROMANCE DE FORMAÇÃO COMO PARÂMETRO: BILDUNG EM ESAÚ E JACÓ - Pedro Armando de Almeida Magalhães (UERJ) – p. 69 A TORÇÃO DO MITO FÁUSTICO COMO DESPEDIDA DA MODERNIDADE - Tatiana de Freitas Massuno (UCAM) – p. 78 DIACRONIA ESSENCIAL: TEMPO HISTÓRICO EM ‘VIAGEM À ITÁLIA’(1786-1788) - Wilma Patricia M.D.Maas (UNESP/CNPq) – p. 87 Simpósio 2 - A Construção De Mapas: Estéticas E Políticas Do Espaço No Brasil SOBRE MAPAS INFEFINIDOS: CARTOGRAFIAS DE EUCLIDES DA CUNHA E CONSTANT TASTEVIN NO ACRE - Camila Bylaardt Volker (UFSC/CNPQ), Carlos Eduardo Schmidt Capela (UFSC) – p. 95 A MATERIALIDADE DA LINGUAGEM E A INSTABILIDADE DAS FORMAS NOS TERRENOS INSTÁVEIS DE JUNHO DE 2013 - Maria Del-Vecchio Bogado (PUC-Rio) – p. 107 Simpósio 3 - A Crítica Literária Contemporânea E Seu Lugar No Debate Público De Ideias A DESCONSTRUÇÃO DERRIDIANA: ANTIHUMANISMO CONSTRUTIVISTA? - Ana Carla Lima Marinato (UFPE) – p. 115 A PROSA CRÍTICA DE SEBASTIÃO UCHOA LEITE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES - André Vinícius Pessôa (UERJ/CAPES/FAPERJ) – p. 123 CRÍTICA LITERÁRIA E LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: VALORES E CRITÉRIOS - Cristhiano Motta Aguiar (UPM) – p. 132 MÍMESIS E A TRAIÇÃO CONSEQUENTE DE JOÃO CABRAL - Edneia Rodrigues Ribeiro (Doutoranda UFMG/ Professora IFNMG), Prof. Dr. Sérgio Alcides Pereira do Amaral (UFMG) – p. 143 REPENSAR A TRADIÇÃO CRÍTICA HUMANISTA PARA NOSSO TEMPO: A LIÇÃO DE ERNESTO GRASSI Eduardo Cesar Maia (UFPE) – p. 153

A ESCRITURA CURADORA DE VERÔNICA STIGGER - Fernanda Ribeiro Marra (UnB) – p. 5511 ESCRITA EM MOVIMENTO - Lia Duarte Mota (PUC-Rio) – p. 5523 A TEMPORALIDADE PROVISÓRIA DO ESTÉTICO COMO PERFORMANCE - Mariana Lage Miranda (UFPA) – p. 5531 ONDE ESTÁ A PAIXÃO? ONDE ESTÁ A POLÍTICA? UMA TENSÃO DO PENSAMENTO EM DIREÇÃO À DANÇA - Mariana Patrício Fernandes (UFRJ) – p. 5543 “NA ASA DO VENTO CORRE O MELANCÓLICO CORPO”, ESCRITA E PERFORMANCE EM DIÁRIOS, DE AL BERTO - Nathalia Greco (UFMG) – p. 5552 Simpósio 49 – Poesia Contemporânea: Crítica E Transdisciplinaridade A PRESENÇA DA POESIA VISUAL EM CAPAS DE DISCO BRASILEIRAS (1969-2013) - Aïcha A. de Figueiredo Barat (PUC-Rio), Julio César Valladão Diniz (PUC-Rio) – p. 5562 TEXTUALIDADES E EXPERIMENTAÇÕES DA POESIA CONTEMPORÂNEA EM AUGUSTO DE CAMPOS Andressa da Costa Farias (UFSC), Susana Scramim (UFSC) – p. 5573 A REINVENÇÃO DA TRADIÇÃO LITERÁRIA NA LÍRICA CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA SOBRE SENTIMENTAL, DE EUCANAÃ FERRAZ - Carolina Barbosa Lima e Santos (UFMS) – p. 5583 A POÉTICA DE TORQUATO NETO: UMA VIAGEM PERDIDA NA NOITE ESCURA DOS ANOS 1960 Esmeralda Barbosa Cravançola (UFBA) – p. 5595 JEITO DE CORPO: DESBUNDE COMO RESISTÊNCIA POLÍTICO-POÉTICA - Leonardo Davino de Oliveira (UERJ) – p. 5605 "QUANDO NÃO ESTOU POR PERTO": POEMA-PAISAGEM - Maíra Fernandes de Melo (PUC-Rio), Ana Kiffer (PUC-Rio) – p. 5613 REFLEXÕES SOBRE O GESTO COLETIVO: UM PARALELO ENTRE O GRUPO NOIGANDRES E OS COLETIVOS CONTEMPORÂNEOS - Marina Mendes (PUC – Rio), Paulo Henriques Britto (PUC – Rio), Miguel Jost (PUC – Rio) – p. 5625 O INACABAMENTO DO LUGAR E A METAMORFOSE DAS IMAGENS: OPERAÇÕES CRÍTICAS DOS POEMAS DE NUNO RAMOS E ANDRÉ VALLIAS - Victor Bello (UFSC), Carlos Eduardo Schmidt Capela (UFSC) – p. 5633 POESIA E HISTÓRIA: LEITURA DE “FOTOGRAFIA”, DE FABIO WEINTRAUB (2007), E “PRESENTE”, DE ANTONIO CICERO (2012) - Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq) – p. 5641 Simpósio 50 – Poesia Contemporânea: Reconfigurações Do Sensível No Brasil E Na América Latina OLHINHOS DE GATOS – REFLEXIVIDADE E AUTORREFERÊNCIA NA OBRA AUTOBIOGRÁFICA DE CECÍLIA MEIRELES - Aline Magalhães Pinto (UFMG) – p. 5650 CÁLCULOS NOS INTESTINOS DA PROSA: A POESIA COMO CORPO ESTRANHO EM PAULO HENRIQUES BRITTO - Eduardo Veras (UNICAMP/ FAPESP) – p. 5658 A CONSTRUÇÃO METAFÓRICA EM MICHELINY VERUNSCHK: UMA LEITURA DE SUAS IMAGENS - Érica Alves Rossi (UFMS), Kelcilene Grácia Rodrigues (UFMS) – p. 5670 A PALAVRA DENTRO E FORA DE SI NA POÉTICA DE ARNALDO ANTUNES – UMA LEITURA DE “N.D.A.” Glauber Mizumoto Pimentel (UERJ) – p. 5682 ECLIPSE E DESPEDIDA:REPRESENTAÇÕES DA DOENÇA ALZHEIMER NA CULTURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA - Nicola Gavioli (FIU) – p. 5693

!

8!

NAZARETH, P. Paulo Nazareth: arte contemporânea/ LTDA. Textos de Janaina Melo... et al. Rio de Janeiro: Cobogó, 2012. PAULA, José Agrippino de. PanAmérica. São Paulo: Editora Papagaio, 2001. RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001.

SCH∅LLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. SERRES, Michel. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

!

5530



1

A TEMPORALIDADE PROVISÓRIA DO ESTÉTICO COMO PERFORMANCE Mariana Lage Miranda (UFPA) Resumo: Este artigo abordará diferentes aspectos da movência em Paul Zumthor: existencial, metodológica e a da forma poética. Nessas três perspectivas, coloca-se em destaque a provisoriedade, a instabilidade e o dinamismo da postura intelectual de Zumthor, da construção de seu saber crítico e poético, e, por fim, da característica própria de seu objeto de pesquisa, a poesia vocal. Nesse sentido, este artigo privilegia a visada de que uma característica que perpassaria sua vida e obra, a movência, é uma de suas principais contribuições para a Estética e a teoria literária contemporâneas. Deste modo, propõe-se traçar paralelos e aproximações entre conceito de performance de Zumthor e a ideia de uma estética do performativo, como defendida por Erika Fischer-Lichte. Neste percurso, trata-se de evidenciar que, entendendo o poético e o artístico como performance, a forma só pode se dar na temporalidade suspensa de um instante aqui e agora, evanescente, contingente à percepção em copresenças. Palavras-chave: Performance. Movência. Paul Zumthor. Estética. Forma. Contingência.

Na série de entrevistas e ensaios que formam Escritura e nomadismo (2005), é possível perceber que a movência compõe diversas dimensões do trabalho e da vida do medievalista, romancista e poeta Paul Zumthor. Estudando inicialmente a poesia oral medieval, Zumthor propõe a noção de movência a fim de tratar de um aspecto irrecuperável de seu objeto de pesquisa: a performance da fala dos trovadores e recitantes num aqui e agora do passado. A movência evidenciaria assim que a obra poética se fazia, sobretudo, em performance, em sua fundamental variabilidade e dinamismo, característicos do ato de comunicação numa dada circunstância espaçotemporal. O reconhecimento desse aspecto geraria uma segunda movência: a temporalidade provisória da elaboração de uma síntese para o que se analisa1. 1

“Minha ‘verdade’ me implica tanto quanto meu objeto – sem, por sua vez, e em nenhum momento, nos confundir, porque ela é apenas um lugar de transição: de mim para um outro, que o meu discurso torna

5531



2

Debruçando sobre fragmentos e esquemas escritos do que um dia foi ato de comunicação poética vocal, tratar de movência anuncia não somente o enraizamento no corpo como veículo de sentido das poesias trovadorescas mas também o caráter contingente da forma poética assim como o aspecto temporário da construção de sentido realizada pelo medievalista. Trata-se de um saber em movimento que anuncia o lugar – provisório – de uma fala. O sentido, assim como a voz e a forma, seria uma movência. Variável e de temporalidade efêmera, não estanque, sujeito às atualizações reiteradas. É possível perceber, assim, três aspectos da movência em Zumthor: a existencial, a metodológica e a da forma. Tratarei aqui desses três diferentes aspectos para, em seguida, abordar seu conceito de performance e as inovações que traz para os estudos literários, traçando aproximações entre seu conceito de performance e a ideia de uma estética do performativo, como proposta por Erika Fischer-Lichte. Neste percurso, trata-se de evidenciar que, entendendo a poético e o artístico como performance, a forma (estética ou poética) só pode se dar na temporalidade provisória de um instante aqui e agora, evanescente, contingente à percepção em copresenças em circunstâncias específicas e variáveis da performance poética. Nomadismo existencial O nomadismo existencial2 é um traço característico e bem conhecido da vida de Zumthor. Nascido em Genebra em 1915, aos seis anos muda-se com a família para uma cidade suíça próxima à fronteira com a França. Dois anos depois, mudam-se para Paris. Aos 19 anos, estudante nas faculdades de Direito e Letras, perde o pai e, com a mãe e os irmãos, retornam a Suíça pouco depois, em 1936. Seu primeiro trabalho como professor titular o leva à Universidade de Groninguem, no norte da Holanda, em 1948. Em 1951, recebeu convite para suceder o titular da cátedra de Filologia Românica, na Universidade de Amsterdam, onde viveu por vinte anos e foi fundador e diretor do Instituto de Línguas Românicas e Literatura. De Amsterdam, no início dos anos 1970, lecionou alguns meses na Universidade de Vincennes (Paris VIII), em Paris, lecionou pouco mais de um ano nos Estados Unidos, para, por fim, mudar-se para Quebec, em 1972, cidade em que permaneceu até o fim de sua vida, em 1995. Assim, sem contar as verossímil, mesmo quando ausente; que ele coloca em mim e em você a quem estou falando, mesmo que permaneça definitivamente desvanecido” (ZUMTHOR, 2009, p. 33-4). 2 “O acaso fez de mim um homem de fronteiras. Eu nasci, bem, há não poucos anos, a alguns quilômetros de uma entre algumas. Mas o que conta muito mais foi o número delas que eu secretamente atravessei ao longo desses anos. Fronteira, limite e separação; traço que demarca para cada um de nós o seu lugar e

5532



3

cidades pelas quais passou em suas pesquisas etnográficas e em suas viagens de ensino, temos no tempo de vida de 80 anos, deslocamentos entre cinco principais cidades em quatro países: Genebra, Paris, Groninguem, Amsterdam e Quebec; respectivamente, Suíça, França, Holanda e Canadá. Sua condição de estrangeiro era uma vivência consciente desde a infância, seja por meio das falas e relatos da mãe, seja por meio de sua própria percepção nos anos escolas e, posteriormente, nos bancos universitários (cf. 2005, p. 14-16). “Durante todos os meus anos de escola, e depois durante minha adolescência, eu sentia (ou imaginei sentir) que não estava no meu lugar” (2005, p. 33). Em outro momento, ainda sobre a experiência existencial de deslocamento, diz: “e progressivamente se enraizou na minha psique de criança, de adolescente, depois de jovem, o sentimento de que o lugar em que estou é sempre outra parte” (2005, p. 14). Seus romances e poesias, além da série de entrevistas em Escritura e Nomadismo, também trazem esse traço pessoal de peregrino. Lugar de transição: teorias A movência territorial-existencial de Zumthor reflete em seus trabalhos acadêmicos, a partir da década de 1970, como uma inquietação crítica que o faz ir em busca de novas abordagens para seu objeto de pesquisa. Se o termo movência começa a ser empregado para nomear uma mobilidade de sentido e as nuances de efeitos do texto medieval a partir de Essai de poétique médiévale, de 1972, sua movência metodológica se torna evidente com a publicação de Falando de Idade Média, escrito em 1979. O anúncio dessa abertura começa, contudo, no mesmo Essai de poétique médiévale, portanto escrito já em território canadense. Ali, levantava a pergunta sobre o método dos medievalistas, destacando o caráter pessoal da leitura e da constituição do sentido; uma pergunta que não deixa de salvaguardar o objeto de pesquisa da ilusão de objetividade e de imparcialidade da ciência. “Como perceber e compreender textos medievais sem alterar a sua natureza” (1992; p. xii), escutá-lo em sua própria historicidade, em seu conteúdo e forma, sem deixar de lado a pergunta em torno da particularidade do pesquisador – já que o que nos chega de material dos séculos VI ao XV é fragmentário e opaco, entre cópias, traduções, adaptações, textos anônimos e comentários de copistas? O impulso de repensar os métodos e os resultados da Filologia e da Ciências Humanas, relata o autor em entrevista a André Beaudet (2005, p. 38-40), surge como uma reação ao movimento da reforma universitária e à crescente tecnicização do saber a partir de fins da década de 1960. Ainda assim, admite que Essai

5533



4

foi seu último livro guiado pelo desejo de “fazer teoria” e pela “tendência à pura cientificidade”, embora também reconhecesse ali a presença de uma “forte embriaguez do espírito” ao lado do “abandono do fascínio pela semiótica”. No prefácio à edição inglesa do mesmo livro, escreve que sentia necessidade de ser capaz de se reconhecer no outro – os textos – “sem fazer de mim mesmo um mero catálogo instruído e sem renunciar meu gosto pela literatura ou minha necessidade para desfrutar o texto por ele mesmo” (1992, p. xii). Diante da tecnicização crescente, trata-se para ele de recolocar o corpo do pesquisador em suas próprias abordagens e pesquisa. Sete anos depois, em Falando da Idade Média (2009), a revisão dos métodos de pesquisa da Filologia e da teoria literária é explícita e abrangente. Trata-se de evidenciar preconceitos e pressupostos ingênuos que retiram do texto glosa a voz e o prazer do pesquisador diante de seu objeto, isto é, que retiram a particularidade daquele que enuncia. Não são poucos os momentos em que expõe sua crença de que o sentido – de um texto, não importa se poético ou teórico – é sempre o lugar de um encontro e de transição do pesquisador e seu objeto. O saber produzido deve ser reconhecido como não neutro nem objetivo, isto é, como implicando um sujeito, que se projeta nos textos, que deseja e ama seu objeto de pesquisa3. O lugar de fala do pesquisador é reconhecido, portanto, como inerente à elaboração de um saber. Contudo, tal lugar é também uma movência: lugar de incertezas, “porque a própria incerteza já é um lugar” (2009, p. 33). Se temos diante de nós um autor nômade como Zumthor, não nos surpreenderíamos ao lermos reiteradamente a defesa da instabilidade e da provisoriedade do saber4, assim como defende que “não há verdade que não seja a do particular” (2007, p. 63). Por isso, a interrogação que esteve na moda há pouco (“de que lugar você fala?”) soa falso. Ela supõe uma certeza topográfica que eu ignoro. Ela me eleva, ao mesmo tempo, a parceiro e a juiz de uma situação de estabilidade. A resposta não pode ser declarativa, não falo daqui nem daí, mas da movência deste canteiro (2009, p. 112).

Se nas últimas páginas de Falando da Idade Média (2009), o autor defende a transitoriedade e provisoriedade de todo saber, ao longo dos quatro capítulos anteriores ele desmantela pouco a pouco os ideais herdados e por tanto tempo vigentes nos estudos 3

“(…) só falamos bem daquilo que nos concerne pessoalmente. Daquilo que amamos? Toda relação que mantemos com um texto comporta um erotismo latente” (ZUMTHOR, 2009, p. 33). “No entanto, sabemos hoje que os textos não se deixam apreender e que nenhuma atividade crítica pode nem deve visar de uma vez a esta ‘objetividade’” (ZUMTHOR, 2009, p. 26). 4 “O fato, de saída, serve de índice; e a finalidade do discurso é a organização coerente de um certo número de significantes. Ao mesmo tempo ‘efeito do real’ e não-dito, o objeto de minha palavra crítica mantém-se em posição instável” (ZUMTHOR, 2009, p. 116).

5534



5

medievais: romantismo do século XIX, “historicismo ingênuo”, “preconceito positivista”, “neohumanismo”, “fé inabalável na transparência da linguagem”. Métodos recentes da segunda metade do século XX também são questionados e criticados em seus pressupostos e resultados, como a semiótica e o estruturalismo. A esse respeito, escreveu poucos anos depois, em Introdução à poesia oral, original de 1983: “A linguística e a semiótica contribuem para o próprio retraimento do horizonte especulativo. Talvez aí esteja nossa sorte: substituir as antigas ficções da unidade pela ideia de prováveis concordâncias” (2010, p. 45). Assim, a revisão do que chama de “defunta objetividade positivista” continua ao longo dos anos. Em outro momento, em 1990, escreve: “Racionalidade não significa mais para nós capacidade argumentativa nem lógica analítica, mas derrapagem controlada entre as aparências; e se a teoria não interessa mais a muita gente (e aterroriza alguns), é porque ela tendia a nos fazer andar nos trilhos” (2007, p. 98). Se em Introdução à poesia oral, de 1983, verificamos uma abrangência de métodos que incluem desde a fonologia à etnografia e os estudos de folclore, além de abrir sua análise para manifestações poéticas arcaicas e contemporâneas, em Falando de Idade Média, Zumthor estava, ao rever 35 anos de atividade como medievalista, propondo um pouco de imaginação crítica, uma aproximação do saber analítico a uma escrita poética e criativa, movida pelo prazer do texto, como descrita por seu colega de Sorbonne, Roland Barthes. Deste modo, Zumthor evidenciaria que a mobilidade de sentido de seu objeto só poderia demandar uma mobilidade de métodos, do mesmo modo como, analogamente, a pesquisa de poesia demanda um discurso poético. Nesse sentido, poderíamos também traçar um paralelo entre o objeto e seu pesquisador no que tange à presença. Enquanto, por um lado, ao falar do engajamento corporal inscrito na leitura e na comunicação poética, Zumthor destaca sobretudo a presença de um corpo na emissão e percepção de um texto poético, por outro, sua defesa do lugar transitório da “verdade” (sempre entre aspas) também evidencia a dimensão da presença do pesquisador, ao mesmo tempo que, reconhece em Performance, recepção, leitura (2007), a presença nunca é plena, mas precária, ameaçada5. Podemos entender essa precariedade e instabilidade da presença corporal como a movência específica da voz e a não coincidência do corpo consigo mesmo ao longo do tempo, do mesmo modo 5

“Mas nenhuma presença é plena, não há nunca coincidência entre ela e eu. Toda presença é precária, ameaçada. Minha própria presença para mim é tão ameaçada como a presença do mundo em mim, e minha presença no mundo” (ZUMTHOR, 2007, p. 81).

5535



6

como, para o autor, o sentido não coincide consigo mesmo, nem em performance nem no trabalho crítico. De toda forma, a presença aqui é entendida como corpo; se quiser, que afeta e é afetado. Paralelamente, enquanto a poesia medieval é gesto, voz, presença e o comprometimento de corpos num aqui agora que faz vibrar o texto (cf. 2009, p. 3435), o relato do medievalista é “descontínuo, linhas semânticas quebradas, misto de ciência e ficção; onde apenas a segunda torna comunicável e fecunda a primeira: minha narrativa transforma o ‘fato’, que ela recorta num fazer” (2009, p. 116). A interpretação deveria, assim, evidenciar seu próprio movimento, seu lugar de encontro com o objeto, e não, contudo, “um querer dizer anterior, nem uma referência para além” (2009, p. 51). Não podemos senão tentar reativar o ato poético que animou o ato interpretativo, o sentido do texto performado num corpo em um aqui agora. Somos levados a pensar que, enquanto leitura, o próprio ato interpretativo é uma performance que implica um sujeito e, portanto, tem um sentido movente, com caráter de verdade relativo, devido ao lugar da verdade do pesquisador ser também um deslocamento, isto é, temporário, provisório, nunca coincidente consigo mesmo ao longo de seus processos de reatualização (cf. 2009, p. 75-6). Assim, Zumthor defende que mais do que sustentar um discurso causal, demonstrativo ou dedutivo, trata-se de estabelecer uma “rede movente de analogias” (2009, p. 118), a fim de “tornar sensível a instabilidade, a exigência que elas comportam de um constante colocar em causa, de uma abertura para o inesperado” (2009, p. 79-80). Movência da forma: performance É possível perceber, portanto, que a movência da forma característica à poesia oral convoca em Zumthor uma movência de métodos de abordagens que, antes de buscar a estabilidade, universalidade, causalidade e atemporalidade do saber, evidencia sua provisoriedade, sua instabilidade e sua temporalidade específica, contingente a um encontro circunstancial entre pesquisador e seu objeto. Como vimos, mais do que objetividade e dedução, Zumthor trabalha com uma rede de analogias, capaz de abrigar o prazer e a imaginação crítica. Nesse lugar e momento de transições, de métodos e territórios continentais, ao longo da década de 1970, o medievalista se aproxima do termo performance para descrever a dinamismo inscrito no ato de transmissão e percepção das poesias vocais em suas diversas manifestações. “Um dinamismo formalizado”, uma “forma-força”, a performance, diz Zumthor, coloca tudo em causa (cf. 2007, p. 29). Para o autor, ela é o momento privilegiado em que transmissão e recepção da poesia oral acontece em copresenças: circunstância e instante mesmos em

5536



7

que a oralidade está em cena, tomando lugar. Sua definição para o termo, ao mesmo tempo que basilar e aberta, diz que: “Entre o sufixo designando uma ação em curso, mas que jamais será dada por acabada, e o prefixo globalizante, que remete a uma totalidade inacessível, se não inexistente, performance coloca a ‘forma’, improvável” (2007, p. 33). Performance, diz Zumthor, coloca a forma sempre por se fazer – esta é a sua movência. Sua movência contingente a um encontro específico hic et nunc de comunicação poética. A forma do poético só poderia se dar em performance, enquanto o texto, quando previamente existente à performance, serviria como estrutura-base para sua atualização. O que a adoção do termo revela é que a oposição conteúdo e forma não se aplica na abordagem da poesia oral, ou seja, que a forma poética somente se dá enquanto gesto e dinâmica, enquanto engajamento num aqui e agora. Zumthor evidencia assim que analisar a poesia medieval a partir de o que é transmitido (conteúdo) é perder de vista o mais importante, isto é, o como da transmissão (forma). Evidencia-se, ainda, que a preocupação com a estabilização de um sentido autônomo às circunstância de sua transmissão e percepção, um sentido também apartado do corpo, é algo intrinsecamente relacionado com a literatura, como fenômeno surgido no século XVII, com a desenvolvimento da imprensa. Se a estabilidade do sentido é típico da fixidez da escrita, a movência da forma, sua instabilidade e provisoriedade, é ilustrativa do nomadismo inerente da voz. Como diz reiteradamente, falar em performance é trazer o corpo para os estudos das obras – poéticas ou estéticas. É trazer à centralidade da abordagens teóricas a dimensão corpórea da percepção e do prazer estéticos. “A voz é nômade, enquanto a escrita é fixa” (2005, p. 53), resumiu em Escritura e Nomadismo. Na poesia oral, a voz é emanação que corporifica e que enraíza o acontecimento poético (performance) aqui e agora; ao mesmo tempo, ela é o trânsito da linguagem. A mesmo tempo em que é corpo, é trânsito. Ela não transmite, simboliza ou representa. Antes, ela torna o sentido presente. “A voz é presença. A performance não pode ser outra coisa senão presente” (2005, p. 83), e, em se tratando de presença, “não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance. O corpo, por sua própria materialidade, socializa a performance, de forma fundamental” (2005, p. 84). Assim, enquanto a voz corporifica o tempo e espacializa o corpo, a performance dá a forma do poético em sua transitoriedade, em seu caráter inobjetificável e em seu sentido provisório. Ao enfatizar o empenho do corpo na percepção poética, Zumthor destaca que todo discurso que profiro sobre o mundo é um discurso sobre meu corpo a corpo

5537



8

com ele (2007, p. 77). A performance evidenciaria, assim, o corpo – do performer e do público – como “o lugar em que se articula a poeticidade” (2007, p. 80), sendo, portanto, a dinâmica indissociável entre forma e conteúdo; inseparabilidade entre corporeidade, poeticidade e conhecimento (sentido/afecção). Inseparabilidade ainda, diríamos, entre experiência, forma e sentido. A forma poética se dá em performance, é o que defende Zumthor reiteradamente em suas obras. A performance em Zumthor (2007, 2010) surge, portanto, para nomear a instabilidade e o caráter provisório da forma estética produzida e percebida em copresenças, por meio de um engajamento corporal aqui e agora. Ela constitui a globalidade das experiências sensoriais que faz emergir a forma poética num acontecimento que envolve ação, gestos e simultaneidade de presenças físicas. Cada ato de comunicação poética, isto é, cada performance dá vida à forma estética/poética de uma maneira específica, única, particular. Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dele que, este texto, eu o reconstruo, como o meu lugar de um dia. E se nenhuma percepção me impele, se não se forma em mim o desejo dessa (re)construção, é porque o texto não é poético; há um obstáculo que impede o contato das presenças (2007, p. 54).

A temporalidade provisória Nesse sentido, diante das noções de movência e performance, gostaria de destacar a temporalidade provisória da forma poética. O que estou chamando de temporalidade provisória é a sua brevidade e sua existência evanescente, num instante em que aparece e desaparece, existência como acontecimento que demanda a presença física, o comprometido do corpo, além de estar inscrita num aqui agora específico, nunca completamente reprodutível, da comunicação poética. Em Falando de Idade Média, ao descrever a especificidade da comunicação oral das poesias trovadorescas, Zumthor fala da centralidade do lugar e do corpo, assim como da escuta que, por sua vez, se dá em “uma duração temporal intermitente, de um tempo esburacado, no qual periodicamente se reforma um sentido, jamais idêntico a ele próprio” (2009, p. 35). Quando trata da literatura, como fenômeno típico relacionado ao livro e à leitura individualizada e silenciosa (fenômeno localizado historicamente a partir do século

5538



9

XVII), Zumthor lembra que sua temporalidade é destacada das circunstâncias da emissão e da corporeidade específica da performance, “alguma sobre-temporalidade de um certo tipo de discurso socialmente transcendente, suspenso num espaço vazio” (2009, p. 36). Destacada do corpo e da circunstância de comunicação, a temporalidade da literatura vagaria num “espaço vazio”, uma vez que, mais abstrata, se pretende portadora de sentido universal, estável e reiterável. Enquanto a leitura de um livro pressuporia, na concepção moderna, recapitular o sentido pretendido pelo autor e independente da particularidades e circunstância de sua transmissão e recepção, na performance, o texto é um acontecimento – dependente do corpo, dos afetos e das copresenças, portanto, contingente ao instante de sua transmissão e percepção. Quando disserta sobre a fluidez da forma na emanação da voz, Zumthor diz que a voz se dá mais no espaço do que no tempo. Embora a escuta seja um fenômeno temporal6, ele afirma que a poesia vocal se situa fora do tempo, querendo dizer com isso, sugiro, que ela coloca o tempo histórico/cronológico em suspensão, pois trata-se de um tempo vivido no corpo. Em performance, de acordo com o autor, trata-se de uma temporalidade corporalizada (cf. 2005, p. 89). Em carta à pesquisadora e tradutora Jerusa Pires Ferreira e tratando do corpo e da presença inerentes à poesia oral, Zumthor refere-se à presentificação como ato de comprimir toda a duração do tempo num instante atual7. Presentificação como enraizamento corporal num aqui agora. Nesse sentido, o tempo da forma poética em performance é, em resumo, situacional, é o tempo do instante. Sua temporalidade é, pois, provisória no sentido de ser um acontecimento, para evanescer tão logo o acontecimento chegue a seu fim. Provisória aqui como epifania, como um colocar entre parênteses o fluxo do tempo, ou como um recorte do fluxo da temporalidade, recorte vivido como acontecimento corpóreo, que é também, vale notar, poético. A provisoriedade da temporalidade se daria, conforme proponho pensar, devido ao seu enraizamento em um aqui e agora circunstancial específico e irreprodutível. Como acontecimento, a forma poética existe enquanto se dá, enquanto se prolonga no espaço e enquanto engaja presenças. Sua 6

“Up to the fifteenth century it was heard, and hearing is a purely temporal activity. However, with the exception of 'courtly love lyrics', all the different medieval poetic codes incorporate techniques that allow the generation of sensations equivalent to those of space, which are sometimes linked to the material organization of the work” (ZUMTHOR, 1992, p. 18). 7 “Continuando a perguntar-lhe coisas, nesta ocasião, pedi-lhe que explicasse a realização da poesia oral e medieval, levando sempre em conta a ‘presentidade’ e suas emanações, o corpo em presença. Respondeume por escrito, que se referia a presentificar, no sentido duplo de representar e de tornar presente, vale dizer contratar, contrair, sintetizar, num mesmo instante atual, toda a duração do tempo” (FERREIRA, 1999, p. 191).

5539



10

contingência às circunstâncias específicas da performance destaca sua evanescência e instabilidade – tal como o sentido erigido pelo pesquisador diante de seu objeto de pesquisa, o qual jamais coincide consigo mesmo, como vimos em Falando de Idade Média. Em performance, a forma é também o lugar transitório e provisório de uma percepção poética, envolvida em copresenças. A cada performance, a forma poética se manifesta num novo modo, jamais idêntico, jamais completamente reproduzível. Essa é sua movência: suas nuances, sua variabilidade e multiplicidade. Propus pensar a temporalidade provisória do estético e/ou poético como o momento temporal e espacial específico em que o sentido poético e/ou estético se concretiza para uma percepção e uma experiência. A temporalidade é provisória devido à compressão da duração no instante presente de um aqui agora: o lugar de um encontro, nunca completamente reiterado, em que a forma poética emerge para corpos comprometidos na comunicação e percepção poéticas. O performativo A ideia de uma estética do performativo, como defendida pela pesquisadora Erika Fischer-Lichte, em The Transformative Power of Performance (2008), compreende a arte, ou o artístico, como acontecimento e experiência. Mais do que um objeto estável, fechado em si mesmo, capaz de revelar seu sentido imanente ao seu espectador, sentido universal independente das circunstâncias específicas de cada recepção, o performativo coloca em evidência uma co-fusão (e, por conseguinte, superação) das dicotomias sujeito e objeto, espectador e ator, produção e recepção, atividade e passividade, realidade e ficção. A argumentação de Fischer-Lichte começa por recapitular, dentro dos estudos teatrais, a emergência de abordagens que, nas décadas de 1940 e 1950, nos Estados Unidos e na Alemanha, enfatizavam o aspecto corporal, de ação e acontecimento, em detrimento das abordagens enraizadas na autoridade da narrativa e do texto. Ao longo da segunda metade do século XX, a ênfase na performatividade se aprofunda e desloca a abordagem da arte enquanto obra para a arte enquanto evento e processo, o que Fischer-Lichte chama de “performative turn”. A virada performativa estaria fundamentada em três características da arte atual: a desmaterialização da obra enquanto objeto; a indistinção temporal entre produção e recepção; e o apagamento da noção de ficção em favor da noção de ação. Como vemos já em Zumthor, a contemporaneidade de emissão e recepção fazem da forma poética/estética um acontecimento dependente da copresenças e das

5540



11

circunstâncias situacionais dos agentes envolvidos na performance. Para Fischer-Lichte, a indistinção entre produção e recepção se torna ainda mais evidente devido ao fato de que, em performance arte (performance entendida como linguagem artística), o público é colocado na condição de ator participante e sua presença determina o desdobrar da ação, sua forma e seu resultado8. Quanto ao terceiro aspecto, o privilégio da noção de ação e de acontecimento, contra as de representação e ficção, coloca em primeiro plano a ideia de que, mais do que extrair um sentido compreensível, trata-se de sofrer uma experiência, de se submeter à ação da performance – que entendida no linguajar de Zumthor, evidencia a forma poética apreendida como corporeidade. Assim, descreve Fischer-Lichte, “a questão central da performance não é compreendê-la, mas ter uma experiência e lidar com essa experiência, a qual não poderia ser suplantada, antes ou depois, pela reflexão” (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 16-17). Essa ideia é reforçada pela primeira das características elencadas, o fato de que mais do que produzir um objeto permanente, trata-se de colocar uma ação em curso, que desaparecerá tão logo tenha acontecido. A forma do estético se dá na contemporaneidade dos agentes, na experiência e na copresenças, e, portanto, existente enquanto um acontecimento evanescente, provisório, jamais idêntico a si mesmo, independente das propostas e/ou tentativas de reprodução ou re-presentificação. Enquanto a estética da representação pressupõe a ideia de que aquilo que se apresenta, apesar de parecer realidade, não é a realidade – e isso determina correlativamente a postura distanciada do público de apreensão de um sentido totalizante –, a estética do performativo pressupõe uma ação sendo vivida e compartilhada, tanto pelo artista quanto pelo público, num recorte espaço-temporal específico. Se se verifica ao longo da metade do século XX uma forte transição da noção de obra para a de ação, há paralelamente uma transição na postura do público que, consciente da não ficção e porosidade do que se apresenta, está no centro da ação e, então, nela engaja-se corporalmente. A ação traz, assim, maior foco sobre a noção da experiência como o momento da emergência da forma e do sentido estéticos. A abordagem do estético como um processo dinâmico traz para as pesquisas da Estética o reconhecimento que a obra somente existe enquanto um acontecimento vivo, intermitente, “de um tempo esburacado, no qual periodicamente se reforma um sentido, 8

Nesse sentido, é exemplar sua análise da performance Lip of Thomas, de Marina Abramovic, em que a performance é interrompida pelos participantes depois que Marina coloca seu corpo a uma série de ações de flagelo e limites quase fatais (cf. FISCHER-LICHTE, 2008, pp. 11-19).

5541

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.