A TENSÃO APARENTE: MERLEAU-PONTY, PSICOLOGIA COGNITIVA CONTEMPORÂNEA E REPRESENTAÇÕES MENTAIS

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A TENSÃO APARENTE: MERLEAU-PONTY, PSICOLOGIA COGNITIVA CONTEMPORÂNEA E REPRESENTAÇÕES MENTAIS ANDRÉ JOFFILY ABATH (CAMINHA, I. & ABATH, A.J. MERLEAU-PONTY E A PSICOLOGIA. SÃO PAULO: LIBERARS)

I É certamente um sintoma da grandeza de Merleau-Ponty que, mais de meio século após a sua morte, elementos diversos de sua obra estão em plena concordância com correntes da psicologia feita no século XXI. Hoje são comuns, por exemplo, abordagens que tomam a cognição humana como tendo um caráter fundamentalmente incorporado e situado, assim como são comuns abordagens incorporadas da percepção, tal como defendido por Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepção (1994).1 Porém, há uma aparente tensão entre uma das correntes dominantes da psicologia feita desde a parte final do último século - nomeadamente, a psicologia cognitiva - e o trabalho de Merleau-Ponty, que é o uso frequente de um apelo a representações mentais. Neste artigo, terei como foco algumas das pesquisas psicológicas que, à primeira vista, mais se aproximam do trabalho de Merleau-Ponty. Trata-se de pesquisas acerca do modo como a percepção de objetos pode imediatamente solicitar-nos a manipulá-los. Na FP, Merleau-Ponty salienta esse ponto acerca da percepção dizendo que os objetos "apresentam-se ao sujeito como pólos de ação" (1994, p.154)2. Embora os psicólogos contemporâneos concordem com Merleau-Ponty quando defendem que os objetos podem assim apresentar-se, e que o sujeito pode agir em relação a tais objetos sem qualquer reflexão envolvida, há uma discordância aparente quando os primeiros defendem posições tais como a de que a percepção de objetos "envolve a ativação de fato de representações motoras para tais ações" (Tucker & Ellis, 1998, p.830). Se comentadores de Merleau-Ponty tais como Dreyfus (2002) estiverem certos, sua posição seria claramente anti-representacionalista acerca da relação entre percepção e ação ao menos nos casos que estão em jogo aqui, de objetos imediatamente percebidos como pólos de ação -, de forma que estaria em desacordo com tais abordagens contemporâneas, ao menos nesse aspecto. Neste artigo, defenderei que tal tensão pode ser desfeita. Discutirei a forma de antirepresentacionalismo defendida por Merleau-Ponty na FP, e buscarei mostrar que tal posição é compatível com o representacionalismo das teorias psicológicas contemporâneas. Se o que tiver a dizer estiver correto, o anti-representacionalismo de Merleau-Ponty e o representacionalismo de tais teorias não são posições antagônicas, mas sim complementares. II Antes de considerarmos as pesquisas psicológicas contemporâneas mencionadas acima, é importante que rapidamente consideremos o seu histórico. As pesquisas anunciam-se como sendo acerca de affordances.3 O termo foi cunhado pelo psicólogo J.J. Gibson para expressar uma ideia que tem inegáveis semelhanças com a observação de Merleau-Ponty de que os objetos nos são apresentados como pólos de ação. Nas palavras de Gibson, "affordances do ambiente são aquilo que o ambiente oferece ao animal, o que provê ou fornece, para o bem ou para o mal" (1979, p.119/grifos do autor). O ponto aqui é que o ambiente, ou melhor dito, seus componentes, oferece certas oportunidades de ação para os 1

De agora em diante, FP. Tal passagem surge em meio à discussão de Merleau-Ponty do célebre "caso Schneider”, vítima de danos cerebrais quando servindo pelo exército alemão na primeira guerra mundial. Apesar das diversas consequências de tais danos (ver adiante), Schneider permaneceu capaz de realizar atividades que lhe eram habituais, tais como fabricar carteiras ou tirar um lenço do bolso. No contexto de tais atividades, os objetos lhe apareciam como "pólos de ação", assim como ocorre em nosso caso. 3 "To afford" é traduzido em português como "proporcionar", ou "ofertar", mas manterei o termo "affordance" no inglês, tal como é de praxe na literatura, uma vez que foi cunhado pelo próprio Gibson. 2

animais - incluindo aqui animais humanos. Usando um exemplo do próprio Gibson, uma cadeira se oferece para o sentar, ao menos para seres como nós. Para um gato, porém, uma cadeira se oferece para uma ação distinta: para o deitar, ou como superfície para o pulo. Isso significa que as affordances possuem um aspecto relativo: o que um objeto, como uma cadeira, oferece a uma espécie animal, pode não oferecer a outra.4 Por outro lado, para Gibson, affordances possuem também um aspecto objetivo: para seres humanos, em muitas culturas, cadeiras de fato oferecem-se ao sentar, ainda que um determinado indivíduo não sinta-se tentado a fazê-lo (por ter passado o dia já sentado, por exemplo), ou não note a cadeira que lhe está próxima. Ou seja, embora affordances sejam relativizadas a espécies, e a culturas, elas não são subjetivas, ou arbitrárias, como bem observado por Sanders (1993, p.289). Para uma certa espécie, um elemento do ambiente de fato oferece-se para o pulo, ou como proteção contra o frio, ainda que o animal não sinta-se tentado a perseguir um desses cursos de ação, ou não note o objeto ao seu redor. Por exemplo, para um leão, um cordeiro ao seu redor de fato oferece uma oportunidade de caça e alimento, ainda que o leão não se sinta tentado a fazê-lo (por estar estar saciado, por exemplo).5 É comum supor-se que, nesse ponto, há uma distinção importante entra a ideia gibsoniana de affordance e a ideia merleau-pontyana de que objetos se nos apresentam como pólos de ação. Na passagem em que introduz a ideia, Merleau-Ponty diz: "A bancada, a tesoura, os pedaços de couro apresentam-se ao sujeito como pólos de ação, eles definem por seus valores combinados uma certa situação, e uma situação aberta, que exige um certo modo de resolução, um certo trabalho" (1994, p. 154/itálicos meus). O modo como Merleau-Ponty aqui se expressa é sugestivo. Parece sugerir não apenas que os objetos - ou as situações - oferecem ao sujeito certas oportunidades de ação, mas que se apresentam ao sujeito como oferecendo tais oportunidades, o que, por sua vez, pode ser lido em termos de o sujeito ser atraído, solicitado, a agir de certa forma diante do mundo. Daí Merleau-Ponty falar aqui em exigência. É como se a situação exigisse do sujeito uma certa resposta, uma certa ação. Posto de outra forma, é como se, imersos em certa situação, tivéssemos a experiência corpórea de uma tensão que será aliviada pela realização de certa ação. É certo que, para Merleau-Ponty, uma ação realizada diante de tais solicitações do mundo não requer qualquer processo reflexivo. Em seus termos, atendemos às solicitações do mundo "sem cálculo" (1994, p.154). Dreyfus & Kelly comentam essa ideia da seguinte forma: Dizer que o mundo solicita uma certa atividade é dizer que o agente sente-se imediatamente atraído a agir de certa forma. Isso é diferente de decidir realizar certa atividade, já que em sentir-se imediatamente atraído a realizar algo o sujeito não experiencia qualquer ato da vontade. Ao invés, ele experiencia o ambiente chamando-o para um certo modo de agir, e encontra-se respondendo à solicitação (2007, p.52).

Considere o exemplo de um nadador profissional. Diante da piscina olímpica, seu corpo encontra-se em tensão para lançar-se - o que é dizer que a piscina o solicita. E o lançar-se não requer qualquer decisão, qualquer processo reflexivo ou cálculo. Requer apenas que o nadador atenda o chamado do mundo.6 O mesmo vale para um escalador que, mirando um ponto mais alto da rocha, sente-se como que puxado para alcançá-la, e, ao fazê-lo, alivia uma tensão corpórea sem que precise engajar-se em qualquer processo reflexivo.7 De agora em diante, ao falar em solicitações terei em mente a ideia merleau-pontyana de que podemos ser chamados pelo mundo, e frequentemente o somos, para a realização de certas ações. Embora semelhante, tal ideia é distinta da noção gibsoniana de affordance, que se refere ao fato de que certos elementos do ambiente oferecem certas oportunidades de ação para os animais, incluindo 4 Note que affordances podem também ser relativas a culturas, no caso humano. Cadeiras não se ofereçam para o sentar para todos os humanos, sem exceção. Não é assim para recém-nascidos, por exemplo. Crianças precisam passar por um processo de imersão cultural para que cadeiras lhes ofereçam tal oportunidade de ação. 5 Pode parecer haver uma tensão entra a ideia de que as affordances possuem um aspecto objetivo embora sejam relativas a espécies (e culturas). Contudo, tal tensão pode ser aliviada se considerarmos que frases como "Pequenos e escuros espaços servem como proteção para os gatos" podem ser consideradas verdadeiras independentemente de nossas crenças acerca dos gatos e dos estados internos dos próprios gatos. 6 O nadador pode, claro, refletir e decidir não lançar-se na piscina. Mas o ponto é que atender o chamado do mundo e lançar-se não requer um processo reflexivo. O caso seria melhor descrito como um simples atender o chamado e não como decidir atendê-lo. 7 É certo que há complicações aqui. A descrição acima pode ser correta para atletas proficientes, mas não o parece ser para iniciantes ou minimamente experientes, que precisam considerar regras reflexivamente antes de agir, sob a pena de fracassar em suas ações. Não é à toa que as discussões de Merleau-Ponty sobre solicitações focam-se em atividades que são habituais para o indivíduo. Para discussão acerca de tais distinções, ver Dreyfus (2002).

humanos, independentemente desses serem ou não atraídos para a realização de tais ações. Mais à frente, nos voltaremos para as pesquisas psicológicas mencionadas acima. Tais pesquisas valem-se do termo "affordance", que são seu objeto de estudo, porém em um sentido explicitamente não-gibsoniano. Dado o vocabulário que estamos adotando nesse artigo, tais pesquisas dizem respeito a solicitações. Antes de adentrarmos na psicologia, porém, é necessário discutirmos a fenomenologia das solicitações em um pouco mais de detalhe. III Os casos apresentados acima para ilustrar solicitações são de indivíduos que atendem os chamados do mundo. Como dito, podemos compreendê-los - ao menos em se tratando de indivíduos proficientes em suas áreas - sem tomá-los como envolvendo reflexão ou decisão explícita para agir. Isso não significa que não haja aqui intenções, projetos de fundo, que tornam os objetos em questão relevantes, de forma tal que as solicitações poderiam ser explicadas nesses termos. Schneider possui a intenção de levar a cabo sua tarefa profissional habitual. O nadador possui o projeto de vencer a prova, assim como o escalador de chegar ao topo da rocha. Diante de tais projetos ou intenções de fundo, certos elementos do mundo tornam-se relevantes para a efetivação, sucesso, do projeto. Esse é um ponto em comum entre a bancada, tesoura e pedaços de couro para Schneider, a piscina para o nadador e partes da rocha para o escalador: são todos elementos no mundo relevantes para a realização de projetos. Poder-se-ia dizer, sem surpresa, que é apenas por tais elementos serem relevantes de tal forma que os indivíduos são por ele solicitados ou atraídos. É curioso notar, contudo, que em suas discussões acerca de solicitações, Merleau-Ponty em nenhum momento discorre acerca de tais estados de fundo8. Verdade que, como salientado acima, suas discussões centram-se em atividades habituais, e essas costumam envolver projetos de fundo, ainda que sejam projetos que não precisam figurar como objeto de reflexão para o indivíduo. Pela manhã, pego o carro e vou ao trabalho. O carro solicita-me ao vê-lo. Não preciso engajar-me em qualquer reflexão para dirigi-lo da mesma forma que faço diariamente, para o mesmo ponto da cidade. Embora essa seja uma atividade habitual, não significa, porém, que não possua um projeto de fundo: nomeadamente, o de chegar ao trabalho pontualmente. Mas embora tais exemplos envolvam projetos de fundo, parece razoável supor que há casos de solicitações que não precisam envolvê-los. Por exemplo, uma vez que me é habitual pegar os óculos todas as manhãs ao acordar, em meu criado-mudo, posso sentir-me solicitado a pegá-los durante a tarde, ainda que, nesse momento, esteja com lentes de contato. Similarmente, posso ser solicitado a dirigir meu carro ainda que, naquele momento, não tenha qualquer projeto que envolva utilizá-lo. Em tais casos, teríamos uma adequação de nosso corpo a certos objetos - um esquema corporal configurado para seu uso -, dado um uso habitual, tal que poderíamos ser solicitados a manipulá-los ainda que não sejam relevantes para nossos projetos imediatos ou para a satisfação de nossos desejos. Quando Merleau-Ponty lida com casos de objetos que se tornam habituais em seu uso, ele o faz em termos semelhantes a esse, mas com um adendo, que é a ideia de que tais objetos tornam-se como que extensões de nosso corpo (ou, posto de outra forma, parte de nosso corpo próprio, o corpo com o qual estamos dispostos, sob nossa própria perspectiva, a lidar com o mundo). Diz ele: Habituar-se a um chapéu, a um automóvel ou a uma bengala é instalar-se neles ou, inversamente, fazê-los participar do caráter volumoso de nosso corpo próprio. O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando a nós novos instrumentos (1994, p.199).

O melhor exemplo aqui é o de um cego em seu uso de uma bengala. Não se trata de um mero instrumento anexado a seu corpo, já que ela "aumenta a amplitude e o raio de ação do tocar" (1994, p. 198). Ou seja, o cego não simplesmente toca o mundo através da bengala, mas toca o mundo com a bengala, assim como toca o mundo com as mãos. A bengala torna-se assim como que uma extensão de seu corpo. Analogamente, um indivíduo habituado a dirigir instala-se em seu carro e com ele move-se no espaço como quem move seu corpo próprio no espaço, colocando-se entre outros objetos - outros carros, por exemplo - de maneira imediata, sem qualquer necessidade de reflexão. Em ambos os casos, uma vez 8 Embora isso seja feito em comentários acerca da abordagem merleau-pontyana das ações humanas. Ver, por exemplo, RomdehnRomluc (2012).

instalados nos instrumentos, os indivíduos são solicitados pelo mundo para com eles agir: objetos solicitam o cego para tocá-los com sua bengala; obstáculos na pista solicitam-me para que deles desvie com meu carro. O fato de objetos nos solicitarem para em relação a eles agir com certos objetos é um dos fortes indícios de que tais objetos funcionam, no momento de tais solicitações, como que extensões de nosso corpo. Na medida em que nos habituamos a certos objetos, e configuramos nosso esquema corporal a seu uso, tais objetos tornam-se como que extensões de nosso corpo, e, em tais casos, é razoável pensar que possamos ser solicitados para sua manipulação ainda que não sejam relevantes para nossos projetos de momento ou para a satisfação de desejos. Um músico que foca a sua atenção em seu instrumento, por exemplo, pode ser solicitado a tocá-lo ainda que essa não seja sua intenção no momento, ou que não possua qualquer desejo nesse sentido. Trata-se, aqui, do corpo, já adequado para o uso de tais objetos, em seu esquema já configurado na relação com eles, buscando, de maneira imediata, neles estender-se. O caso de um instrumento musical é interessante, para Merleau-Ponty, por sermos capazes de nos exprimir com seu uso, assim como somos capazes de nos exprimir com nosso corpo. Afinal, "o corpo é eminentemente um espaço expressivo" (1994, p.202), e o fato de nos exprimirmos com um instrumento é uma razão a mais para supormos que figura como sua extensão. Mesmo em casos mais banais, porém, em que talvez fosse exagerado falar em expressão de nós mesmos no uso do objeto, como o nosso lidar com panelas, escovas de dente, garfos, chaves, podemos certamente supor que tais objetos podem tornar-se habituais em seu uso, que nosso corpo pode ser a eles adequado, ou que possuímos um esquema corporal configurado para sua manipulação; e mesmo que, assim sendo, tais objetos podem, quando usados, tornar-se como que uma extensão de nossos corpos. Essa seria a razão pela qual tais objetos podem solicitar-nos ainda que não sejam relevantes dados os nossos projetos, intenções ou desejos em um dado momento. Tais reflexões, feitas a partir do pensamento de Merleau-Ponty, estão, como veremos a seguir, em consonância, ao menos em grande parte, com resultados empíricos recentes. IV As pesquisas psicológicas que descreverei nesta seção buscam justamente dar suporte à ideia de que podemos ser solicitados pelo mundo de maneira imediata, sem reflexão, e mesmo sem que os objetos em causa sejam relevantes para nossos projetos, intenções ou desejos do momento. O trabalho seminal em tal literatura foi publicado em 1998, pelos psicólogos Mike Tucker e Rob Ellis. Neste artigo, eles apresentam um intrigante experimento, que se tornou referência obrigatória para discussões subsequentes no tema. A ideia central do experimento é simples. Tínhamos 30 estudantes como sujeitos, a quem foram apresentadas diversas transparências em preto de branco de objetos caseiros, tais como frigideiras, facas e chaleiras (todos objetos manipuláveis com uma só mão). Alguns desses objetos apareciam de pontacabeça, enquanto outros estavam posição regular. A tarefa indicada aos sujeitos era precisamente identificar que objetos estavam de ponta-cabeça e que objetos não estavam: caso estivessem em pontacabeça, eles deveriam apertar um botão com a mão direita ou esquerda; caso não estivessem, deveriam aperto um outro botão. Em alguns casos, os objetos estavam direcionados à mão que daria a resposta adequada (por exemplo, uma frigideira estaria com seu cabo direcionado à mão direita, a que daria a resposta adequada); em outros casos, os objetos estavam direcionados à uma mão, quando seria a outra a dar a resposta adequada (por exemplo, uma frigideira estaria com seu cabo direcionado à mão direita, quando seria a mão esquerda que daria a resposta adequada). Note-se que tal direcionamento dos objetos era irrelevante para a tarefa em questão. Ainda assim, foi curiosamente descoberto que os sujeitos respondiam mais rapidamente à pergunta de se o objeto estava ou não em ponta-cabeça quando sua parte habitualmente manipulável estava direcionada à mão que daria a resposta adequada, e mais lentamente quando estava direcionada à mão contrária. Ou seja, a orientação dos objetos em relação ao sujeitos produziu um efeito na resposta dada, ainda que fosse irrelevante para a realização da tarefa. Uma clara explicação para tal resultado parece ser precisamente que, ao terem a parte mais habitualmente manipulável do objeto para eles direcionada (como o cabo de uma frigideira), os sujeitos são solicitados a agir em relação ao objeto, ainda que fazê-lo não seja relevante para seus projetos ou para a satisfação de seus desejos, no momento. Assim, caso o cabo da frigideira esteja voltado para a mão esquerda, um movimento com tal mão será solicitado, o que pode criar um efeito retardado de ação caso seja a mão direita a adequada para responder se o objeto está ou não em ponta-cabeça (em contraste à

resposta mais rápida dada na situação em que a mão direita é solicitada para agir e ela própria é adequada para a resposta em causa). Diversos outros experimentos, segundo as mesmas linhas metodológicas, sugerem explicações semelhantes.9 Ademais, o que tais experimentos sugerem também está em consonância com recentes descobertas da neurociência. Nos anos 90 do último século, ficou famosa a descoberta - primeiro em macacos Rhesus, e depois em humanos - dos chamados "neurônios-espelho" 10. O termo refere-se a um grupo de neurônios no córtex pré-motor que é ativado tanto quanto uma ação é realizada quanto quando uma ação do mesmo tipo é observada. Mais recentemente, foi descoberto um grupo de neurônios, na mesma região, que são ativados tanto quando objetos são manipulados quanto quando tais objetos são vistos. Por exemplo, são ativados tanto quando um martelo é manipulado quanto quando um martelo é visto. São os chamados "neurônios canônicos"11. Uma vez que estamos falando de áreas cérebro vinculadas a funções motoras, o fato de tais áreas serem ativadas quando de uma percepção visual de um objeto é perfeitamente compatível com a ideia de que, ao vermos um objeto manipulável, somos frequentemente solicitados a agir. Em parte, isso significa que há evidência empírica em favor das reflexões que apresentamos, a partir do pensamento de Merleau-Ponty, na seção passada. Por outro lado, porém, os psicólogos, em suas próprias explicações para a evidência apresentada, falam não apenas em termos semelhantes a solicitações - Tucker & Ellis dizem que a percepção de objetos pode resultar na "potencialização de ações" (1998, p.830) -, mas frequentemente dizem que tais solicitações, ou potencializações, envolvem "representações motoras desses atos [a serem realizados em relação a um objeto]" (Tucker & Ellis, p. 830). Na verdade, é comum, em tal literatura, que affordances sejam tomadas não nos termos gibsonianos descritos acima, ou em termos de solicitações, mas em termos de representações mentais. Philips & Ward, por exemplo, escrevem: "Para nossos propósitos, uma affordance pode ser melhor descrita como uma característica de um objeto que possui o poder de gerar alguma forma de representação mental para a ação naquele que percebe" (2002, p.541). A ideia, portanto, é que, ao vermos um objeto manipulável, nós instanciaríamos representações mentais da ação a ser realizada em relação a tal objeto. Caso haja solicitações envolvidas aqui, em sentido merleau-pontyano, elas seriam subsumidas por tais representações. Saliente-se, além do mais, que o modo como o debate desenvolveuse na literatura psicológica diz respeito, principalmente, a quão específicas são tais representações mentais para ação. De um lado, autores como Tucker & Ellis defendem que são bastante específicas: ao observar uma frigideira, por exemplo, instanciaríamos representações mentais da mão a ser utilizada para manipulá-la (a mais adequada dado o posicionamento do objeto em relação a nós) e o movimento a ser realizado com essa mão. Do outro lado, autores como Philips & Ward defendem que as representações não precisam ser específicas a esse ponto. Instanciaríamos representações mais gerais, o que eles chamam de um "código especial abstrato" (2002, p.542). A ideia é de que, diante de um objeto manipulável, instanciaríamos representações compatíveis com um variado conjunto de ações em relação ao objeto: manipulá-lo com a mão esquerda, ou com a direita, ou com os pés etc. Com que parte do corpo viríamos a interagir com o objeto, e com que movimentos, dependeria de fatores relativos aos nossos corpos que não seriam contemplados nas próprias representações mentais, como estarmos de pé ou deitados, com as mãos cruzadas ou não etc. Seja como for, ambos os lados no debate concordam que a evidência empírica apresentada deve ser tomada como favorecendo a posição segundo a qual a percepção de objetos manipuláveis pode levar à imediata12 instanciação de representações mentais para ação em relação ao objeto. Embora a evidência abra espaço para uma explicação em termos de solicitações, ou tal explicação não é apresentada ou não é centro das atenções. Diante disso, surge a pergunta: até que ponto a psicologia contemporânea, em suas discussões acerca das relações entre percepção e ação, está em consonância com o pensamento de Merleau-Ponty? Tal pergunta faz-se relevante porque Merleau-Ponty é frequentemente apresentado como sendo um filósofo radicalmente anti-representacionalista, como veremos a seguir. Nesse caso, haveria uma tensão aparente entre os seus escritos e as posições defendidas por psicólogos contemporâneos. V 9

Ver, por exemplo, Ellis & Tucker (2000), Phillips & Ward (2002), Makris & Yarrow (2013). A descoberta dos neurônios-espelho deve-se a Giacomo Rizzolatti e seus colegas de laboratório na Universidade de Parma. Ver Rizzolatti & Luppino (2001). 12 Tal instanciação ser imediata significa que não é mediada por qualquer processo reflexivo, tal como um raciocínio inferencial realizado por parte do sujeito. 10 11

Dentre os comentadores de Merleau-Ponty, provavelmente Hubert Dreyfus13 é que mais buscou salientar o aspecto anti-representacionalista de sua filosofia. Uma de suas passagens preferidas para sustentar tal leitura surge no capítulo "A Coisa e o Mundo Natural", da FP: Para cada sujeito, assim como para quadro em uma galeria de pintura, existe uma distância ótima de onde ele pede para ser visto, uma orientação sob a qual ele dá mais de si mesmo: aquém ou além, só temos uma percepção confusa por excesso ou por falta, tendemos agora para o máximo de visibilidade e procuramos, como ao microscópio, uma melhor focalização. A distância de mim ao objeto não é uma grandeza que cresce e decresce, mas uma tensão que oscila em torno de uma norma; a orientação oblíqua do objeto em relação a mim não é medida pelo ângulo que ele forma com o plano de meu rosto, mas sentida como um desequilíbrio, como uma repartição desigual de suas influências sobre mim (1994, p.406).

O ponto aqui desenvolvido é certamente central na FP: tal como ser solicitado para agir em relação a um objeto pode ser descrito em termos de uma tensão corpórea, também assim pode ser descrito o nosso posicionamento em relação aos objetos. Os objetos possuem posicionamentos ótimos para sua percepção. Tais posicionamentos podem, naturalmente, variar de acordo com o objeto, aquele que o percebe ou a situação. O posicionamento ótimo para a percepção visual de um quadro impressionista é distinto do posicionamento ótimo para a percepção visual de um quadro expressionista. O posicionamento ótimo para a percepção visual de um grão de areia é distinto do posicionamento ótimo para a percepção visual de um elefante. Mas também o posicionamento ótimo para a percepção visual de um elefante pode variar se aquele que o percebe é um especialista ou um leigo, assim como pode variar se a situação é de um passeio em um safári ou caminhada solitária pela floresta. Seja como for, dados certos objetos, em certas situações, experienciamos o desvio do posicionamento ótimo para percebê-lo como uma tensão corpórea, como um desvio de um certo equilíbrio. Diante de tal tensão, buscamos desfazê-la, o que é buscar o posicionamento ótimo para a percepção do objeto em causa, em uma dada situação. Certo é que, para Merleau-Ponty, essa busca não precisa ser medida por um processo reflexivo ou por representações, em certo sentido (voltarei a esse ponto). Como diz Dreyfus, "Não é preciso saber, e normalmente não conseguimos expressar, que [posicionamento] ótimo é esse. O corpo de um sujeito é simplesmente solicitado pela situação a com ela entrar em equilíbrio" (2002, p.378). Por exemplo, não é preciso um processo reflexivo, ou, em certo sentido, valer-se de representações, para encontrar o ponto ótimo para a percepção visual de um quadro impressionista. Basta que sejamos guiados pela tensão corpórea ela mesma. O ponto ótimo é aquele em que a tensão é desfeita. Não é esse o único momento em que Merleau-Ponty salienta, na FP, o caráter não-reflexivo e nãorepresentacional de nossa imersão no mundo. Durante sua discussão do caso Schneider, Merleau-Ponty diz: No gesto da mão que se direciona a um objeto está incluída uma referência ao objeto não enquanto objeto representado, mas enquanto esta coisa bem determinada em direção à qual nos projetamos, perto da qual estamos por antecipação, que nós frequentamos...Um movimento é aprendido quando seu corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou a seu 'mundo', e mover seu corpo é visar as coisas através dele, é deixá-lo corresponder à sua solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação. Portanto, a motricidade não é como uma serva da consciência, que transporta o corpo ao ponto do espaço que nós previamente nos representamos (1994, p.193).

Aqui, dado o que dissemos acima, não há surpresa: uma vez que ser solicitado pelo mundo para ação pode ser pensado em termos de uma tensão corpórea, temos mais uma vez que atender a tais solicitações é o alívio de tal tensão, e não um processo reflexivo ou representacional. Assim como não precisa ser pensada em termos de representação à referência que faço ao objeto ao mover-me em sua direção. Dada uma configuração prévia de meu esquema corporal em relação aos objetos, o movimento que realizo já o antecipa, mas o antecipa de maneira corpórea - por exemplo, ao mover-me em direção à maçaneta, já realizo com minha mão movimentos preparatórios para agarrá-la. Tal antecipação pode, então, ser pensada como já incluindo uma referência aos objetos, mas não em termos de uma 13

Ver, por exemplo, Dreyfus (2002, 2004).

representação que dele formamos. Para além disso, porém, Merleau-Ponty deseja salientar que, primeiramente, habitamos, ou estamos imersos, no mundo em termos de nossa capacidade de atender de maneira pré-reflexiva e não-representacional - às suas solicitações. Tal capacidade passa por um processo de habituação em nossa relação com os objetos; como vimos acima, esse processo será pensado em termos da constituição de um esquema corporal para lidar com o mundo. Só em segundo momento tornamo-nos seres que representam o espaço a seu redor: "Mesmo se, a seguir, o pensamento e a percepção do espaço se liberam da motricidade e do ser no espaço, para que possamos representar-nos o espaço é preciso primeiramente que tenhamos sido introduzidos nele por nosso corpo..." (1994, p.197). Portanto, em certo sentido, Dreyfus está claramente certo quando diz que Merleau-Ponty tem uma posição segundo a qual uma "filosofia da mente representacionalista é equivocada" (2002, p. 383). É, afinal, transparente nos textos, em especial na FP, que Merleau-Ponty é contrário à ideia de que o nosso habitar o mundo seja mediado por representações. Porém, precisamos ser cuidadosos nesse ponto, e entender o que Merleau-Ponty, em sua discussão, entende por "representação". Primeiramente, devemos salientar que Merleau-Ponty discute a questão das representações no contexto de seu exame do caso Schneider. Como vimos acima, Schneider é capaz de realizar com eficiência tarefas habituais, do dia a dia, tais como fabricar carteiras ou tirar um lenço do bolso. Porém, ele é incapaz de realizar, ao menos imediatamente, o que Goldstein e Gelb chamam de "movimentos abstratos". Segundo Merleau-Ponty, tais movimentos são aqueles que "não estão orientados para uma situação efetiva, tais como mover os olhos ou as pernas sob comando, esticar ou flexionar um dedo" (1994, p.149). Mais precisamente, Schneider não consegue realizar tais movimentos a não ser que lhe permitam "olhar o membro encarregado do movimento, ou executar movimentos preparatórios com todo o seu corpo" (1994, p.150). Ou seja, embora Schneider consiga atender naturalmente às solicitações inseridas em atividades habituais, ele não consegue atender solicitações que não lhe são habituais, tais como solicitações verbais, sem um lento e meticuloso processo e observação de seu próprio corpo e reflexão acerca dos movimentos a serem realizados. Para além disso, Schneider revelava certa agnosia visual, tendo dificuldade em identificar verbalmente e imediatamente objetos que lhe eram apresentados, tais como uma caneta-tinteira. Também aqui ele engajava-se em um processo reflexivo e inferencial: primeiro, tomava o objeto como algo alongado, em forma de bastão, para então concluir que se tratava de algo para escrever, e só em seguida produzir uma inferência para a conclusão de que se tratava de uma caneta-tinteiro (Merleau-Ponty, 1994: 184). Essas são apenas algumas das deficiências de Schneider relatadas por Merleau-Ponty em sua discussão. Como faz frequentemente na FP, o que ele busca é compreender o caso de uma forma que seja alternativa ao empirismo e intelectualismo, correntes ao mesmo tempo opostas e dominantes do cenário da psicologia na primeira metade do século XX. Relevante para os nossos propósitos é a explicação intelectualista para o caso Schneider. Aqui, a ideia é que o paciente de Goldstein e Gelb seria vítima de uma deficiência cognitiva. Mais precisamente, ele seria vítima do que Merleau-Ponty chama - valendo-se aqui do vocabulário intelectualista para em seguida criticar a posição em que está envolvido - de "função simbólica" ou "função de representação".14 Em termos contemporâneos, diríamos que, para o intelectualista, a deficiência de Schneider está fundamentalmente no âmbito das representações conceituais. Ou seja, Schneider teria sua capacidade de subsumir entidades - e entidades diversas do mesmo tipo - sob representações conceituais afetada. Assim, por um lado, ele teria problemas em subsumir um objeto, como uma caneta-tinteiro, sob uma representação conceitual adequada (o conceito CANETA-TINTEIRO15). Por outro, ele teria dificuldades em tomar solicitações concretas do mundo vinculadas a atividades habituais - e solicitações ditas abstratas - como ordens linguísticas, não vinculadas a atividades habituais - como sendo instâncias do mesmo tipo, ou seja, como sendo solicitações, que pedem dele uma resposta comportamental - nos casos em questão, um movimento. Como representações conceituais estão no âmbito do pensamento - representações conceituais, afinal, são tipicamente tomadas como sendo os constituintes do pensamento, de forma que instanciar

14 Para uma excelente discussão sobre as críticas feitas por Merleau-Ponty a uma compreensão de certos casos patológicos em termos de funções simbólicas, na FP, ver Veríssimo (2012). Nessa obra, também é cuidadosamente percorrido o diferente tratamento que tais funções recebem por parte de Merleau-Ponty em A Estrutura do Comportamento (2006). 15 Seguindo um padrão da literatura contemporânea, uso fonte em caixa-alta quando fizer menção a conceitos. Também deve ser salientado que, embora aqui as representações conceituais sejam mencionadas em linguagem natural (aqui, em português) é comum ser defendido que tais representações podem ser independentes de tais linguagens. Para uma discussão contemporânea, ver Fodor (1998).

uma representação conceitual de uma caneta-tinteiro é instanciar a representação CANETA-TINTEIRO no âmbito do pensamento16 , seria precisamente nesse âmbito que estaria a deficiência de Schneider. Poderíamos, então, falar em uma deficiência cognitiva, ou intelectual. Para os nossos propósitos, não é importante percorrer o longo caminho trilhado por Merleau-Ponty em sua crítica a tal leitura intelectualista do caso Schneider. É suficiente entendermos que, no contexto de tal discussão, por "representações" Merleau-Ponty entende representações conceituais. Assim, quando ele nega que a nossa busca por um posicionamento ótimo em relação aos objetos, ou nosso atender às solicitações do mundo, sejam atividades mediadas por representações, ele deseja salientar que tais atividades independem da instanciação de representações-conceituais no pensamento. Não preciso instanciar no pensamento a representação CANETA-TINTEIRO de forma a atender uma solicitação para manipular tal objeto, assim como não preciso instanciar a representação SOLICITAÇÃO. Assim como não preciso instanciar representações conceituais no pensamento da mão mais adequada para manipular o objeto, ou dos que movimentos realizarei. Posto de outra forma, não preciso pensar sobre tais questões para ser solicitado por um objeto e agir adequadamente. Em termos mais gerais, podemos tomar Merleau-Ponty como concluindo, a partir de sua discussão do caso Schneider, que nossa imersão no mundo não requer a mediação de conceitos, do pensamento ou intelecto - o que não é dizer, claro, que o pensamento jamais esteja envolvido em tal imersão. Tomá-la como sendo independente de representações seria uma outra forma de expor a mesma ideia, uma vez que representações, entendidas como representações conceituais, seriam precisamente os constituintes do pensamento. VI Não deve haver estranhamento caso a discussão de Merleau-Ponty com a psicologia intelectualista da primeira metade século XX não possa ser imediatamente transposta para uma crítica à psicologia contemporânea. Afinal, a psicologia passou, a partir dos anos 50 do século passado, por um processo de profunda modificação teórica e metodológica - o que alguns chamam de revolução cognitivista. Tal modificação tem aspectos diversos: teoricamente, o surgimento e defesa de uma analogia do funcionamento da mente humana com programas computacionais, um retorno a concepções segundo as quais a mente possui conteúdos inatos e universais, entre outros; metodologicamente, a psicologia passa a ser integrada a um conjunto de outras disciplinas, como a linguística, a biologia, a neurociência, a computação, tornando-se uma das diversas áreas envolvidas no que passa a ser um amplo projeto interdisciplinar voltado para uma busca pela compreensão do funcionamento da mente humana - o que se costumou chamar de ciências cognitivas. Para os nossos propósitos, o importante é notar que, embora a noção de representação tal como usada por Merleau-Ponty, enquanto representação conceitual, elemento constituinte do pensamento, ainda possua circulação na psicologia contemporânea17, há um outro uso do termo "representação", que surge com o trabalho de autores como Noam Chomsky18, e que é geralmente pressuposto nas pesquisas psicológicas mais recentes. Segundo tal uso, representações mentais são construtos teóricos, caracterizações abstratas, de um conjunto de informações que o cérebro de fato aloja e de seu processamento.19 Na tradição inaugurada por Chomsky, defende-se que o cérebro de fato aloja um conjunto de informações, de regras, linguísticas - mais precisamente, de regras sintáticas. Um conjunto de tais regras seria inato e universal para os seres humanos. Uma das tarefas primordiais da investigação seria identificar que regras são essas.20

16 Saliente-se que sempre que sempre que falar em representações enquanto constituintes do pensamento, terei em mente representações em relação às quais temos acesso consciente. Ou seja, os pensamentos em causa são pensamentos conscientes. 17 Ver Fodor (1998) para quem conceitos são precisamente representações mentais constituintes do pensamento. Contudo, ao contrário do que assumimos aqui, para Fodor "pensamento" não deve ser tomado em termos de pensamento consciente, uma vez que representações conceituais podem ser instanciadas no pensamento sem que a elas tenhamos acesso. Para a exposição clássica dessa ideia, ver Fodor (1975). 18 Ver, por exemplo, Chomsky (1983). 19 Embora haja discordância acerca desse ponto dentro da própria tradição, a posição dominante é que, tais representações, embora distintas da línguas naturais, a elas se assemelham enquanto sistema: trata-se de um conjunto de símbolos que podem unir-se, segundo certas regras sintáticas, para a formação do equivalente a palavras e frases. E, seguindo a analogia computacional, seu processamento seria uma questão de manipulação segundo regras (algoritmos, nos termos computacionais) de tais representações sintaticamente estruturadas. Ver Fodor (1974). 20 Para uma introdução de tal programa no contexto de um debate com tradições filosóficas no estudo da linguagem, ver Chomsky (2000).

Mas se as informações em causa são alojadas no cérebro, por que introduzir representações mentais em nossas hipóteses teóricas? Aqui, trata-se de uma passo estratégico de forma a facilitar o avanço em determinada investigação. A ideia daqueles envolvidos na tradição cognitivista é que ainda não é absolutamente claro de que forma o cérebro aloja e processa tais informações. O que é claro é que precisa fazê-lo para que tenhamos as capacidades que possuímos - linguísticas, perceptuais etc. Estaríamos, portanto, no escuro se a tarefa da investigação fosse caracterizar tais informações e processamento em termos puramente neurobiológicos. Assim, de forma a tornar a investigação frutífera, recorre-se a um idioma em um outro nível, o nível mental.21 Contudo, não há nenhum dualismo robusto, como um dualismo de substância ou propriedades, envolvido aqui. Supõe-se que o que de fato existe é de natureza física. As representações tomadas como mentais são uma mera caracterização abstrata, um construto teórico, de aspectos do mundo que são inteiramente físicos: conteúdos alojados no cérebro humano e seu processamento. Como diz Chomsky: Uma mudança para a imagem mentalista, no qual o objeto de estudo é a gramática que de fato está no meu e seu cérebro, é na verdade uma mudança voltada a trazer o estudo do sistema cognitivo humano ao escopo das ciências naturais. Fora dessa mudança, não haveria nenhuma esperança de fazê-lo (1983:15).

Ademais, é importante notar que não temos acesso consciente a tais informações que o cérebro aloja, ainda que caracterizadas em termos mentais, e deu modo de processamento. Do contrário, nos seriam acessíveis por introspecção. É precisamente por não sê-lo que a identificação de tais informações e processamento, em sua caracterização abstrata, é o objeto de investigação de disciplinas como a psicologia e a linguística. Portanto, retornando à discussão que é o foco desse artigo, quando psicólogos como Tucker & Ellis afirmam que, quando somos solicitados por objetos, representações motoras são ativadas, ou quando Phillips & Ward tomam como objeto de investigação a identificação de quão específicas são tais representações motoras, o sentido de "representação" em jogo aqui não é o mesmo do termo tal como usado por Merleau-Ponty. Não se trata de elementos constituintes do pensamento consciente. A ideia não é que, ao sermos solicitados, conscientemente consideramos que mão utilizar para manipular o objeto, e que movimentos realizar - na verdade, uma vez que os experimentos indicam que as representações são ativadas imediatamente, indicam que tais pensamentos conscientes não ocorrem. A ideia é que, ao sermos solicitados por objetos, regiões de nosso cérebro dedicadas primordialmente a funções motoras são ativadas. Supõe-se, assim, e razoavelmente, que o cérebro está processando informações relativas à ação em relação aos objetos percebidos. Assim sendo, busca-se caracterizar tal informação e o seu processamento cerebral em tais momentos recorrendo-se a representações mentais, enquanto caracterizações abstratas de tais aspectos do mundo físico. Nossa conclusão de momento, portanto, é que as críticas de Merleau-Ponty ao envolvimento de representações em nosso atender a solicitações do mundo não se estende imediatamente a uma crítica ao modo como a psicologia contemporânea lida com solicitações em termos representativos. O ponto de Merleau-Ponty é que não é preciso haver pensamento consciente, representações conceituais instanciadas, para atendemos aos chamados do mundo. Não precisamos considerar explicitamente com que parte do corpo manipular o objeto, e com que movimentos. Tal ponto, apresentado como uma crítica à psicologia intelectualista da primeira metade do século XX, está em concordância com o que os experimentos recentes sugerem. Quando diz-se que tais experimentos indicam a ativação de representações motoras uma vez que sejamos solicitados por objetos, o ponto não é que representações 21 Esse passagem, de nossa ignorância acerca do modo como o cérebro aloja conteúdos e de seu processamento para a necessidade de uma introdução de representações mentais em nossas teorias, seria certamente disputada por correntes das ciências cognitivas distintas da que discutimos aqui, de herança chomskyana. Por exemplo, o próprio Dreyfus (2002) supõe que redes neurais do tipo desenvolvido por Walter Freeman (1991) podem constituir uma sólida explicação do funcionamento da mente humana, sendo que, ao contrário da tradição chomskyana, aqui não há um apelo teórico a representações mentais, ao menos não tal como concebidas por essa tradição - enquanto um sistema simbólico análogo ao das línguas naturais. Embora redes neurais sejam também um construto teórico, uma caracterização abstrata do funcionamento cerebral, seria uma caracterização que busca espelhar tal funcionamento (dado o que dele sabemos no momento, em termos neurobiológicos). Assim, representações conceituais seriam não como um espelhamento de palavras e frases na linguagem natural, mas padrões de ativação em unidades (os equivalentes a neurônios) diversas do sistema. Temos, aqui, uma disputa entre dois programas de pesquisa com pressupostos teóricos fundamentalmente distintos, e foge ao escopo desse artigo discutir qual desses programas é superior. É de supor que prevalecerá aquele que apresentar mais resultados ao longo do tempo. Isso embora haja tentativas - como de Fodor e Pylyshyn (1988) - de mostrar que o programa de pesquisa das redes neurais possui falhas decisivas à princípio. Para discussão, ver, por exemplo, Smolensky (1987) e Chalmers (1993).

conceituais, enquanto elementos constituintes do pensamento consciente, sejam instanciadas. O ponto não é que há pensamento consciente envolvido. Pelo contrário, a ideia é que não há pensamento consciente envolvido acerca de como lidar com o objeto, mas que, ainda assim, nosso cérebro processa informações nesse sentido, sendo que tal informação e processamento pode ser caracterizado, abstratamente, em termos de representações mentais. Temos, portanto, usos distintos do termo "representação" em Merleau-Ponty e na psicologia contemporânea, tal que as críticas do filósofo francês não atingem a forma mais recente de apelo a representações na psicologia. VII Nesta última seção, buscarei lidar com uma tensão adicional que pode surgir no presente debate. Vimos, até o momento, no contexto de uma discussão acerca de solicitações, que as críticas de MerleauPonty ao representacionalismo presente na psicologia intelectualista da primeira metade do século XX não se estendem imediatamente a uma crítica ao modo como a psicologia contemporânea apela a representações. Contudo, não haveria uma tensão residual mais ampla entre o pensamento de MerleauPonty acerca de solicitações e o modo como a psicologia contemporânea lida com a questão? Afinal, em Merleau-Ponty, não somos seres que, primordialmente, observam e representam o mundo. Somos seres imersos no mundo ou que nele habitam, o que, em parte, significa dizer que nossa relação com o mundo é prática e incorporada: os objetos ao nosso redor aparecem-nos, no caso típico e fundamental, não como objetos para observação, mas como objetos para ação, sendo que tal agir pode ser entendido em termos de um atender a solicitações, ou chamados, do mundo que dispensam a necessidade de pensamento consciente. Embora, à primeira vista, os psicólogos contemporâneos digam algo semelhante, talvez estejam sugerindo, de maneira mais ampla, algo muito distinto: somos solicitados por objetos para ação, mas o atender a tais solicitações requer a formação de representações do modo como o corpo irá interagir com os objetos - com que parte sua, com que movimentos etc -, ainda que tais representações não sejam constituintes do pensamento consciente, que a elas não tenhamos acesso. Assim, parece mantida uma imagem bastante tradicional do ser humano: somos seres que, fundamentalmente, representam o mundo, mesmo quando somos solicitados por objetos a agir. Antes da ação, há a sua representação. Mas não seria essa imagem do ser humano completamente antagônica à imagem que Merleau-Ponty deseja defender? Há certamente algo de correto aqui. De fato, qualquer imagem da relação do ser humano com o mundo em termos que sejam fundamentalmente representativos será estranha ao modo como MerleauPonty quer pensá-la. Porém, caso sejamos cuidadosos, creio que notaremos que a tensão é aparente, e que o anti-representacionalismo de Merleau-Ponty é compatível com o representacionalismo da psicologia contemporânea. Argumentarei nesse sentido valendo-me de ideias apresentadas por John McDowell no seu iluminador artigo "The Content of Perceptual Experience" (1998). Ao final de seu texto, McDowell contrasta uma posição padrão na psicologia cognitiva acerca da experiência perceptual - em que os sistemas sensoriais, como o sistema visual, são tomados como processadores de informação sob a forma de representações - com uma posição gibsoniana - também aqui, próximo a Merleau-Ponty - segundo a qual os sistemas sensoriais não processam, mas sim recolhem informação do mundo, promovendo uma abertura ou imersão do organismo em relação a seu ambiente. Também aqui pode parecer que, de um lado, temos uma concepção fundamentalmente representativa da relação do ser humano ou organismo com o mundo e, de outro, uma concepção segundo a qual tal relação é de abertura ou imersão. Contudo, McDowell busca mostrar que essa tensão é aparente, e que as posições são, na verdade, compatíveis. Isso por uma simples razão: tratam-se de concepções em níveis de investigação diferentes. Diz ele: "No nível da maquinaria interna, é útil falar dos sistemas sensoriais como dispositivos de processamento de informação; mas, para o animal, seus sistemas sensoriais são modos de abertura a aspectos de seu ambiente" (1998, p.354). Os dois níveis em causa, então, são: o nível da maquinaria interna do animal (humano ou não-humano) e o nível do próprio animal. A distinção fica clara uma vez que tenhamos em mente que a consideração de um nível ou outro depende do tipo de pergunta que buscamos responder. Podemos perguntar-nos acerca de que mecanismos psicológicos tornam possível que o animal relacione-se perceptualmente com o mundo como o faz. Essa, claro, é uma pergunta acerca da maquinaria interna do animal. Diante dessa pergunta, podemos responder que tais e tais representações são processadas de tal e tal modo (o objetivo da investigação seria precisamente identificar tais representações e o seu modo de processamento).

McDowell corretamente toma essa pergunta como sendo de natureza causal: buscamos identificar os mecanismos psicológicos que causam ou tornam possível que o animal relacione-se perceptualmente com o mundo da forma que o faz. Mas podemos, também, perguntar como é para uma determinada vida animal, considerando o animal como um todo, relacionar-se perceptualmente com o mundo ou ambiente ao seu redor. Podemos perguntar, por exemplo, como é para um gato típico relacionar-se perceptualmente com seu mundo ou ambiente. Essa pergunta pede uma resposta bastante distinta. Embora haja todo o tipo de dificuldades em lidar com a relação perceptual de outras espécies, que não a nossa, com o ambiente ao seu redor22, parece seguro dizer, como faz McDowell, que toda vida animal é "mais ou menos uma questão de habitar completamente o seu ambiente" (1998, p.348). Ou seja, relacionar-se com o ambiente, ou o mundo é, para todos os animais, tentar habitá-lo, e relacionar-se perceptualmente com o mundo é ser a ele aberto pelo uso dos sentidos, e não representá-lo. Mas isso porque, na segunda pergunta, perguntamo-nos pela relação entre o animal como um todo e o mundo, e não sobre que maquinaria interna permite que tal relação ocorra em primeiro lugar. As respostas não são conflitantes; apenas dizem respeito a investigações em níveis distintos. Não é difícil perceber como distinguir níveis de investigação de tal forma pode ser útil à nossa presente discussão. De um lado, temos questões acerca de como é para um ser humano, ou para uma outra espécie, ser solicitado por objetos para manipulá-los. Por outro, temos questões acerca da maquinaria interna que nos permite ser assim solicitados e agir adequadamente. Para nós, seres humanos, ser solicitado por objetos não requer representá-los, em qualquer sentido interessante do termo. Não requer qualquer processo reflexivo ou pensamento consciente. Para nós, ser solicitado por um martelo a tomá-lo e fazer dele um certo uso não requer a instanciação de uma representação do martelo, ou de uma reflexão ou pensamento consciente acerca de como usá-lo. Uma vez que se trata de um objeto que nos é habitual, basta que atendamos o chamado do mundo usando o objeto. Para nós, enquanto seres humanos, é simples assim. Porém, isso não significa que, uma vez que mudemos o nível da investigação e busquemos identificar a maquinaria interna que subjaz tal relação com o mundo, não tenhamos fortes razões para caracterizá-la em termos de representações mentais - em termos, como diria McDowell, de um processamento de informações sob a forma de representações. Obviamente, a investigação de Merleau-Ponty diz respeito a como é para o ser humano ser solicitado pelo mundo e atender a tais solicitações. Creio que não deve haver dúvidas que ele está certo ao defender que não há, tipicamente, representações envolvidas aqui, enquanto elementos do pensamento consciente. Isso não significa, porém, que uma investigação distinta da sua, que busque identificar a maquinaria interna que subjaz tal capacidade humana, não seja também legítima. De fato, uma compreensão do modo como somos solicitados por objetos e agimos diante de tais solicitações parece pedir uma investigação em ambos os níveis. Não se trata, portanto, de abordagens incompatíveis, mas sim complementares. Referências CHALMERS, D. "Why Fodor and Pylyshyn Were Wrong: The Simplest Refutation". Philosophical Psychology, 6(3): 305–319, 1993. CHOMSKY, N. "Mental Representations". Syracuse Scholar: Vol. 4: Iss. 2, Article 2, 1983. CHOMSKY, N. "New Horizons in the Study of Language and Mind". Cambridge: Cambridge University Press, 2000. DREYFUS, H. Intelligence without representation – Merleau-Ponty’s critique of mental representation and the relevance of phenomenology to scientific explanation. Phenomenology and the Cognitive Sciences, 1 (4), 367-383, 2002. DREYFUS, H. Merleau-Ponty and Recent Cognitive Science. IN T. Carman & M.B.N.Hansen (orgs.), The Cambridge Companion to Merleau-Ponty. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. DREYFUS, H. & KELLY, S., "Heterophenomenology: Heavy-Handed Sleight-of-Hand". Phenomenology and the Cognitive Sciences, 6 (1-2), 45-55, 2007. ELLIS, R. & TUCKER, M. "Micro-affordance: the Potentiation of Components of Action by Seen Objects". British Journal of Psychology, 91, 451–471, 2000. FODOR, J.A. The Language of Thought. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1975. FODOR, J. Concepts: Where Cognitive Science Went Wrong, New York,

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22 Isso se nossa pergunta for pela qualidade subjetiva das experiências da vida animal. Como é, para um gato, perceber o pôr do sol? Essa certamente não é uma boa pergunta a ser feita. Mas perguntar como é para um animal relacionar-se com o seu mundo ou ambiente não precisa ser tomado como uma pergunta acerca dos aspectos subjetivos da experiência. Pode ser uma pergunta acerca dos aspectos fundamentais de tal relação.

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