A teoria da dominação masculina de Pierre Bourdieu

June 1, 2017 | Autor: G. Eidelwein Silv... | Categoria: Sociology, Gender, Symbolic Power
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I Seminário Nacional de Trabalho e Gênero

Trabalho, Gênero e Educação

A teoria da dominação masculina de Pierre Bourdieu

Gabriel Eidelwein Silveira

A TEORIA DA DOMINAÇÃO MASCULINA DE PIERRE BOURDIEU Gabriel Eidelwein Silveira1 RESUMO. Este artigo sistematiza os conceitos fundamentais da teoria social de Pierre Bourdieu (espaço social, capital, habitus, campo e poder simbólico), em suas aplicações à problemática da relação entre os sexos. Segundo Bourdieu, o espaço social é todo permeado por um princípio de divisão objetivo (positivo/negativo), que estrutura a própria visão de mundo subjetiva dos dominantes e dos dominados, e cujo efeito é “naturalizar” a arbitrariedade da “sexualidade” (correlação espontânea das práticas sociais apropriadas aos sexos), mostrada como fato biológico e não-histórico (“poder simbólico”). Palavras-chave: Sociologia. Poder simbólico. Gênero.

1. Introdução. Esse artigo sistematiza analiticamente os principais conceitos da teoria sociológica geral de Pierre Bourdieu e sua aplicação para o caso específico da relação entre os sexos, em especial o que ele chamou o “poder simbólico” que determina a representação dominante do “feminino”. Bourdieu elaborou os seus conceitos, notadamente “habitus” e “campo”, mas também o de “poder simbólico”, para dar conta da lacuna teórica existente entre os clássicos da sociologia (Marx, Durkheim e Weber), desenvolvendo uma teoria unificada e consistente, sem compromissos ecléticos e empiricamente sustentada (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003). Os estudos de Bourdieu acabaram desvendando a realidade de espaços culturais (como o “campo” do Direito, da ciência, da política, etc.) que se estruturam a partir de “consensos arraigados”, ainda que pouco razoáveis ou até irracionais, sobre os quais não se pode falar, sob pena de pôr em questão, bem ao modo do psicanalista, o sentido da existência dos agentes, cujo valor é devido à pertença a esses jogos viris, em relação aos quais a entrada da mulher é vetada ou dificultada (já que a ela é associada à feminilidade do trabalho doméstico). 2. Conceitos fundamentais da sociologia de Pierre Bourdieu. 2.1. Espaço social. BOURDIEU (1996 e 2004c) concebe a sociedade como um “espaço social” semelhante a um espaço geográfico, sob a forma de uma estrutura de posições relativas, que só podem ser definidas umas em relação às outras, pela sua exterioridade mútua (notadamente as posições do burguês, do intelectual e das “classes populares”, mas também homologamente as do homem e da mulher, etc.). Mas as distâncias entre as posições no espaço social não são distâncias geográficas; são distâncias propriamente sociais, quer dizer, “distinções socialmente significantes”. Assim, tudo na mulher “verdadeiramente feminina” é marcado pelo apelo do “corpo” físico, que deve “seduzir”, “agradar”, enfim, cumprir um papel de “objeto” na economia dos bens simbólicos sexuais. Numa primeira dimensão, o espaço social é estruturado e hierarquizado pelo volume “global” de capital nos patrimônios específicos (BOURDIEU, 1996). Dizer que alguém 1

Bacharel em Direito pela UNISINOS. Mestrando em Sociologia pela UFRGS. Site: http://www.gabrielsilveira.cjb.net; E-mail: [email protected]

possui grande volume de capital eqüivale a dizer que essa pessoa ocupará uma posição na parte superior do espaço; e, inversamente, dizer que alguém é pobre em capital significa dizer que este alguém ocupará uma posição social inferior. Nas sociedades mais desenvolvidas, como os Estados Unidos, o Japão ou a França, o espaço social é estruturado, numa segunda dimensão, segundo dois princípios de hierarquização principais, o “capital cultural” e o “capital econômico” (idem, ibidem). O maior peso relativo ou importância do capital cultural em relação ao capital econômico, em um patrimônio específico, significa uma maior proximidade com a região “esquerda” do espaço. Assim também, ao contrário, o maior peso relativo do capital econômico, num patrimônio, leva a uma maior proximidade da parte “direita” do plano (idem, ibidem). Para os fins de constituição do espaço social, “direita” e “esquerda” são mais que convenções, pois funcionam na prática, sob a forma de esquemas de classificação, verdadeiras taxinomias práticas, que opõe politicamente a “direita” à “esquerda”, como opõe sexualmente o “homem” à “mulher”, respectivamente os pólos dominantes e dominados das relações.

Figura 1 – Diagrama estilizado do “espaço social”, cujo original é detalhado em BOURDIEU (1996)2. 2.2. Capital. O “capital” que estrutura a sociedade hierarquicamente pode ser definido como “qualquer propriedade” a qual os homens reconheçam “valor”. Ele pode existir tanto no “estado objetivado”, como no caso do capital econômico, das credenciais, dos certificados de competência e demais títulos escriturais; como no “estado incorporado”, que é o caso do capital cultural, em suas diversas espécies, artístico, científico, lingüístico, jurídico, etc. O capital funciona para os agentes como “trunfos” dos quais os seus detentores podem se 2

Gráfico apresentado originalmente em artigo a ser publicado na revista Aprendizado, descoberta e inovação em iniciação científica e extensão sobre o funcionamento do “campo jurídico”, prevista para este ano (2006).

utilizar para “jogar”, mediante suas estratégias, frente às situações socialmente definidas (BOURDIEU, 2004d). Mas a eficácia dos tipos de capitais não se restringe ao poder estrito que as suas espécies particulares lhes conferem estritamente. O “poder de compra”, por exemplo, não é o único nem o mais importante tipo de poder que o detentor de capital econômico exerce. Mais que isso, o capital econômico funciona como “capital simbólico” quando é percebido por agentes dotados de “categorias de percepção” capazes de fazer-lhes reconhecer “valor” nos detentores desse capital (idem, ibidem). É por isso que os ricos são considerados “os grandes”, e freqüentemente podem se apresentar como os mais “bonitos” e “inteligentes”. E a violência simbólica, baseada no capital simbólico, isto é, no reconhecimento e no desconhecimento da arbitrariedade que ela encerra, é a forma de dominação por excelência a que as mulheres estão sujeitas (BOURDIEU, 2005), conforme veremos adiante. 2.3.Habitus. Os habitus são “sistemas de disposições” incorporadas a partir da pertença a posições no espaço social ou a universos sociais específicos que se podem isolar teoricamente do espaço social (“campos”). Tomando como base empírica a sociedade francesa dos anos 70, BOURDIEU (1996) conseguiu demonstrar estatisticamente a relação estrita que existe entre as práticas habituais prováveis e as posições específicas no espaço social, o que significa, no caso dos gêneros, uma probabilidade de as mulheres e os homens, tanto na realidade como em suas representações, ajustarem-se respectivamente às “coisas de mulheres” e às “coisas de homens”.

Figura 2 – Diagrama estilizado do espaço das práticas relacionadas às posições relativas no “espaço social”. O original é detalhado em BOURDIEU (1996)3.

3

Idem n. 2.

“O espaço social tal como descrevi acima apresenta-se sob a forma de agentes dotados de propriedades diferentes e sistematicamente ligadas entre si: quem bebe champanha opõe-se a quem bebe uísque, mas estes também se opõe, diferentemente, a quem bebe vinho tinto; mas quem bebe champanha tem muito mais chances do que quem bebe uísque, e infinitamente mais do que quem bebe vinho tinto, de ter móveis antigos, praticar golfe, equitação, freqüentar teatro de bulevar, etc. (...). (...) O espaço social tende a funcionar como um espaço simbólico, um espaço de estilos de vida e de grupos de estatuto, caracterizados por diferentes estilos de vida” (BOURDIEU, 2004c, p.160).

Os habitus funcionam como princípios práticos estruturadores da ação e do pensamento sobre o mundo social e natural e, como tais, são categorias de classificação e, assim, de divisão. A divisão que cria os grupos sociais que se opõe (as classes) é a mesma que cria as divisões de gênero, atribuindo tanto na realidade quanto nas representações, aquilo que “cabe” a cada classe ou sexo: o champanhe ao burguês e a cerveja ao operário; a exposição pública do macho viril ao homem e o trabalho doméstico à mulher, e assim por diante. Dizer que as pessoas agem por habitus significa dizer que a sua ação social é movida por um princípio “interno”, mas que foi “socialmente constituído”, e é inconsciente de si (BOURDIEU, 2004d). Com a noção de habitus, BOURDIEU (2004d) pretende demonstrar que o agir social não é movimentado “imediatamente” por um “arbitrário social externo”, como sugeria DURKHEIM. (2001), nem pelo “sentido visado interno” que o ator social atribui a sua própria ação, conforme pensava WEBER (1999). Na verdade, o arbitrário social é incorporado sob a forma de habitus, que funcionam autonomamente no “nível prático” (BOURDIEU, 1996), sem serem conscientes de si, e capaz de produzir práticas objetivamente ajustadas às diversas posições sociais (como a de “homem” e a de “mulher”) ou aos diversos campos, sem que exista uma intenção consciente de atingir esses resultados (BOURDIEU apud ORTIZ, 2003). O habitus funciona autonomamente quando encontra as condições sociais ideais de sua realização, isto é, as mesmas condições sociais que o produziram (BOURDIEU, 2004c), desenrolando-se em práticas que tendem a reproduzir a estrutura social objetiva de que ele é o produto (DOMINGUES, 2001). Por fim, dizer que o habitus funciona no nível prático é dizer que ele é mais como um “senso prático” ou como um “sentido do jogo” do que como um cálculo racional. As práticas que o habitus produz são mais próximas da jogada intuitiva do tenista que da explicação “racional” produzida pelo seu técnico para dar-lhe inteligibilidade (BOURDIEU, 2004c). Com essa sensível distinção, foi possível superar o equívoco de WEBER (1999) de atribuir o sentido da ação social à representação consciente do agente. Do mesmo modo, ainda que admitida a origem social ou externa do habitus, bem ao modo de DURKHEIM (2001), não mais se poderia ignorar o seu funcionamento interno e autônomo. Na maior parte dos casos, o agente é inconsciente das condições sociais da produção de seus habitus; e o “sentido subjetivo” que ele atribui a sua ação oculta um “sentido objetivo” que ele não pode nem quer conhecer. A mulher adquire o habitus da feminilidade através de um trabalho de socialização, que inculca esse habitus no interior de seu corpo, mas abaixo do limiar de sua consciência, para produzir este “artefato social que um homem viril ou uma mulher feminina” (BOURDIEU, 2005): “Todo o trabalho de socialização tende, por conseguinte, a impor-lhe limites, todos eles referentes ao corpo, definido para tal como sagrado (...) e todos devendo

ser inscritos nas disposições corporais. É assim que a jovem cabila4 interiorizava os princípios fundamentais da arte de viver feminina, da boa conduta, inseparavelmente corporal e moral, aprendendo a vestir e usar as diferentes vestimentas que correspondem a seus diferentes estados sucessivos, menina, virgem núbil, esposa, mãe de família, e, adquirindo invisivelmente, tanto por mimetismo inconsciente quanto por obediência expressa, a maneira correta de amarrar sua cintura ou seus cabelos, de mover ou manter imóvel tal ou qual parte de seu corpo ao caminhar, de mostrar o rosto e de dirigir o olhar” (idem, ibidem, p.37).

2.4.Campo. No interior do espaço social é possível recortar “regiões” que se estruturaram em torno de algum tipo de capital especializado, sendo que a essas regiões BOURDIEU (1996) chamou “campos”. Assim, existem os campos econômico, artístico, científico, religioso, político, jurídico, etc. Todo campo é um espaço estruturado de acordo com o maior ou menor volume do “capital específico do campo” existente nos patrimônios particulares dos agentes que a ele pertencem. Os ricos no capital específico do campo ocupam as melhores posições; e os pobres, as piores. O “campo” é um lugar de hostilidades, de concorrência pela apropriação do capital específico do campo, que se produz e se valoriza na e pela própria concorrência (BOURDIEU, 2004b). Os vários agentes que concorrem e lutam, uns contra os outros, por um objetivo comum a todos eles, estão de acordo pelo menos quanto ao objeto da luta e a existência do campo (ROCHA, 2005). Todos, almejando as mesmas coisas, acabam por “valorizar” as coisas almejadas por um efeito típico de mercado “simbólico”. Além disso, a noção de campo desconstrói a distinção meramente formal entre o “conflito” e o “consenso” (BOURDIEU, 2004c), paradigmatizados pelas perspectivas de Durkheim e de Marx respectivamente. O conceito de “campo” faz lembrar de todas aquelas situações em que o consenso se constrói a partir de uma situação de conflito, na medida em que o dominante se sobressai ao dominado, impondo-lhe os pensamentos (“ideologia”), quero dizer, em cada caso específico de “dominação simbólica” da qual a “dominação masculina” é paradigmática. “Uma das minhas intenções, no uso que faço desses conceitos, é abolir a distinção escolar entre o conflito e o consenso, que nos impede de pensar todas as situações reais em que a submissão consensual se realiza no e pelo conflito (...). Mas, numa certa época, foram tão exaltadas as lutas dos dominados (...) que acabou sendo esquecida uma coisa que todos aqueles que viram de perto sabem perfeitamente, isto é, que os dominados são dominados também em seu cérebro” (BOURDIEU, 2004c, p.36).

A eficácia simbólica da luta que se trava no campo é justamente a de legitimar o produto interno do campo perante os seus concorrentes (ROCHA, 2005). Estabelecido que os habitus dos agentes são produzidos a partir da pertença às diversas posições hierárquicas do campo, pode-se compreender as suas estratégias: os ricos no capital específico tendem a ser conservadores; e os pobres, subversivos. Em todos os campos, os dominantes estão comprometidos com a continuidade, a identidade, a reprodução e assim por diante. Os 4

Bourdieu toma a Cabília como a sociedade ideal onde se pode estudar, ainda hoje, o estado passado da sociedade ocidental, em especial a moral mediterrânea.

dominados, por sua vez, são como recém-chegados que estão interessados na descontinuidade, ruptura, diferença, revolução (BOURDIEU, 2004b) e que muitas vezes precisam contar com apoio de poderes externos, como a mídia, para se legitimar (ROCHA, 2005). A questão sexual, que se insere em todos os campos, tem os movimentos “feminista” e “gay” como os agentes declarados da subversão da ordem estabelecida das coisas. 2.5. Poder simbólico. Para superar o conceito weberiano de “poder”, que identificava as causas da obediência na representação consciente do sujeito dominado (WEBER, 1999), BOURDIEU (2004d) propõe o conceito de “poder simbólico”, pretendendo referir “um poder que supõe o reconhecimento, isto é, o desconhecimento da violência que se exerce através dele” (BOURDIEU, 2004c). O poder simbólico “é uma forma transformada, irreconhecível, transfigurada e legitimada das outras formas de poder” (BOURDIEU, 2004d) e sua eficácia reside especificamente no fato de que ele é capaz de realizar uma função de dissimulação e de transfiguração, numa palavra, de eufemização, que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força, fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente” (idem, ibidem). Nesse sentido, a violência simbólica “é a forma branda e enrustida assumida pela violência quando esta não pode manifestar-se abertamente” (BOURDIEU, 2004b). Ela é, enfim, “uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com freqüência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la” (BOURDIEU, 1997), já que baseada no conluio objetivo entre os seus habitus. “A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, a dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver a avaliar os dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro, etc.) resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto” (BOURDIEU, 2005, p.47).

A “eficácia simbólica” de todos discursos e atos de instituição, essa eficácia de dissimular a arbitrariedade da distribuição desigual de privilégios – que marca as mulheres como “separadas dos homens por um coeficiente simbólico negativo” (BOURDIEU, ibidem), e que lhe atribui posições (ou cargos) piores mesmo em igualdade de condições –, está baseada em fazer com que os agentes percebam e reconheçam as distinções sexuais como “naturais” e, assim, como legítimas, e ainda, como atestam muitas teorias médicas e psicanalíticas, como “biologicamente fundamentadas” (idem, ibidem). Por esse mecanismo, toda a construção social arbitrária (como o a “sexualidade”) se apresenta aos principais interessados, sejam eles beneficiados ou prejudicados, como “evidentes”, “óbvias”, “naturais”, portanto, justas e legítimas. “Em suma, através da experiência de uma ordem social “sexualmente” ordenada e das chamadas à ordem explícitas que lhe são dirigidas por seus pais, seus professores e seus colegas, e dotadas de princípios de visão que elas próprias

adquiriram em experiências de mundo semelhantes, as meninas incorporam, sob forma de esquemas de percepção e de avaliação dificilmente acessíveis à consciência, os princípios da visão dominantes que as levam a achar normal, ou mesmo natural, a ordem social tal como é e a prever, de certo modo, o próprio destino, recusando as posições ou as carreiras de que estão sistematicamente excluídas e encaminhando-se para as que lhe são sistematicamente destinadas” (BOURDIEU, 2005, p.115).

A legitimação de uma realidade arbitrária (como uma ordem social androcêntrica) é a eficácia propriamente simbólica que só pode ser obtida na medida em que uma visão de mundo, que é a visão de mundo de uma “classe” dominante, seja generalizada, isto é, tomada como sendo a visão de mundo de todas as classes. É a essa idéia simples que Marx pretendia remeter quando sugeria a noção de “ideologia” (ARON, 2000). BORUDIEU (2004a), porém, avança a questão da legitimação das desigualdades sociais, através de seu approach socioanalítico. Para ele, uma “chamada à ordem” (“vocês nunca vai se dar bem nessa profissão” ou “isso é trabalho de homem”, que os pais, professores e colegas evocam às meninas) só é recebida e aceita como legítima porque ela é “ambígua” o suficiente para ocultar o fato de ser uma “chamada à ordem”. A fórmula de Bourdieu poderia ser enunciada nos seguintes termos: a legitimidade de uma ordem qualquer deriva do desconhecimento de sua arbitrariedade (BOURDIEU, 2004b). Para explicar esse fenômeno, BOURDIEU (2004c) utiliza referido conceito de “poder simbólico”, poder desconhecido enquanto tal e, portanto, reconhecido como legítimo. Em relação a esse conceito e a tudo que diz respeito às “eficácias simbólicas” é possível fazer uma aproximação elucidativa com conceitos freudianos, que Bourdieu seguidamente refere. Em primeiro lugar, Bourdieu tem presente a idéia, tomada de CASSIRER (apud AUGRAS, 1980), de que a cultura só existe efetivamente sob a forma de símbolos, isto é, de um conjunto de significantes/significados (MICELI “in” BOURDIEU, 2004a). Em segundo lugar, a “função” propriamente simbólica, tanto em Freud quanto em Bourdieu, não é meramente a função de “representação” dos objetos simbolizados, mas primordialmente a função de “ocultação” desses mesmos objetos, porque, por algum motivo, é necessário que o indivíduo os desconheça. Decorre que os símbolos, tanto em Freud quanto em Bourdieu, têm três características principais: (a) significado estruturado; (b) objeto arbitrário; e (c) ignorância quanto à realidade arbitrária do objeto. Assim, na sociedade cabila, como em toda a realidade o em todo s habitus mais profundamente inculcado ainda hoje, está presente uma cosmologia e uma mitologia da mulher como “sexo frágil”, a qual cabe o trabalho de reprodução (social e biológica), porém passivo e extensivo; ao passo que ao homem cabe a produção, ativa e extraordinária. Se está na mulher, procurar as “profissões de mulheres”, extensão das tarefas domésticas (ensino, assistência social), evitando as “profissões de homens” (política, economia) é porque ela pensa o mundo e age nele a partir dos esquemas práticos de pensamento e de ação idênticos aos dos homens, que lhe destinam essas funções, as quais lhe aparecem como naturalmente destinadas, mas que, na verdade, são o produto de um processo histórico de “naturalização” que convém desmistificar (o que significa, para a sociologia, historicizar). 3. Conclusão.

Em sua obra dedicada ao assunto, A Dominação Masculina, BOURDIEU (2005) critica a perspectiva dos estudos que, de total boa fé, só enxergam avanços na condição feminina, deixando escapar tudo aquilo que uma análise “relacional” como a que o conceito de “espaço social” permite realizar, ou seja, o fato de que a distância social se mantém inscrita na estrutura de distribuição (por exemplo, do coeficiente de mulheres nas posições de poder dentro dos campos). Veja-se apenas o exemplo elucidativo da distribuição das mulheres nos cursos das universidades: “Em número maior que os rapazes, quer para obtenção do bacharelado, quer nos estudos universitários, as moças estão bem menos representadas nos departamentos mais cotados, mantendo-se sua representação inferior nos Departamentos de Ciências, ao passo que cresce nos Departamentos de Letras (...)” (BOURDIEU, 2005, p.109).

Os mesmos princípios de distribuição se repetem em todas as áreas da vida social, mediante a aplicação prática de três princípios inconsciente que dirigem a ação tanto de homens como de mulheres: (a) que convém as mulheres profissões que sejam algo como o prolongamento das atividades domésticas, ensino, cuidados, saúde, assistência, etc.; (b) que as mulheres não devem exceder os homens, em razão do que, quando em tudo forem iguais aos homens, as mulheres tendem, ainda assim, a serem relegadas a funções auxiliares ou subalternas, e sem se sentirem violentadas por isso – ao contrário, o habitus androcêntrico justifica essa postura; e (c) o de que cabe aos homens o domínio da técnica especializada e das máquinas. Assim, constitui-se a visão dominante tanto de homens quanto de mulheres, mesmo daqueles que se declaram de total boa fé simpáticos à “liberação” feminina, o que faz toda a diferença de nosso juízo (positivo ou negativo) espontâneo a respeito, por exemplo, da diferença entre um cozinheiro e uma cozinheira ou de um costureiro e de uma costureira. 4. Referências. ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica: o simbolismo nos testes psicológicos. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1980 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. ________________. A economia das trocas simbólicas. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 2004a. ________________. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2004b. ________________. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004c. ________________. O poder simbólico. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004d. ________________. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

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