A teoria dennettiana da mente e o cognitivismo: possíveis relações

July 5, 2017 | Autor: Marcelo Araldi | Categoria: Psychology, Cognitive Science, Philosophy of Mind
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PIBIC 13/14

RELATÓRIO FINAL

TEORIA DENNETTIANA DA MENTE E O COGNITIVISMO: POSSÍVEIS RELAÇÕES

CURITIBA AGOSTO / 2014

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MARCELO WALMIR ARALDI PSICOLOGIA – ESCOLA DE SAÚDE E BIOCIÊNCIAS BOLSA PIBIC – FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA

TEORIA DA MENTE DENNETTIANA E O COGNITIVISMO: RELAÇÕES POSSÍVEIS

Relatório Final apresentado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, e órgãos de fomento, sob orientação do Prof. Kleber Bez Birolo Candiotto.

CURITIBA

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SUMÁRIO RESUMO ......................................................................................................

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1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................

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2 OBJETIVOS ............................................................................................

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3 MATERIAIS E MÉTODO .......................................................................

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4 RESULTADOS .........................................................................................

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4.1 A TEORIA DOS SISTEMAS INTENCIONAIS ......................................

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4.2 HETEROFENOMENOLOGIA: MUNDO FICCIONAL E MÉTODO .......

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4.3 O MODELO DOS ESBOÇOS MÚLTIPLOS .........................................

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4.3.1 Pré-condições à experiência consciente ......................................

8

4.3.2 Auto-estimulação, cultura e linguagem: os memes .....................

10

4.3.3 A metáfora computacional .............................................................

11

4.4.4 Os esboços múltiplos e a ilusão do usuário ................................

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5 DISCUSSÃO ............................................................................................

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6 CONCLUSÃO ..........................................................................................

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REFERÊNCIAS ............................................................................................

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RESUMO A consciência tem sido considera por alguns teóricos da filosofia da mente, bem como de outros campos, como o grande último mistério a ser desvendado pela ciência e filosofia. De que é feita a consciência e os processos mentais que se considera estar intimamente relacionado a ela, tais como os pensamentos? Como se dá a passagem de processos neuronais físicos à experiência consciente subjetiva? Existe na atualidade uma ampla variedade de posicionamentos que buscam responder estas e outras questões que são logicamente derivadas deste problema fundamental. Deste modo, o presente trabalho buscou evidenciar a teoria da consciência proposta por Daniel C. Dennett, nomeada Modelo dos Esboços Múltiplos. Em seguida, buscou-se identificar as razões pelas quais este modelo pode ser considerado cognitivista. Para tanto, foram realizadas leituras sistemáticas de textos pertinentes em relação a estes objetivos. Na posição dennettiana, a consciência será considerada como um software instanciado no cérebro (hardware). Trata-se de um fenômeno recente na história da evolução das espécies, caracterizado pela satisfação de condições prévias, tais como a distinção entre o meio interno e meio ambiente externo e, sobretudo, pela emergência da cultura e linguagem. A emergência da consciência nestes termos cria um espaço semântico de representação da realidade, nomeado mundo heterofenomenológico. Neste espaço fixam-se conteúdos advindos da experiência sensorial, que em associação com a memória de trabalho, resultam em um processo quase que imediato e acentrado de edição da realidade, que se organiza de modo semelhante a uma narrativa. Basicamente, nisto consistem os esboços múltiplos. Desta forma, os estados mentais e, de maneira mais geral, a consciência, serão considerados de uma perspectiva naturalista. Isto é, em sua relevância adaptativa do organismo ao meio ambiente circundante e sem o compromisso com a existência de processos metafísicos a coordenar a mentalidade. Segue-se que este modelo depende de uma postura eliminativista em relação aos elementos qualitativos da experiência (qualia) e pela postura negação de um “centro” da consciência. Enquanto tal apresenta-se como um empreendimento que visa fornecer um modelo heurístico para a continuidade do desenvolvimento dos estudos científicos acerca da consciência e cognição a partir de uma filosofia materialista minimamente coerente.

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1. INTRODUÇÃO A filosofia da mente contemporânea caracteriza-se por uma ampla diversidade de posicionamentos relativos à explicação da consciência, ou, mais especificamente, da inteligência consciente. Tais posicionamentos guardam o objetivo em comum de explicar este fenômeno1, que é entendido por alguns autores como o grande último mistério a ser desvendado pela ciência (cf. CHURCHLAND, 2004; SEARLE, 1998). Por outro lado, apresentam respostas divergentes quanto aos principais problemas desse campo. O problema central da filosofia da mente contemporânea está em conceber como se daria a passagem do físico para o mental, da perspectiva de terceira pessoa para a de primeira pessoa. Por decorrência, surge a questão de como seria possível explicar a mente usando construtos e teorias utilizados para explicar sistemas físicos. Em outras palavras, como uma interpretação física poderia explicar o funcionamento mental (TEIXEIRA, 2011). Neste sentido, é possível afirmar que, grosso modo, existem filósofos2 da mente que sustentam que a consciência é um fenômeno fundamental que se apresenta como uma questão metafísica incontornável. Isso equivale a dizer que existem predicados exclusivos da consciência que não poderiam ser reduzidos a um nível material de explicação psicológica, de modo que exigiriam um nível metafísico vinculado àquele primeiro nível (MIGUENS, 2002). Em contraste com esses posicionamentos3, há autores como Dennett, que defendem que o problema da consciência não é um hard problem, mas, ao invés disso, é eminentemente um problema empírico e epistemológico. O Modelo dos Esboços Múltiplos (MEM) é apresentado nessa perspectiva como uma alternativa ao Teatro Cartesiano, que possui uma função heurística de auxiliar a comunidade dos cientistas cognitivos a eliminar os resquícios de dualismo cartesiano que persistem em suas explicações acerca de processos envolvidos na inteligência consciente.

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Ou mesmo postular, como sugere McGinn, que a consciência nunca poderá ser explicada, devido a este fenômeno abranger simultaneamente o sujeito e o objeto da experiência, e, em decorrência disto o sujeito da experiência estar condicionado a um “fechamento epistemológico”. Essa atitude fundaria um New Misterianism, de acordo com Flanagan (cf. MIGUENS, 2002, p. 270, nota de rodapé 448; TEIXEIRA, 2011, p. 103-104; CESCON, 2010). 2 Exemplos de autores com este posicionamento incluem Chalmers, Searle, Nagel e Jackson (MIGUENS, 2002). 3 Para uma apresentação sucinta posicionamentos contemporâneos, cf. CESCON, 2010; TEIXEIRA, 2011.

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2. OBJETIVOS 

Evidenciar a teoria da consciência de Daniel Clement Dennett;



Identificar por quais motivos esta teoria pode ser enquadrada no rol de teorias cognitivistas.

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3. MATERIAIS E MÉTODO O presente relatório é o resultado do desenvolvimento da pesquisa ao longo do segundo semestre de 2013 e primeiro semestre de 2014. Prosseguimos com a leitura e fichamento de duas fontes centrais ao trabalho, em paralelo com a leitura e fichamento de outras quatro fontes complementares, recorrendo a outros materiais como enciclopédias, artigos ou dicionários de filosofia para clarificar eventuais dúvidas. Simultaneamente, participamos de encontros quinzenais no grupo de filosofia da mente, coordenado pela professora Fernanda Bertuol, que serviram para confirmação de nossas leituras, o que também foi obtido por meio de encontros ocasionais com nosso professor orientador, Kleber Bez Birolo Candiotto. As leituras centrais ao nosso trabalho foram a obra Consciousness Explained (1991), de Daniel Dennett, bem como a tese de doutorado de Sofia Miguens (2002), intitulada Uma Teoria Fisicalista do Conteúdo e da Consciência: D. Dennett e os debates da filosofia da mente. Como um complemento a estas obras centrais, as outras obras que nos foram sugeridas por nosso orientador foram A Nova Ciência da Mente: uma História da Revolução Cognitiva (2003), por Howard Gardner (sobre o Cognitivismo). Em se tratando de Filosofia da Mente, as seguintes obras foram consultadas: Matéria e Consciência: uma Introdução Contemporânea à Filosofia da Mente (2004), de Paul Churchland; Mente, Cérebro & Cognição (2011), por João de Fernandes Teixeira; e O Mistério da Consciência (1998), por John Searle. O projeto foi desenvolvido com dificuldades inerentes a essa empreitada, na maior parte consistindo em dúvidas que foram esclarecidas sem a necessidade de uma orientação. Somente aquelas em que não conseguimos resolver por si só, procuramos a orientação adequada junto ao professor orientador. Algo que poderíamos considerar um insucesso, entretanto, é o fato de não termos conseguido finalizar a leitura dos dois últimos capítulos da tese de Miguens. Ademais, por falta de tempo também não nos foi possível ler os artigos de Sweet Dreams: Philosophical Obstacles to a Science of Consciousness, que consiste em uma coletânea de artigos mais atuais acerca do posicionamento dennettiano sobre a consciência.

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4. RESULTADOS A teoria da mente dennettiana abrange a Teoria dos Sistemas Intencionais (TSI) por um lado, e o Modelo dos Esboços Múltiplos (MEM) por outro. Essas duas partes da teoria da mente guardam uma relação4 macro-micro. A TSI prevê como uma entidade pode se organizar até que possa ser considerada inteligente, por se comportar em função do conteúdo apreendido no ambiente. Por sua vez, o MEM demonstra como se dá a consciência a partir da entidade, do Sistema Intencional (MIGUENS, 2002). A seguir, far-se-á uma breve incursão pela TSI, com a finalidade de fornecer suporte para uma compreensão mais profunda do MEM.

4.1. A TSI: UMA BREVE INCURSÃO Dennett elabora uma versão mais fraca do funcionalismo5, a qual intitula teleofuncionalismo. De maneira sucinta, o teleofuncionalismo é um posicionamento filosófico que vincula a mentalidade ou racionalidade à história da evolução das espécies; ao mesmo tempo, defende que essa mentalidade pode ser compreendida metaforicamente como a realização de estados lógicos (software). Assim, de acordo com Miguens (2002), o intento desta posição é a caracterização intencional dos estados lógicos por meio da adscrição holística6 de conteúdo às ações do sistema. Objetiva-se, assim, a formulação de teorias mecânicas que integrem o nível subpessoal (sobretudo do cérebro) ao pessoal (autoacesso, memória, etc.) da agência inteligente. Deste modo, a estrutura do comportamento atual dos organismos é resultante da necessidade de adaptação ao meio. A seleção natural formula o design do organismo. O design, por sua vez, permite representar as circunstâncias mundanas, o que garante às espécies a possibilidade de se comportar em função destas. 4

O que possibilita esse trabalho separado entre a teoria do conteúdo e da consciência é a rejeição da intencionalidade intrínseca. Dennett atribui intencionalidade unicamente por razões pragmáticas (instrumentalismo), para que a noção de comportamento seja distinta de meros movimentos (cf. MIGUENS, 2002, p. 139). Para um posicionamento que defende a intencionalidade intrínseca (cf. SEARLE, 1998, p. 31-45). 5 “De acordo com o funcionalismo, a característica essencial que define todo tipo de estado mental é o conjunto de relações causais que ele mantém com (1) os efeitos do meio ambiente sobre o corpo, (2) com outros estados mentais e (3) com o comportamento corporal” (CHURCHLAND, 2004, p. 67). Para uma outra discussão introdutória sobre o funcionalismo (cf. TEIXEIRA, 2011, p. 123-128). 6 Isto é, acrescentar ao comportamento publicamente observável uma interpretação das suas razões. Isso está relacionado à rejeição por parte de Dennett da hipótese da “Linguagem do Pensamento” proposta por Fodor.

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Portanto, todo sistema7 que discrimine o que é relevante ou não e utilize essa informação para alcançar certas finalidades exibirá alguma forma de comportamento inteligente. Neste sentido, os critérios de racionalidade assumidos por Dennett são os de uma racionalidade imperfeita. Ao agente racional é vedado o esgotamento de todas as possibilidades custo-benefício antes de tomar uma decisão para agir. Destarte, a racionalidade frequentemente seria uma questão de bom-senso, que só poderia ser caracterizada – vagamente – pela resolução de problemas encontrados no ambiente (MIGUENS, 2002, p. 185-186). Assim, as noções centrais da TSI são a de Sistema Intencional e de Postura Intencional [Intentional Stance]. Um Sistema Intencional (SI) é definido “como um sistema capaz de discriminar traços complexos do seu ambiente e de reagir a esses traços, algo que nenhum sistema pode fazer sem interpretação da estimulação periférica” (MIGUENS, 2002, p. 74-75). Referem-se a entidades que podem ter os seus comportamentos descritos e previstos pela atribuição de estados mentais. Estas entidades abrangem três níveis de descrição, a saber, a Postura8 Física (PF), a Postura do Design (PD) e a Postura Intencional (PI). A PF consiste na descrição das propriedades estritamente físicas do sistema, tais como as ligações sinápticas de neurônios no cérebro. A PD, por sua vez, consiste na descrição das funções ou instruções do sistema – tal como foi desenhado (designed) pela seleção natural ou pela engenharia – que pretende interpretar um traço do design que é real, como qual é a função do cérebro no ser humano, por exemplo. No entanto, para a previsão do comportamento do sistema, ambas essas estratégias não formulam uma resposta em tempo adequado. É daí que a PI assume sua relevância ao buscar prever o comportamento por meio da suposição de racionalidade atribuindo crenças e desejos como traços constituintes do comportamento inteligente 9 (MIGUENS, 2002, p. 155). 7

Como se pode observar, a noção de racionalidade para Dennett não será restrita ao ser humano, abrangendo também animais e máquinas. Inclusive, este alargamento da mentalidade poderia ser compreendido como um sintoma de tensão interna da TSI (cf. MIGUENS, 2002, p.159-160 e 171-172). 8 Miguens (2002) traduz o termo Stance, utilizado por Dennett, como Estratégia. Todavia, traduzimos o termo por Postura por passar um sentido mais próximo do original, visto que este se refere a um ponto de vista específico para atribuir sentido ao nível correspondente de descrição. Uma alternativa ainda está na tradução de Teixeira (2011) do termo por Atitude. 9 Para apresentação da experiência de pensamento da Psicologia dos Critters, que exemplifica a utilidade da PI diante da folk psychology (cf. TEIXEIRA, 2011, p.143-148).

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A TSI é, portanto, uma teoria evolucionista do design. Configura-se como uma abordagem externalista do conteúdo, uma vez que as representações mentais são concebidas como o conteúdo que reside entre o design e o meio (ibid, p. 179). Ademais, a TSI declara-se adepta de um realismo moderado em sua proposta de descrição ou caracterização intencional – que ocorre por meio da captação de padrões reais dos estados mentais do SI observado a partir da PI –, visto que se pretende ontologicamente neutra em relação ao fisicalismo (ibid., p. 171).

4.2. HETEROFENOMENOLOGIA: MUNDO FICCIONAL E MÉTODO Na primeira parte de Consciousness Explained, Dennett (1991) assume uma postura fenomenológica como estudo pré-teórico de eventos, visando delimitar aquilo que envolve a experiência consciente. Parte da existência de três categorias gerais de fenômenos: a) a vivência do mundo externo por meio dos órgãos do sentido10; b) um mundo interno que se caracteriza, sobretudo, por “imagens” mentais11 e; c) a experiência dos afetos12 e emoções, como por exemplo, a dor, a alegria e a tristeza. Aqui, Dennett dialoga com posicionamentos puramente fenomenológicos (como o de Nagel), por estes atribuírem uma excessiva importância à introspecção e ao acesso privilegiado aos estados mentais, em suma, à perspectiva de primeira pessoa. Estes assume a intencionalidade como o traço distintivo da consciência. Contudo, para Dennett (1991) esses fenômenos são inacessíveis à investigação científica

materialista.

Tais

posicionamentos

são

obscurantistas

deste

empreendimento, portanto. Em contrapartida, Dennett (1991) propõe um método dito neutro, e que faz o caminho inverso: parte da experiência compartilhada para daí elaborar teorias da mente. É o que Dennett chama de primeira pessoa no plural. O assim chamado 10

Dennett buscará demonstrar os parâmetros qualitativos da experiência sensorial de uma perspectiva evolucionária, já com a preocupação de como esta experiência pode ocorrer sem um “centro” para organizá-la. 11 O termo imagens é utilizado entre aspas, pois Dennett não aceita a existência de entidades identificáveis e isoláveis, mas sim como uma representação fraca da realidade, uma abstração. Abrangem também as imagens auditivas. 12 Apesar de possuírem um vínculo estreito com aquilo que cremos ser a consciência, de acordo com Dennett, a explicação dessa categoria de fenômenos está estagnada em explicações circulares, ou, como chama o autor, virtus dormitiva, que não introduzem algum elemento explicativo novo. Uma explicação do riso que postule que rimos por que entramos em contato com um estímulo hilário não avança em nenhum sentido nossa compreensão do fenômeno.

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método heterofenomenológico funciona como uma forma de coleta e tratamento em terceira pessoa dos relatos de primeira pessoa do sujeito. Esses dados são atos de fala13 coletados em situação experimental, mas que devem receber um tratamento posterior que vise interpretar seu conteúdo semântico, contextualizá-los, isto é, descrever intencionalmente o comportamento do sistema. A necessidade deste método neutro residiria no fato de que a autoridade epistêmica do relato introspectivo, sua incorrigibilidade14, tem sido crescentemente colocada em cheque não apenas pela filosofia, mas também pelas neurociências. E para Dennett (1991, p. 67), a característica central do relato introspectivo não está em apreender seu objeto de maneira direta, com toda nitidez possível, mas sim em um movimento de teorização improvisado, de confabulação. Portanto, o “mundo heterofenomenológico é uma descrição em terceira pessoa do mundo tal como este aparece e é vivenciado em primeira pessoa” (MIGUENS, 2002, p. 319). Trata-se de um espaço semântico global do sistema, que é alimentado pelos sentidos, e que envolve todo o seu conteúdo (tais como crenças, registros mnêmicos, etc.), além de processos como o autoacesso, memória, afetos, entre outros.

4.3. O MODELO DOS ESBOÇOS MÚLTIPLOS Devido à crescente complexidade de seu maquinário cerebral em virtude de milhares de anos de evolução por seleção natural no meio genético, fenotípico e cultural, o ser humano passa em algum momento a partir da “invasão de memes” no cérebro a instanciar uma máquina virtual15 “von Neumannesca16”. Em realidade, essa última assemelha-se mais a uma máquina “Joyceana17”. Entretanto, essa

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Essa noção se estende também para comportamentos não verbais (pressionar um botão, por exemplo). Uma das implicações centrais do legado cartesiano em sua tradicional distinção entre res cogitans e res extensa reside no fato de que o sujeito é a maior autoridade epistêmica de seus relatos (cf. MIGUENS, 2002, p. 95-96). Para uma avaliação introdutória acerca do acesso privilegiado e incorrigibilidade (cf. MASLIN, 2009, p. 26-34; CHURCHLAND, 2004, p. 128-134). 15 “(...) uma máquina virtual é um conjunto temporário de regularidades altamente estruturadas impostas sobre o hardware subjacente por um programa: uma receita estruturada de centenas de milhares de instruções que dá ao hardware um amplo conjunto bloqueado de hábitos e disposições-para-reagir” (DENNETT, 1991, p. 216, trad. nossa). 16 Referência ao físico e matemático John von Neumann (1903-1957), um dos formuladores, junto com Alan Turing (1912-1954), das bases lógico-matemáticas que permitiram a produção dos computadores modernos. 17 “(...) alusão ao Ulisses de James Joyce, que retrata o dia de um personagem envolto em episódios de pensamento que caracterizariam essa narrativa fragmentária e errática, em uma espécie de ruminação 14

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máquina virtual é um atributo muito recente na evolução das espécies, de modo que Dennett especula um histórico desse desenvolvimento que possibilitou seu surgimento.

4.3.1. Pré-condições à experiência consciente No início, não havia propósito algum na vida orgânica, pois todos os organismos não possuíam interesses. Com a evolução, estes organismos passam a procriar-se de modo andrógino. Isso demarca um primeiro interesse desses seres: a procriação. A manutenção deste interesse envolve a distinção das condições que favorecem ou não sua sobrevivência. Este seria um traço da vida, biologicamente falando: ao estabelecer esta distinção por instinto de autopreservação, o organismo passa a fazer uma distinção entre si e o mundo, de modo a orientar os esforços adequadamente em sua jornada pela existência (DENNETT, 1991, p. 173). Dennett conclui desta história que: (1) Existem razões para reconhecer. (2) Onde existem razões, existem pontos de vista dos quais se reconhece ou avalia elas. (3) Qualquer agente deve distinguir “aqui dentro” do “mundo externo”. (4) Todo reconhecimento deve ultimamente ser alcançado por uma miríade de rotinas “cegas, mecânicas”. (5) Dentro do limite defendido, nem sempre precisa existir um Executivo Maior ou uma Sede Geral. (6) Na natureza, a perfeição é tão perfeita quanto fez; origens não importam. (7) Na natureza, os elementos frequentemente desempenham múltiplas funções dentro da economia de um único organismo (DENNETT, 1991, p. 175, trad. nossa).

A partir deste momento Dennett salta para a história filogenética, quando os organismos já possuem um sistema nervoso, nomeadamente um cérebro. O cérebro é compreendido fundamentalmente como uma máquina de antecipação das condições ambientais em relação aos propósitos da criatura; quanto mais desenvolvido, maior o número de informações pode ela usar em sua luta pela sobrevivência (DENNETT, 1991, p. 176-178). Existe algo como um alarme para ameaças na própria filogenia dos organismos (BRAITENBERG, 1984 apud DENNETT, 1991, p.179). Esse alarme, interminável” (TEIXEIRA, 2011, p. 161). Iremos nos deter sobre esses aspectos de narrativa dos esboços múltiplos adiante.

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uma vez ativo, exige o máximo de uso das capacidades da entidade, de modo que em organismos complexos como os primatas podemos observar (NEUMANN, 1990 apud DENNETT, 1991, p. 180) respostas de orientação no ambiente, que preveniriam mesmo a ativação deste alarme. Assim, Dennett (1991) argumenta que a vigilância do alarme se converteu em um estado de exploração do ambiente, o que teria dado nascimento à curiosidade ou apetite epistêmico. Seria uma extensão natural daquela distinção básica entre interno e externo, acima descrita. Globalmente, essas considerações traduzir-se-iam em uma importante modificação na economia do funcionamento do organismo. Paralelamente a isso, os organismos readaptam seu design na medida em que ocorrem alterações ambientais previsíveis ou imprevisíveis. Dennett (1991, p. 182-184) chama de fixação pós-natal do design [postnatal design-fixing] aquilo que chamamos de aprendizagem ou desenvolvimento. O que poderia determinar a fixação pós-natal do design aos olhos de Dennett só poderia ser algum processo no mínimo semelhante à seleção natural ocorrendo no cérebro, no nível do fenótipo. Esse meio emergente de evolução reproduz e acelera todo o processo de evolução genética, fenômeno este conhecido como efeito Baldwin. Este efeito pressupõe que a plasticidade exista em dada espécie, visto que de um representante desta com certas habilidades comportamentais ainda não aprendidas pelos demais, sucedem-se gerações que se aproximam cada vez mais dessa aquisição. A aquisição dessa habilidade aumenta as chances de adaptabilidade de um indivíduo, e assim por diante (DENNETT, 1991, p. 184-187). Não obstante, os primatas ainda não teria capacidade de se envolver em atividades de longo prazo. Essa plasticidade não é apenas algo que acontece sem que nada precise ser feito, mas obedece, como se verá adiante, a critérios de autoestimulação (que geram estados mentais de ordem superior18), bem como o treinamento (post-natal design-fixing) que vai gradualmente se tornando disponível via cultura. O boom evolutivo considerado no período dos últimos 10000 anos, que é também considerado o boom civilizatório, é considerado por Dennett (1991, p. 190191) antes um crescente direcionamento da plasticidade do cérebro para a 18

Dennett refere-se especificamente a análise empreendida por Rosenthal (1990b, p. 16 apud DENNETT, 1991, p. 307, trad. nossa), em que “estados conscientes devem ser acompanhados por pensamentos de ordem superior, e estados mentais não-conscientes não podem ser assim acompanhados”.

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emergência de algo como um software – que vai sendo constantemente atualizado na medida em que novas aquisições comportamentais são aprendidas. Não há qualquer alteração significativa no hardware (isto é, na estrutura e forma do cérebro), visto que este não difere muito do homo sapiens para o hominídeo antecessor (150000-10000 A.C). Esta atualização seria um reflexo direto das próprias conquistas civilizatórias, como a agricultura e a arte, por exemplo.

4.3.2. Auto-estimulação, cultura e linguagem: os memes Dennett (1991, p. 193-195) crê que antes da linguagem propriamente dita ser estabelecida, algo como uma proto-linguagem a precedeu. Esta era constituída basicamente por vocalizações localizadas em certas circunstâncias, sem uma intenção compartilhada de comunicação. A partir disto, Dennett (1991) especula que em algum momento o hominídeo poderia ter vocalizado alguma solicitação, se dando conta somente em seguida que estava só. Ao ouvir-se, sentira-se estimulado por si mesmo, e encontrou uma solução para o problema que estava enfrentando. Assim, a autoestimulação pode ter sido uma maneira de reestruturar os circuitos que conectavam os componentes do cérebro. Gradualmente, este processo pode ter levado a uma completa autoestimulação silenciosa, privada. Esta habilidade, por decorrência, devia ser limitada às formas de ação praticadas. Ainda, a prática de desenhar também pode ter servido como um hábito de autoestimulação, que poderia estar relacionadas às “imagens” mentais, como um espaço de trabalho para resolução de problemas (DENNETT, 1991, p. 195-199). Como extensão da evolução do design da consciência, Dennett ainda distingue um terceiro meio, que é o meio cultural. A importância deste meio cultural residiria em que este é como uma coletânea de todas as informações por meio das quais os seres humanos operam sua adaptação no ambiente, onde a evolução é mais evidente neste momento (ibid., p. 199-200). Desta perspectiva evolutiva, uma das marcas distintivas da cultura seriam os memes19.

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A noção de meme, introduzida na literatura da biologia por Richard Dawkins, refere-se a unidades de informação transmitidas por imitação. Assim como o gene seria a menor unidade de informação genética, os memes seriam a menor unidade de informação cultural. Exemplos de memes poderiam incluir a Ilíada de Homero, o Hamlet de Shakespeare, os números, cálculos matemáticos, um alfabeto, e assim por diante (DENNETT, 1991, p. 201-203).

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4.3.3. A metáfora computacional O desenvolvimento da racionalidade, da experiência consciente é, portanto, um desenvolvimento memético, que “instala” como que um software no hardware desenhado pela seleção natural. Por imitação, quando criança, aprendemos certas instruções que lançarão, para Dennett (1991, p. 209-210), as bases de toda nossa vida mental, que pode ser entendida como uma máquina virtual. Esta seria um produto da atuação dos memes na organização do cérebro. Nas palavras de Dennett, a hipótese é a seguinte: A consciência humana é ela mesma um grande complexo de memes (ou, mais exatamente, efeito dos memes no cérebro) que podem ser mais bem compreendidas como a operação de uma máquina virtual “von Neumannesca” implementada na arquitetura paralela do cérebro que não foi desenhada para nenhuma destas atividades. Os poderes dessa máquina virtual aumentam vastamente os poderes subjacentes do hardware orgânico em que é rodada, mas, ao mesmo tempo, muitas de suas características mais curiosas e especialmente suas limitações, podem ser explicadas como subprodutos dos kludges que tornam possível esse curioso, porém efetivo, reuso de um órgão existente para novos propósitos (DENNETT, 1991, p. 210, trad. nossa).

Mais precisamente, o cérebro teria uma arquitetura paralela20, mas que implementa um software de processamento serial (i. é., “uma informação de cada vez”). A justificativa para tal proposta é a de que a descrição e a explicação da consciência exigem um nível de análise outro que não o das microalterações funcionais do cérebro, visto que estas não são observáveis de imediato. Ou seja, o uso da metáfora computacional na visão dennettiana visa situar a explicação da consciência a um nível mais abstrato, isto é, no nível da PI. As entradas existentes nesta arquitetura paralela representam as entradas de informações (microhábitos), as quais em associação com a plasticidade do cérebro podem alterar funcionalmente o desempenho ou comportamento do sistema como um todo (macrohábitos), do mesmo modo quando se insere um valor de entrada em um computador se obtém um determinado resultado (DENNETT, 1991, p. 218). A despeito dessa semelhança, a principal diferença está em como essa máquina 20

Isto é, múltiplos canais de entrada processando informações simultaneamente como metáfora para, aproximadamente, 100 trilhões de ligações sinápticas efetuadas por neurônios no cérebro.

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virtual é instalada em cada um dos exemplos: se no computador consiste apenas em carregar as instruções, no humano depende de um treinamento prévio. Isso ocorre por que o cérebro humano não possui uma linguagem única e fixa como possuem as máquinas virtuais carregadas (ibid., p. 219).

4.4.4. Os esboços múltiplos e a ilusão do usuário O MEM postula que existem vários processos cerebrais ocorrendo simultaneamente, responsáveis por fazer edições da realidade, de tal modo que não experimentamos a realidade em si, mas apenas os produtos dessas edições, que consistem em uma interpretação daquela (DENNETT, 1991, p. 111). Ou seja, da captação sensorial bruta, o cérebro processa essas informações de modo a criar representações para os objetos, elementos, porções dessa realidade percebida. Uma vez captado um estímulo sensorial, este não é enviado para um “centro” que executa a tarefa de interpretar, mas, na realidade, na medida em que percebemos alguma coisa, em uma fração mínima de tempo (em questão de milissegundos) passamos a perceber esta coisa por intermédio da representação que dela fazemos. Ainda que seja possível no espaço-tempo precisar a fixação de um determinado conteúdo, isso não representa que este faça parte da experiência consciente (DENNETT, 1991, p. 112-113). Esta é uma questão indeterminada para Dennett: quando um conteúdo passa a ser consciente. Essa perspectiva pretende contrapor-se ao Teatro Cartesiano. Essa figura intuitiva, mas ilusória, que corresponde a um espaço central de organização das informações, planejamento e execução de ações (DENNETT, 1991, p. 113). Ora, o legado dessa noção nada mais é do que alimentar a dicotomia entre mente e corpo. Em vez disso, existe uma arquitetura cerebral com múltiplos canais de entrada de informação que, uma vez apreendida, competem pela sua própria inserção de algum modo nas ações intencionais e relatos verbais do sistema. São pandemônios resultantes da competição entre demônios-especialistas21 que produzem os Esboços Múltiplos (DENNETT, 1991, p. 253-254). Isso ocorre por 21

“Para Dennett, o cérebro é constituído de pequenos ‘demônios-especialistas’, processando informações de forma múltipla e paralela com vários esboços sendo feitos em vários lugares de sua anatomia em qualquer ponto do tempo. Estes pequenos ‘demônios’ que constituiriam o pandemônio de nossas mentes estariam em constante luta e guerra entre eles. Isso quer dizer que não haveria uma narrativa única e canônica que percorreria o

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meio

da

fixação

de

conteúdo

que

se

torna

disponível

no

mundo

heterofenomenológico do sujeito advindos discriminação de estímulos no mundo. Apresentam-se à pessoa como uma narrativa dinâmica que se organiza serialmente, que se desdobra em direção ao futuro, e é múltipla no sentido de que não existe apenas uma versão de narrativa na vida mental consciente do sujeito (MIGUENS, 2002, p. 324). Portanto, o sujeito é um ponto de vista que apreende uma porção do mundo e a organiza metaforicamente neste formato (DENNETT, 1991, p. 101-103). Neste cenário, os estados mentais do sujeito, como crenças, desejos e pensamentos, que também compõe o mundo heterofenomenológico, seriam basicamente ficções úteis para sua adaptação22. Trata-se de uma ficção, pois, de acordo com Dennett à consciência não seria possível o acesso direto aos processos que torna ela mesma possível, da mesma maneira que a partir do manuseio da interface de um software não podemos conhecer os processos que o tornam possível através do hardware (DENNETT, 1991, p. 311-312). Esse processo é chamado pelo autor de Ilusão do Usuário (User Illusion23). A máquina virtual exibe uma interface para que o usuário possa interagir com ela. Nesse contexto, cabe a indagação: mas então quem é o usuário no MEM? (...) o usuário que fornece a perspectiva a partir da qual a máquina virtual torna-se “visível” tem que ser algum tipo de observador externo (...). O “observador externo” pode ser gradualmente incorporado no sistema, deixando para trás alguns vestígios fósseis: pedaços de “interface” cujos vários formatos continuam a restringir os tipos de questões que podem ser respondidas, e, por conseguinte restringir os conteúdos que podem ser expressos. Não tem que existir um único lugar onde a Apresentação acontece (DENNETT, 1991, p. 312-313, trad. nossa).

Como sugere Miguens (2002, p. 351), isso demonstra que com a pretensão de eliminar o Teatro Cartesiano, Dennett não pretende também eliminar algum tipo de percepção interior, que é um processo básico e inerente à consciência enquanto autoacesso.

cérebro de forma sequencial e ‘burocrática’” (PAULO, 2012, p. 57). Cabe ressaltar que os demôniosespecialistas seriam uma metáfora de valor heurístico para pensar as relações entre porções neuronais. 22 A folk psychology não pode ter, para o filósofo, um estatuto epistêmico na explicação científica da consciência. (cf. MIGUENS, 2002, p. 151-154). 23 Este é mais um conceito emprestado do contexto da Ciência da Computação para a metáfora computacional.

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5. DISCUSSÃO Dennett chama o seu empreendimento de “Programa de Desmantelamento de Proteção à Testemunha”. Este já indica a orientação de sua abordagem da consciência. Ele visa, sobretudo, eliminar o Teatro Cartesiano, visto que o dualismo de substâncias legado24 por Descartes postula que a mente é não material, gerando um “fantasma na máquina”, tal como expressa o jargão ryleano (DENNETT, 1991, p. 33; MIGUENS, 2002, p. 46). Assim, esse último posicionamento consiste em uma filosofia sem agenda de explicação científica da mente e consciência, visto que sua empreitada está confinada a encontrar traços distintivos do mental, sem perspectiva de alcançar uma demonstração de como se daria a interação entre os domínios material e imaterial (TEIXEIRA, 2011, p. 24). Além de almejar a desconstrução de uma visão tradicional da consciência, este Programa busca fornecer em seu aspecto propositivo uma concepção efetivamente materialista dos processos mentais e da consciência. Isso seria importante, visto que o legado cartesiano persiste em algumas explicações de cientistas dos campos envolvidos pelas ciências cognitivas sob a forma de um materialismo cartesiano (DENNETT, 1991). Evidência disso reside em explicações em ciências cognitivas que implicitamente se comprometem com a existência de um “centro” organizador e executor da experiência em oposição à “periferia” de estímulos sensoriais. Todavia, a proposta de Dennett (1991, p. 256-257) é, antes de tudo, filosófica. Ainda que busque evidências para apoiar a construção de uma teoria transdisciplinar, não tem a pretensão de confirmá-la em todos os seus detalhes. Antes, o MEM visa interromper discussões metafísicas sobre a consciência, fornecendo à comunidade de teóricos envolvidos com as ciências cognitivas um quadro conceitual heurístico, bem como uma agenda de investigação empírica consistente. Nesse sentido, se por um lado um modelo da consciência precise demonstrar como ela funciona e se ajusta ao cérebro, por outro lado também precisa responder

24

Para uma discussão introdutória mais ampla do legado cartesiano (cf. TEIXEIRA, 2011, p. 29-63).

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à questão de como ela executa todos os seus procedimentos sem o auxílio de um observador interno inescrutável (DENNETT, 1991, p. 254-256). No debate atual em filosofia da mente, o símbolo maior do Teatro Cartesiano residiria na noção de qualia. Esses elementos qualitativos da experiência são, na visão de Dennett (1991, p. 385-386), como o virtus dormitiva anteriormente referido, isto é, não introduzem um elemento novo na explicação da consciência. Mais precisamente, o problema dos qualia é um problema fechado em si mesmo, escrutável tão somente a partir da intuição que um teórico/pesquisador tem de sua própria experiência. Além disso, essa noção de qualidades intrínsecas da experiência também pressupõe consigo a inefabilidade, a privacidade e a incorrigibilidade, com sua dimensão de acesso imediato aos conteúdos da experiência (MIGUENS, 2002, p. 261). Visto que Dennett (1991, p. 369-370) não encontra razões para considerar o sujeito em sua introspecção como sendo a autoridade mais confiável acerca do que está acontecendo consigo mesmo, sugere que o melhor é abandonar a questão da experiência fenomenal, reposta pelo Modelo dos Esboços Múltiplos. Estes elementos qualitativos intrínsecos da experiência seriam no máximo uma característica acessória da consciência. Com isso, Dennett converte o problema ontológico dos qualia essencialmente num problema epistemológico de como se dá o autoacesso do Sistema Intencional a si mesmo (MIGUENS, 2002, p. 262). A teoria do autoacesso se traduz numa teoria de percepção interna. Assim como outros animais, muito daquilo que faz um ser humano está programado geneticamente. A linguagem é uma dessas atividades, para Dennett. Seria a partir dela que a autoconsciência surgiria. Ela, em associação com a consciência, geraria narrativas que se agrupariam em torno de um centro de gravidade narrativa (DENNETT, 1991, p. 418). Ou seja, essas narrativas giram em torno da representação que temos de nós mesmos. Mas isso não significaria que exista um “eu” metafísico. Essa representação organiza as informações que temos a nosso respeito, conferindo uma coerência global para a pessoa, sendo essa autorepresentação um traço daquilo que se denomina convencionalmente por consciência. Esse centro de gravidade narrativa não precisa supor uma localização anatômica no cérebro, pelo contrário,

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trata-se de um espaço semântico, uma ficção teórica útil (DENNETT, 1991, p. 428429). Assim, o que irá ficar estabelecido nesse Programa é que não existe uma diferença entre algo parecer e realmente parecer no que tange a experiência consciente; aqui se aplica a premissa lógica de que se não existe uma diferença entre as duas coisas, é porque são coisas idênticas. A heterofenomenologia irá considerar o relato do sujeito conferindo-lhe o valor de uma ficção, ainda que esta seja útil para este mesmo sujeito (DENNETT, 1991, p. 365-365). Em segundo, no lugar do Teatro Cartesiano, ficam os especialistas que processam diferentes conteúdos cada um, que são como atos de fala sem autoria e sem necessariamente ter uma “linguagem” (seja o mentalês ou qualquer outra língua natural), mas que podem vir a ser expressos verbalmente, pública ou internamente (DENNETT, 1991, p. 366). Em terceiro, não existe uma fenomenologia dos processos mentais, pois eles são uma ficção gerada a partir de experiências reais. Se, mesmo assim, parece existir uma fenomenologia, disto não decorre que essa fenomenologia seja real (DENNETT, 1991, p. 366-367). Uma das qualidades dos eventos mentais, nesse sentido, é serem abstratos (i. é, estarem em um nível intencional), de modo que as explicações que fornecemos (o próprio Teatro Cartesiano, por exemplo) consistem numa ficção útil que permite atribuir sentido às coisas, por mais que se tornem misteriosas ao deixar certas lacunas em aberto. É uma maneira de simplificar a complexidade da realidade de tal maneira que possamos “compreendê-la”, e fazermos alguma coisa em relação a ela. Como um pano de fundo que dá sentido a todos esses fatos, não poderíamos deixar de mencionar que Dennett pressupõe que a consciência é um aspecto superveniente25 da matéria (MIGUENS, 2002, p. 271-274). Daí decorre que para Dennett os zombies chalmerianos sejam inconcebíveis e, por consequência, que a consciência não constitua um hard problem, mas tão somente um problema como qualquer outro. Ademais, o modelo funcionalista apresentado abrangeria todos os

25

A superveniência pode ser natural ou lógica, sendo que Dennett encaixa-se na segunda posição, o que significa que a emergência da consciência por meio de propriedades materiais é algo que se pode evidenciar somente em referência a conceitos lógicos (MIGUENS, 2002).

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problemas

elencados

pelos

proponentes

da

consciência

fenomenal.

Tal

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posicionamento revela o compromisso com o verificacionismo . Em relação à questão de se Dennett pode ser considerado um cognitivista, Gardner (2003) indica cinco aspectos fundamentais que caracterizam as ciências cognitivas. A verificação da necessidade de um nível representacional entre o input e o output, descrito em termos de símbolos, ideias, imagens, esquemas, ou qualquer outra forma de representação mental é uma característica igualmente presente no trabalho dennettiano. Entretanto, Dennett (1991, p. 108-111) apresenta certas reservas em relação à utilização de termos como input e output, aferência e eferência, por estes deixarem implícita a existência de um medium onde ocorreria o processamento central e, portanto, ser sintomático de uma forma de materialismo cartesiano. Em segundo, Gardner (2003) assinala que a inclusão do computador como metáfora para compreensão dos processos cognitivos e resolução de problemas, além de simulador em tempo real destes processos é uma característica marcante também do empreendimento cognitivista. Em relação a este aspecto, podemos observar que Dennett (1991) enfraquece a noção funcionalista de instanciação da consciência como um software (ibid., p. 209-210), ao vinculá-la ao background realístico da evolução natural das espécies (ibid., 190-191). A não enfatização de processos emocionais, contexto, cultura e história é a terceira característica apontada por Gardner (2003). Esses elementos não são excluídos, mas por se tratarem de itens com um elemento subjetivo saliente, os empreendimentos em ciências cognitivas tendem a não enfocá-los sob o risco de torná-los impraticáveis. Talvez esse ponto seja o mais polêmico para pensarmos a relação com a teoria da consciência dennettiana, visto que esta é formulada a partir da PI, que representa um ponto de vista que visa contextualizar as ações de acordo com o ambiente em que ocorrem (DENNETT, 1991, p. 76-77). Já os processos emocionais e culturais são elementos que aparecem em Consciousness Explained respectivamente como processos com um valor evolutivo evidente ainda que obscuro,

e

como

repositório

de

memes

disponíveis

para

treinamento

e

autoestimulação, diretamente envolvidos com a instanciação da consciência. 26

Tese filosófica segundo a qual o atributo principal do existir fenomênico é a manifestação, de modo que não

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Entretanto, na explicação estrita dos Esboços Múltiplos, estes últimos aspectos não são muito significativos. Talvez pudéssemos supor alguma relação entre os processos emocionais com os pandemônios, entretanto, essa questão não poderia ser tratada com qualidade no escopo deste trabalho. Já a história, deduzimos que, no contexto da teoria da consciência dennettiana, ela tenha um valor restrito à história da evolução das espécies e, no máximo, ao ciclo vital de um ser humano particular. Uma quarta característica elencada por Gardner (2003) diz respeito à crença em estudos interdisciplinares. Refere-se à busca de uma unidade explicativa entre as disciplinas mais relevantes para a compreensão da inteligência consciente. Esse aspecto está amplamente em consonância com os prospectos de Dennett (1991, p. 267-269), que inclusive aposta na junção entre Inteligência Artificial e as neurociências – movimento chamado conexionismo, como o avanço mais urgente para a compreensão de “como a consciência repousa no cérebro”. Por fim, Gardner (2003) indica que as ciências cognitivas encontram respaldo em problemas filosóficos de longa data. Ora, o posicionamento aqui discutido se opõe a um legado filosófico que remonta no mínimo desde a Idade Média, em Descartes (DENNETT, 1991, p. 33-39), o que demonstra que o autor também possui um vínculo com esses problemas filosóficos de longa data. Além disso, o problema da consciência está na praça desde a Filosofia Antiga, e a abertura para uma investigação empírica dos processos cognitivos naturalmente constitui um convite para a formulação de teorias que extrapolem o campo filosófico. É exatamente neste sentido que a filosofia da mente, no posicionamento dennettiano, surge como um inquérito impuro, traduzida como um esforço que cumpre um papel norteador, não duplicante do empreendimento empírico, que se destina a organizar o conhecimento produzido pela primeira (DENNETT, 1991, 41-42, MIGUENS, 2002). A partir disso, deve desdobrar possíveis implicações de novos achados, ao mesmo tempo em que busca esclarecer certas suposições metafísicas feitas pelos próprios cientistas.

pode existir algo oculto e consciente ao mesmo tempo (MIGUENS, 2002).

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6. CONCLUSÃO

O MEM é uma proposta heurística que surge a partir da análise da linguagem e das ações, que evidenciam o mundo heterofenomenológico da pessoa. Dessa análise, Dennett desdobrará críticas à noção de qualia, entendendo que essa noção sustenta o Teatro Cartesiano. Portanto, o MEM será o que ficará no lugar desta visão que o filósofo considera falaciosa. Ao rejeitar a existência de uma intencionalidade intrínseca (um dos elementos centrais dos qualia), Dennett formula uma teoria intelectualista e deflacionária da consciência. O MEM terá por parâmetros filosóficos o verificacionismo e a superveniência lógica. Como um adepto do funcionalismo, entenderá que o que é necessário para a explicação da consciência são funções, reações dispositivas e juízos. Diferencia-se de outros funcionalistas na medida em que busca vincular sua teoria da consciência a uma perspectiva coerente com a evolução das espécies. Foi evidenciado que os esforços empreendidos na construção deste modelo são voltados para a comunidade de teóricos das ciências cognitivas. Ao mesmo tempo, foi evidenciada a crítica dennettiana a resquícios do legado cartesiano subjacente a certos trabalhos produzidos neste campo, o qual denomina “materialismo cartesiano”. Isto é problemático na visão do autor, na medida em que gera impedimentos para o avanço da compreensão da consciência de uma perspectiva materialista coerente. Pode-se

considerar

Dennett

um

cognitivista

justamente

por

esse

compromisso explícito e ativo com o desenvolvimento das ciências cognitivas. No entanto, as características cognitivistas que Dennett incorpora o tornam uma figura com um posicionamento singular no contexto da filosofia da mente e relevante para o desenvolvimento das ciências cognitivas.

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