A Teoria do Conhecimento Contábil: o pragmatismo norte-americano.

May 23, 2017 | Autor: Valerio Nepomuceno | Categoria: Accounting History, Accounting Theory
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A Teoria do Conhecimento Contábil: o pragmatismo norte-americano1

Prof. Valério Nepomuceno2

“A verdade não é um valor teórico, mas apenas uma expressão para designar a utilidade, para designar aquela função do juízo que conserva a vida e serve a vontade do poder” (Friedrich Nietzsche) “Se chamarem a isto utilitarismo, não fico envergonhado” (Charles Peirce)

Artigo publicado na Revista do CRC do Rio Grande do Sul, nº 87, Porto Alegre, Outubro/Dezembro,1996. 1

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Escritor, pesquisador, ensaísta.

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SUMÁRIO

página 1. A problemática epistemológica na contabilidade e as vertentes das ciências naturais x ciências sociais 1.1. Conhecimento científico (epistemologia) 1.2. Topologia filosófica 1.3. Epistemologia contábil (introdução) 1.3.1. A informação contábil do ponto de vista semiótico 1.3.2. A ambiência empresarial e as atividades contábeis em relação ao objeto pesquisado “fotografia” contábil 1.3.3. Descrição e abdução 1.3.4. A descrição e a teoria de contabilidade 1.3.5. O paradoxo da descrição normativa 2. Conclusão (primeira parte) 3. Bibliografia

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INTRODUÇÃO O pensamento no campo da Contabilidade Superior tem avançado enormemente no final deste milênio. Se considerarmos que o furor científico contábil tem os pés fincados há menos de um século atrás, então poderíamos concluir, relativamente, que grandes progressos já foram conseguidos até os nossos dias. A informática, em particular, tem desempenhado um papel fundamental nesse sentido, possibilitando reflexões e experimentações científicas mais rigorosas e, paradoxalmente, mais suscetíveis a erros e conflitos internos, o que também contribuiu para a formação de grupos de interesses antagônicos. Sem embargo, é nesse processo dialetizante que se dá o aprimoramento das ciências. Os segmentos mais expressivos e antagônicos que adquiriram ao longo das últimas décadas representação no meio acadêmico e empresarial, podem ser agrupados, basicamente e de forma simplificada, em dois grupos3: aqueles que sustentam a tese de que a contabilidade é um sistema de informações (às vezes considerada também como tecnologia, ciência aplicada, etc); e o segundo grupo, formado por aqueles que defendem a idéia de que a contabilidade é uma ciência pura, autônoma, dotada de princípios filosóficocientíficos próprios. Apesar das divergências entre esses dois grandes grupos (pragmático e filosóficocientífico), há um ponto comum entre eles que é a convicção de se estudar a contabilidade sob a ótica do científico, ou seja, de acordo com regras, normas e princípios aceitos pela comunidade científica, abandonando-se, definitivamente, os padrões comportamentais do senso comum (mesmo os pragmáticos tentam buscar uma razão plausível para seus argumentos científicos). Percebemos uma nova realidade contábil composta de uma

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O nosso raciocínio para a formação desses dois segmentos baseia-se, tão-somente, na observação empírica das referências bibliográficas contidas nas publicações científicas feitas na área contábil, no Ocidente. Por exemplo, nos Estados Unidos (que são um dos formadores de opinião), todas as publicações são voltadas para a natureza pragmática da contabilidade; reforçam de maneira incisiva que a contabilidade não é uma ciência pura, mas um sistema de informações com a prevalência dos seus aspectos tecnológicos. Não fazem qualquer referência bibliográfica às publicações científicas feitas na Europa, particularmente, na Itália (que foi, indubitavelmente, o maior e mais avançado centro de estudos superiores da contabilidade, deixando um enorme acervo bibliográfico); na Europa, especialmente na Espanha, geralmente as publicações fazem citações bibliográficas dos trabalhos norte-americanos, mas também não deixam de fazer referência aos autores italianos, ingleses, franceses, alemães, etc. Todo o trajeto feito pelas publicações científicas européias leva em consideração a contabilidade como ciência; na América do Sul, praticamente todos os países (Argentina, Brasil, Colômbia, Chile e outros) sofrem a influência do pensamento pragmático norte-americano, embora também façam inúmeras citações bibliográficas dos autores espanhóis e italianos.

4 “cidadela científica” (A. Moles) que se tornou mais investigatória e mais objetiva, porém tomando caminhos diferentes. A dicotomia entre os dois grandes grupos, segundo entendo, se origina da forma de pensar-filosófico. O primeiro grupo, cuja característica essencial é a afeição ao pragmático, sofre profundas influências do empirismo (Locke, Hume e Leibniz). O Prof. Régulo M. Puentes (Colômbia), em sua obra La Contabilidad como Ciência, faz a seguinte análise: “La manera de pensar y actuar de la escuela anglosajona en todo lo que se relaciona con la contabilidad, nace del empirismo inglés o sea que el conocimiento proviene de una experiencia externa producida por los sentidos...”(pág. 30). O outro grupo com as raízes na escola italiana, parte do pressuposto de que a contabilidade é uma ciência, sobretudo pura, tendo como base metodológica as orientações sugeridas por Popper, Carnap, Bunge, Hempel (neo-racionalistas), ou então, E. Husserl, Hegel, W. Luijpen, A. Moles (fenomenólogos, com influências estruturalistas, funcionalistas). O nosso estudo objetiva examinar, do ponto de vista da filosofia das ciências, as bases de formação desses dois grandes grupos, discutir seus principais elementos constitutivos, suas limitações e suas impropriedades. Interessa-nos, particularmente, abordar, a polêmica existente no campo contábil entre ciências naturais x ciências sociais, que rigorosamente tem a ver com a dicotomização dos dois grupos. 1. A problemática epistemológica na Contabilidade e as vertentes das ciências naturais x ciências sociais. A epistemologia contábil tem sido tema de discussão em diversos países e com os mais diversos entendimentos. No Brasil, o assunto tem a atenção especial do pesquisador Prof. Lopes de Sá, em sua obra Teoria da Contabilidade Superior e outras; na Argentina vários autores têm se dedicado ao assunto, como o Prof. Eduardo R. Scarano (com estudos voltados para a Tecnologia contábil); o Prof. Carlos L. Garcia Casella (contabilidade enquanto ciência pura); o Prof. Lucio Gonzalez Bravo (paradigma tecnológico); na Colômbia, o Prof. Régulo Millan Puentes; na Espanha, o Prof. José Maria Requena Rodriguez; e nos Estados Unidos, dentre outros, o Prof. Ijiri e o engenheiro mecânico Richard Mattessich, estudioso dos assuntos contábeis. Todos esses trabalhos foram escritos, na sua maioria, há menos de vinte anos. Significa dizer que a epistemologia na contabilidade tem sido estudada pelos pesquisadores, de forma sistemática, há muito pouco tempo. Daí compreendermos, com relativa facilidade, porque o pensamento em torno da epistemologia no campo contábil tem pontos díspares, às vezes confusos, controvertidos e incipientes. Em resumo, há quem queira teorizar a prática e há quem tente praticar a teoria. A natureza conceitual da epistemologia, empreendida por alguns pesquisadores e aplicada no seio de algumas pesquisas contábeis, se nos apresenta de maneira confusa e às vezes superficial, prejudicando, por vezes, o entendimento dos objetivos pretendidos. Evidentemente que não é matéria fácil, dada a complexidade das ocorrências no campo científico contábil que não difere de outros ramos científicos, no concernente à compreensão e síntese do conhecimento. A temática epistemológica em contabilidade é demasiado ampla para se tentar esgotá-la em um artigo somente. Mas, creio que poderemos delinear os argumentos

5 essenciais abordados pelas duas facções, sem perigo de incorrermos em leviandade. O interesse primeiro é a apreensão significativa da utilização de métodos antagônicos na elaboração de uma teoria geral do conhecimento contábil e sua análise. É, então, necessária uma posição, ainda que geral, sobre a epistemologia no cerne das ciências e, em particular, na ciência contábil, pelo menos para conseguirmos apreender o sentido das propostas apresentadas no campo contábil. Para os nossos propósitos, conceituarei, provisoriamente, a epistemologia como sendo a síntese do conhecimento científico acumulado durante algum período de tempo por uma ciência. Para Platão, epistemologia significa o conhecimento científico (episteme), diferente de conhecimento vulgar (doxa). É nesse sentido platônico que considerarei a epistemologia, que aqui será identificada também por Teoria do Conhecimento Científico (ramo de estudo da Filosofia). O conhecimento vulgar, ou comum, é aquele apreendido pelo homem ingênuo. Essa apreensão se dá no mundo das vivências passadas e presentes, sem indagações científicas e filosóficas. Conhecer vulgarmente é perceber a realidade dos seres e das coisas no plano desprotegido da razão científica; é o estado de ignorância científica (o que não pressupõe afirmar a ausência de cultura, por exemplo, mitos, crenças, valores, juízos, etc, que são os elementos formadores do conhecimento vulgar). 1. Conhecimento Científico (epistemologia): Epistemologia é o processo de percepção, indagação, crítica e sistematização dos fenômenos naturais e sociais no mundo, como base para novos projetos de conhecimento. Esse processo se dá a partir do ser humano e em seu favor. Para Piaget a epistemologia é a: Teoria do conhecimento válido e, inclusive se o conhecimento nunca é um estado e constitui sempre um processo, este processo é essencialmente o trânsito de uma validade menor para uma validade maior. Daí resulta que a epistemologia é necessariamente de natureza interdisciplinar, posto que tal processo suscite simultaneamente questões de facto e de validade. Se se tratasse unicamente da validade, a epistemologia confundir-se-ia com a lógica. Mas seu problema não é puramente formal; aponta para a determinação de como o conhecimento alcança o real e, portanto, de quais são as relações entre o sujeito e o objeto. Se tratasse unicamente de factos, a epistemologia reduzir-se-ia a uma psicologia das funções cognoscitivas, a qual não serve para resolver questões de validade. A primeira regra da epistemologia genética é, pois, uma regra de colaboração. Uma vez que o seu objetivo é estudar o modo como aumentam os conhecimentos, em cada questão particular há que fazer cooperar os psicólogos que estudem o desenvolvimento como tal com os lógicos que formalizem as etapas ou estágios de equilíbrio momentâneo de tal desenvolvimento e com especialistas da ciência conhecedores do campo considerado. A tal cooperação temos de acrescentar naturalmente a dos matemáticos que asseguram o vínculo entre a lógica e o campo em questão e a dos cibernéticos que asseguram o vínculo entre a psicologia e a lógica” (Psicología y Epistemología, Ariel, Barcelona, 1971) (grifei).

Na opinião de Rui Magalhães

6 A imagem do cientista-epistemológico, por muito curiosa que possa ser do ponto de vista históricocultural, não passa de uma tentativa dramática de analisar a situação atual à luz das categorias do pensamento clássico. O que realmente acontece é que as questões ditas epistemológicas perderam o seu estatuto de exterioridade em relação à ciência. O pensamento científico contemporâneo atingiu um nível altamente específico de desenvolvimento que não permite a manutenção da distinção entre problemas científicos - relativos à realidade - e problemas epistemológicos - relativos ao modo de conhecer e ao estatuto dos elementos teóricos em questão. Poder-se-ia dizer, numa linguagem talvez não muito rigorosa, mas elucidativa, que tudo se tornou científico e, simultaneamente, tudo se tornou epistemológico.”4

Diferentemente do ceticismo de Rui Magalhães, quanto ao significado e autonomia (“estatuto de exterioridade”) da epistemologia, a manifestação do Prof. da Universidade de Tubinga, Otto Bollnow é mais incisiva quando trata do fracasso da teoria do conhecimento tradicional e a perda de interesse pelo seu desenvolvimento. Atribui esse fracasso a três fatores: 1) o delineamento da epistemologia se deu através de novos métodos, os quais acabaram por não ser implementados, perdendo-se muitas vezes em sutilezas; 2) a abordagem do problema sempre conduzia a labirintos dos quais não se saía, abandonandoos após inúmeras soluções fracassadas; 3) adicionando-se também à crescente compreensão de que o conhecimento não flutua no vazio e, portanto, não pode desenvolver-se como sistema auto-suficiente, uma vez que integra uma vasta conexão de ser e de vida e só pode fundar-se nela. O Novo Espírito Científico de G. Bachelard também reclama da exaustão da teoria do conhecimento clássico e propõe que: Princípios epistemológicos verdadeiramente novos parecem-nos deva introduzir-se na filosofia científica contemporânea. Tal seria, por exemplo, a idéia de que os caracteres complementares devem ser inscritos na essência do ser, em ruptura com a tática crença de que o ser é sempre signo de unidade... Para o cientista, o Ser não é apreendido num bloco nem pela experiência nem pela razão. É preciso que a epistemologia dê conta da síntese mais ou menos móvel da razão e da experiência, mesmo quando esta síntese se apresentasse filosoficamente com um problema desesperado. 5

Sugere ainda que o epistemólogo deve colher, no seio do racionalismo e do realismo, o novo dinamismo necessário aos novos objetivos da epistemologia (“o diálogo da razão e da experiência”). Com Bachelard, os estudos sobre a epistemologia tomam um novo curso, despertando a atenção dos grandes pensadores contemporâneos e, por duas razões básicas, julgamos importante deter-nos sobre esse ponto um tempo maior porque: 1) com Bachelard há uma importante discussão envolvendo novos métodos e objetivos, que perpassam desde o idealismo até o realismo; 2) os escritos epistemológicos contábeis, publicados mais recentemente, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, seguiram (ou colidiram com) as sugestões dadas por Bachelard. 2. A Topologia Filosófica 4

Prefácio da obra de Robert Blanché, in A Ciência actual e o Racionalismo, Ed. Rés, 83 [prefácio à ed. portuguesa]. 5 Gaston Bachelard, in O Novo Espírito Científico, Ed. Tempo Brasileiro, 1968. [págs. 20-22]

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A Profa. Marly Bulcão, em sua dissertação de mestrado, apresenta, numa linguagem simples e objetiva, o pensamento epistemológico de Bachelard. De acordo com ela, “o polifilosofismo bachelardiano não é um ecletismo, pois não se trata de selecionar o que cada sistema filosófico tem de positivo para tentar compreender o real.” 6; acrescenta que o seu polifilosofismo está fundamentado na noção de “perfil epistemológico” e no esquema explicativo da atividade científica contemporânea, denominada de Topologia Filosófica. Para Bachelard (em O Racionalismo Aplicado), as filosofias das ciências se encontram dispersas em torno de produção dos conhecimentos científicos, de acordo com o seguinte esquema:

Idealismo  Convencionalismo  Formalismo  Racionalismo Aplicado e Materialismo Técnico  Positivismo  Empirismo  Realismo Bachelard, Gaston. O Racionalismo aplicado, [pág.11], apud Racionalismo da Ciência Contemporânea, de Marly Bulcão, [pág.34]

O esquema acima visa evidenciar que o realismo e o idealismo sofrem de problemas de adequação à atividade científica contemporânea porque, no tocante ao idealismo, segundo Bachelard, esse somente alcança as idéias num plano inexeqüível da racionalidade; de outra parte, o realismo também se inviabiliza, por si só, uma vez que não consegue apreender o significado do ser enquanto ser. Conclui então que a prática científica atual deve ser feita de acordo com o que ele denominou de racionalismo aplicado e materialismo técnico. Em resumo, o foco da proposta bachelardiana, nas palavras de Marly Bulcão, é de que: A ciência passa a ser produção e, não mais, representação; seu aspecto contemplativo é substituído por uma atividade, o que significa reconhecer a essencial dinâmica que a caracteriza. A objetividade passa a ser uma conquista, somente alcançada após um esforço do sujeito que conhece 6

Marly Bulcão, in Racionalismo da Ciência Contemporânea: uma análise da epistemologia de Gaston Bachelard, Ed.Antares Universitária, 1981. [pág. 30].

8 e que ativamente acumula as condições de objetividade... O objeto da ciência não existe na natureza; não é um dado que está pronto, esperando para ser apreendido pelo sujeito... O racionalismo de Bachelard é uma posição entre o realismo e o idealismo, pois nem afirma a existência da qualidade na substância, nem a reduz a uma ilusão do sujeito.”7(grifei)

Possivelmente um dos méritos da epistemologia bachelardiana seja o distanciamento em relação ao positivismo, o que de certa maneira desvia um pouco o curso da tese naturalista, mesclando-a com elementos formais e aceitando, com certos limites, a reflexão do ser. Se considerarmos que o realismo ou empirismo tolhem a possibilidade ou a flexibilidade inerente ao ser-pesquisador, como indivíduo partícipe do processo da pesquisa e que, no novo espírito científico sugerido por Bachelard, esta impossibilidade de aproximação sujeito/objeto e objeto/sujeito se dilui um pouco, devendo ser considerada como um relativo avanço. Entretanto, do outro lado da epistemologia – que trata das idealidades – Bachelard a repudia categoricamente. Charles Peirce não escreveu sobre epistemologia, mas delineou as suas idéias, embora fragmentárias, acerca do raciocínio, das ciências normativas e da lógica. É um dos precursores do pragmatismo norte-americano. Entende que a lógica consiste em adaptar o sujeito ao fim. Ele mesmo se intitula utilitarista. Em suas interpretações lógicas procura ver a utilidade do pensamento. Suas idéias, juntamente com as de John Dewy e William James, foram digeridas rapidamente pelos pensadores norte-americanos. A conduta ou o comportamento do povo norte-americano muito se assemelha às idéias de Peirce. Talvez sejam eles os seus inspiradores. A contabilidade pragmática, por conseqüência, tem os princípios filosóficos inspirados nesses pensadores, embora na atualidade, diversos pesquisadores contábeis tenham extrapolado os conceitos peirceanos, particularmente, quanto ao conceito de ciências normativas. O raciocínio necessário, diz Peirce, é diagramático. “Construímos um ícone8 do estado de coisas hipotético e observamos. A observação leva a suspeitar que algo é verdadeiro – fato que talvez não possa ser formulado com precisão – e assim é preciso pesquisar. Torna-se necessário elaborar um plano – o que constitui a parte mais difícil da operação. Não se trata apenas de selecionar certos traços do diagrama, mas é mister voltar por diversas vezes a outros traços. De outro modo, mesmo que as conclusões estejam corretas, não se chega aos objetivos almejados. A técnica toda está em saber utilizar abstrações convenientes; uma transformação operada do diagrama pela qual os traços característicos venham a aparecer noutro diagrama como coisas.” Peirce diz: “Indução consiste em partir de uma teoria, deduzir predições dos fenômenos e observá-los para ver o grau de concordância com a teoria. A justificativa para acreditar que uma teoria que foi submetida a certo número de testes experimentais continuará sendo corroborada no futuro por testes semelhantes é que prosseguindo firmemente no método empregue, a longo prazo, descobrimos em que pé está o assunto.[...]” Ressalta a importância do significado de abdução: “é o processo para formar hipóteses explicativas. É a única lógica a introduzir idéias novas; pois que a indução não faz mais que determinar um valor, e a dedução

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Marly Bulcão, op. cit. pág. 118 e 139 ícone, segundo Peirce, forma, juntamente com o índice e o símbolo a tricotomia da representação (um dos elemento do fenômeno); a representação juntamente com a reação e a qualidade-sensação forma a categoriaterceira (ou terceiridade). 8

9 envolve apenas as conseqüências necessárias de uma pura hipótese.” 9 É defensor de uma ética utilitarista, embora toda a sua obra é inconclusa e fragmentária. Após esses prolegômenos, creio que será mais produtivo e menos enfadonho para os interessados em epistemologia contábil, tentarmos abrir essa discussão no campo da contabilidade, buscando clarear melhor esses aspectos epistemológicos no contexto contábil. 3. Epistemologia Contábil (introdução) Será mais útil abordar a epistemologia defendida pelos pesquisadores que se identificam com o pragmatismo, mesmo porque está diretamente relacionado com a introdução feita até aqui. Ainda não abordei outras questões que são importantes para a compreensão do todo epistemológico contábil, como: a ciência contábil é uma ciência natural ou social? Certamente que abordarei, oportunamente, essa questão, reputo da maior relevância, e ainda negligenciada por vários epistemólogos contábeis. A ordem de apresentação aqui obedece à lógica da historicidade epistemológica; ou seja, primeiro, o processo de aperfeiçoamento dos métodos de pesquisa científica no campo das ciências físicas, e depois, o processo nas ciências sociais, cujas influências do primeiro se fazem ressentir ainda hoje, especialmente na epistemologia contábil desenvolvida pelos pesquisadores norte-americanos, ainda que de forma implícita 10. O pragmatismo na ciência contábil asserta os mesmos princípios estabelecidos pelo pragmatismo filosófico idealizado por Peirce, William James, Royce e outros. A base fundamental da teoria pragmática é a utilização de elementos lógicos para se alcançar o fim útil: “toda a função do pensamento é produzir hábitos de ação” e “o que significa uma coisa é simplesmente os hábitos que envolve” (pragmatic maxim, de Peirce).

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Charles Peirce, op. cit.: pág. 44-46 A epistemologia contábil empreendida pelos autores norte-americanos, me chama a atenção para um fato curioso, ou no mínimo, sui generis. Quase todas as suas obras que tratam desse assunto me passam a impressão de que nada foi escrito até hoje em matéria epistemológica. Nenhuma referência é feita a quem quer que seja no campo epistemológico. Dos pré-socráticos aos maiores tratadistas do gênero em nossa atualidade, como alguns que já mencionamos aqui, não há qualquer citação. Tudo, na teoria do conhecimento científico, parece estar se iniciando com a contabilidade e nos Estados Unidos, e que nada foi escrito antes. Se deixarmos a epistemologia e ficarmos somente na ciência contábil propriamente dita, tenho a mesma sensação: de que a contabilidade no mundo se iniciou com os norte-americanos; eles não fazem qualquer referência, reflexão ou análise sobre outros trabalhos importantes que mudaram o curso da ciência contábil, como são os tratados escritos por Vincenso Masi, Smalembach e outros. Embora, como veremos adiante, implicitamente, posso geografizar os seus contornos e ligações características com algumas correntes atuais. Todas as minhas considerações acima, de cunho meramente curioso, não me autorizam afirmar a priori que tudo o que eles escreveram está errado porque não citaram ou analisaram nenhum autor estrangeiro (Seria leviandade imperdoável da minha parte). Talvez seja somente uma característica social do povo norteamericano, tão bem registrada por Tocqueville. 10

10 “A contabilidade é utilitária no propósito e descritiva na natureza” “Uma disciplina utilitária deve ter algum fim em vista, mesmo que o fim seja mal definido...”(McDonald, Comparative Accounting Theory, 1972).

A Contabilidade pragmática tem como pressuposto a ética utilitarista, cujo fundamento é o consenso (“homónoia”11), e perpassa essa conduta para a epistemologia contábil. Se a tese sustentada por Bertrand Russell 12 e outros, de que o pragmatismo visa a verdade enquanto utilidade, ou seja, é passível adequá-la segundo a força, ou a conveniência do indivíduo, então podemos também adequá-la, convenientemente, de forma a demonstrar a negação da epistemologia contábil pragmática. O primeiro questionamento de caráter lógico-dedutivo, que se nos aporta é se é possível demonstrar a negação de um argumento partindo-se de premissas falsas. Melhor dizendo, o pragmatismo enquanto pressuposto (método), admitido como falso em sua natureza, serve para demonstrar a falsidade do falso? Não, embora alguns aceitem que a negação do falso é tautológica ( p p ); é o mesmo que afirmar a verdade. Entretanto, esse percurso não precisa, necessariamente, ocorrer se o objetivo for no sentido de se utilizar o pragmatismo não como premissa lógica, mas como instrumento, como “força” possibilitadora de verdade (verdade útil). Dessa forma, podemos hipotetizar que se a epistemologia da contabilidade pragmática é utilitarista e do tipo consensualista, (significa dizer que ela é homonoística e aceita o argumento de Peirce de que “as falácias são devido a erros, em si logicamente válidos, embora fracos como argumentos”), então a epistemologia contábil pragmática é fraca nos seus argumentos. Hipoteticamente, aceitar o argumento de que a contabilidade pragmática é fraca nos seus argumentos, significa aceitar a tese de Peirce de que um argumento é válido se possui a força que afirma ter e caminha para a conclusão na forma pretendida; e um argumento é falacioso, não ilógico, por ter pretendido aquilo que não provou (Pensadores, pág. 55). E o que pretende provar a contabilidade pragmática? Segundo suas publicações científicas, que os seus métodos pragmáticos são eficazes na ação utilitária de informar ao usuário (objeto fim). Mas, em que, exatamente, os seus métodos fazem com que a informação pragmática seja diferente das outras informações contábeis, se desde o início do século as estruturas demonstrativas contábeis permanecem as mesmas como foram feitas pelos europeus? Ou seja, as publicações contábeis feitas nos Estados Unidos não deveriam diferir, essencialmente, daquelas feitas em qualquer país que adote a mesma estrutura contábil. As estruturas contábeis formais no Ocidente, com a exceção de alguns países que variam a sua forma de classificar ou de dispor alguns grupos, não são divergentes no geral: todos os países obedecem às partidas dobradas, à estrutura do balanço patrimonial, a demonstração de resultado, etc. Se a estrutura é a mesma, porque então essas disparidades? Por que será que os pragmáticos nada têm a contribuir em relação a essas estruturas formais contábeis, 11

O termo grego homónoia significa “identidade de pensamento”, que se traduz por “acordo”, “consenso”, por vezes “concórdia”, são termos que pertencem antes de mais nada ao vocabulário dos atomistas (Heráclito e Demócrito) e dos sofistas (Górgias, Ãntifon, Crístias, Trasímaco). Para a sofística, o logos torna-se a virtude política por excelência. (extraído da obra de Barbara Cassin, Ensaios Sofisticos,1990, Siciliano). 12 Bertrand Russell, in El Impacto de la Ciencia en la Sociedad, Ed. Aguilar, 1952. [pág. 107-108]

11 ou será que já estão convenientemente “perfeitas”, do ponto de vista científico, que não necessitam mais de qualquer apreciação no campo da pesquisa? As suas informações contábeis são realmente eficazes? E o que são essas informações? Quais são esses métodos? A informação contábil, sob a ótica pragmática, enquanto fim em si mesma, reduz a ciência contábil a uma técnica. (O que não é nenhuma novidade para os pesquisadores contábeis). A expressão técnica (do grego, téchne, etimologicamente, quer dizer “arte”), significa, dentre outras coisas, regras por meio das quais se consegue algo; por exemplo, a técnica de navegação (ou “arte da navegação”; a técnica da caça (ou “arte da caça”); a técnica contábil (ou “arte contábil”). A técnica ou as regras técnicas para se alcançar a informação contábil é constituída, segundo a AICPA13, dos seguintes elementos: registro, classificação, sumarização e interpretação. Estaria parcialmente correto se não fosse um fim em si mesmo. Vejamos porque. As teorias contábeis pragmáticas estão divididas em duas grandes categorias. Segundo a obra do Prof. Mc Donald (Comparative Accounting Theory, 1972), ela se compõe de Teoria de Contabilidade (cuja natureza é puramente descritiva e tenta provar, por meios racionais e estruturais, a contabilidade como ela é); e a Teoria para Contabilidade (que tem por princípio a normatividade, tenta construir a estrutura teórica para contabilidade com ela deveria ser) Na teoria de contabilidade, o dado (registro contábil), de acordo com os pragmáticos, é o ponto de partida para o projeto de predições, raciocinado em termos naturais – como se o fenômeno fosse mecânico, impessoal, incontrolável e natural. É extraído do seio das atividades contábeis como objeto posto naturalmente, diria, estável, coisificado, desprovido de qualquer pregnância e interpretado como objeto físico. (Quanto ao significado de pregnância, oportunamente, tratarei do assunto). As atividades contábeis são ações contábeis empreendidas pelos contadores. Os contadores são assim os agentes promotores de informações. Tais informações, enquanto registros, não têm o caráter imediato de explicação e nem de compreensão dos fatos contábeis, mas tão somente descrição. Ou seja, pretende ser somente uma máquina fotográfica que visa a registrar com fidedignidade um fato contábil. O conjunto de objetos “fotografias contábeis” são os definidores das atividades contábeis. E é esse conjunto o objeto de estudo dos pragmáticos. A partir dessas “fotografias”, elaboram outras informações, por um processo de indução e dedução, tirando daí conclusões e asserções que se transformarão em teorias e predições. Temos alguns elementos importantes mencionados acima que merecem ser mais bem verificados, por exemplo: 1. a informação contábil, do ponto de vista semiótico; 2. a ambiência empresarial e as atividades contábeis em relação ao objeto pesquisado “fotografia contábil”; 3. descrição e abdução. 13

O American Institute of Certified Public Accountants, Committee on Terminology, dá a seguinte interpretação para a Contabilidade: “é a arte de registrar, classificar e sumarizar de maneira significativa e em termos de moeda, transações e eventos que são, em parte pelo menos, de caráter financeiro e interpretar os resultados destes.” Bulletin n° 1, Review and Résumé. New York, 1959, p. 9. apud, Comparative Accounting Theory, Mc Donald, 1972. Possivelmente hoje essa definição não seja exatamente como em 1959, mas certamente mantém a mesma essência.

12 4. a descrição e a teoria de contabilidade 1.1. A informação contábil, do ponto de vista semiótico: Primeiro é preciso que se diga que a informação contábil, seja ela qual for, será sempre uma representação da realidade, nunca a realidade, exceto quando ela própria for a realidade de si mesma, enquanto existência. Segundo, a informação contábil só ocorre porque anteriormente ocorreu um “fato contábil”, que também dependeu de outro fato, que era a própria realidade. Mas, a recíproca pode não ser verdadeira; há alguma realidade vivida-empresa que não é informação contábil. Portanto, a informação contábil tem a ela ligada, a priori, uma realidade vivida. Invertamos as posições: primeiro ocorre o fato (realidade vivida) depois a informação sobre aquele fato. Melhor exemplo não há do que aquele dado por Mc Donald: evento  repórter  editor  jornal  leitor  conceito/leitor Os pragmáticos, adeptos da teoria de contabilidade, entendem que o processo contábil se inicia com o “repórter”, ou seja, com o contador. Para aqueles que se orientam segundo a teoria para contabilidade, tudo se inicia com o “evento” e não com o “repórter”. Aceitarei, provisoriamente, a tese pragmatista de que a pesquisa contábil tem que ser desenvolvida na natureza. Isso significa dizer que o objeto de estudo se encontra na natureza como objeto posto ou dado positivamente, como na física, na química ou na biologia. Analisarei semioticamente apenas a teoria de contabilidade, porque tenho razões para acreditar que a segunda categoria cai na condição de uma análise empirista factual (observação de fenômenos do mundo-real). Como já afirmei anteriormente, a teoria de contabilidade tem a preocupação, enquanto pesquisa contábil, com a análise dos registros feitos pelos contadores tão somente. O pesquisador nesse caso não se preocupa com os fenômenos do mundo-real, mas somente com as atividades contábeis. Tenho sérias dúvidas quanto à validade desse método. Primeiro, porque uma pesquisa assim empreendida tende a observar o fato contábil (enquanto registro) diferentemente da realidade vivida no mundo real. Ora, pelo exemplo citado acima, poderia descrever assim a seqüência: evento  contador  relatórios  conceito/pesquisador Do ponto de vista lingüístico, todo o processo deve se dar de forma semiótica. Todas as informações geradas serão apreendidas através de símbolos, ou seja, a comunicação lingüística, nesse caso, deve ser pela transmissão de informação (transferência de símbolos: débitos/créditos; históricos; demonstrações contábeis; notas explicativas, etc), sem qualquer tipo de inferência à existencialidade dos fenômenos do mundo-real (ambiente empresarial). Até mesmo as predições feitas a partir das atividades contábeis são validadas dentro do próprio sistema de atividades. Assim teríamos somente uma nova lógica

13 disposicional aprimorando os elementos contábeis que em nada contribuiria para a eficácia empresarial, mas para a conduta do contador. 1.2. A ambiência empresarial e as atividades contábeis em relação ao objeto pesquisado “fotografia contábil”: Se nenhuma inferência da existencialidade é feita diretamente, enquanto dado positivo, tais como: atitudes, situações, horizontes, mercados, valores, juízos, etc, então o positum, (o que é dado na natureza) se perde na realidade vivida e, por conseqüência, inobjetivante, o que me causa surpresa porque o pragmatismo, nesse caso, parece-me deixar de ser um empirismo radical, para tender à normatividade formalista a ser perseguida pelo contador. Esse corte feito na existencialidade – ambiente empresarial/ambiente contábil – reduz a possibilidade de apreensão dos fatos enquanto fatos vividos (experiência inovadora para a busca da eficácia do patrimônio aziendal). O Prof. Yuji Ijiri, por exemplo, raciocina nesse sentido14. Ou seja, como se a realidade representada (surrogates, ou representações) já fosse realidade posta (principals, ou objeto-fenômeno patrimonial). Faz um corte entre o real e representacional, sem, contudo, indagar a passagem de um para o outro. A realidade posta não tem que ser questionada; é como é, naturalmente. Esta é a força do argumento pragmático. É da maior importância para a epistemologia contábil a análise genética representacional. Voltarei oportunamente ao assunto. Entretanto, mais profundamente, posso imaginar que tal método descritivo, com base na tese naturalista, alcança uma situação de difícil solução. Vejamos a posição de Ernest Mach (que também tem princípios empiristas) e de Charles Peirce. 1.3. Descrição e abdução: Ernest Mach trabalhou com profundidade o significado de descrição. Segundo Mach, em geral, existem diversas operações descritivas e, em particular, duas: uma é a descrição mais completa possível de fenômenos e a outra é uma espécie de sumário simbólico da descrição. Este sumário simbólico, segundo ele, pode se chamar de explicação. Entretanto, alguns autores, com os quais concordo, têm estimado que não há como passar da descrição à explicação, ou seja, a explicação não é conseqüência da descrição. Esta passagem só seria possível com a formulação de hipóteses, verificadas mediante oportunas descrições, mas não obtidas mediante síntese de descrições. A descrição visa somente a acidentalidade das coisas, enquanto que a definição apela para causas, para a materialidade, para a forma, para os fins, etc. Eis aqui um grande problema para a teoria de contabilidade: de que maneira os pragmáticos operariam essa passagem das descrições às generalizações, dessas às teorias e das teorias às predições ? Provavelmente poderia se dar através de um instrumentalismo. Mas o pensamento daqueles que utilizam as teorias, enquanto instrumental para novas inferências, não têm por objetivo a generalização, ao contrário. Ernest Nagel faz evocações pertinentes acerca da concepção instrumentalista das teorias, feita pelos próprios pragmáticos, que julgo oportuno registrar: 14

Yuji Ijiri, The Foundations of Accounting Measurement: a mathematical, economic, and behavioral inquiry, 1967. Mc Donald se baseia em Yjiri, além outros, para elabora a Teoria de Contabilidade. Diz Yjiri: “... the purpose is a better understanding of the foundations of accounting as it is and not as someone thinks it ought to be.” op. cit.: pág. X, preface.

14

Uma teoria não é uma descrição resumida, nem uma enunciação generalizada de relações entre dados observáveis [...] a teoria é uma regra ou um princípio para analisar e representar simbolicamente certos materiais da experiência em bruto e, ao mesmo tempo, um instrumento de uma técnica para inferir enunciados de observação a partir de outros enunciados de observação [...] A concepção instrumentalista não visa saber se as teorias são verdadeiras ou falsas, mas se são ou não técnicas efetivas para representar e inferir fenômenos experimentais.15

A teoria assim teria a função utilitária de ajudar a organizar os “dados brutos” e não resumir ou duplicar tais dados; tem a função de instrumento. Mas não é o caso em questão, porque toda a teoria de contabilidade, embora pragmática, está voltada, como foi visto acima, para o oposto do instrumentalismo, ou seja, por um processo de indução/dedução, descrever as atividades contábeis, objetivando às generalizações, às teorias, às predições e às suas validações . (Novamente me deparo com uma situação que escapa aos “cânones” genuinamente pragmáticos). Poderia imaginar então que o método utilizado pelos pragmáticos não é pragmático, o que seria um absurdo maior ainda, pois teria que introduzir no contexto da teoria elementos idealistas, ou convencionalistas, ou mesmo formalistas (vide topologia da filosofia, de Gaston Bachelard, citada no início deste trabalho) que, por princípio, nada tem a ver com afirmações do tipo: Accounting is utilitarian in purpose and descriptive in nature... Medicine might be considered a utilitarian discipline with health as the end sought. Law is also utilitarian, with justice as the end sought. For accounting, the end sought is good information.16

De outra parte, a abdutividade prevista por Peirce, como sendo o processo para formar hipóteses explicativas, não pode ser aplicada também. A capacidade explicativa das “coisas” fica suspensa por causa da impossibilidade de acesso à realidade vivida (eventos), estabelecida pela própria teoria de contabilidade. Voltemos ao assunto da descrição. Creio que será importante tratar desse aspecto com mais acuidade pelos seguintes motivos: 1) se Mc Donald denomina a Teoria de Contabilidade de descritiva, então verificar o significado de descrição no corpo da teoria ajudaria na sua compreensão; 2) devido elaboração de seus argumentos sobre a teoria para contabilidade que é definida pelo autor como normativa; qual a ligação entre esses dois termos no cerne das teorias? 1.4. A descrição e a teoria de contabilidade: O que é descrição? Conceituar descrição é mais do que poderíamos pretender porque o termo carrega consigo muita ambigüidade. Já disse que descrição não é o mesmo que definição; que segundo Mach o termo faz abordagens da realidade, mas nunca é como a definição. A descrição, segundo a maioria dos filósofos das ciências, não é uma questão psicológica, mas de lógica; tem o caráter de ser fiel à verdade, o que faz dos métodos descritivos incansáveis batalhas entre a verdade e a falsidade. 15 16

Ernest Nagel, in La Estructura de la Ciencia, Paidos, 1978. [ pág. 129] Mc Donald, op. cit.: pág. 13

15 O filósofo das ciências, o Prof. R Harré, da Universidade de Oxford, em sua obra Introducción a la Lógica de las Ciencias, trata o problema da descrição e da explicação científicas de maneira simples, didática e com razoável clareza. A descrição científica, para Harré, se ocupa dos sistemas. O sistema pode ser qualquer objeto, como o universo, um átomo, um pássaro, e eu incluiria, o conjunto de dados informativos das atividades contábeis, ou a coleção de anotações feitas pelos contadores num espaço de tempo x. O processo descrever cientificamente, de acordo com Harré, pressupõe: 1) não psicologismo, mas lógica; 2) investigar as condições em que podemos chamar descritiva uma proposição; 3) as condições devem obedecer à seleção e identificação do sujeito da descrição e reconhecer no sujeito a espécie ou possuidor de certas propriedades. A descrição deve possuir ainda uma intenção (propriedades de indicação e de identificação) e uma extensão (propriedade da comparação com certa classe). A descrição científica, como base nesse raciocínio, deve propor: 1) especificar a estrutura do sistema descrevendo os subsistemas e suas disposições e conexões; 2) especificar as propriedades dos sistemas, usando o menor número de predicados. Chama de observável a uma propriedade de um sistema que é selecionado por um predicado descritivo no grupo mínimo. O complexo de observáveis é chamado de estado do sistema. Obedecido esse processo de descrição, visando sempre a fidelidade das estruturas e dos estados, chegase à generalização, através de experimentos. Harré afirma que “el conocimiento expresado en generalizaciones ha sido sistematizado de dos maneras: llamaré a la primera sistematización aristotélica, y a la segunda sistematización galileana, puesto que Aristóteles y Galileo, aunque no originaron los respectivos métodos los popularizaron.”17 T h e o r y v a lid a te d b y c o m p a r in g p r e d ic te d a c c o u n tin g a c tiv ite s a n d o b s e r v e d a c c o u n tin g a c tiv ite s

P r e d ic te d a c c o u n tin g a c tiv itie s

d e d u c tio n

T h e o r ie s of a c c o u n tin g d e d u c tio n

a c c o u n tin g a c tiv ite s in d u c tio n

o th e r phenom ena

r e a l- w o r ld

Fig. 3.2 A systems view of theories of accounting 18

17 18

R. Harré, in Introducción a la Lógica de las Ciencias, 1967. [pág.73-74] Mc Donald, diagrama à pág. 27.

g e n e r a liz a tio n s a b o u t a c c o u n tin g a c tiv itie s

16 O processo de descrição científica citado acima é tipicamente das ciências naturais, como a biologia, química, etc. A teoria de contabilidade apontada por Donald, segue o mesmo esquema? Para facilitar a nossa compreensão transcrevi acima o diagrama elaborado pelo autor, como síntese da teoria de contabilidade. O autor faz a seguinte inferência: “By a process of induction, observations on these activities lead to generalizations about accounting activities... The first portion of the above sentence is a generalization about judgments in general.”19 O processo descrito por Harré segue toda uma trajetória da teoria descritiva, de forma coerente e conclusiva, ainda que eu não concorde com ele. Por exemplo, devido aos problemas apontados por Nagel, especialmente o da traduzibidade de uma teoria. Entretanto, a tentativa de síntese (teorizar o conhecimento contábil, ou justificar e explicar as ações científicas remotas a partir de um modelo), por parte de Mc Donald, parece-me duvidosa quanto às suas pretensões; a sua tentativa é no sentido de desenvolver um modelo que possa validar as teorias contábeis. (Tenho que ressaltar que o autor, por várias vezes em sua obra, estabelece que a teoria de contabilidade é uma teoria descritiva). Vejamos os principais elementos da teoria: 1) A indução é um termo amplo (ou genérico) demais para não ser explicado o seu processo na teoria; se é uma indução meramente probabilística (inferência estatística), ou do tipo afirmado por Peirce (indução consiste em partir de uma teoria, deduzir predições dos fenômenos e observá-los para ver o grau de concordância com a teoria...), ou de outro tipo qualquer. É necessário, sobretudo, estabelecer o critério de inferência indutiva. Se aceito a tese aristotélica da indução, posso inferir indutivamente que: (Se) um indivíduo A, o indivíduo B, o indivíduo C são imprudentes, (e) o indivíduo A, o indivíduo B, o indivíduo C são contadores, (então) todos os contadores são imprudentes.

o que é diferente de afirmar em termos silogísticos, pois aqui o pensamento procede do universal para o menos universal ( ou particular), por exemplo: (Se) Se todos os indivíduos da classe A são imprudentes, (e) todos os contadores são a classe A, (então) todos os contadores são imprudentes.

O que difere o silogismo da indução é o todo da parte. No silogismo nenhuma parte do todo é excluída, o que o faz logicamente perfeito. Na indução, o processo de inferência aceita o fato da repetição como probabilidade futura, sem examinar o todo. Esta é a grande dificuldade para se estabelecer em regras perfeitas, ou presumivelmente perfeitas, de inferência que assegurem a sua veracidade, sem ter que esgotar todas as probabilidades. Por exemplo: quando se afirma que todos os indivíduos de uma classe são imprudentes e esses indivíduos são contadores, estamos assertando que todos os contadores, que formam aquela classe, sem exceção, são imprudentes, então é necessário estabelecer uma regra comportamental que promova o desvio de tal conduta para a prudência. Mas, na prática da pesquisa científica, é impossível checar o comportamento de todos os contadores. Torna-se 19

op. cit. à pág. 27

17 necessário então estabelecer critérios ou normas de inferência que permitam, através de probabilidades de inferência, a detecção do verdadeiro comportamento do contador de forma tal que não seja necessário inferir sobre todas as possibilidades, mas parte delas. É o mesmo que perguntar: quantos contadores, com desvio de conduta para a imprudência, seriam necessários para que a indução alcance a generalização? (Em se tratando especificamente da imprudência e da maioria dos conhecidos “princípios geralmente aceitos pela contabilidade”, também conhecidos por “princípios fundamentais de contabilidade”, creio que elas estão imersas muito mais num conteúdo ético-contábil do que propriamente princípios. Em verdade, segundo imagino, não se trata de princípios de contabilidade, mas de regras de conduta ética do contador. Voltaremos ao assunto mais a frente, por enquanto admitirei como aceitável). Assim, para que pudéssemos aceitar a teoria de contabilidade, ainda que provisoriamente, seria necessário que o autor, no corpo de suas validações teóricas, estabelecesse os critérios ou normas de inferência e em que condições se dariam as probabilidades estatísticas ou de inferência. Entretanto, isso não ocorre explícita e nem implicitamente em sua obra. Mas, deixa algumas referências (AICPA, Paul Grady, etc) 20 que, em resumo, me conduziram ao caminho da homónoia (consenso). E qual é a semelhança entre homónoia e indução? Se posso compará-las, vulgarmente diria, a mesma que alquimia e química. A indução, como já dissemos, é o processo de inferência lógica do menos universal ao mais universal, tendo a verdade como paradigma. A homónoia é a ação humana no sentido da verdade útil, cujo paradigma é o consenso enquanto praticidade, pouco importando a razão ou ser enquanto ser. Hessen define assim o pragmático, que guarda relações intrínsecas com a homónoia: “No pragmatismo... homem não é essencialmente um ser teórico ou pensante, mas sim um ser prático, um ser de vontade e de ação... A sua verdade consiste na congruência dos pensamentos com os fins práticos do homem, em que aqueles resultem úteis e proveitosos para o comportamento prático deste. Segundo ele, o juízo ‘a vontade humana é livre’ é verdadeiro porque - e enquanto - resulta útil e proveitoso à vida humana e, em particular, para a vida social.”21 Creio que a indução, da forma como é posta na teoria de contabilidade, me deixa entrevê-la como fraca para sustentar um projeto de teorização do conhecimento contábil. Não a indução em si, mas a ausência de elementos norteadores do processo de indução. Em verdade a estrutura teorética da obra, no concernente à teoria de contabilidade, está voltada para a validação dos princípios de contabilidade adotados pelo AICPA, melhor dizendo: tenta teorizar a prática, mas padece pela fraqueza e inconsistência dos argumentos. Antes de tratar da descrição, gostaria ainda de analisar outro detalhe que me chamou a atenção quanto à indução. 2) A indução como abstração é um outro aspecto que precisa ser melhor verificado: a indução posta na teoria, não como indução em si, mas como abstração (abstractions). Pude constatar isso na obra de Mc Donald quando ele faz referência à indução como abstração (fig. 3.1 - o diagrama sobre a indução e dedução identifica a seguinte seqüência: abstractions/generalizations/constructs/concepts). Deduzi, com base nessa informação, que 20

Para aqueles que pretendem um maior aprofundamento histórico acerca da elaboração dos PCGA, gestados pelos norte-americanos, sugiro a obra A Evolução dos Princípios contábeis no Brasil, escrita pelo Prof. Hilário Franco, Atlas, 1988. 21 Prof. Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado Ed., 1987, 8a edição. [pág. 51]

18 entre as atividades contábeis e as generalizações, o caminho poderia ser percorrido através da abstração. As duas (indução e abstração) são a mesma coisa? Não, claro que não. São análogas, mas não a mesma coisa. Ferrater Mora, em seu Diccionario de Filosofia, trata dos conceitos relativos à abstração e em nenhum momento a identifica com a indução. Dentre tantos tratadistas sobre o assunto me deterei somente nas palavras de Fichte e John Locke. Fichte estimou que “a abstração permite separar conceitualmente o que aparece unido à consciência. Nesta, coincidem a mente e a coisa, mas mediante abstração cabe separar a mente, como mente em si, da coisa como coisa em si. Pode-se separar assim mesmo um existente possível (para nós) de toda existência, o qual não proporciona um conceito de existência geral, seja positiva ou negativa, senão o de fundamento do predicado da existência em geral.” A concepção fichteana de abstração nos distancia da concepção de indução. Mas, Mora faz o seguinte relato: “La noción de abstracción es fundamental en los autores llamados ‘empiristas, pero hay grandes diferencias entre ellos al respecto. Locke estima que la función de la abstracción es formar ideas generales, las cuales se obtienen cuando se abstrae o separa de las ideas todo lo que determina que una entidad dada sea una existencia particular. Las ideas generales representan más de un individuo: ‘las palabras se hacen generales al convertirse en signos de ideas generales’” 22. De toda forma, nem mesmo Locke toma o conceito de abstração por indução, embora, seu conceito, possa ter um fundo analógico. Se a intenção de Mc Donald foi no sentido de abstrair-se (processo subjetivo) das atividades contábeis para alcançar a generalização, nos distanciamos mais ainda dos objetivos da teoria, uma vez que a abstração não requer formulações lógicas como na indução (processo objetivo), o que seria, do ponto de vista científico, inadmissível. 3) A observação, segundo o autor, é o liame entre as atividades contábeis e as generalizações. A observação científica é a apreensão imediata. A expressão é mais amplamente utilizada pelos empiristas. É o que Harré denomina de observável, propriedade de um sistema, selecionado através de predicado descritivo. O autor diz: “por um processo de indução, observações dessas atividades levam à generalizações acerca das atividades contábeis.” Significa dizer que a observação leva à generalização através da indução. Mas não estabelece as regras aceitáveis de observação, como procedeu Harré, o que pode conduzir às falácias de observação. O que o pesquisador deve observar nas atividades contábeis, especificamente? E qual o método de descrição a ser utilizado nessas observações? São dúvidas intrínsecas, ou pelo menos ausência de clareza acerca dos procedimentos metódicos a serem adotados por qualquer pesquisador que queira desenvolver trabalhos voltados para a teoria de contabilidade. Pois bem, e quanto à descrição, motivo de todo esse tópico? Deixei, de propósito, esse assunto para o final porque se trata da justificação do procedimento metódico adotado pelo autor (teoria descritiva). Aqui posso responder à pergunta formulada anteriormente: McDonald utilizou o mesmo caminho de Harré? Certamente que não. Embora tenha afirmado tratar-se de um método descritivo, não traça em sua obra as regras para tal descrição, nem quando devem ocorrer tais descrições, mas somente que elas devem ser deduzidas por indivíduo ou grupos de observadores contábeis como ela é praticada (“...as 22

Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia, vol. 1, Ed. Ariel, 1994, [pág. 29-30]

19 they see it being practiced”). Ver como a contabilidade está sendo praticada é um pouco vago cientificamente. Há inúmeras formas de ver (observar). De outro lado, quem são os grupos de observadores? Pesquisadores, ou não? Creio que não é só a ausência de definição das descrições que traz prejuízos para o todo da teoria. Já enumeramos aqui uma série de questões que precisariam ser mais bem avaliadas, sob pena de invalidação da própria teoria. Acrescentarei mais uma. A pretensão da teoria de contabilidade é predizer informações que possam orientar melhor o contador nas suas atividades contábeis. Por exemplo: os princípios de contabilidade. Não vejo outra forma de perceber os princípios senão como sendo regras de ética-contábil. Especialmente aquelas que determinam o comportamento do contador, como por exemplo, o princípio do conservadorismo (imprudência). Todo o caminho percorrido pela teoria é para alcançar as predições, que não passam de normas (ou princípios) de conduta para os contadores. Ou seja, a teoria tem como método a descrição, e como resultado a normatização. Entretanto, metodologicamente, o fim último da descrição não é a normatização. São conceitos que se distanciam por razões lógicas. Se a norma ou o princípio tem por objetivo prescrever (pois as normas são prescritivas), não podem ser descritivas. Creio que esta questão nos remete ao psicologismo e normativismo e merece ser apreciada sob a ótica contábil.

1.4.1. O paradoxo da descrição normativa: Se eu vinha aceitando, provisoriamente, a tese naturalista, doravante, devo abdicarme dessa provisoriedade. Primeiro, por causa da análise desenvolvida até aqui, a qual tem me conduzido a sérias dúvidas quanto ao caráter lógico da teoria de contabilidade; segundo, porque tal teoria parece buscar muito mais a conformação teórica dos princípios (adequação da verdade à utilidade dos princípios), do que a fundamentação lógica calcada na epistemologia; e, terceiro, por causa do conflito eminente entre a normatividade implícita (caráter normativo dos princípios, fim último da teoria) e o procedimento científico descritivo. Vimos, anteriormente, o percurso que deve ser seguido pelas descrições. Harré faz uma leitura empirista das descrições: a partir da observação do objeto, inicia a descrição que culminará na generalização. Para Mc Donald o processo se inicia também com a observação (dos dados contábeis) que por meio da indução alcança a generalização. Ele não define explicitamente em que momento do processo ocorre a descrição. Mas, afirma que ela ocorre. Supondo então que se dê da mesma forma que no processo de Harré, teria assim uma seqüência que se iniciaria com a observação dos dados contábeis, em seguida, as descrições das observações e depois a generalização. Por dedução alcançam-se as teorias (“normas23 ou princípios disciplinadores das atividades contábeis”).

23

Embora haja distinção conceitual entre norma e princípio, aqui não tive a preocupação de distingui-los, pois não afeta o objetivo pretendido.

20 As normas não são teoria, mas regras prescritivas com base no comportamento dos indivíduos. É pouco compreensível que essas normas possam derivar-se de processos descritivos positivos sintéticos, uma vez que as normas são prescrições e não descrições. Lembra-me Ferrater Mora que as normas são comparáveis a leis, mas só certos tipos de leis são normas. Não o são as leis naturais, que são descritivas, nem as leis formais (as quais não são, propriamente, nem descritivas nem prescritivas). Tal dificuldade lógica surgiu do debate polêmico entre a normatividade e o psicologismo: “Se os objetos (ou dados) mesmos considerados são a fonte das normas, estas descrevem então a estrutura dos objetos (ou dos dados), de modo que o normativismo se converte, paradoxalmente, em descritivismo.”24

Ou as normas seguem o processo lógico da prescrição, ou deixarão de sê-las. Ressalte-se, por outro lado, que ciências normativas terão que fundar-se numa ciência teórica (Edmond Husserl). Aqueles que trabalham com ciência normativa no campo da contabilidade, rigorosamente, têm dificuldades de contextualizá-la no seio de suas convicções pragmático-contábeis. O problema, na verdade, não está nas normas (princípios) contábeis, mas na maneira como a teoria foi gestada. Há ainda outro aspecto relativo aos princípios que não está diretamente conectado ao assunto, e que julgo importante comentar, rapidamente. Se os princípios contábeis são baseados na conduta ou nos procedimentos dos contadores, como se justificaria, por exemplo, o princípio da Entidade e outros, que, em tese, não deflui dessa conduta? Devo afirmar, de imediato, a minha posição favorável aos princípios de contabilidade. Mas, creio que urge promover uma revisão desses princípios face ao contexto da ciência contábil, especialmente, quanto ao seu status quo, os quais têm sido tomados ou confundidos, não raras vezes, como uma nova base científica para a contabilidade. Exemplo disso é a teoria em exame. Quanto ao problema do princípio da Entidade e de outros, na verdade, não se trata de princípio, mas de postulado, cujo conceito científico extrapola aquele de princípio. Assim, a teoria de contabilidade que pretende estruturar a contabilidade de forma racional (?) e como ela é praticada, fica, na minha ótica, prejudicada, tanto na sua lógica, como na superficialidade e na fraqueza dos seus argumentos. A pretensão de uma teoria voltada para a disciplina contábil enquanto tal, ou como ela é praticada pelos contadores, em suas atividades, me parece desarrazoada, tendo em vista, dentre outros aspectos já levantados aqui, a sua discrepância com os fenômenos contábeis do mundo real, os quais estarão numa outra dimensão e “reivindicando” dos contadores ações eficazes. As predições podem ser assim invalidadas pelo próprio mundo real contábil. Além disso, não consigo visualizar a medicina, o direito, ou outra ciência qualquer, tendo por objeto de estudo (fim) o próprio profissional, exceto na elaboração de seus respectivos códigos de ética. Segundo o meu pensamento, o objetivo da contabilidade, sob a ótica da pesquisa, não é precipuamente aprimorar a atividade do contador, mas estudar os fenômenos 24

Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia, Vol. 3

21 ocorrentes no seio do patrimônio aziendal. O objetivo científico não deve ser o contador, mas a gestão empresarial, assim como o da química não é o químico, o da biologia não é o biólogo. Certamente que os próprios resultados científicos, advindos das pesquisas sobre a gestão do patrimônio aziendal, nos conduzirão às reformulações das atividades contábeis.25 CONCLUSÃO A escolha da obra de Mc Donald (Comparative Accounting Theory) não foi por acaso. Sua obra é uma visão globalizada do pragmatismo norte-americano, indicando-nos as suas principais discussões e tendências. Nesse sentido a sua obra traça pontos importantes sobre a discussão travada entre os maiores pesquisadores norte-americanos. Isso lhe viabilizou elaborar duas teorias: a teoria de contabilidade, que visa provar a contabilidade como ela é; e a teoria para contabilidade, que tenta construir uma estrutura teórica para a contabilidade como ela deveria ser. Os principais inspiradores de sua primeira teoria,são: Prof. Yjiri, Paul Grady e o Accounting Principles Board; e, na segunda, destacam-se Moonitz and Sprouse and Moonitz, American Accounting Association, Edwards and Bell e R. J. Chambers. A proposta do Prof. McDonald sobre a Teoria de Contabilidade visa a sintetizar o conhecimento contábil, de acordo com o que a contabilidade é na prática, tendo por conseqüência o desenvolvimento de novos rumos preditivos. Tenta dimensionar, epistemologicamente, parte do conhecimento contábil sob a tese de que se observando as atividades contábeis pode-se ultimar as predições sob o comportamento dos contadores; pretende também, por outro lado, amalgamar cientificamente os princípios de contabilidade exarados pelo AICPA. Provavelmente seja essa a justificação mais incisiva para a elaboração de tais teorias. O método está fundado no pragmatismo (ou empirismo radical) e adota como técnicas a descrição das atividades contábeis e por indução/dedução presume alcançar as generalizações, as teorias e as predições. A aplicação do método aos objetivos pretendidos pelo autor, parece-me, carrega consigo problemas de difícil solução, tanto do ponto de vista do método quanto da concepção teórica do problema. O pragmatismo (ou empirismo radical), visto pelo enfoque metódico, associa o conhecimento à ação e a verdade se submete aos ditames da utilidade. A teoria do conhecimento pragmático-contábil não é diferente; percebe o fenômeno contábil como se ele fosse um dado posto na natureza, pronto a ser descrito e explicado; radicaliza, na 25

Com base nas informações aqui levantadas, posso responder agora às questões colocadas no início desse trabalho: se as estruturas formais contábeis são idênticas em vários países, por que razão os resultados diferem tanto? Todo o questionamento feito no início pode ser respondido, basicamente, por causa da fragilidade dessas estruturas contábeis que já estão visivelmente débeis e incompatíveis com a nossa contemporaneidade; assim grandes grupos de interesses têm se utilizado de outros apensos instrumentais, como por exemplo, os princípios fundamentais de contabilidade, para alterarem convenientemente o processo contábil sem ter que alterar a estrutura das demonstrações contábeis.

22 medida em que anula a razão e a idealidade do indivíduo e restringe a ação contábil à percepção sensorial imediata. Um pragmático convicto certamente me perguntaria: por que devo imaginar que a sua forma de pensar está correta, e não a minha? Porque a contabilidade não se limita ao “dado”. Seria reduzi-la à condição de sensorialismo imediato, sem se permitir uma análise mais ampla e profunda da razão de sua existência. Porque há um ambiente de pregnância social no qual, tanto o contador quanto o empreendedor estão imersos. Prova disso é a tentativa de Mc Donald de explicar as atividades contábeis (ações dos contadores), sem sucesso, porque, na verdade, o erro não está no relatório (dado estático), mas em quem o fez e o fez sem definição de clareza da existencialidade social que o cerca. As deficiências e insuficiências no campo da contabilidade, no afã da eficácia dos resultados, são produzidas pelo homem, em favor (ou contra) o próprio homem. Um empreendimento não vai à falência por causa do registro contábil enquanto tal, mas por causa das ações humanas equivocadas (geralmente do empreendedor de um lado e contador do outro – e isso é da conta do contador, especialmente do pesquisador contábil). Daí a tentativa da teoria de contabilidade de normatizar as diferenças entre as ações dos contadores, em relação ao mundo social que os cercam. As relações entre contador e empreendedor, enquanto indivíduos interativos, comunicativos, são muito mais dinâmicas e sociais do que pode expressar a teoria de contabilidade. Poderia me argüir então que a química também é uma ciência social pelo fato de ser o químico o responsável pelos erros cometidos em seus relatórios conclusivos de uma determinada pesquisa. Nesse caso, a relação do químico com a pesquisa se dá de duas formas: epistemológica e empírica; nas duas formas a sua relação é, invariavelmente, entre sujeito/objeto (natural), interpondo-se entre eles o dado científico. Na contabilidade, essa relação deve ser revista, penso eu, sob outra forma, ou seja, sujeito/sujeito (objeto) interagindo, e dessa interação entre eles (cujo resultado é a somatória dos esforços conjuntos contador/empreendedor), surgem os relatórios e demonstrações contábeis. Esses relatórios são instrumentos-meio (bússola) que nortearão as ações do contador, especialmente enquanto consultor. Reduzir a sua importância à elaboração tão-somente de dados gélidos e estáticos, seria mediocrizá-lo na sua razão criadora e preditiva. Ressalte-se que a preditividade aqui não é no sentido proposto por Mc Donald. É incompreensível a teoria de contabilidade quando o objetivo é predizer estabelecendo normas (ou princípios). Não há como predizer normas, pois elas são defluentes da conduta do indivíduo e não o contrário. Não vejo como apreender norma a priori. É impossível “prevê-la” com a finalidade de correção da conduta, se sequer o desvio de conduta ainda ocorreu de fato. Creio que esse é um dos pontos frágeis na conclusão de sua teoria de contabilidade. O outro ponto que imagino fraco é a relação normatividade e descritividade, porquanto nos remete ao paradoxo amplamente discutido no campo da filosofia. A norma deve se originar da prescrição; se ela se origina da descrição do objeto, como é o caso da teoria de contabilidade, então, ela se despe da prescritividade para se converter, paradoxalmente, em descritivismo, deixando de ser norma. Sobre o descritivismo, a ausência de algumas informações relevantes a respeito, pode também ter levado a teoria a outro impasse (solucionável, de certa maneira). Por

23 exemplo: o processo descritivo não é definido no corpo da teoria; o autor não justifica como a descrição poderá alcançar a possibilidade explicativa (o que poderia ser feito mediante formulação de hipóteses. As hipóteses poderiam ser formuladas por processos de inferência indutiva – os quais também não estão definidos na teoria – que através de experimentação/demonstração alcançariam as formulações teóricas). Pelas razões aduzidas acima, não creio que a teoria de contabilidade possa se sustentar como proposta de síntese do conhecimento contábil, com projeções para o predizer-contábil. Assim, posso parafrasear Peirce dizendo que “os argumentos apresentados são falaciosos, não ilógicos, por terem pretendido aquilo que não provaram”. Os argumentos só podem ser considerados válidos se possuírem a força que afirmam ter e caminham para a conclusão na forma pretendida. Tenho, então, razões suficientes para acreditar que a epistemologia pragmática contábil, no concernente à teoria de contabilidade, representante do pensamento de inúmeros pesquisadores (citados no corpo da obra de McDonald) não consegue se sustentar por razões lógicas. Creio ser mais oportuno, doravante, tratar da análise da segunda teoria proposta por McDonald (teoria para contabilidade), cujos caracteres científicos são mais relevantes e mais complexos26. BIBLIOGRAFIA BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Trad. Juvenal Hahne Júnior. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1968. BOLLNOW, Otto. Introducción a la filosofía del conocimiento. Trad. Willy Kemp. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1970. BORRÓN, Juan Carlos Garcia. A filosofia e as ciências: métodos e processos. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 2a. ed.. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. BLANCHÉ, Robert. História da lógica de Aristóteles a Bertrand Russell. Trad. Antonio J. Pinto Ribeiro. São Paulo: Edições 70, 1985. _______. A ciência actual e o racionalismo. Trad. Maria José Andrade. Porto-Portugal: Ed. Rés Ltda, 1983. BULCÃO, Marly. O racionalismo da ciência contemporânea: uma análise da epistemologia de Gaston Bachelard. Rio de Janeiro: Ed. Antares, 1981. CASSIN, Barbara. Ensaios sofísticos. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Siciliano, 1990. CHAMBERS, R. J.. “Measurement and objectivity in accounting.” The Accounting Review, april, 1964. CHISHOLM, Roderick M. Teoria do conhecimento. Trad. Alvaro Cabral. 2a Ed.. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1974.

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Tal análise pertence ainda ao tema inicial: problemática epistemológica na contabilidade e as vertentes das ciências naturais x ciências sociais e será publicada no próximo periódico.

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