A Teoria do Geossistemas e a política de criminalização da pobreza: um estudo de caso sobre as enchentes do Jardim Pantanal (São Paulo/SP)

Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

JOÃO VICTOR PAVESI DE OLIVEIRA

A TEORIA DO GEOSSISTEMAS E A POLÍTICA DE CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS ENCHENTES DO JARDIM PANTANAL (SÃO PAULO/SP)

São Paulo Dezembro, 2012

JOÃO VICTOR PAVESI DE OLIVEIRA

A Teoria do Geossistemas e a política de criminalização da pobreza: um estudo de caso sobre as enchentes do Jardim Pantanal (São Paulo/SP)

Trabalho de Graduação Individual (TGI) apresentado ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do grau de Bacharel em Geografia.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Amélia Luisa Damiani.

São Paulo Dezembro, 2012

RESUMO OLIVEIRA, João Victor P. de. A Teoria do Geossistemas e a política de criminalização da pobreza: um estudo de caso sobre as enchentes do Jardim Pantanal (São Paulo/SP). Trabalho de Graduação Individual (TGI) apresentado no Dep. de Geografia/FFLCH-USP. São Paulo: 2012. Nas décadas de 1950/60, a Geografia passava por um longo debate sobre seu caráter científico e seu objeto de estudo. A fim de contribuir com tal questão, a abordagem Teorético-Quantitativa (New Geographic) apresentou seus instrumentos de análise, aprofundando a cisão entre os estudos da Geografia Física e Geografia Humana. Diante dessa nova situação, na década de 1970 surge a Teoria do Geossistemas. Voltada para reunificar a ciência geográfica, visa oferecer contribuições aos dilemas do modo de produção capitalistas expressos pela escassez de recursos naturais de 1973. Baseando-se na filosofia estruturalista para proporcionar uma metodologia verdadeiramente científica aos estudos da Sociedade e da Natureza, a abordagem geossistêmica irá compreender esta relação como sendo uma interação entre a ação antrópica sobre o meio, a partir da chave analítica sistêmica que conclama pela necessidade de equilíbrio nessa relação. Nesse sentido, o planejamento territorial constituirá o principal instrumento a ser utilizado pelo geógrafo para alcançar esta preocupação. Contemporaneamente, a crise econômica que solapa o processo de valorização do capital, vinculado com o discurso ambiental catastrófico, vem promovendo obras reparadoras agenciadas pelo Estado, como o Parque Linear “Várzeas do Tietê”. Destinado a melhoria ambiental das áreas de várzea da Bacia do Tietê – ocupadas, em parte, por moradias irregulares e loteamentos clandestinos – simultaneamente visa a criação de um novo eixo de valorização do capital no tecido urbano que implica na expulsão dos moradores de baixa renda dessas localidades (uma manifestação do processo denominado de criminalização da pobreza). Em dezembro de 2009, houve um aspecto de concretização desta expulsão por meio da indução de uma enchente que perdurou até fevereiro do ano seguinte, tendo mais de 10.000 famílias cadastradas para o plano de reassentamento. Sendo assim, a partir da ideia de urbanização crítica (DAMIANI), verifica-se que a cidade, envolvida no processo de reversão da crise de acumulação do capital, promove a criminalização da pobreza pela lógica da valorizaçãodesvalorização, instrumentalizada pela Teoria do Geossistemas. Palavras chave: Teoria do Geossistemas, criminalização da pobreza, urbanização crítica, Parque Linear “Várzeas do Tietê”.

ABSTRACT OLIVEIRA, João Victor P. de. A Teoria do Geossistemas e a política de criminalização da pobreza: um estudo de caso sobre as enchentes do Jardim Pantanal (São Paulo/SP). Trabalho de Graduação Individual (TGI) apresentado no Dep. de Geografia/FFLCH-USP. São Paulo: 2012. In the 1950s and 60s Geography experienced a drawn out debate over its status as a science and over its object of analysis. Seeking to contribute to the debate raised by these questions, the Theoretical-Quantitative (or simply New Geographic) approach put forth its methods of analysis, widening the gap between the studies of physical and human Geography. The Theory of Geosystems is developed in light of this context in the 1970s. Aiming to reunite the geographic science, it seeks to offer solutions to the dilemmas raised by the capitalist mode of production, made evident by the 1973 crisis directly linked to the shortage of natural resources. Using structuralist philosophy to afford a truly scientific method to the studies of society and nature, the geosystemic approach attempts to understand this relationship as an interaction between anthropic (or man-made) action and the environment. Through a systemic analytical perspective it argues for the need to establish a balance in this relationship. In this respect, territorial planning represents the main instrument at hand for the geographer in his striving for such balance. In present times, the economic crisis which undermines the process of capital accumulation, coupled with apocalyptic environmentalist rhetoric has led to the promotion of recuperative initiatives such as the project entitled Parque Linear “Várzeas do Tietê”. While its stated goal is the improvement of environmental conditions in the floodplain areas of the Tietê river basin partially taken over by makeshift housing and irregular land use - simultaneously aims to create a new axis of capital valorisation in the urban mesh which implies the expulsion of low-income residents from these locations (a manifestation of the process called criminalization of poverty). In December 2009, the concretion of one aspect of this expulsion took place through an induced flooding that lasted until February of the following year, in which more than 10,000 families were registered for the resettlement plan. Taking that into account, and setting forth from the concept of critical urbanization (Damiani) it is possible to ascertain that the city, as an integral element of the process of reversion of the crisis in capital accumulation, promotes the criminalization of poverty through the logic of valuationdevaluation, instrumentalized by Theory of Geosystems. Keywords: Theory of Geosystemens, criminalization of poverty, critical urbanization, Parque Linear “Várzeas do Tietê”.

AGRADECIMENTOS Desde os primeiros anos da graduação venho idealizando de como aconteceria esse momento, da conclusão do curso e da entrega do TGI. Conforme os eventos na minha vida aconteciam, marcando ou passando despercebidos, imaginava eu recordando todos eles nesta parte dos “agradecimentos”. Enfim... esse dia chegou.

O trabalho que aqui se segue, esteve construído em um permanente conflito entre o isolamento acadêmico, necessário para algumas atividades desse caráter, versus a socialização coletiva própria da construção de outras relações sociais mais igualitárias. Diante de tal celeuma que não foi superado, aprendi a lidar sabendo que um possível solucionamento significaria acomodação entre um dos polos. Com isso, agradeço a todas e todos que estiveram em convívio comigo principalmente nestes últimos 3 anos, pois de forma direta ou indiretamente me influenciaram na caminhada aqui exposta. Devido a (longa) trajetória percorrida para conclusão deste trabalho, a lista que trago não é curta. Assim, peço paciência ao leitor ansioso e desculpas sobre possíveis esquecimentos.

Infelizmente

a

linguagem

não

nos

permite

expressar

de

maneira

desordenada, simultânea, o “Obrigado” à todas(os), por isso desconsiderem a falsa impressão hierárquica que a escrita traz. Agradeço aos amigos e amigas do Coletivo Socialismo e Liberdade (Caio Zinet, Felipe Moda, Luisa D’Ávola, Vanessa Koetz, Fábio Nassif, Tiago de Castro, Thaís Dourado, Jéssica Ruiz, Rodrigo Cruz, Cecília Feitoza e Marcelo Ramos) que persistem na construção de outra sociedade. Aqui está o resultado das recusas a tantas confraternizações que não pude compartilhá-las. Peço à todos desculpas pela distância dos ambientes sociais neste último período, especialmente aos amigos que dividem o cotidiano pela defesa da universidade pública: JP, Beira, William, Framil, Thales, Ravi, Xis (Ricardo), Cabelo (Leonardo) e Dansão (Thiago). Sinto-me muito grato a AGB-SP, pois sem sua biblioteca, com ampla coleção de periódicos das diversas áreas da ciência geográfica, teria sido muito mais difícil obter todas as referências aqui expressas. Ainda agradeço as pessoas que ali 4

conheci e tive tantas conversas e experiências agradáveis. Pessoas que sempre estiveram muito dispostas a relacionarem sua produção geográfica a problemática da desigualdade social: Léa, Tarzan, Nati, Guará, Fernanda, Elisa, Marcela, Caio (Brotas) e uma nova geração Felipe Nogueira, Robson, Kauê, Tony e João Rodrigues. Nesse mesmo sentido, agradeço as amizades formadas a partir da dinâmica do Dep. de Geografia da USP: Mariana Dounex, Bruna Rodrigues, Tico, Samanta, Carol, Antônio, Lúcio, Aline Klein, Bruna Zapata, Márcia Diane, Virna, Dana, Marília Sossoloti, Hugo Kenzo e Ricardo Lima, que muitas dessas pessoas participaram assiduamente do CEGE (Centro Acadêmico de Geografia da USP) e do movimento estudantil de Geografia; assim como os amigos da PUC-SP Flecha e a Camila Reis. Pessoas que diariamente ressignificaram minha experiência universitária. Durante esses anos de faculdade, todos este acompanharam e presenciaram minhas reflexões, problematizações e impaciências motivadas por um conjunto de professores(as) que marcaram profundamente a minha vida acadêmica: Jorge Grespan, Anselmo Alfredo, Ana Fani, Glória Anunciação, José Sérgio, Sonia Castellar, Élvio Rodrigues, Heinz Dieter. Especialmente a Amélia Damiani, professora-orientadora-amiga que mesmo nas adversidades do período da vida, sempre esteve disposta a conversar, me motivando com que me emaranhasse nas implicações que do trabalho geográfico possibilita. Nesse enredo valorizo a colaboração que Ana Luísa, Ferenc, Rodrigo (Bretas) e Dafne fizeram para que eu conseguisse ingressar na universidade pública, incentivando com que me tornasse professor logo após a entrada. Aproveito para agradecer todos àqueles que foram meus alunos, trazendo problematizações motivadoras para a realização deste trabalho. Obrigado especialmente aos estudantes e colegas da Escola Estadual Fernão Dias Paes na qual vem me ensinando a educar e dividiram os altos e baixos durante a reta final da redação. Obrigado a Verônica Salgado, amiga chilena que dividiu tantos momentos durante sua estadia no Brasil, reforçando o brilho existente no processo educacional e apresentando a contrapelo questões relevantes sobre as relações interpessoais. Muito obrigado a Zélia, ao Vagner, ao Ronaldo e todas às famílias com que tive contato no Jardim Pantanal. Somente a partir do acompanhamento e da fala de vocês seria possível tratar do drama social da enchente, aspecto que contribuiu para 5

que desvelassemos aspectos complexos da vida urbana. Sinto-me muito agradecido por tudo que fizeram, pois vocês foram fundamentais para a existência desta pesquisa. Ao Eduardo Martins, Tulio Candiotto, Patê, Patrícia Burgos, Pedro Damião, Júlia Coelho e Tulio Buchionni muito obrigado por terem lido, relido e discutido comigo, por vezes mais de uma ocasião, este trabalho. O auxílio de vocês evidencia o caráter coletivo que tentei expressar inicialmente, algo que na plena solidão do trabalho acadêmico teria sido muito mais difícil de se realizar. Agradeço ainda a minha família (mãe, pai, avó e tia) que sentiram minha falta não entendendo, às vezes, meu distanciamento ocasionado pela opção da vida intelectual e socialmente engajada. Faço memória a minha bisavó, Amélia, que somente presenciou minha dificuldade em ultrapassar a barreira do vestibular, não podendo usufruir conosco o prazer da tarefa cumprida: ver o neto, único parente próximo, ter ingressado em uma universidade pública. A grande amiga Stephanie, pessoa com que esteve ao meu lado desde antes da universidade e que hoje, mesmo estando distante fisicamente, se faz tão presente quanto antes. A Camila Viviane, super amiga que permitiu com que eu descobrisse seu carinho e delicadeza nos interstícios de nossa amizade. Faço publicamente meus pedidos de desculpas devido a ausência forçada neste último período. Por fim, peço muito obrigado a Tatiana. Companheira que vem me ensinando a desfazer a dureza e o pragmatismo que obtive na luta política; amiga que tanto sabe ser paciente em momentos de profunda crise existencial; namorada que aceitou tecer um caminho em comum.

Por tudo que fizeram, às vezes sem notarem, agradeço e assumo toda responsabilidade pelas linhas que se seguem. Muito obrigado.

6

Dedico este trabalho aos moradores do Jardim Pantanal; àqueles que buscam compreender a lógica do capital; aos movimentos sociais que resistem ao seu avanço; aos que defendem a universidade pública como espaço do livre pensar, ausente do aparelho repressor do Estado em seu interior.

7

A opção de viver é uma opção política. Não queremos um mundo no qual a garantia de não morrer de fome se troca pelo risco de morrer de tédio. Raoul Vaneigem – “A arte de viver para as novas gerações”

8

Lista de tabela Tabela 1: Taxonomia de Bertrand

47

Lista de mapas Mapa 1: Localização: Jardim Pantanal

68

Mapa 2: Trecho do Parque Linear “Várzeas do Tietê” e Jardim Pantanal

69

Mapa 3: Enchente de dez.2009/fev.2010

94

Lista de imagens Imagem 1: Identificação das etapas para construção do Parque Linear Várzeas do Tietê

77

Imagem 2: Primeira etapa de construção do Parque Linear Várzeas do Tietê

78

Imagem 3: Entorno expandido da primeira parte do Parque Linear Várzeas do Tietê

79

Imagem 4: Segunda e terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê

80

Imagem 5: Parte da terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê

81

Imagem 6: Parte da terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê

82

Imagem 7: Parte da terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê

83

Imagem 8: Material impresso pela prefeitura, obtido com moradores durante trabalho de campo

91

Lista de fotografias Fotografia 1: Canos improvisando distribuição de água, Jardim Pantanal

73

Fotografia 2: Postes de energia com “gato”, Jardim Pantanal

73

Fotografia 3: Casa reocupada por moradora, Cotovelo

88

Fotografia 4: Casa reocupada por moradora, Cotovelo

88

Fotografia 5: Casa de Janaína

89

Fotografia 6: Interior da casa de Janaína. Eletrodomésticos suspensos devido a dúvida de novas enchentes

89

Fotografia 7: Rua Cotoxó com vista para o CEU Três Pontes(primeiro plano) e 109 conjunto residencial, Jardim Romano Fotografia 8: Rua Cotoxó com vista para o CEU Três Pontes, Jardim Romano

109

Fotografia 9: Rua Cotoxó com vista ao conjunto residencial, Jardim Romano

110

Fotografia 10: Caminhos improvisados por moradores, Vila Itaim

110 9

Fotografia 11: Moradias regulares, Jardim Helena

111

Fotografia 12: Chácara Três Meninas

111

Fotografia 13: Moradias demolidas, Vila Itaim

112

Fotografia 14: Moradias demolidas, Vila Aymoré

112

Fotografia 15: Trabalhadores demolindo moradias, Jardim Pantanal

113

Fotografia 16: Moradias em parte destruídas, Jardim Pantanal

113

Fotografia 17: Rua Cotoxó com vista para o CEU Três Pontes(primeiro plano) e conjunto residencial, Jardim Romano

114

Fotografia 18: Rua Cotoxó com vista para o CEU Três Pontes, Jardim Romano

114

Fotografia 19: Rua Cotoxó com vista ao conjunto residencial, Jardim Romano

115

Fotografia 20: Casa alagada durante enchente de Janeiro de 2011, Jardim Pantanal

115

Fotografia 21: Interior de casa alagada durante a enchente de Janeiro de 2011, Jardim Pantanal

116

Fotografia 22: Casa alagada durante a enchente de Janeiro de 2011, Chácara Três Meninas

116

Fotografia 23:Selo de identificação para remoção das casas.

117

10

ÍNDICE Apresentação __________________________________________________ 12 PARTE 1 ______________________________________________________

17

Capítulo 01 – Premissas _________________________________________

18

E a Geografia com isto tudo...? ________________________________

22

Capítulo 02 – Comentários (críticos) acerca da filosofia estruturalista e teoria geral dos sistemas ________________________________________

25

2.1 O porquê do Estruturalismo (precursores da pesquisa) _______________ 25 Estruturas e Estruturalismos __________________________________

26

Crítica a Filosofia Estruturalista: Estruturas, Sistemas e Modelos _____

31

2.2 Teoria Geral dos Sistemas ______________________________________ 34 Capítulo 03 – Observações sobre a paisagem _______________________

38

3.1 Geografia enquanto uma ciência da paisagem ______________________ 39 Capítulo 04 – Teoria do Geossistemas _____________________________

44

4.1 Valorização taxonômica ________________________________________

45

4.2 Ecodinâmica tricartiana ________________________________________

52

PARTE 2 ______________________________________________________

58

Capítulo 05 – Introdução ao estudo de caso _________________________

59

Capítulo 06 – Notas sobre as enchentes no jardim pantanal ___________

70

Contextualização sócioespacial do Jardim Pantanal ________________ 71 Parque Linear “Várzeas do Tietê”: visão do Estado e dos moradores __

74

Questões conclusivas ___________________________________________

95

Bibliografia ____________________________________________________ 102 Anexos _______________________________________________________

109

11

APRESENTAÇÃO A fim de realizar uma apresentação mais adequada do trabalho que se segue, entendo ser necessário iniciar dos primórdios do percurso, somente sendo assim ser possível compreender o movimento aqui realizado. O início, data dos primeiros semestres da graduação de Geografia quando, nas aulas de História do Pensamento Geográfico e Teoria e Método em Geografia I, foram-me apresentadas às diversas questões sobre abordagens geográficas às quais me apeguei desde o princípio com a problemática sobre o objetivo da ciência geográfica e a cisão entre Geografia Física e Geografia Humanas. Tais pontos permaneceram comigo por todo o período da graduação. Em seguida, as disciplinas de Geomorfologia I e Climatologia I se apresentaram como sendo ciências próprias, autônomas e independentes da Geografia, fatos que se incorporaram às problematizações já formuladas. Concomitante a isto, o discurso midiático sobre o “aquecimento global” que aterrorizava o dia a dia das pessoas e impunha indagações sobre mim e a meus alunos – já lecionava, nesse período –, fez aumentar minha curiosidade sobre as relações entre a Sociedade e a Natureza e como a Geografia se estabelecia com tudo isso. Assim, na busca de melhor entender tais questões, procurei leituras que me auxiliassem, encontrando inicialmente a obra de Francisco Mendonça “Geografia Física: Ciência Humana?” que, de maneira generalista, me apresentou um leque de abordagens da Geografia Física indicando o papel que a Teoria dos Geossistemas tinha na constituição de uma (possível) unidade para o debate entre Geografia Física e Geografia Humana. Foi nesse momento que o estudo sobre a filosofia estruturalista ganhou relevo, impelindo a necessidade de ser aprofundado para que fosse mais bem compreendido, tendo em vista que se tratava da filosofia fundamentadora da leitura geossistêmica. Compreendi, assim, que a leitura estrutural, ao entender a Sociedade como sendo um conjunto de elementos que se relacionam entre si, forma uma Estrutura social que produz determinada totalidade, tornando como a principal preocupação dessa abordagem a compreensão dos processos de estruturação. Conforme atenção aos estudos do estruturalismo aumentava, pude verificar que há um caráter de imobilidade na compreensão desses processos de 12

estruturação, desconsiderando a condição eminentemente crítica da reprodução social, desprezando a possibilidade de destruição desta Estrutura – características que produzem interpretações mantenedoras da ordem social. Deste modo, fui ao encontro a uma perspectiva crítica da filosofia estruturalista, me baseando na interpretação dialética da realidade social, através da abordagem marxista. No entanto, conforme realizava minhas leituras e me emaranhava nas discussões epistemológicas, sentia que me afastava das problemáticas sociais, tema tão relevante para mim. Somente com a realização pela segunda vez do curso de Geografia Urbana I, foi que reconheci a possibilidade de juntar tais questões – mesmo sem ainda, naquele momento, ter encontrado um estudo de caso propriamente dito. No ano de 2009, iniciei a pesquisa de iniciação científica, partindo das questões levantadas e as vinculando com a questão de que, o discurso ambientalista trazia um aspecto crítico apenas em sua aparência, pois, contém em sua essência uma proposta de reposição da lógica capitalista. Dessa maneira, formava-se como plano de fundo implícito-explícito a problemática sobre a relação Sociedade-Natureza no interior da Geografia. Foi quando, no primeiro verão após o início formal da pesquisa, aconteceram as enchentes no Jardim Pantanal (periferia Leste da cidade de São Paulo); local conhecido por mim através de amigos residentes na área e da militância política. Neste momento, verifiquei que havia possibilidade de juntar os estudos epistemológicos já iniciados com a questão social ai colocada, solucionando minha impaciência pessoal em fazer um estudo que não estivesse restrito exclusivamente aos “estudos de gabinete” e que tivesse uma relevância social. A partir de então, busquei compreender qual o papel que o Jardim Pantanal cumpre atualmente na complexa teia social urbana. Entretanto, o trabalho final aqui expresso que, em tese, deveria corresponder ao resultado desse percurso descrito linearmente, possui outros cruzamentos que foram agregados de maneira dispersiva ao longo da trajetória de estudos. Em decorrência da greve das três categorias da universidade, no 1º semestre de 2009, tive a oportunidade de ter maior contato com o pensamento e a história de Armando Correia da Silva – conectado com o processo de compreende a história do pensamento geográfico brasileiro – encontrando na leitura da sua livre docência 13

reprovada (“Cinco Paralelos e um Meridiano”), importantes palpitações para os estudos que se seguiram1. Obra paradigmática pra mim trouxe à tona a questão sobre a construção de uma teoria sobre o Brasil pela perspectiva geográfica, expressa por Armando na parte “BRASIL GEOGRÁFICO”. Com isso, a mesma preocupação que outros cientistas sociais tiveram em seus tempos, como: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes (apenas para citar alguns), a Geografia lidou de maneira muito distinta, sendo possível encontrar em poucos trabalhos preocupações semelhante: Aroldo de Azevedo, Josué de Casto (que nem geógrafo era de formação, mas sim médico) e mais recentemente a Milton Santos e Maria Laura Silveira2. Envolvido com as discussões que ocorriam no interior da universidade decorrente daquela e de outras greves já passadas e, somadas com as descobertas sobre o pensamento do Armando e a preocupação com a relevância social da minha pesquisa, fui atingindo pela indagação sobre “Qual o papel do intelectual em nossa sociedade?”3 – esses eventos estão de alguma forma presentes por todo trabalho, cortando-o transversalmente, mesmo que não explícito em uma observação inicial. O entendimento que coaduno sobre a formulação de uma teoria sobre o Brasil a partir da Geografia, significa verificar como que a formação histórica espacial do país determinou o presente, ou seja, construir o equivalente a análises de conjunturas que estejam fundamentadas e estruturadas histórica e espacialmente, favorecendo a compreensão da realidade e impulsionando uma atuação concreta. Acredito ter sido esta compreensão que me fez adotar uma postura que valorizou demasiadamente a questão espacial, reconhecendo ter assumido, por vezes, uma interpretação fetichizada do espaço. Porém, justifico de antemão que, ao observar a dinâmica da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais presentes hoje em dia, à luz do interesse social do trabalho acadêmico, verifiquei como a dimensão territorial se destaca para a efetivação do processo de reprodução do modo de produção capitalista. Situação evidenciada pela utilização das 1

Apresentados de maneira mais sistemática no trabalho final da disciplina de Geografia Econômica II. As obras citadas segue a ordem dos autores referenciados: “Casa Grande & Senzala” (1933), “Raízes do Brasil” (1936), “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942), “Formação Econômica do Brasil” (1959), “A Revolução Burguesa no Brasil” (1975), “Brasil o Homem e a Terra” (1968/70), “Geografia da Fome” (1946) e “O Brasil: território e sociedade no início do século XXI” (2001). 3 Nesse percurso, devo também citar a importância do compilado de textos de Paulo Eduardo Arantes, presentes no livro “Zero a esquerda” (2004). 2

14

enchentes – assim como, pelos incêndios às favelas que ganharam novamente destaque social e foi indicado por Pinheiro4 em sua monografia. Dessa maneira, de princípio, aceito a inculcação sobre o fetiche do espaço, no entanto não abro mão dessa relação implicada. Considero não ter solucionado a pretensa questão sobre a construção de uma teoria geográfica referente ao Brasil – acato também a ponderação sobre a dificuldade de realizar tal empreitada no interior da divisão dos saberes. Contudo, o que valeu disso foi a preocupação frente a implicação do trabalho acadêmico, especialmente em um momento histórico em que o pensamento crítico é cada vez mais cooptado pelas agências de fomento, institucionalidades e/ou varrido pela ordem hegemônica do capital5. Considero que a questão da relação Sociedade-Natureza foi impulsionadora integralmente da caminhada aqui relatada, não correspondendo a questão central desse trabalho. A dedicação aos estudos da Teoria dos Geossistemas acabou se tornando um álibi possível para tratar dessa problemática geográfica. No entanto, devido ao receio em cair em estudos exclusivamente epistemológicos, evitei me enveredar estritamente por tal empreitada. Por fim, reconheço que estive diretamente influenciado pela pulsão do pensamento crítico e da problemática sobre o objeto geográfico do final da década de 1970; formalmente marcado como sendo o surgimento da geografia crítica brasileira – refiro-me ao Encontro da AGB de Fortaleza-CE, em 1978. Exponho logo aqui nesta apresentação tal referência pretendendo contribuir para uma melhor interpretação do trabalho e a retomada dessa perspectiva de análise. Assim sendo, sintetizo nesse Trabalho de Graduação Individual as preocupações que me acompanharam ao longo de toda minha graduação e que tendem a ser desdobradas em pesquisas futuras. *** Sobre a organização da redação, o texto se encontra dividido em duas partes. A primeira, em quatro capítulos que traz os elementos teóricos sobre a filosofia estruturalista, a perspectiva sistêmica e a abordagem da Teoria dos Geossistemas, partindo de um capítulo inicial que busquei expor os elementos fundantes para a 4

Ver mais: Silva, Fernanda Pinheiro. A lei do Capital: Uma possibilidade de compreensão da dimensão jurídica da produção do espaço urbano e a investigação da ação de reintegração de posse da favela Real Parque. Trabalho de Graduação Individual, Dep. de Geografia/FFLCH-USP. 2011. 5 Ver mais: Safatle, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Editora Boitempo, 2008.

15

crítica construída de tais interpretações. Na segunda parte do trabalho, está o estudo de caso sobre o Jardim Pantanal, findando com uma análise conclusiva. A fim de ilustrar e contribuir no entendimento da redação há um conjunto de mapas, fotografias e relatos de campo presente nos anexos.

Boa leitura

Primavera de 2012

16

PARTE 1

17

CAPÍTULO 01 – PREMISSAS “Não há estrada real para a ciência, e só têm probabilidade de chegar a seus cimos luminosos, aquêles que enfrentam a canseira para galgá-los por veredas abruptas” Karl Marx

Os Homens são produtos – material e imaterial – do seu tempo. Mesmo identificando a existência de exceções nesta tautologia, verifica-se a importância em reconhecer quais são as determinações históricas que produziram tais Homens, seus pensamentos e objetos. Nesse sentido, serão sinalizados aspectos do modo de produção capitalista, os quais tecem uma lógica sobre a produção de mercadorias, fornecendo subsídios para constituição destes pressupostos teórico metodológicos que guiaram o trabalho. A Geografia é oficialmente reconhecida enquanto ciência (institucionalizada) a partir do século XIX6, período marcado pela consolidação do capitalismo e seu expansionismo territorial através da concretude da propriedade privada e pela divisão da sociedade em classes7. Para a efetivação deste domínio, foi preciso estabelecer a divisão entre as ciências: Era necessário, portanto, criar as condições para a expansão do comércio. As necessidades em matérias-primas da grande indústria garantiam alémmar a abertura de minas e a conquista de terras que eram também utilizadas para a produção de alimentos necessários aos países então industrializados numa fase onde a divisão internacional do trabalho ganhava nova dimensão. Era então imperativo adaptar as estruturas espacial e econômica dos países pobres às novas fases que deviam assegurar sem descontinuidade. A geografia foi chamada a representar um papel importante nessa transformação. (SANTOS, 2002 : 30)

Para obter sua reprodutibilidade, essa divisão internacional do trabalho forjou a ideia de totalidade através de separações que obscureceram parte central da lógica de produção de mercadorias, a cisão entre capital e trabalho. Contudo, a mesma lógica que garante a reprodutibilidade do capitalismo, baseia-se em contradições que inviabilizam sua eternização enquanto divisão social do trabalho: os conflitos das relações de produção e forças produtivas, o confronto entre as classes sociais, o processo da queda tendencial da taxa de lucro e problemas de sobreacumulação. Desta forma, entende-se que o processo produtivo capitalista se estrutura por crises que são inerentes e essenciais da sua lógica, na qual impulsionam resoluções temporárias e aparentes para obtenção de mais valor.

6 7

Cf.: Andrade, 2008, p.18. Ver mais em: Andrade, 1977.

18

Essa reprodutibilidade crítica do modo de produção não é desvendada exclusivamente através da sua aparição fenomênica. Isto se deve pela sua totalidade estabelecida a partir de separações que levam a estranhamentos, tais como o sujeito do trabalho frente ao objeto resultado deste: o Homem, sem a consciência sobre o todo do processo de produção de mercadorias, deixa de se reconhecer no produto final do seu trabalho. Conformando-se uma totalidade em que todas as relações constitutivas – Sujeito-Sujeito, Sujeito-Objeto, SociedadeNatureza – se encontram apartadas. A materialidade da lógica de produção de mercadorias é quem determina as relações sociais que produzem a consciência8, enquanto maneira de pensar sobre si e sobre as coisas, e suas formas de ação. A alienação – processo de estranhamento – compreendida enquanto aspecto necessário para a existência desta lógica 9 comporá uma imagem invertida sobre a realidade social, neutralizando-a, esvaziando as suas contradições e levando a crer na possibilidade de estabelecer unidade entre Sujeito-Objeto ou Sociedade-Natureza nos marcos do capitalismo. Sobre as relações entre Sociedade e Natureza, reconhece-se que estas ocorreram de diferentes maneiras, conforme os períodos da divisão social do trabalho. Especificamente na modernidade, determinada pela contradição CapitalTrabalho, verifica-se um descomprometimento com a demanda pela manutenção da vida10, preocupando-se a partir de então, com a obtenção do maior índice possível de mais valia. Expôs-se assim, a relação entre infraestrutura e superestrutura partindo da divisão internacional do trabalho que ao forjar uma totalidade unitária, necessita cindir as ciências para se efetivar11. Assim, será compreendida a constituição da

8

“(...) os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.” (Marx & Engels, 1977, p. 37) 9 Cf.: Damiani, 2008, p. 40. 10 “(...) o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, é preciso antes de todo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história (...).” (Marx & Engels, 1977, p. 39) 11 Advertência sobre essa relação: “Toda questão reside em estabelecer seus vários níveis de espelhamento, representação e dramatização, que nada têm a ver com relações de causa e efeito, como se uma infra-estrutura, já efetivada e individualizada, provocasse efeitos numa superestrutura previamente circunscrita.” (Giannotti, 1985, p. 48)

19

ciência geográfica e das suas abordagens teórico metodológicas: como obra de determinado contexto histórico social marcado pelo processo produtivo 12. Com o decorrer da constituição do processo de alienação, Marx observa que os objetos, resultados do trabalho humano, além de não serem reconhecidos enquanto tal pelo sujeito feitor obtém um poder próprio, se voltando contra aquele que o produziu. A natureza nesse contexto é percebida pela sociedade apenas como fonte de recursos, meio de produção e força natural de produção correspondendo, portanto a um produto social que a faz ser separada e externa da sociedade13. Atrelada a esta lógica, o modo de produção vinculou à dimensão de natureza o aspecto da universalidade, contradição necessária que possibilita uma completa dominação da sociedade sobre a natureza, incorporando-a definitivamente ao processo produtivo14. Nessa relação da sociedade com a natureza, mediada pelo trabalho, verificase a dinâmica em que “(...) quanto mais o trabalhador se apropria da natureza, mais ela deixa de lhe servir como meio para seu trabalho e meio para si próprio.” (DUARTE, 1995 : 47), sendo atribuída a ela poderes mágicos e sobrenaturais, a qual Marx denomina de fetichismo da mercadoria: O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas cosias e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais. Assim, a impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo ótico não se apresenta como uma excitação subjetiva do próprio nervo, mas como forma objetiva de uma coisa fora do olho. Mas, no ato de ver, a luz se projeta realmente a partir de uma coisa, o objeto externo, para outra, o olho. É uma relação física entre coisas físicas. Porém, a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí se originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece como os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (MARX, 1983 : 71, grifo nosso)

12

Cf. :Porto-Gonçalves, 1982. Cf.: Damiani, 2008, p. 40. 14 Cf.: Smith, 1988, pp.: 44-46. 13

20

Na consolidação dessa fantasmagoria, os objetos se tornam sujeitos e estes em objetos, desvanecendo um aspecto estruturante do modo de produção, a essencialidade das crises15. Reconhece-se, contudo que atualmente o capitalismo passa por uma crise16 que está sendo apresentada como crise ambiental17; apontando para uma possível reversão a racionalização na obtenção dos recursos naturais. Simultaneamente ao discurso da escassez de recursos, o modo de produção continua se apropriando indiscriminadamente da natureza, utilizando-a agora também como agregadora de valor às mercadorias; visando nesse sentido, impulsionar a reversão da crise do capital – buscou-se, através dos estudos sobre as enchentes do Jardim Pantanal (São Paulo/SP), demonstrar como que estas relações se deram. Smith fala da utilização desse mesmo mecanismo, ao comentar sobre o momento de dominação do Oeste estadunidente na qual, a estética do Naturalismo com suas descrições perfeitas sobre a natureza e o Romantismo com o ideário de “volta à natureza”, contribuíram para formar uma visão humanizada e dócil, de tal maneira que possibilitou a produção do valor: Domesticada, higienizada e estendida sobre mesas de café, a natureza era um pertence, da mesma forma como o gato da família. Através de um largo conjunto de atividades, muitas delas destinadas às crianças, o culto à natureza tornou-se uma necessidade, primeiramente para a classe média e depois, de maneira mais limitada, para o restante da América urbana. [...] Nessas atividades e na onipresente “fuga” da cidade nos fins de semana, a visão de natureza inerente ao movimento de “volta à natureza” encontra sua expressão contemporânea. (SMITH, 1988 : 38)

Por meio da retórica ambiental, enquanto melhoria na qualidade de vida, apresentada atualmente como possibilitadora em estabelecer relações sustentáveis com o planeta – e outras variações discursivas “verdes” –, promove-se a reprodução do capital, criando nichos de mercado e adjetivações às mercadorias. Dessa maneira, a crise ambiental amplamente divulgada pelos meios de comunicação de massas e aparelhos ideológicos se torna discurso hegemônico, objetivando a perpetuação do modo de produção capitalista sem questionar sua lógica contraditória de produção de mercadorias. 15

Ver mais em: Lukács, 2003, pp.: 193-412. Ver mais em: Harvey, David. O enigma do capital – e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. Júnior, Plínio de Arruda Sampaio. Capitalismo em crise – A natureza da dinâmica da crise econômica mundial. São Paulo: Ed. Inst. José Luis e Rosa Sundermann, 2009. 17 Cabe destacar que não se trata de uma especificidade do atual momento histórico a preocupação com as questões ambientais paralelas ao debate econômico. A Conferência de Estocolmo, organizada pelas Nações Unidas em 1972, expressava naquele momento uma iniciativa em âmbito mundial de organização das relações entre sociedade e o meio ambiente, à luz de uma crise econômica. 16

21

E a Geografia com isto tudo...? Ao longo desta redação, as ciências foram tratadas enquanto manifestação da superestrutura através da sua relação com a infraestrutura que é, por sua vez, determinada pelas relações sociais de produção; entendendo-as, portanto, como produtos sociais. Na Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que a História é a única ciência existente: A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente. (MARX & ENGELS, 1977 : 23).

Os autores, ao estabelecerem uma relação entre história natural e história humana recolocam a mediação do trabalho na interação entre sociedade e natureza, não havendo a possibilidade de se ter uma história natural dissociada de uma história humana. O Trabalho, neste sentido, não está vinculado exclusivamente ao aspecto natural nem ao histórico, mas pertencendo a ambas as dimensões 18. Equaciona-se assim, uma dialética que enfatiza que todas as transformações que se derem no âmbito da história da natureza produziram simultaneamente modificações na história dos homens, revelando a História como a única ciência. No entanto, o caráter fetichista da mercadoria separa esse par dialético incorporando às leis da natureza ao devir histórico, naturalizando fatos resultados de relações sociais. Nesse sentido que Marx aponta no Prefácio da primeira edição d’O Capital que a formação econômico social capitalista apresenta a divisão social do trabalho como sendo um processo histórico natural19. Entendendo a ciência geográfica enquanto produto dessa divisão social do trabalho, algumas das suas interpretações corroboram para uma visão adaptativa dos Homens às condições naturais ou ambientais20, conformando uma naturalização que aponta para a eternização do modo de produção capitalista21. Dessa forma, a Geografia, principalmente aquela fundamentada em Sistemas e Modelos (como a Teoria dos Geossistemas), cumpre o papel de contribuir, do seu modo, em perpetuar 18

Cf.: Duarte, 1986, p.55. “Não pinto, de modo algum, as figuras do capitalista e do proprietário fundiário como cores róseas. Mas aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classe e interesse. Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma criatura, por mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas.” (Marx, 1983, p. 13) 20 Cf.: Quaini, 2002, p. 45. 21 Cf.: Quaini, 2002, p. 19. 19

22

as cisões destas relações sociais de produção, pois acredita em solucionar tais pontos inconciliáveis (os “problemas ambientais”). Quaini cita esquematicamente, itens centrais de certa “geografia da produção” que aborda a realidade a partir de um “ambientalismo geográfico”: I. Fatores naturais da economia 1) solo (para os minerais e para as rochas); 2) clima (para as culturas, para a pecuária, para o povoamento); 3) hidrografia (para o abastecimento hídicro, para a produção de energia, para as comunicações). II. Fatores antrópicos da economia 1) número dos habitantes (para a mão-de-obra, para consumo); 2) qualidades dos habitantes (para capacidades técnicas de trabalho, para renda); 3) capital (para as intervenções quer de particulares, quer do Estado, quer mistas). (QUAINI, 2002 : 16)

Mesmo reconhecendo que o pensamento geográfico de hoje se encontra mais diversificado nas suas abordagens e crítico sobre a realidade social, o esquema que Quaini se torna emblemático por descrever uma lógica que funcionaliza os elementos constituintes da realidade, estando ainda, de alguma maneira, presente na produção do conhecimento geográfico contemporâneo. Indagar sobre qual a natureza da realidade geográfica22 pode contribuir para ultrapassar essa situação. A partir do raciocínio que coloca a lógica da produção de mercadorias como a produtora de determinações a todas as relações sociais encontradas sob sua égide, é preciso desdobrá-la reconhecendo sua dimensão espacial. Seguindo Marx e Engels: O fato, portanto, é o seguinte: indivíduos determinados [(Suprimido no manuscrito:) em determinadas relações de produção], que como produtores atuam de modo também determinado, estabelecem entre si relações sociais e políticas determinadas. É preciso que em cada caso particular, a observação empírica [(Suprimido no manuscrito:) que se atém simplesmente aos fatos reais] coloque necessariamente em relevo – empiricamente e sem qualquer especulação ou mistificação – a conexão entre a estrutura social e política e a produção. (MARX & ENGELS, 1977 : 35)

Não haveria prejuízo em afirmar que essas relações sociais e políticas, determinadas pela divisão social do trabalho, se encontram espacialmente definidas por esta lógica, produzindo relações espaciais entre os indivíduos e deles com a Natureza. Com isto, assumi-se que as relações sociais constituem uma geograficidade estabelecida a partir da determinação da lógica produtora de

22

Cf.: Silva, 1978, p.95.

23

mercadorias, baseadas na cisão Capital-Trabalho/Sociedade-Natureza devendo, portanto, ser tratadas enquanto relações sócio espaciais. Tal caracterização pretende fazer com que seja ultrapassado esse fetichismo ideologizante que por vezes foi apregoado por abordagens geográficas preocupadas em instituir a “unidade geográfica”, tornando as interpretações geográficas mais fidedignas em relação à realidade presente, reconhecendo na imanência das crises estruturais um objeto a ser também desvelado pela Geografia, não se restringindo às análises idealizadas e somente descritivas. Assim, este trabalho parte da situação dramática imposta pela enchente aos moradores do Jardim Pantanal, para evidenciar as fissuras existentes na relação contraditória entre Sociedade-Natureza, almejando-se com isso, constituir uma Geografia da Crise. Comprometida no reconhecimento dos conflitos sócio espaciais, preocupada em enaltecer as contradições, desvendando criticamente as crises do capital23, indicando para uma práxis social que aponte a auto organização e emancipação das sociedades foram os aspectos que guiaram este estudo.

23

Essa ideia não se trata de uma novidade para Geografia: “São essas algumas evidências de uma crise que se materializa em espaços definidos e para a qual os geógrafos teriam que dar a sua resposta – uma Geografia da Crise. Na medida em que hesitam, não reformulando uma base teórica de há muito envelhecida e não assumem, portanto, uma posição crítica, os geógrafos, em geral, deixam de lado a geografia da crise e são levados de roldão pela crise da geografia.” (PORTO-GONÇALVES, 1982, p. 73).

24

CAPÍTULO 02 – COMENTÁRIOS (CRÍTICOS) ACERCA DA FILOSOFIA ESTRUTURALISTA E TEORIA GERAL DOS SISTEMAS “Quando o ideal de conhecimento das ciências naturais é aplicado à natureza, ele serve somente ao progresso da ciência. Porém, quando é aplicado à evolução da sociedade, revela-se um instrumento de combate ideológico da burguesia.” Georg Lukács

2.1 O porquê do Estruturalismo (precursores da pesquisa) Os embates acerca do objeto e da unidade na ciência geográfica foram recorrentes durante todo o percurso histórico desta disciplina – fato explicável pela complexidade epistemológica própria de tais temas e na diversidade de respostas obtidas24. Com isto, trilhar por tais problemáticas pode pressupor, para alguns, um tom de insistência, enquanto à outros, corresponde a falta de qualquer sentido. Uma explicação possível para essa segunda indagação pode ser o processo pelo qual a disciplina galgou, aprofundando sua divisão primordial entre Geografia Física e Geografia Humana e se atomizando conforme as mudanças na divisão social do trabalho. Isso possibilitou com que a Geografia alcançasse notoriedade entre as demais ciências (sociais e naturais), consolidando-a como uma especialidade “versátil” ao tratar de temas ligados à sociedade e ao meio ambiente. Nesse tecido histórico é que a Teoria dos Geossistemas aparece como sendo a responsável por unificar tais tópicos: Em termos de abordagem, a proposição geossistêmica utiliza a análise integrada do complexo físico-geográfico, ou seja, a conexão da natureza com a sociedade humana. Os geossistemas são fenômenos naturais, mas seu estudo engloba os fatores econômicos e sociais e seus modelos refletem parâmetros econômicos e sociais das paisagens modificadas pelo homem. (MENDONÇA, 1989 : 50)

A partir da postura de teimosia sobre a problematização epistemológica, em 2008 se obteve certa coesão, permitindo realizar estudos mais sistemáticos a partir do ano seguinte através da pesquisa de iniciação científica25. Ao longo dessa pesquisa verificou-se que a evolução dos estudos integrados esteve baseada na filosofia estruturalista e na Teoria Geral de Sistemas26, 24

Monteiro(1980) discorre sobre a problemática do “método geográfico” na história da Geografia, mais especificamente durante período em que o debate sobre a crise da geografia estava mais átona. 25 Oliveira, João Victor Pavesi. A Teoria dos Geossistemas e o discurso ambientalista: apontamentos críticos. Relatório Final do Programa de Iniciação Científica pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), vigência 2010/2011. São Paulo. 26 Ver: Conti, 2002, p. 11; Christofoletti & Oliveira, 1971, p. 11.

25

explicando a presença dos termos “estrutura”, “sistema” e “modelo” aos estudos geossistêmicos27. Optou-se então, primeiramente em entender a utilização destes termos e posteriormente identificar a contribuição do Estruturalismo e da Teoria Geral dos Sistemas na formulação da abordagem geossistêmica. Estruturas e Estruturalismos Os autores mais diversos invocam estruturas para fins e em campos bem diferentes. De fato, a estrutura é uma forma inteligível que justifica métodos que devem adaptar-se tanto ao seu objeto como ao seu objetivo. [...] Assim é que podemos preferir falar em estruturalismos no plural [...]. (LEPARGNEUR, 1972 : 04)

Para entender a filosofia estruturalista, partiu-se de François Dosse (1994), mas logo se verificou que os autores denominados-rotulados como estruturalistas não utilizavam da mesma maneira o termo “estrutura”. A obra organizada por Roger Bastide (1971), Usos e sentidos do têrmo “Estrutura”, traz vários autores que estabeleceram uma compreensão sobre o tema que foi visto enquanto modismo28 para a época. Em seu texto de abertura, Bastide apresenta um histórico da palavra estrutura recuperando sua origem latina, structura, correspondente a uma derivação do verbo construir, struere29. Neste primeiro momento, o significado do termo se encontrava vinculado ao sentido arquitetônico, como sendo o “modo pelo qual está construído um edifício” 30. A partir do século XVII, o sentido da palavra ganhou expansão para duas direções: o primeiro foi referente ao Homem, estabelecendo semelhanças entre o corpo humano e uma construção edificada – referente a disposição dos órgãos; a outra, às línguas, atentando-se a disposição das palavras em uma oração e nas construções poéticas. Com isto, a noção de estrutura se vinculou aos anatomistas e gramáticos assumindo um papel descritivo das partes integrantes de um ser concreto organizado em uma totalidade31. Durante o século XIX, a utilização do termo alcançou as áreas das ciências exatas, ciências da natureza e ciências dos homens – em que nesta última, sua compreensão emanou de generalizações das ciências da natureza 32. Porém,

27

Cf.: Chorley & Haggett, 1975; Christofoletti 1979, 1981 e 1986-1987. "Numa época em que o têrmo estrutura – que nos propusemos a estudar – está na moda, e em que até originou uma determinada concepção do universo humano – o estruturalismo (...)” (Bastide, 1971, p. 2). 29 Cf.:Batisde, 1971, loc. cit. 30 Cf.: Dictionnaire de Trevoux, ed. de 1771(apud Bastide, op. cit., p. 02). 31 Cf.: Dosse, 1994, p. 15. 32 Cf.: Bastide, op. cit., p. 03. 28

26

somente na segunda metade deste mesmo século que “estrutura” ganhou novos contornos, aproximando-se de uma das compreensões que temos atualmente: Começam, assim, a delinear-se, na segunda metade do século XIX, itinerários que desembocam em nossa época. Outros serão abertos no século XX. Bernot indicou-nos um, ou seja, aquele que parte da geografia física e vai até a sociologia, passando pela geografia humana. Em 1938, Halbwachs emprega em sua Morphologie Sociale o têrmo estrutura “ou formas de sociedade”, aproximadamente no mesmo sentido que os geógrafos, para designar o modo pelo qual a população se distribui sôbre a terra, ou sua composição por sexo e idade. Para êle, portanto, a estrutura é, segundo suas próprias palavras, essencialmente “material, física”. É dêste modo que a noção de “estrutura social” (…) penetra na sociedade francesa em dois níveis da realidade, o da base morfológica e o da organização, com significados assaz difíceis de conciliar, devido às suas origens várias. (BASTIDE, 1971 : 04)

Nesse desenrolar, Bastide reconheceu influências da Escola de Chicago e algumas contribuições do pensamento alemão não marxista na formação do termo. Contudo, foi somente no ano de 1930 em que houve uma definição divisora na história do termo “estrutura”: O ano de publicação do livro de Freyer – 1930 – é uma data capital. Marca ela o término de uma etapa em nossa história do têrmo e o início de uma outra, ou seja, a da inversão – quase explosiva – da preocupação estruturalista em tôdas as ciências sociais, e simultâneamente, a da mudança de sentido que a palavra ia sofrer sob a influência dos novos conhecimentos adquiridos no campo da lógica e da matemática. (BASTIDE, 1971 : 05)

A inserção do termo entre as ciências sociais teve a importante contribuição de Lévi-Strauss, sendo assim pertinente visitar seu entendimento. Este autor foi influenciado pela filosofia positivista de Auguste Comte e pela sociologia de Émile Durkheim33, em que sobre o primeiro, dois foram os aspectos: i) a necessidade de garantir o estatuto de Ciência para os estudos da sociedade; e ii) a visão holística que se contrapunha ao pensamento da filosofia tradicional. Do pensamento durkheimiano, absorveu a preocupação em constituir uma ciência dos Homens, coadunando com a visão totalizante promulgada por Comte, compreendendo a sociedade enquanto um todo que não poderia ser reduzida à soma das suas partes34. É dessa maneira que se conformou o surgimento do estruturalismo enquanto filosofia e abordagem teórica metodológica, acompanhada da ebulição linguística saussuriana e dos estudos antropológicos de Lévi-Strauss.

33

Destaca-se a dedicatória feita por Lévi-Strauss ao centenário de Durkhein na publicação da obra Antropologia Estrutural (2008). 34 Cf.: Dosse, 1994, p. 34.

27

No entanto, nota-se que durante o século XX a palavra “estrutura” foi utilizada de várias maneiras. Coelho (1976 : XXI-XXII) exprimiu uma tentativa de definição: a) interação de elementos que possuem leis próprias e independentes, compondo um conjunto; b) a existência de leis que regem este conjunto entendendo que a alteração de algum elemento produzirá interferência em todos os outros; c) impossibilidade de definição do elemento apenas por si próprio, mas a partir da posição que ocupa na relação com os outros elementos do conjunto. Outra tentativa de definição corresponde a de Boudon, a qual Lepargneur (1972) fez referência. Segundo ele, Boudon sugere dois contextos a serem analisados cuidadosamente o termo estrutura: o primeiro corresponde ao contexto das definições intencionais em que a palavra estrutura contém um sentido específico no interior de uma epistemologia própria de determinada disciplina, conforme muda a disciplina altera-se o sentido do termo, estando a definição referenciada no contexto em que a palavra é usada. O segundo contexto, trata-se das definições efetivas em que, reconhecendo as oposições apresentadas pelo termo, vincula o sentido de estrutura a teoria dedutiva, permitindo comprovações relativas sem contrariedades (LEPARGNEUR, 1972 : 121). Além dessas possibilidades, percebe-se também que outros termos foram utilizados de forma que expressasse sentidos semelhantes ao de estrutura, como: sistemas de relações, conjunto de elementos não redutíveis à sua soma, dependência das partes quanto ao todo35, sistema, modelo, forma etc36. Desse modo, fica evidente a impossibilidade de ter uma caracterização unitária ao termo, reconhecendo a condição que a palavra tem em se manifestar por meio de fenômenos da sinonímia e homonímia – gerando, por vezes, contradições semânticas por causa da sua polissemia. Segue-se, portanto, o método de análise sugerido por Boudon (1974), que propõe analisar o termo “estrutura” a partir do seu sentido contextual, sem se ater em encontrar as diferenças conteudísticas: Mostraremos que o sentido de contradição provocado pelo caráter polissêmico da noção de estrutura (resumimos por esta expressão a observação segundo a qual a noção de estrutura é uma coleção de homônimos pertencentes a uma coleção de associações sinonímicas) pode ser facilmente explicado se operarmos uma mudança de perspectiva análoga à que caracteriza a mutação da fonética clássica em fonologia estrutural. Noutros termos, trata-se, ante o fracasso em apreender a significação da noção de estrutura pelas definições indutivas, de tentar uma 35 36

Ver mais: Boudon, 1974. Cf.: Bastide, 1971, p. 07.

28

definição que a considere, não mais do interior, mas sim do exterior. (BOUDON, 1974 : 09-10)

Assim, baseou-se na fonologia37 estrutural que define os fonemas a partir das suas relações exteriores. Um determinado fonema “p” é encontrado de várias formas acústicas nos diversos idiomas, no entanto, reconhece que seu significado é mantido através das relações perceptíveis entre “p” com os demais fonemas. Transpondo para a problemática da estrutura, o termo possui vários sinônimos: “pattern, 'sistema de relações', 'totalidade não redutível à soma de suas partes', Aufbau, Gefüge, 'sistema concreto', etc.” (BOUDON, 1974 : 8); em que na aparência as palavras se distinguem, no entanto, através dos contextos em que são apresentadas se verifica a identidade de significados vinculados à noção de “estrutura”. O autor, desta forma afirma que pattern e “sistema de relações”, por exemplo, mesmo possuindo signos distintos, expressam um mesmo significado38. Considerando a polissemia apresentada por Boudon e a multiplicidade de possibilidades apresentadas pelo termo, não há condições de fato de afirmar a existência de uma única abordagem estruturalista. A semelhança de significados percebida em determinada utilização do termo somente consegue ser definida a partir de delimitações criteriosas; sendo, portanto preciso falar em “estruturalismos no plural”, conforme Lepargneur. Coelho (1967) explicita: Podemos considerar três tipos de «estruturalismo» [esta classificação é proposta por Jean Viet no seu livro Les méthodes structuraliste dans les sciences sociales] um «estruturalismo» fenomenológico (Merleau-Ponty, Sartre, etc.), um «estruturalismo genético» (com Goldmann, Piaget, e, com vários matizes, Gurvitch, Lefebvre, Sartre) e um «estruturalismo» dos modelos (Lévi-Strauss, e ainda Lacan, Barthes, Foucault, Althusser, etc.). Cada uma destas correntes dá um relevo especial a um dos elementos dos processos: teremos, assim, respectivamente, a predominância da significação, a predominância da dialética e a predominância do modelo. (COELHO, 1967 : XXII-XXIII)

A partir dessa classificação, Coelho reconheceu que o principal ponto de diferenciação desses estruturalismos se encontra na relação existente entre estrutura e realidade – como o real é concebido? como a realidade é assimilada? –, fazendo aglutinar a perspectiva fenomenológica com a genética, distinguindo-as do “estruturalismo de modelos”. Para melhor caracterizar tal diferenciação, Coelho se 37

“A fonologia tem por objeto ultrapassar o estágio dos fenômenos lingüísticos conscientes, não se contenta em considerar os termos em sua especificidade mas entende apreendê-los em suas relações internas; introduz a noção de sistema e visa à construção de leis gerais.” (Dosse, 1994, p. 42). 38 Este caminho não considera o percurso histórico individual dessas palavras sinônimas. Por exemplo, o termo “Sistema” que se encontra imbricado ao de estrutura, possui características particulares que o atrelam a noção de equilíbrio oriundas da Biologia. (Ver mais: Boudon, 1974, a partir da p. 16).

29

utilizou do debate entre Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss para expressar essa fratura39. O Radcliffe-Brown considerou estrutura como uma componente da “realidade concreta”, impossível de ser propriamente encontrada por estar em constante dinamismo. Porém, pode ser apreendida por meio das transformações visíveis na superficialidade da realidade continuamente dinâmica, verificando com isto a essência inalterada da estrutura. Ao considerar que estrutura faz parte da realidade concreta, comprova-se sua existência através dos sentidos, enveredando para uma compreensão empirista do termo. Já Lévi-Strauss se opõe às ideias de Brown, considerando que este não distinguiu adequadamente estrutura social de relação social40. Para Lévi-Strauss a estrutura corresponde a um conjunto de leis definidas, que determina e delimita os elementos em um sistema de relações sociais observáveis em certa sociedade, não tratando de uma realidade empírica. Utiliza-se de modelos teóricos para assimilar esta estrutura social, sendo um método para se aproximar do real concreto41. Segundo Coelho, Lévi-Strauss também faz uma concessão ao empirismo: Em Lévi-Strauss, a utilização de modelos teóricos como formas aproximativas de conhecimento da realidade é bastante freqüente, e não podemos deixar de ver neste processo uma certa concessão ao empirismo. [...] Deste modo, vamos encontrar numa teoria dos modelos o que precisamente define o empirismo: o processo de conhecimento consistiria em abstrair do real a sua essência; o produto dessa abstração seria o modelo; e, nesse caso, o modelo corresponderia apenas a uma representação aproximada do real, construída com o fim de melhor manipular esse real em função de necessidades práticas. (COELHO, 1967 : XXVII)

Frente a miríade de possibilidades sobre o termo estrutura e as diferenças entre as correntes do estruturalismo, reconhece que a posição de Lévi-Strauss se tornou hegemônica nas ciências sociais. Junto disso, a ambição deste autor em garantir uma metodologia inovadora e científica aos estudos da sociedade esteve acoplada ao pensamento estruturalista, compreendendo os fatos sociais a partir de leis gerais e de modelos. Dessa realidade, Lefebvre (1968) identificou a existência

39

Cf.: Coelho, 1967, a partir da pág. XXII. “Como o senhor reconhece, emprego o termo ‘estrutura social’ num sentido muito diferente do seu, de tal forma que a discussão se torna tão difícil que duvido que seja útil. Enquanto para si a estrutura social nada tem a ver coma realidade, mas refere-se aos modelos que construímos, eu considero a estrutura social como uma realidade”, cit. por Lévi-Strauss, Le toté-misme aujourd’hui (...)” (Coelho, 1967, p. XV). 41 “As relações sociais são a matéria-prima empregada para a construção de modelos que tornam manifesta a própria estrutura social, que jamais pode, portanto, ser reduzida ao conjunto das relações sociais observáveis em cada sociedade. (Lévi-Strauss, 2008, p. 301). Ver mais: Lévi-Straus, 2008, a partir de 302. 40

30

de uma relação entre a filosofia estruturalista com o pensamento eleático42. Crítica a Filosofia Estruturalista: Estruturas, Sistemas e Modelos A filosofia eleática reconhecia na imobilidade a melhor maneira de se aproximar do verdadeiro, da perfeição; ultrapassando as ilusões falseadoras da aparência fenomênica criada pelos sentidos. Segundo esta perspectiva, a realidade corresponderia a uma sequência de fatos imóveis, tendo no sistema43 sua melhor representação. Contrariamente a essa posição, o heraclitismo compreendia a realidade enquanto um perpetuum mobile, identificando o imóvel somente como algo aparente, uma ilusão44. Baseando-se na polêmica entre imobilidade e mobilismo, Lefebvre reconhece alguns dos elementos constitutivos da ciência moderna. Através da perspectiva eleática os paradigmas científicos de objetividade, universalidade e rigorosidade por meio da linguagem se fundamentaram, promovendo investigações versadas aos estudos específicos dedicados a “unidades discretas (átomos de significados, traços e pontos como no código Morse, letras e fonemas, etc...)”45. A construção de modelos perfeitos demandou uma ideia de equilíbrio sistêmico46 sobre a estrutura social e de uma linguagem específica que estivesse baseada nos parâmetros clamados pelo cientificismo. Neste enredo, o pensamento da mobilidade foi desprezado, vinculando a noção de estrutura ao de forma e função, tornando as interpretações da realidade social ideologizadas pelo formalismo e funcionalismo47. Lévi-Strauss, preocupado com a construção de uma abordagem metodológica própria para as ciências sociais, atrelou-se ao discurso do rigor epistemológico utilizando pragmaticamente da linguística e dos sistemas e modelos para estabelecer representações do real concreto. Lefebvre, dessa maneira, considerou que a filosofia estruturalista tinha o mesmo comportamento eleático, enaltecendo modernamente

a

imobilidade,

através

da

construção

de

uma

ideologia

42

A filosofia eleática corresponde a uma escola em que Parmênides, Zenão, Xenófanes e Melisso são seus principais pensadores. Contraposta a lógica dialética elaborada por Heráclito, Zenão atuou na afirmação do eleatismo através da sua contestação, chegando ao ponto de ser nomeado como pai da dialética por Aristóteles. 43 Cf.: Lefebvre, 1968, p. 08. 44 “A imobilidade, que se reduz em estagnação, é ao mesmo tempo estúpida ininteligível e insuportável. O equilíbrio é tedioso, a não ser entre saltimbancos e no circo” (Ibid, p. 12). 45 Ibid, p. 15. 46 Ibid, p. 16. 47 Ibid, p. 24.

31

neutralizadora das possibilidades de transformação da realidade social, promovendo o fim da história – denominou de nôvo eleatismo: Que visa, portanto, o nôvo eleatismo? Êle não quer mais contestar, como o antigo, o movimento sensível, negá-lo e rejeitá-lo para o aparente. Êle contesta o movimento na história. Não se contenta mais com negar a história como ciência; contesta a historicidade fundamental concedida por Marx ao considerá-la como uma ideologia desvalorizada. Êste repúdio constitui a nova ideologia, apresentada com o vocabulário do rigor, da precisão, da ciência. Com a historicidade, caem a procura do sentido, a contradição dialética e o trágico. Des-dramatiza-se. (LEFEBVRE, 1968 : 1718)

Firmando-se enquanto abordagem científica aos estudos da sociedade, o estruturalismo se tornou a “ideologia do equilíbrio entre as forças atuantes no mundo moderno” (LEFEBVRE, 1968 : 24). Descontextualizada das relações de produção, a análise a partir desta metodologia abdicou em observar a realidade para além das suas características fenomênicas aparentes, inviabilizando interpretações críticas, por desconsiderar a mobilidade permanente do real, expressa na contradição do capital-trabalho; apresentando-a como algo imóvel, em harmonia e em constante equilíbrio. Diante disso, verifica-se a pertinência em descrever qual a compreensão obtida sobre “estrutura”, “sistema” e “modelo”, tornando substancial a crítica sobre a filosofia estruturalista. O entendimento que se tem de “estrutura” é que se trata de uma categoria48 que expressa a dimensão de totalidade, portanto a relação contraditória entre infraestrutura e superestrutura, representada pela lógica de produção de mercadorias através do conflito entre capital com o trabalho, específica do modo de produção capitalista. Vinculadora dos diversos fragmentos da vida cotidiana é estruturadora da realidade social efetivada por meio da reprodutibilidade crítica do capital, o que permitirá reconhecer no cotidiano a imanência das crises. “Modelo” e “sistema” podem ser compreendidos enquanto maneiras de realização da “estrutura” sendo, portanto, modos de apresentar certa dimensão da totalidade. No entanto, partindo de Lefebvre (1973) se verificou que “modelo” se encontra alicerçado na lógica formal da teoria dos modelos, da informação e da 48

Partindo da compreensão hegeliana de categoria, entende-se que esta sofre a determinação de seus contrários. Marx, baseado nesse entendimento, definiu trabalho como sendo uma categoria relacionada a contradição entre valor de uso e valor de troca. Dessa maneira, as mercadorias produzidas pelo trabalho, têm incorporado este duplo caráter: “Na própria relação de troca das mercadorias, seu valor de troca apareceu-nos como algo totalmente independente de seu valor de uso. Abstraindo-se agora, realmente, o valor de uso dos produtos do trabalho, obtém-se seu valor total como há pouco ele foi definido. (...) Portanto, um valor de uso ou bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato.” (Marx, 1983, p. 47).

32

cibernética, correspondendo a uma reprodução mental da “estrutura” por meio, de generalização idealizada da realidade empírica. Para conquistar tal generalização, abdica-se de elementos contraditórios da essência da realidade, sendo somente assim possível se obter plenamente a efetivação do modelo. Para Chorley e Haggett: Assim, modelo é uma estruturação simplificada da realidade que supostamente apresenta, de forma generalizada, características ou relações importantes. Os modelos são aproximações altamente subjetivas, por não incluírem todas as observações ou medidas associadas, mas são valiosos por obscurecerem detalhes acidentais e por permitirem o aparecimento dos aspectos fundamentais da realidade. [...] Contudo, todos os modelos têm necessidade constante de aperfeiçoamento, à medida que surgem novas informações ou perspectivas da realidade, e quanto maior o sucesso em que o modelo foi originalmente estruturado, maior possibilidade há de que esse aperfeiçoamento deva provocar a construção de um modelo diferente. (CHORLEY & HAGGETT, 1975 : 3-4)

Verifica-se, com isso que o predomínio da lógica eleática, desconsidera a força do conflito como o impulsionador do caráter móvel da realidade. Aparentemente, se pone fin a las contradicciones sirviéndose de modelos cuyas “sobredeterminaciones” coherentes recubran las determinaciones conflictuales que encierran. En vez de sacar de los propios conceptos el contenido del conocimiento, se los niega no dialécticamente, es decir, negando y denegando y renegando del pensamiento así como del pensamiento dialéctico. De ese modo se sustituyen las contradicciones con una imagen no-conflictual, una representación sistematizada; en otros términos, una coherencia ficticia, purificada de contradicciones: un modelo. Esta imagen, esta representación, esta ficción abstracta, se les impone de inmediato. (LEFEBVRE, 1973 : 18)

Com a retirada do conflito sobre a compreensão da realidade, uma falsa ideia de estabilização se constitui, trazendo a baila o conceito de Sistema. Com origem nas ciências naturais, especificamente na Biologia, a ideia de Sistema esteve articulada com a noção de homeostasia que, evidenciou a dimensão de equilíbrio, rompendo com a perspectiva mecanicista até então presente nas ciências biológicas49. Ludwig von Bertalanffy (2008), através da obra Teoria Geral dos Sistemas, realizou importante contribuição para fundamentação da compreensão sistêmica sobre a realidade. *** Uma crítica à filosofia estruturalista deve também incorporar o não reconhecimento de “estrutura” enquanto uma categoria, desconsiderando as determinações do modo de produção capitalista sobre a estrutura social e desse modo, não verificando no conflito e nas contradições implicações na realidade social. 49

Cf.: Boudon, 1974, a partir da p. 16.

33

Lévi-Strauss ao constituir uma metodologia a respeito da sociedade reproduziu os paradigmas das ciências naturais, utilizando da linguagem biologizante que remetia às construções mentais. Essa abordagem não reconhecia as determinações históricas dos processos sociais, indo a favor “em 'estruturar' a sociedade moderna para conservar sua ordem” (LEFEBVRE, 1968 : 24). A adoção desses critérios o impediu de compreender dialeticamente o real concreto, naturalizando os conflitos sociais e inviabilizando a realização de uma interpretação crítica50. Cumprindo um papel ideológico, a ideia de equilíbrio social fortaleceu o processo

da

alienação

proferido

por Marx &

Engels 51,

conformando

ao

estruturalismo o “fetichismo do saber”52, nos termos de Lefebvre; em que se negligenciou nas análises sociais, o perpetuum mobile próprio da história humana. Tais posturas exacerbaram, através dos/nos estudos particularizados, a dissolução da dimensão de totalidade, contribuindo para formar ciências particularizadas, tecnicizadas e aplicadas à manutenção da ordem estabelecida. Nessa condição historicamente determinada, a utilização do estruturalismo como maneira de consolidar as ciências sociais enquanto estudo reconhecidamente científico, reverberou na Geografia contribuindo para solucionar sua crise epistemológica de não se considerar científica.

2.2 Teoria Geral dos Sistemas Promulgada como filosofia pelo seu principal idealizador, Ludwig von Bertalanffy, a Teoria Geral dos Sistemas se comporta como uma outra perspectiva influenciadora da proposta geossistêmica, constituindo uma abordagem que reconhecia ser possível erguer sistemas para objetos de diferentes ramos científicos: social, biológico, físico e psicológico. A definição desse autor para “sistema”

corresponde

a

um

“complexo

de

elementos

em

interação”

(BERTALANFFY, 2008 : 58) que almejava se contrapor à dita “ciência clássica” no que tangia a análise dos elementos do universo separadamente, através da

50

Cf.: Kurz, 1997. “E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos [de cabeça para baixo] como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico” (Marx & Engels, 1977, p. 37) 52 Cf.: Lefebvre, 1973, p. 14. 51

34

mecânica de isolar os elementos da totalidade os recompondo por meio de uma somatória simples – tratando de uma reunião de suas partes: A ciência clássica, em suas diversas disciplinas, sejam elas de química, biologia, psicologia ou de ciências sociais, tentaram isolar os elementos do universo observado – compostos químicos e enzimas, células, sensações elementares, indivíduos competindo livremente, etc. – esperando que ao recolocá-los juntos, conceitual e experimentalmente, o todo ou o sistema – célula, mente, sociedade – há de resultar e ser inteligível. (BERTALANFFY, 2008 : 14)

Bertalanffy

identificava

que

essa

metodologia

analítica

“clássica”

desconsiderava as relações entre os elementos, propondo a Teoria Geral dos Sistemas como a possibilidade em reconhecer nitidamente a dimensão de totalidade, para ele verificável somente através da atenção às interações dos elementos envolvidos – constituindo, portanto o Sistema. Assim, a Teoria Geral dos Sistemas teve como ensejo comportar-se como sendo “uma ciência geral da ‘totalidade’” (BERTALANFFY, 2008 : 62). Essa preocupação no dimensionamento da totalidade aos estudos científicos foi reconhecida por Bertalanffy como algo vago, nebuloso e semi-metafísico53, expressando uma divergência com o método “clássico” que obstinava soluções para diferentes problemas teóricos e práticos reduzindo-o a ciência física, impulsionando os estudos setorizados e especializações. A perspectiva da Teoria Geral dos Sistemas consistia na defesa de uma visão unitária do mundo que reconhecia “[...] uniformidades estruturais, que se manifestam por traços isomórficos de ordem nos diferentes níveis e domínios.” (BERTALANFFY, 2008 : 76); não sendo a ciência ou o método de análise que conformam a dimensão de totalidade, mas sim o aspecto estrutural, expresso pela dimensão sistêmica que produz alguns isomorfismos. Outro aspecto relevante da abordagem do autor trata da dedicação para a análise empírica, sustentada nas limitações da física convencional. Para constituir sua compreensão de Sistema, o autor partiu do segundo princípio da termodinâmica e dos conceitos de entropia, controle e retroação, indicando que as interações entre os elementos do Sistema se dão, necessariamente, enquanto fluxos de matéria e energia tornando, possível somente assim, sua apreensão enquanto fenômeno. Concorrentemente a esse embasamento da física convencional, a abordagem também interage com o entendimento naturalista dos fenômenos físicos, psicológicos e sociais, se atendo a compreensão de equilíbrio, confluindo com 53

Ibid, p. 62.

35

Boudon (1974) e Coelho (1967), que localizaram nas ciências naturais, especificamente na Biologia, uma articulação da noção de homeostasia com a dimensão de equilíbrio. A perspectiva de Bertalanffy, apresentada em aspectos gerais, encontra na Teoria dos Sistemas a essência da sua análise metodológica, na qual o “sistema” se põe determinante frente à percepção das relações e sua constituição em fluxos de matéria e energia, assim como na compreensão de totalidade. Christofoletti evidencia esse aspecto, possibilitando com que seja reconhecido o vínculo dessa abordagem com a teoria geossistêmica: Em nível de abordagem mais geral encontramos a teoria dos sistemas, que versa sobre as propriedades, tipos e comportamento do sistema, oferecendo contexto metodológico para considerar a estrutura, comportamento, elementos, estado, fronteiras e meio ambiente dos sistema em geral. Além disso, fornece as bases para numerosos conceitos tais como equilíbrio dinâmico, equifinalidade, homeostase, informação, hierarquias sistêmicas, retroalimentação, entropia, fechamento e outros. Em nível mais baixo de abstração entramos a análise de sistemas, que é caracterizada por um conjunto específico de propósitos e técnicas analíticas. (CHRISTOFOLETTI, 1981 : 12)

*** A fim de analisar criticamente, a partir da perspectiva marxista, a proposição de Bertalanffy, serão apresentados alguns elementos pontuais fundamentados na crítica ao estruturalismo, compreendendo que também há possibilidade de transpor essas críticas para a Teoria Geral dos Sistemas, sem que haja prejuízos significativos. A utilização do conceito de homeostasia pode ser problematizada considerando seu vínculo à ideia de equilíbrio, por naturalizar as relações, como por exemplo, a relação sociedade-natureza essencialmente definida enquanto social. Verifica-se, com isso que a dimensão de totalidade apresentada por Bertalanffy se fundamenta, primordialmente, nesse conceito. Ao dedicar atenção à totalidade, Bertalanffy entende que a focalização deve se estabelecer nas relações que envolvem os sujeitos/elementos do âmbito abordado. Isto corresponderia a certa disposição em reconhecer a iminência de situações contraditórias, produtoras de crise, no estabelecimento dessas relações. Mesmo entendendo que a abordagem sistêmica possui uma compreensão elaborada de totalidade, por não compreendê-la enquanto uma somatória de várias partes, esta abordagem não consegue efetivar uma interpretação nessa dimensão escalar. A problemática se encontra no não reconhecimento das condições de 36

contradição, propulsoras de uma compreensão totalizadora através da lógica hegeliana da auto-negação, assim como da situação de crise que impõe uma interpretação não fragmentária por envolver uma leitura categorial (portanto, a partir da contradição) dos entes envolvidos. Em síntese: a compreensão de totalidade, sustentada pela abordagem sistêmica está refém da ideia de equilíbrio, promovida pelas ciências da natureza, condição sine qua non ao Sistema. Outro aspecto de destaque corresponde ao recorte empirista que Bertalanffy promove. A valorização do aspecto empírico desconsidera a relação entre abstratoconcreto, própria de uma sociedade baseada na produção da forma abstrata, a mercadoria. Atentar-se somente a fatos empíricos – ainda mais os compreendendo enquanto fluxo de matéria e energia – produz uma interpretação formal e somente aparente da realidade, inviabilizando o reconhecimento do movimento abstratoconcreto.

37

CAPÍTULO 03 – OBSERVAÇÕES SOBRE A PAISAGEM A partir da década de 1950, diversas abordagens teóricas da ciência geográfica se apropriaram da linguagem matemática, da visão sistêmica e da modelagem para superar a condição da falta de cientificidade54 identificada nos trabalhos de Hettner e Hartshorne, assim como, nos estudos regionais (HARVEY, 1983 : 89-90) da escola francesa. Comportando-se como uma “revolución filosófica”55, a perspectiva Teorético Quantitativa (New Geography), no bojo do aprofundamento da divisão intelectual do trabalho desse período, oferecerá não somente uma nova metodologia de análise se opondo àquela da geografia tradicional, mas também uma outra possibilidade de compreender o fenômeno geográfico visando fornecer rigor científico com respostas técnicas às mudanças pela qual a sociedade passava56: [A quantificação] Foi inspirada por uma necessidade genuína de tornar a geografia mais científica e por uma preocupação em desenvolver um corpo de teoria. A insatisfação com a geografia idiográfica está na raiz da revolução quantitativa. O desenvolvimento da geografia teorética, de construção de modelos, será provavelmente a maior conseqüência da revolução quantitativa. (BURTON, 1977 : 73)

Com a iminência da escassez de recursos naturais provocada pelo formato da relação Sociedade-Natureza desta divisão social do trabalho, o tema do ambientalismo vem à tona conclamando a unidade nos estudos geográficos 57. Fundamentada na Teoria Geral de Sistemas, a Teoria Geossistêmica surge com a perspectiva de realizar uma compreensão integradora das relações Homem-Meio, propiciando práticas aplicáveis ao território que revertessem os impactos ambientais causados pela ação antrópica58.

54

“Por isso se ouvia falar freqüentemente em uma ‘nova geografia’ (New Geography) ‘que se queria caracterizar por ser não apenas diferente, mas também em oposição e até mesmo em contradição com a geografia ‘tradicional’. A escolha da denominação não foi inocente. Os defensores dessa nova linha buscavam deixar clara sua distância em relação a uma geografia que, para muito deles, não seria somente uma geografia ultrapassada mas sobreduto ‘não geografia’.” (Santos, 2002, p. 60) 55 Cf.: Harvey, 1983, p. 18. 56 “O compromisso com o crescimento econômico não racionalizado, com o chamado 'progresso', provocou a formação de escolas, nas várias ciências sociais, que procuraram abstrair as conseqüências negativas deste crescimento e projetar apenas as vantajosas, utilizando para isto o método matemático-estatístico.” (Andrade, 1977, p. 13) 57 Ver mais em: Porto-Gonçalves, 1982; Porto-Gonçalves, 1996; Monteiro, 1980. 58 “Enquanto na Geografia vivíamos a eclosão da dita ‘revolução quantitativa’ e uma aspiração ‘teorética’ aconteciam a conferência de Estocolmo (1972) ao mesmo tempo que estourava a crise dos combustíveis (1973). Agora, passado quase um quarto de século, já nos demos conta, claramente, que aquele momento viria marcar a soleira (ou os umbrais) em que estávamos entrando plenamente na grande ‘crise histórica’ que caracteriza o final deste século XX.” (Monteiro, 1995, p. 22)

38

Nesse sentido, o debate sobre o significado da unidade na Geografia novamente é recuperado. Sua cisão interna entre Geografia Física e Geografia Humana e os percursos traçados de maneira independentes por cada uma delas – destacando-se a Geografia Física59 – levará ao encontro da categoria Paisagem como possibilidade de realização dessa unidade disciplinar; transfigurando esta disjuntiva para o conflito: Ciência da Paisagem Vs Ciência dos Homens/Sociedade. A compreensão desse processo será feita à luz da dinâmica das relações sociais do modo de produção capitalista.

3.1 Geografia enquanto uma ciência da paisagem A categoria Paisagem, utilizada com múltiplos sentidos, nem sempre encontrou definições semelhantes. Dentre elas, pode-se reconhecer aquela que valorizou a descrição do meio através da perspectiva artística e simbólica; outra que, a partir da Era Moderna, vinculou à noção de Paisagem as ideias de Natureza e cenário – entendidas, por vezes, como sinônimas60 –; há também a interpretação de que o termo adotou um aspecto cientificista a partir dos anos 1930-194061. Em síntese, a utilização da noção de Paisagem acabou correspondendo a um termo “pouco usado e impreciso, e por isto mesmo, cômodo, que cada um utiliza a seu bel prazer, na maior parte das vezes anexando um qualificativo de restrição que altera seu sentido” (BERTRAND, 2004 : 141). Uma compreensão razoavelmente pertinente para Paisagem é a de que entende enquanto um “arranjo de aspectos naturais e humanos em uma perspectiva grosseira; os elementos naturais são organizados de tal forma que proporcionam um ambiente apropriado para a atividade humana.” (TUAN, 1980 : 140). Isto quer dizer que a Paisagem exprime a relação Sociedade-Natureza.

59

“A subdivisão do trabalho científico e a velocidade no desenvolvimento de técnicas de observação, análise e mensuração da realidade observados a partir da Segunda Guerra Mundial, principalmente no plano das Ciências Físicas e Biológicas, também fazem parte desse relativo isolamento da Geografia Física em relação à Geografia. Com a subdivisão em campos progressivamente específicos e com a necessidade de serem revistos seus métodos e técnicas, a Geografia Física, numa tentativa de adaptação a essa nova realidade e às novas demandas, acaba por envolver-se em seu mundo próprio, por si só cheio de questões e dificuldades a serem enfrentadas. Isso também traz empecilhos para o necessário e cada vez mais intricado objetivo de síntese, e, obviamente, para o trabalho interdisciplinar.” (Rodrigues, 2001, p. 70) 60 Cf.: Tuan, 1980, p. 152. 61 Frolova (2007), ao estudar o ingresso da noção de Paisagem na geografia russa, verificou que o termo conteve uma distinção baseada nas concepções francesa (paysage) e da alemã (Landschaft). Na primeira, valoriza-se a dimensão dos aspectos artísticos e simbólicos da paisagem; enquanto na origem alemã, focaliza-se os aspectos científicos, contribuindo para a formação da chamada ciência da paisagem.

39

A percepção feita da interação Sociedade-Natureza se fundamenta pelo estranhamento que estabelece os polos dessa relação. Desse modo, forma-se uma totalidade cindida somente possível em uma divisão social marcada pela forma mercadoria; também conformando uma relação de alteridade entre Sujeito e Objeto. Compreende-se assim, que os polos desta relação podem existir de maneira independente um do outro, não estabelecendo uma relação dialética entre Sujeito e Objeto, na qual cada contrário se autodetermina através de seu oposto – o Sujeito só se realiza quando esta em relação com o Objeto, assim como o Objeto só se faz como tal em relação com determinado Sujeito. Em um período histórico baseado na produção de mercadorias, a percepção da realidade se encontra dualizada resultado de uma relação alienante baseada contradição capital-trabalho. Nesse sentido, o trabalho não se reconhece enquanto capital, o Sujeito não se entende enquanto Objeto e a Sociedade não se vê na Natureza; o que conforma, portanto uma realidade cindida. Apresentada como um grupo de objetos e de fenômenos que se repetem regularmente sobre a superfície terrestre, a paisagem será vinculada, ao mesmo tempo, aos fatos “visíveis”, que surgem da experiência comum da observação – o ponto de partida das descrições geográficas tradicionais – e a apreensão dos fenômenos inacessíveis à intuição do homem como, por exemplo, a organização estruturada do espaço geográfico. Escondida por partes posteriores as formas apercebidas pelo olhar do observador, a essência objetiva da paisagem coloca-se progressivamente no centro da investigação geográfica. (FROLOVA, 2007 : 160)

No percurso de sua constituição enquanto ciência no século XIX, a Geografia estava implicada aos relatos feitos pelos viajantes62 “tida como atividade de observação, de puro levantamento de dados” (SODRE, 1987 : 7), levando-a a valorização do viés descritivo do meio. A categoria Paisagem ganhou desse modo centralidade, encontrando nas descrições um método científico para disciplina, se utilizando do sentido alemão (Landschaft) do termo. Na década de 1950 o estudo da Paisagem esteve vinculado as relações da ação antrópica sobre a natureza, baseado na aparência da realidade geográfica, na qual um (novo) objeto de estudos para Geografia (Física) se formou a partir das análises integradas. Atentando novamente às descrições da realidade, reconhece-se um retorno às origens da geografia naturalista de maneira mais sofisticada por ter se apropriado das análises de sistemas e de modelos.

62

Entre alguns geógrafos viajantes estão: Alexandre von Humbolt, Carl Ritter e Ferdinand von Richthofen.

40

Os estudos descritivos das paisagens geográficas que partiam dos processos genéticos63 das paisagens naturais produziram análises que acabaram cumprindo um papel ideológico de manutenção do status quo por se utilizarem de mecanismos interpretativos das ciências naturais para entender os processos sociais: A Geografia de nosso tempo – e ao século XX nos referimos – vive uma contradição entre o impulso de estudar os fenômenos, com sentido pragmático, e a natureza, para melhor explorar os seus recursos, e a necessidade de omitir resultados ou barrar pesquisas que contribuam para desvendar o caráter de classe do aproveitamento daqueles fenômenos e dos citados recursos. Assim, ora sonega as razões reais da erosão do solo ou do rompimento do equilíbrio ecológico do meio natural; ora estimula as pesquisas meteorológicas, em face das necessidades crescentes do transporte aéreo; ora desconhece as razões da miséria que convive com a opulência da natureza, em determinadas regiões; ora impulsiona a pesquisa de recursos minerais, para proveito de monopólios. Assim, de um lado assiste-se a extraordinário surto de inovações técnicas, que permitem à Geografia Física seu avanço anárquico; de outro lado, ao surto das falsidades que povoam a Geografia Humana, retardando-a. (SODRÉ, 1987 : 9)

Preocupando-se em construir um conhecimento geográfico que esteja apegado

aos

dilemas

sociais,

compositores

de

uma

realidade

espacial

determinadamente contraditória, apregoa-se a defesa de uma Geografia voltada às crises indicando para uma práxis que contribua para as alterações das relações sociais. Nesse sentido, reconhece que a Paisagem corresponde a uma categoria do fenômeno – atrelada a observação, o visível, o aparente da realidade – que se fundamentou na filosofia kantiana (influente entre os geógrafos naturalistas do século XIX) baseada na distinção da realidade entre fenômeno e nôumeno64. Ao longo do seu percurso histórico, constata-se que houve uma desvalorização dessa fundamentação kantiana, na sua utilização, construindo uma leitura fetichizada da realidade social. Através da crítica feita por Lukács (2003) àqueles que transpuseram os métodos de análise das ciências da natureza para as interpretações da realidade social, se compreenderá como que a categoria Paisagem ganhou este caráter fetichista. Debatendo com os autores que buscavam uma metodologia científica a ciências sociais, baseados em dados estatísticos e nos factum brutum da

63

Correspondente aos fenômenos hidrológico, geomorfológico, pedológico, litológico, climatológico etc. “Na visão kantiana, o fenômeno é possível de ser conhecido, quando se encontra sujeito às formas a priori da sensibilidade, do entendimento e da razão; o nôumeno, Kant denomina coisa em si, não podendo, em hipótese alguma, ser conhecido, mas somente pensado. Não é dada, ao homem, a capacidade de conhecer o nôumeno, portanto, fica impossibilitado o conhecimento acerca dos diversos enunciados metafísicos: a permanência da alma, o mundo como totalidade e a existência de um ser originário.” (Silva & Silva, 1998, p. 85) 64

41

economia65 – crentes que assim alcançariam interpretações fidedignas da realidade social – Lukács reconhece na atuação destes uma desconsideração do papel ilusionista que o capitalismo produz: Esse processo é reforçado pelo fato de que os fenômenos são reduzidos à sua pura essência quantitativa, à sua expressão em número e em relações de números. Os oportunistas jamais se dão conta de que faz parte da essência do capitalismo produzir os fenômenos dessa maneira. Marx oferece uma descrição bastante convincente desse “processo de abstração” da vida quando aborda o trabalho, mas não se esquece de insistir, de maneira igualmente convincente, no fato de que se trata aqui de uma característica histórica da sociedade capitalista. “Desse modo, as abstrações mais gerais surgem somente na evolução mais concreta, em que uma coisa aparece como sendo comum para muitos, comum a todos. Então ela não pode mais ser pensada unicamente sob sua forma particular”. [...] O caráter fetichista da forma econômica, a reificação de todas as relações humanas, a extensão sempre crescente de uma divisão do trabalho, que atomiza abstratamente e racionalmente o processo de produção, sem se preocupar com as possibilidades e capacidades humanas dos produtores imediatos, transformam os fenômenos da sociedade e, com eles, a sua percepção. Surgem fatos “isolados”, conjunto de fatos isolados, setores particulares com leis próprias (teoria econômica, direito etc.) que, em sua aparência imediata, mostram-se largamente elaborados para esse estudo científico. (LUKÁCS, 2003 : 72)

A partir da distinção entre existência e realidade (em que o primeiro é decomposto dialeticamente em: aparência, fenômeno e essência) feita na Lógica66 de Hegel, Lukács identificou que há um caráter histórico nos “fatos”67, permitindo-o verificar uma relação dialética entre aparência e essência. Entendendo o fenômeno como manifestação da existência, este se coloca enquanto um mediador da aparência com a essência, no qual o aparente apreendido pela experiência não pode ser entendido simplesmente enquanto o inverso do seu oposto, por se tratar de uma mediação. Devido a esta característica relacional entre aparência, fenômeno e essência, percebe-se que há elementos essenciais manifestados na aparência aparente, assim como o inverso sobre a essência. Nesta composição dialética entre aparência-essência, entender simplificadamente um polo enquanto o negativo do teu oposto encobre o sentido da lógica dialética, não revelando a complementaridade dos polos: [...], trata-se, portanto, de destacar os fenômenos de sua forma dada como imediata, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser 65

Lukács, 2003, p. 70-71. A filosofia hegeliana entende que aparência é a manifestação inversa da essência do Ser, isto é, o que aparece corresponde ao contrário da essência. Cf.: Dicionário de Hegel. 67 “O caráter histórico dos ‘fatos’ que a ciência acredita apreender em tal ‘pureza’ aparece, todavia, de maneira ainda mais nefasta. Esses fatos estão, com efeito (enquanto produtos da evolução histórica), não somente implicados numa mudança contínua, mas também são — precisamente na estrutura de sua objetividade – produtos de uma época histórica determinada: a do capitalismo.” (Lukács, 2003, p. 74) 66

42

relacionados ao seu núcleo e à sua essência e nela compreendidos; por outro, trata-se de compreender o seu caráter e sua aparência de fenômeno, considerada como sua manifestação necessária. Essa forma é necessária em razão de sua essência histórica, do seu desenvolvimento no campo da sociedade capitalista. Essa dupla determinação, esse reconhecimento e essa superação simultânea do ser imediato constitui justamente a relação dialética. (LUKÁCS, 2003 : 75-76)

Lukács conclui que somente com a utilização do método dialético pode se transpor os aspectos exclusivamente da aparência – apreendidos através das experiências individuais – reconhecendo os elementos processuais que garantem o caráter móvel da realidade social, através das crises, dos conflitos e das contradições sociais. Assim, não se abdica da Paisagem enquanto uma importante categoria de análise reveladora dessa dialética. No entanto, reconhece que as posturas ufanistas diante das descrições paisagísticas não foram suficientes para desvelar os conflitos da relação Sociedade-Natureza, apresentando-a normatizada, naturalizada e imóvel. Ao adotar essa prática falseadora, contribuiu com a alienação dos sujeitos, produto da divisão social do trabalho, fortalecendo uma aparência neutralizante e escamoteadora da essencialidade existencialmente contraditória do modo de produção capitalista. Com isso, é preciso verificar detalhadamente a interpretação geossistêmica, pois ao compreender que a Paisagem possibilitou a unificação mecânica dos estudos entre Sociedade e Natureza, promoveu uma desconsideração das contradições existentes nessa relação historicamente determinada. Provocando, também, a constituição de uma Geografia desinteressada dos conflitos sociais, despreocupada com as crises e voltada para resolução dos “problemas ambientais”.

43

CAPÍTULO 04 – TEORIA DO GEOSSISTEMAS A Teoria do Geossistemas, localizada na história do pensamento geográfico a partir dos anos 1960, encontrou na temática ambiental uma possibilidade de realizar estudos holísticos de maneira que mantivesse o cientificismo obtido pela abordagem Teorético Quantitativa (New Geography), adicionado o “toque” (sic) sustentável: A sustentabilidade é vista como um paradigma no sentido de rever as interações da Sociedade com a Natureza, convertendo-se na bússola para a implementação dos processos de planejamento e gestão ambiental e territorial. Isto exige aplicabilidade de sólidas fundamentações teóricas e metodoógicas, sustentadas em visões holísticas, integradoras e sistêmicas das unidades ambientais naturais e sociais. (RODRIGUEZ, 2002 : 95)

Durante a década de 1970, o capitalismo sofreu uma crise dita de escassez dos recursos naturais68 que fez as ciências (sociais e naturais) formularem novas maneiras de manutenção do modo de produção capitalista. Nesse sentido, a Teoria Geral dos Sistemas69 acoplada aos aspectos da filosofia estruturalista, conseguiu promover estudos que integrassem os elementos físicos, bióticos e socioeconômicos criando uma ideia totalizadora da relação Sociedade-Natureza, respondendo aos interesses do modo de produção e compondo a análise geográfica geossistêmica: A teoria dos sistemas gerais, representando base teórica na ciência geográfica, fundamenta-se no estruturalismo. Ela faz com que a Geografia se agregue no corpo geral do conhecimento, possibilitando um contacto profícuo com outras disciplinas através do uso de metodologia, de técnicas e de terminologia científica semelhantes. Essa concepção propicia entender a unidade da Geografia e reformular as perspectivas de análise. Utilizando dos sistemas gerais, a pesquisa geográfica equipara-se aos procedimentos metodológicos e analíticos empregados nas demais ciências, e permite aos geógrafos usufruir da revolução tecnocientífica deste século. (CHRISTOFOLETTI & OLIVEIRA, 1971 : 11)

Várias foram as interpretações sobre a Teoria Geossistêmica70, fato que impõe a pertinência em utilizar o termo no seu plural, da mesma forma feita com o estruturalismo71.

Dessa

maneira,

serão

apresentadas

as

perspectivas

68

Como já dito anteriormente, foi a Conferência de Estocolmo (1972) a primeira iniciativa em âmbito mundial para organizar as relações entre a sociedade e o meio ambiente – em outros termos, a relação entre as empresas e os Estados detentores dos bens naturais territorializados –, demonstrando aspectos da crise nesse momento histórico. 69 “[Nota de roda pé 96:] Já se note, inclusive na Geografia, o uso da Teoria Geral dos Sistemas como sinal de status de ciência (cientificismo), tal como um guarda-sol da praia que o banhista finca na areia mais como marco de posse provisória de alguns palmos de areia e deita-se do lado oposto à sombra projetada.” (Monteiro, 1980, p. 114). 70 Cf.: Troppmair (1983, 2000), Christofolletti (1981), Ross (2006), Rodrigues (2001), Rodriguez (2002) entre outros, além de Bertrand (1982, 2004, 2009), Tricart (1977, 1981) e Sotchava (1977, 1979). 71 Cf.: Lepargneur, 1972.

44

geossistêmicas de Georges Bertrand e Jean Tricart, com o intuito de se reconhecer as semelhanças e distinções entre estes, entendendo a pluralidade. Viktor Sotchava, destacado geógrafo soviético também formulador da interpretação geossistêmica não será tratado minuciosamente, pois mesmo reconhecendo sua contribuição para a formação deste pensamento, a dificuldade de acesso a língua russa criou empecilhos para uma utilização assídua do seu legado. Quando possível, será cotejada alguns pontos da sua formulação.

4.1 Valorização taxonômica Georges Bertrand, biogeógrafo francês, tocado pela ebulição da temática ambientalista na passagem dos anos 1960 para 1970, esteve preocupado em debater temas sobre meio ambiente, fundamentando no conhecimento geográfico de maneira distinta das pesquisas ecológicas baseadas na ideia de ecossistema. Para o autor, “O ecossistema não tem escala nem suporte espacial bem definido. Ele pode ser o oceano, mas também pode ser um pântano com rãs. Não é, portanto, um conceito geográfico.” (BERTRAND, 2004 : 143). [...] temos ideia do papel decisivo da ecologia de síntese, sua evolução e inovações que dizem respeito ao modo sistêmico de apreensão da dinâmica natural. Por outro lado, não podemos perder de vista o fato de o modelo ecossistêmico, apesar de todas as suas potencialidades, também apresentar suas fragilidades: escala bastante variável, difícil localização, marginalização dos processos abióticos, abordagem equivocada da dinâmica social. (SOUZA, 2009 : 92)

A falta de caracterização geográfica para noção de ecossistema inviabiliza uma compreensão totalizante sobre o meio ambiente, na qual o reconhecimento da categoria Paisagem, enquanto um objeto possível de integração dos diversos elementos naturais e sociais possibilita a realização de estudos unitários. Bertrand tratará a paisagem como sendo um correspondente material do espaço72: A paisagem não é a simples adição de elementos geográficos disparatados. É, em uma determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos, que, reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução. (BERTRAND, 2004 : 141)

A partir dessa noção se realizará uma síntese na análise, delimitando espacialmente a realidade geográfica estudada, valorizando as relações entre os elementos compostos na paisagem e permitindo com que se reconheça uma 72

Cf.: Bertrand, 1982, p. 468.

45

dimensão escalar por meio da diferenciação das unidades paisagísticas. Bertrand, nesse sentido retoma a noção de geossistema de Sotchava 73, acrescentando o aspecto da ação antrópica, compondo sua compreensão geossistêmica 74. Dessa maneira, conclui que o ecossistema esta centrado na dinâmica da vida animal e vegetal, produzindo explicações a partir dos seres vivos; o geossistemas, mais abrangente, não se restringe somente a análise dos aspectos de flora e fauna, envolve “a totalidade dos componentes naturais na perspectiva de suas conexões, inter-relações de dependência mútuas e de seus aspectos funcionais” (ROSS, 2006 : 24). Assim como Bertrand, outros autores também trataram de vincular a Geografia ao estudo das paisagens. Alexandre von Humbolt (1769 – 1859) reconheceu na paisagem um objeto para Geografia por permitir “englobar uma relação universal existente entre os diversos elementos do meio e sua subordinação no espaço.” (FROLOVA, 2007 : 160). Contudo, a perspectiva bertrandiana não se ateve completamente a elaboração de Humbolt. Tratando-se de uma base conceitual e metodológica, o geossistema corresponde a

uma dimensão

taxonômica75 da paisagem (geográfica) envolvendo, a partir disso, outras problemáticas: a questão do dinamismo, a classificação tipológica e a cartografia das paisagens. A ênfase determinante é dada para uma “taxonomia da paisagem” que distingue a paisagem em unidades, através de uma questão escalar tempoespacial:

73

“A classificação dos Geossistemas deva revelar a tendência dinâmica do meio natural sem o que ela não pode servir particularmente às tarefas e responsabilidades dos geógrafos atuais, que são o levantamento, a descoberta de possibilidade e a revelação do optimum natural em que vive a sociedade humana.” (Sotchava, 1978, p. 10) 74 “Portanto, o geosistema é um conceito antrópico!” (Messias, 2009, p. 13). 75 “Geossistemas – são uma classe peculiar de sistemas dinâmicos abertos e hierarquicamente organizados (Bertalanffy, 1973). Subdividem-se em geossistemas relacionados à vida terrestre e aqueles que dizem respeito aos mares e oceanos. [...] Hierarquia de construção é a mais importante feição dos geossistemas.” (Sotchava, 1977, p. 12)

46

Tabela 176: Taxonomia de Bertrand Unidades Elementares Unidade da paisagem

Escala Temporo-Espacial (A. Cailleux J. Tricart)

Exemplo tomado numa mesma série de paisagem

Zona

G I grandeza G. I

Temperada

Domínio

G. II

Cantábrico

Domínio Estrutural

Região Natural

G. III-IV

Picos da Europa

Região Estrutural

G. IV-V

Atlântico Montanhês (calcário, sombreado com faia higrófila a Asperula odorata em “terra fusca”)

Unidade estrutural

Geofácies

G. VI

Prado de ceifa com MolinioArrehenatheretea em solo lixiviado hidromórfico formado em depósito morâinico

Geótopo

G. VII

“Lapiés” de dissolução com Aspidium lonchitis em microsolo úmido carbonatado em bolsas

Geossistema

Relevo (1)

Clima (2)

Botânica

Zonal

Biogeografia

Unidade trabalhada pelo Homem (3)

Bioma

Zona

Regional

Domínio Região Andar Série

Quarteirão rural ou urbano

Zona equipotencial

Local

EstádioAgrupame nto

Exploração ou quarteirão parcelado (pequena ilha ou cidade) Biótopo

Microclima

Parcela (casa em cidade) Biocenose

NOTA: As correspondências entre as unidades são muito aproximadas e dadas somente a título de exemplo. 1 – Conforme A. Cailleux, J. Tricart e G. Viers; 2 – conforme M. Sorre; 3 – conforme R. Brunet.

76

Cf.: Bertrand, 2004, p. 145.

47

A partir desta taxonomia das unidades paisagísticas, os geossistemas se constituem como sendo a forma mais adequada para análise geográfica, contribuidora para uma interpretação totalizante: O geossistema situa-se entre a 4ª e a 5º grandeza temporo-espacial. Tratase, portanto, de uma unidade dimensional compreendida entre alguns quilômetros quadrados e algumas centenas de quilômetros quadrados. É nesta escala que se situa a maior parte dos fenômenos de interferência entre os elementos da paisagem e que evoluem as combinações dialéticas mais interessantes para o geógrafo. [...] Enfim, o geossistema constitui uma boa base para os estudos de organização do espaço porque ele é compatível com a escala humana. (BERTRAND, 2004 : 146)

Na visão bertrandiana o geossistema tornar-se-á o objeto (e método) de análise da Geografia, de tal maneira que se obtenha interpretações integrativas dos aspectos físicos, biológicos e antrópicos, desfazendo a visão fragmentada da Geografia Física77. Nessa interação, relacionam-se o “potencial ecológico”78, a “exploração biológica”79 e a “ação antrópica”80 que conformam diferentes fisionomias paisagísticas a um mesmo geossistema. Por corresponderem a interações específicas, não há formação de paisagens homogêneas, o que expressa uma diversidade de estágios que, ao menos na teoria, tendem a um estado clímax de equilíbrio entre estes componentes. Por essa dinâmica interna, o geossistema não apresenta necessariamente uma grande homogeneidade fisionômica. Na maior parte do tempo, ele é formado de paisagens diferentes que representam os diversos estágios da evolução do geossistema. Realmente, estas paisagens bem circunscritas são ligadas umas às outras por meio de uma série dinâmica que tende, ao menos teoricamente, para um mesmo clímax. Estas unidades fisionômicas se unem então em uma mesma família geográfica. São os geofáceis (BERTRAND, 2007 : 147).

77

“Confundiendo la síntesis científica y el enciclopedismo, el estudio integrado y el catálogo madrepórico, la necesaria profundización en ciertos problemas particulares con la hiperespecialización, la geografía regional y la monografía y, en el campo de la geografía física, el estudio del medio natural y el estudio exclusivamente geomorfológico, los geógrafos han dado lugar a una fragmentación de hecho que imposibilita el planteamiento geográfico clásico.” (Bertrand, 1982, p. 466). 78 Combinação dos fatores geomorfológicos, climáticos e hidrológicos. 79 Conjunto de seres vivos e o solo. 80 Sistemas de exploração socioeconômicos.

48

(BERTRAND, 2004 : 146) Conclui-se que essa concepção geossistêmica de Bertrand se fundamenta como um conceito hibridizado formado por aspectos geográficos e sistêmicos, no qual os primeiros correspondem a combinação dos elementos abióticos (rocha, ar, água), bióticos (animais, vegetais, solo) e antrópicos (impactos das sociedades sobre seu meio ambiente material); e os sistêmicos envolvem os conceitos: espacial, natural e antrópico81. Mais recentemente, Claude e Georges Bertrand reconheceram que o espaço cumpre um papel mais predominante sobre o tempo nas relações tempo-espaciais82, ultrapassando essa condição taxonômica, formulando um sistema tripolar baseado em Geossistema, Território e Paisagem (Sistema GTP). Nós então escolhemos, sempre nessa ótica de pesquisa sobre o meio ambiente e o desenvolvimento do território, tratar a paisagem como um dado e com uma dimensão do espaço geográfico no âmbito do paradigma GTP (Geosistema-Território-Paisagem). O paradigma GTP, [...], é uma construção de tipo sistêmico destinada a demonstrar a complexidade do meio ambiente geográfico respeitando, tanto quanto possível, a sua diversidade e sua interatividade. Ao propor três coordenadas no sistema, queremos superar o caráter unívoco dos estudos que derivam de um único conceito, por exemplo, o ecossistema (para modelizar uma sociedade ou uma cidade). Estas três coordenadas abertas em um mesmo sistema 81

“O conceito espacial se materializa sobre o terreno por um mosaico de unidades homogêneas em escalas respectivas denominadas de geótopo, geofácies e geossistema. O conceito natural é formado pelo conjunto dos componentes do meio geográfico. O conceito antrópico, por sua vez, integra os impactos das atividades humanas, sem que se possa, por isso, considerá-lo como um conceito social.” (Pissanati & Archela, 2009, p. 10). 82 “O espaço tem primazia sobre o tempo e a dupla tempo-espaço é geralmente desequilibrada. O meio ambiente é geralmente percebido como uma combinação espacial. A questão é subordinada e serve essencialmente para explicar os fenômenos espaciais. (Bertrand & Bertrand, 2009, p. 308)”

49

geográfico traçam três caminhos autônomos que correspondem a três categorias espaço-temporal diferentes, mas complementares: o territóriofonte, o território-recurso, o território-aprovisionamento. (BERTRAND, 2009 : 334)

Os autores ao reconhecerem a predominância da dimensão espacial aos estudos do meio ambiente indicaram a pertinência de valorizarem os aspectos culturais, expressados na Paisagem83 através da apropriação que é feita pelas comunidades locais84; o Território que se evidencia as dimensões política, social e econômica do espaço geográfico; e o Geossistema que oferece a relação dos aspectos naturais existentes entre elementos bióticos e abióticos. Com isso, encontram-se três entradas neste sistema: fonte-recurso-aprovisionamento, que estão baseadas nos critérios de antropização, de artificialização e de artialisation. Chega-se assim, a ideia de que o geossistema bertrandiano se empenha a estabelecer uma abordagem geográfica interpretativa da apropriação da Natureza pela Sociedade, de maneira não taxonômica: Nós então escolhemos, sempre nessa ótica de pesquisa sobre o meio ambiente e o desenvolvimento do território, tratar a paisagem como um dado e com uma dimensão do espaço geográfico no âmbito do paradigma GTP (Geosistema-Território-Paisagem). O paradigma GTP, [...], é uma construção de tipo sistêmico destinada a demonstrar a complexidade do meio ambiente geográfico respeitando, tanto quanto possível, a sua diversidade e sua interatividade. Ao propor três coordenadas no sistema, queremos superar o caráter unívoco dos estudos que derivam de um único conceito, por exemplo, o ecossistema (para modelizar uma sociedade ou uma cidade). Estas três coordenadas abertas em um mesmo sistema geográfico traçam três caminhos autônomos que correspondem a três categorias espaço-temporal diferentes, mas complementares: o territóriofonte, o território-recurso, o território-aprovisionamento. (BERTRAND, 2009 : 334)

83

“[...] a paisagem não é apenas a aparência das coisas, cenário ou vitrine. É também um espelho que as sociedades erguem para si mesmas e que as reflete. Construção cultural e construção econômicas misturadas.” (Bertrand, 2009, p. 332). 84 Cf.: Pissanati & Archela, 2009, p. 11.

50

O Sistema GTP:

(BERTRAND, 2009 : 338)

51

4.2 Ecodinâmica tricartiana Jean Tricart, geógrafo francês que se dedicou aos estudos de geomorfologia, elaborou sua compreensão sobre os Geossistemas a partir dos conhecimentos de Ecologia vinculados a Geografia, fundamentou-se nos estudos de análise da paisagem. A fim de compreender seu percurso, verifica-se que a categoria paisagem cumpriu papel central na sua elaboração, tanto quanto método de análise como enquanto objeto de estudo. Mesmo possuindo semelhança com Bertrand, no que corresponde ao objeto, Tricart se afasta muito desse autor se enveredando a uma análise ecológica da paisagem a partir do conceito de ecossistema. A concepção tricartina parte do pressuposto de que o ecossistema consiste em uma expressão das interações permanentes e intensas dos vários seres vivos com o meio ambiente85, no qual o autor incorpora o aspecto antrópico que foi desconsiderado pelo precursor do conceito Tansley86; reconhecendo que “O homem participa dos ecossistemas em que vive. Ele os modifica e, por sua vez, os ecossistemas reagem determinando algumas adaptações do Homem.” (TRICART, 1977 : 17), conduzindo as relações entre Sociedade e Natureza: Por isso, opor um “meio natural” a um “meio modificado pelo homem” nos parece não ter significado. Constitui má colocação do problema, que leva à discussão falsa. No momento atual, já não existe nenhum ecossistema que não seja modificado pelo homem, só que as modificações são de natureza diferente e de importância diversa. Uma atitude intelectual, mas objetiva, para a conservação ou planejamento consiste em distinguir uma situação inicial, como se fora livre de toda intervenção. (TRICART, 1977 : 17)

Como visto anteriormente, Bertrand faz uma crítica sobre a utilização do conceito de ecossistema por reconhecer que falta uma dimensão espacial nesta noção, perceptível somente por meio da Paisagem. Tricart retoma este debate estabelecendo distinções de compreensão a partir das escolas nacionais de geografia87. A abordagem alemã, baseada no termo Landschaft, corresponde aos “diversos elementos concretos do ambiente: relevo, plantas, solos.” (TRICART, 1981 85

Cf. Tricart, 1977, p. 17. “A definição dada por Tansley é a seguinte: O ecossistema é um conjunto de seres vivos mutuamente dependentes uns dos outros e do meio ambiente no qual eles vivem.” (TRICART, 1977, p. 17). 87 Sobre a compreensão de Paisagem em Sotchava: “Nos anos 60 do século XX, Victor Sotchava, especialista siberiano, pela primeira vez tentou elaborar a Teoria dos Geossistemas. Realmente, ele utilizou toda a teoria sobre paisagem (Landschaft) elaborada pela Escola Russa. Ele interpretou essa herança sob uma visão da Teoria Geral de Sistemas. Isso significava que o conceito de Landschaft (paisagem natural) foi considerado como sinônimo da noção de geossistema. Assim, a paisagem era considerada como uma formação sistêmica, formada por cinco atributos sistêmicos fundamentais: estrutura, funcionamento, dinâmica, evolução e informação.” (Rodriguez, 2002, p.96) 86

52

: 07) não registrando as modificações realizadas pelo Homem, distinguindo “a paisagem natural (Naturlandschaft) e a paisagem humanizada (Kulturlandschaft), que não pode ter nada de natural.”88 Para a escola francesa de geografia, o termo correspondente a paisagem é paysage, derivado de pays que contém uma especificidade territorial no seu significado. Noção esta que teve grande inserção nos estudos de geografia regional iniciados por Vidal de la Blache que promoveu a determinação da região através dos elementos da paisagem, como solos e relevos; no entanto, aspectos subjetivos, emotivos e estéticos também estiveram vinculados a esse significado. A definição de paisagem utilizada por Tricart corresponderá como sendo “uma realidade que reflete as profundas relações, freqüentemente não visíveis, entre seus elementos.” (TRICART, 1981 : 08, grifo nosso) – tratando-se da “ponta do iceberg” na metáfora feita pelo autor89. Tricart identifica que J.-P. Deffontaines compreende a noção de paisagem através da perspectiva sistêmica, o que possibilita relacioná-la com a noção de ecossistema. Para Deffontaines, a paisagem será um “(...) suporte de uma informação original sobre numerosas variáveis relativas notadamente aos sistemas de produção e cuja superposição ou vizinhança, revelam ou sugerem interações” (DEFFONTAINES apud TRICART, 1981 : 08, grifo nosso). A utilização do termo suporte (support) se refere ao significado proposto por A. Chorlley90 que trata da paisagem como sendo uma porção do espaço localizada que combina diversos fatos concretos. Tricart sintetiza: Acabamos de relembrar a evolução do conceito de paisagem. Desde que concreto, ele é descritivo, como tal, espacializável em essência. Uma paisagem começa mais ou menos nitidamente em um lugar e termina num outro. Sua extensão pode ser cartografada. Uma unidade territorial, sob certo ponto de vista, é também uma paisagem... (TRICART, 1981 : 09)

Por tanto, paisagem e ecossistema são definições que se assemelham pela lógica de análise fundamentada na abordagem sistêmica, mesmo sendo de naturezas distintas: [...] paisagem e ecossistema são sistemas, e como tal, integram-se na lógica sistêmica que é a própria origem de sua formulação. Mas, antes de tudo, a paisagem é originalmente um ser lógico de um sistema. Ao contrário, o ecossistema é, desde seu nascimento, um ser 88

Cf.: Tricart, 1981, p. 07. Sobre as questões visíveis e invisíveis do geográfico, ver mais em: George, Pierre. Os métodos da Geografia. São Paulo-Rio de Janeiro: Difel, 1978. 90 Cf.: Tricart, 1981, p. 08. 89

53

lógico caracterizado por uma estrutura de sistema. Ele não tem dimensão, ele não é espacializado, ele não é concreto. É um ser de razão como uma fórmula matemática, embora infinitamente mais complexo. (TRICART, 1981 : 10)

Na perspectiva tricartiana, Sistema91 corresponderá a “(...) um conjunto de fenômenos que se processam mediante fluxos de matéria e energia. Esses fluxos originam relações de dependência mútua entre os fenômenos.” (TRICART, 1977 : 19), fundamentando-se no princípio da termodinâmica, o mesmo utilizado pela Teoria Geral dos Sistemas. Atento a dimensão prática de seus estudos, a compreensão sistêmica fornecerá a obtenção de uma aplicabilidade aos estudos da paisagem, sem perder uma visão de conjunto (totalidade); valorizando uma condição dinâmica dada através dos sistemas: O conceito de sistema é, atualmente, o melhor instrumento lógico de que dispomos para estudar os problemas do meio ambiente. Ele permite adotar uma atitude dialética entre a necessidade da análise – que resulta do próprio progresso da ciência e das técnicas de investigação – e a necessidade, contrária, de uma visão de conjunto, capaz de ensejar uma atuação eficaz sobre esse meio ambiente. Ainda mais, o conceito de sistema é, por natureza, de caráter dinâmico e por isso adequado a fornecer os conhecimentos básicos para uma atuação – o que não é o caso de um inventário, por natureza estático. (TRICART, 1977 : 19)

A fim de ultrapassar a visão restrita da Geografia Física, que focaliza exclusivamente o meio ambiente enquanto seu objeto de estudo, Tricart reconhece a necessidade em utilizar a análise sistêmica para efetivar a conexão com a Ecologia, através de uma orientação metodológica que paute: a) redução da unilateralidade na análise da Geografia Física produzindo seu isolamento com as demais ciências, apontando para o desenvolvimento de uma Geografia Física Geral; b) diminuição da análise limitante dos ecologistas ao se aterem somente ao âmbito botânico ou zoológico; e c) vincular os estudos das relações entre os seres vivos e o meio ambiente na compreensão da biocenose92 e dos ecótopos93. Nesse sentindo, o autor retoma Sotchava e apresenta sua definição de Geossistemas correspondendo à possibilidade de entrelaçamento da compreensão de paisagem vinculada aos aspectos da ecologia, mantendo identificação com a dimensão espacial, alicerçada na análise sistêmica e reconhecendo o papel da ação antrópica sobre o meio ambiente: 91

“No século vinte, a segunda lei da termodinâmica propiciou estímulos para a adoção e desenvolvimento da abordagem em sistemas, gerando potencialidade para uma abordagem que seja capz de ser usada na Geografia como um todo [...].” (Gregory, 1992, p.24) 92 Biocenose: conjunto de seres vivos de um ecossistema. 93 Ecótopo ou biótopo corresponde ao conjunto de condições ambientais (também envolvendo os abióticos) que interferem diretamente na distribuição de um ecossistema.

54

[Geossistema é] “uma unidade dinâmica com organização geográfica própria.” “Um espaço que permite repartição de todos os componentes de um geossistema, o que assegura sua integridade funcional.” (SOTCHAVA apud TRICART, 1981 : 13)

Contudo, Tricart realiza fortes críticas a Sotchava afirmando que o pensamento desse soviético é “muito confuso (...) e muito pouco dialético”94, fazendo com que encontre na ecologia da paisagem (Landschaftsökologie) de E. Neef, elementos para melhor compreender essa dinâmica das relações entre a sociedade e o meio ambiente. Neef (1967 apud TRICART, 1981) utiliza as definições de topologia e corologia, em que a primeira trata das unidades homogêneas, enquanto a segunda trata do estudo de unidades heterogêneas95, para estabelecer os fundamentos de seu pensamento. Tricart identifica que há uma relação dialética entre homogêneoheterogêneo em Neef, na qual a ideia de ecossistema é quem melhor valoriza esse processo, por meio da dinâmica do fluxo de energia entre os níveis tróficos: O estudo prossegue segundo uma pesquisa de caráter ecológico que é ao mesmo tempo, um estudo de dinâmica das paisagens, no sentido em que visa determinar o funcionamento do ecossistema, como fazem tradicionalmente os ecologistas, mas localizando cuidadosamente sobre o transeto, portanto sobre o espaço, todos os fluxos encontrados e a localização dos estoques de elementos estudados. (TRICART, 1981 : 16)

Com isso, Tricart estabelece que a compreensão de Geossistemas elaborada por Sotchava e por Bertrand devem ser acrescidas das definições de topologia e corologia de Neef, produzindo a dialética homogêneo-heterogêneo. Toda esta composição produz uma expressão geográfica denominada por ele de Ecodinâmica correspondente aos estudos baseados na dinâmica dos ecótopos, viabilizando a realização do ordenamento (planejamento) do território, diminuindo as instabilidades morfodinâmica. Essa Ecodinâmica é formada por “unidades ecodinâmicas” que correspondem ao dinamismo que o meio ambiente repercute imperativamente as biocenoses: O conceito de unidades ecodinâmicas é integrado no conceito ecossistema. Baseia-se no instrumento lógico de sistema, e enfoca relações mútuas entre os diversos componentes da dinâmica e os fluxos energia/matérias no meio ambiente. Portanto, é completamente distinto ponto de vista estático do inventário. (TRICART, 1977 : 32)

94 95

de as de do

Cf.: Tricart, 1981, p. 14. Cf.: Tricart, 1981, p. 15.

55

Nesse sentido, a abordagem tricartiana apresenta os elementos que respondem a demanda de seu tempo, garantindo a aplicabilidade dos estudos através do planejamento territorial: São graus de estabilidade de instabilidade que nos interessam como características do funcionamento dos ecossistemas. Não existe, na natureza, oposição brutal desses dois casos extremos mas um “continuum”, rico em feições, caracterizado por uma contradição dialética entre princípios de estabilidade representados sobretudo pelos seres vivos) e princípios de instabilidade (principalmente os fenômenos físicos-geográficos que afetam o ambiente das biocenoses). Nossas pesquisas desembocaram sobre tentativas de estudo das interações entre os diversos componentes dos ecossistemas e de cartografia ecodinâmica, mas não sobre a definição das paisagens. (TRICART, 1981 : 18)

*** A observação dessa passagem histórica do pensamento geográfico permite reconhecer que nesse processo de conformação da Geografia como uma disciplina reconhecidamente científica, isto é: modeladora, formal e com uma linguagem sistemática; foi possível à custa do desatrelamento com uma práxis social transformadora. A Teoria Geossistêmica expressa neste movimento, não esteve atenta as idiossincrasias existentes na relação Sociedade-Natureza, conduzindo ao que Lefebvre (1973 : 20) denominou de “fetichismo del cientificismo”, na qual a lógica da produção do conhecimento se assemelha a lógica da produção de mercadorias e das relações de produção. Isto quer dizer que, ao desconsiderar a determinação histórica do modo de produção na relação Sociedade-Natureza, acabou se privilegiando o solucionamento das fissuras presentes na estrutura social, promovendo o status quo. Com isso, chega-se ao ponto de maior profundidade da crise na ciência geográfica, pois todas as perspectivas analíticas e metodológicas que aspiravam a reversão deste conflito nesse momento histórico, a repôs. As contribuições bertrandiana e tricartiana, a influência da filosofia estruturalista e da análise sistêmica a partir de Bertalanffy, só vieram a fortalecer a falsa imagem sobre a unidade formada durante esse processo. Os desdobramentos deste período são evidentes atualmente, pois, conforme a lógica caótica do urbano se acelerou, impôs a dinâmica da valorizaçãodesvalorização nas cidades, promovendo a preocupação com o planejamento territorial a fim de garantir a reprodutibilidade do modo de produção capitalista. A observação sobre as problemáticas das enchentes nas cidades exemplificam o 56

conflito Sociedade-Natureza/Capital-Trabalho, apresentados atualmente enquanto “crise ambiental”. Portanto, ao se debruçar sobre as enchentes no Jardim Pantanal se pretende destacar as incongruências presentes nessa relação constituidora da realidade social, visando se afastar das leituras eleáticas e do processo de modelagem social impulsionado anteriormente, como maneira de reverter a crise da Geografia. Fomentar uma Geografia voltada para o estudo das crises significa apostar na construção da reversão da lógica do capital.

57

PARTE 2

58

CAPÍTULO 05 – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE CASO “As coisas simples precisam constantemente ser ditas: é o capital – e não a sua força de trabalho – que deteriora a vida metropolitana. Para o capital, a cidade e a classe trabalhadora interessam como fonte de lucro. Para os trabalhadores a cidade é o mundo onde devem procurar desenvolver suas potencialidades coletivas. Entre os dois existe um mundo de diferenças. E um mundo de antagonismos” Lucio Kowarick – A espoliação urbana

Reconhece-se que a cidade contemporânea, por meio do fenômeno urbano, aprofundou sua condição moderna de ser o lócus da reprodução das relações da sociedade capitalista, resultante do processo de industrialização apropriada como força produtiva para concretizar esta lógica social, historicamente definidas: Lojkine, na tentativa de formular uma teoria da urbanização capitalista, apoiou-se na concepção marxista de que a cidade capitalista materializava condições gerais da produção e reprodução social. Distinguiu e analisou os elementos materiais sociais que integram os processos produtivos particulares instalados na cidade, tanto os que se destinam à reprodução da força de trabalho como os que se destinam à reprodução social considerando a concentração de condições sociais gerais, que ocorre nas cidades, como uma racionalização técnica da produção que implicou, historicamente, na constituição de um setor estatal voltado à produção dos elementos materiais que são suportes do processo geral (estradas, pontes, canais...). (SEABRA, 1987 : 16)

Com a sociedade moderna formada – caracterizada pela industrialização (LEFEBVRE, 2008 : 11) – as relações sociais de produção não se restringem mais ao ambiente da fábrica, se reproduzindo na vida cotidiana96 através do fenômeno urbano enquanto totalidade do modo de vida industrial97. Conforme Damiani (1999), as relações de produção e as superestruturas políticas se entrelaçam, fazendo da cotidianidade um nível de análise da totalidade real, estando centrada no social como mediação entre o econômico e o político. Neste processo, uma crítica à vida cotidiana possibilita evidenciar que os fundamentos do modo de produção capitalista (conflito

capital-trabalho/Sociedade-Natureza,

lógica

voltada

à

produção

de

mercadorias etc.) determinados historicamente, impõem certas relações espaciais, permitindo com que haja a incorporação do espaço na crítica das relações sociais de produção pela análise do cotidiano98:

96

Cf.: Damiani, 1999, p. 161. “Para apresentar e expor a ‘problemática urbana’, impõe-se um ponto de partida: o processo de industrialização. [...] Se distinguirmos o indutor e o induzido, pode-se dizer que o processo de industrialização é indutor e que se pode contar entre os induzidos os problemas relativos ao crescimento e à planificação, as questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana, sem omitir a crescente importância dos lazeres e das questões relativas à ‘cultura’.” (Lefebvre, 2008, p. 11) 98 Cf.: Damiani, 1999, p. 161. 97

59

Para compreender esse âmbito do social, seria preciso retornar, segundo a tradição marxista, aos conceitos associados de prática social e de sociedade civil. Colocando-se o acento no social, coloca-se o acento na cotidianidade como nível de análise da totalidade. Por ser solo da reprodução, é também, e ao mesmo tempo, o que deve se transformar prioritariamente. A teoria não exclui aqui a transformação. Pelo contrário, a crítica da vida cotidiana propõe “mudar a vida”, ou melhor, todo projeto revolucionário deve incluir mudar a vida inteira, inclusive a vida privada, o indivíduo, o vivido. Transformar a vida cotidiana permite apontar para uma negatividade verdadeiramente radical, talvez aquela preterida historicamente neste século. (DAMIANI, 1999 : 162, grifo nosso)

Sendo assim, o modo de produção que possui o objetivo central da acumulação de capital, encontra nas relações sócio espaciais, em um momento histórico, uma maneira de concretizar esta lógica por meio da dinâmica de valorização-desvalorização. Não se restringindo a dimensão do Estado Nação, verifica-se o ímpeto imperialista do capital em se ampliar indefinidamente relacionando de maneira desigual as escalas local-nacional-global. O fenômeno urbano, produto de uma contradição específica99 entre capital e trabalho, evidencia na segregação espacial e social100 a situação101 essencialmente contraditória das relações sociais historicamente materializadas na cidade. Portanto, estudar as enchentes ocorridas na periferia da capital de uma grande metrópole aparece como processo de valorização-desvalorização não restrito às áreas envolvidas. No entanto, “espelha e reproduz o aspecto crítico da economia capitalista” (DAMIANI, 2009 : 330) na produção do urbano esboçando a totalidade do processo de acumulação na cidade. Centrada na crítica à vida cotidiana, como sendo um recurso analítico que explicita as incongruências dessa reprodução social presentes no tecido urbano102, se implica103 com a mudança da vida. Para isto, é preciso entender que o processo de urbanização brasileira resulta da singularidade histórica da tua formação nacional que corresponde a uma economia periférica, com uma industrialização tardia e sem rupturas completas com 99

“As cidades refletem o processo industrial baseado na intensa exploração da força de trabalho e na exclusão social, mas o ambiente construído faz mais do que refletir.” (Maricato, 1996, p. 43) 100 Cf.: Seabra, 1987, p.5. 101 “Uma situação é a resultante, num dado momento – que é, por definição, o momento presente, em geografia – de um conjunto de ações que se contrariam, se moderam ou se reforçam e sofrem os efeitos de acelerações, de freios ou de inibição por parte dos elementos duráveis do meio e das seqüelas das situações anteriores. Essa situação é fundamentalmente caracterizada pela totalidade dos dados e fatôres específicos de uma porção do espaço que é, salvo nos casos – limites de margens inocupadas pelo homem, um espaço ordenado, uma herança, isto é, um espaço natural humanizado.” (George, 1968, p. 20-21). Ver mais: In: George, Pierre. Geografia Urbana. São Paulo: Difel, 1983, terceiro capítulo. 102 Cf.: Lefebvre, 2008, p. 18. 103 Cf.: Baitz, 2006.

60

aspectos da sociedade escravagista104 – que fez perpetuar as relações de compadrio, clientelismo, do favor e a concentração de renda. Atrelada à ideologia desenvolvimentista que visava ultrapassar essa condição de “atraso”105, a urbanização do território brasileiro ocorreu de maneira acelerada e centralizada, replicando certas características coloniais106 que produziram grande depredação do meio ambiente, diminuição da qualidade de vida, aprofundamento da miséria social e aumento da violência urbana (MARICATO, 1996 : 31): A reprodução do atraso pela modernização, ou como lembra Florestan Fernandes, a “modernização do arcaico” que é simultânea à “arcaização do moderno”, constitui uma marca do capitalismo periférico que acaba por lhe conferir características próprias. (Fernandes, 1977). (MARICATO, 1996 : 32)

O urbano, posto pelo discurso “eficiente” da tecnocracia estatal, se apresentou falsamente como polo “modernizador” e dinâmico do crescimento econômico107 (re)produzindo, portanto (novas) formas “arcaicas” que resultaram na “inédita e gigantesca concentração espacial da pobreza”108, singularizando o processo geral de acumulação no país: “O Brasil atinge a condição de País industrializado, sem perder, ou mesmo até acentuando a sua condição de País periférico e dependente.” (SEABRA, 1987 : 4). Nesse sentido, torna-se imprescindível buscar identificar como que esta singularidade da formação social produziu o urbano no Brasil. David Harvey (2009), a partir das formulações de Rosa Luxemburgo, indicou que o capitalismo se utiliza de relações não-capitalistas109 para conquistar sua valorização pela criação de um exército industrial de reserva – fomenta o aumento populacional incorporando “reservas latentes” de mão de obra (camponeses e populações colônias), e induz o desemprego através de melhorias tecnológicas (HARVEY, 2009 : 108). A lógica imperialista, baseada na expansão geográfica do modo de produção, faz com que o capital assimile estas relações não 104

“Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o ‘homem livre’, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande.” (Schwarz, 2008, p. 1516) 105 “A evolução urbana no Brasil contrariou a expectativa de muitos, da superação do atraso, do arcaico e da marginalidade, pelo moderno capitalista.” (Maricato, 1996, p. 31) 106 Cf.:Schwarz, 2008, p. 14. 107 Refere-se ao dito “Milagre Brasileiro” dos anos 1970. 108 Ibid., p. 55. 109 Sabe-se que há profunda polêmica entorno da afirmação sobre as relações não capitalistas envolvidas no processo de (re)produção do capital. Mesmo assim, utiliza-se dela, pois é suficiente para identificar processos de precarização da condição de vida urbana.

61

especificamente capitalistas, compondo o que denominou Harvey 110 de “dialética ‘interior-exterior’”: Os processos que Marx, seguindo Adam Smith, chamou de acumulação “primitiva” ou “original” constituem, ao ver de Arendt, uma importante e contínua força na geografia histórica da acumulação do capital por meio do imperialismo. Tal como no caso da oferta de trabalho, o capitalismo sempre precisa de um fundo de ativos fora de si mesmo para enfrentar e contornar pressões de sobreacumulação. Se esses ativos, a terra nua ou novas fontes de matérias-primas, não estiverem à mão, o capitalismo tem de produzi-los de alguma maneira. (HARVEY, 2008 : 119)

No atual período histórico de acumulação, balizado pela alta financeirização da economia, atividades como: fraudes de ações, destruições de ativos, aprisionamento de países a partir de dívidas, desvio de fundos etc. tornaram-se os mecanismos “externos” garantidores dessa reprodução. Tais processos de “acumulação primitiva” acabaram sendo denominados por Harvey pelo conceito de “acumulação por espoliação” por estarem em contínuo curso contemporaneamente. Com o intuito de exemplificar, o autor se utilizou da dinâmica do mercado imobiliário nos Estados Unidos. Famílias de baixa renda, a fim de realizar o sonho da casa própria, entram em financiamentos hipotecários de residências precárias que passaram por melhorias cosméticas e sofreram encarecimento exagerado do seu preço. Esses financiadores que por vezes não conseguem manter suas hipotecas tem o imóvel tomado pelo vendedor, sendo despejados após terem gasto toda sua poupança com o pagamento – aqui está a acumulação por espoliação! Procurando por outros empréstimos financeiros, estes sujeitos são tachados (sic) como inadimplentes pelo mercado, conseguindo crédito com juros muito elevados111. Dessa maneira, o endividamento das famílias mais pauperizadas se impõe conforme há retirada das condições sociais básicas, por vezes oferecidas pelo Estado de Bem Estar Social: Para que tudo isso ocorresse, era necessário além da financialização e do comércio mais livre, uma abordagem radicalmente distinta da maneira como o poder do Estado, sempre um grande agente da acumulação por espoliação, devia se desenvolver. O surgimento da teoria neoliberal e a política de privatização a ela associada simbolizaram grande parcela do tom geral dessa transição. (HARVEY, 2009 : 129)

Partindo dessa lógica que explicita a existência de um caráter desigual no processo de acumulação do capital, pode-se considerar que as cidades a partir de um momento histórico definido, foram incorporadas pelo espraiamento territorial 110

Ibid., p. 118. Sobre a crise imobiliária estadunidense, ver mais em: “Entenda a crise com o mercado imobiliário nos EUA”, http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u320606.shtml, visitado em 13 de Julho de 2012. 111

62

como parte do processo produtivo de valorização, contendo nesse processo as possibilidades da acumulação por espoliação no interior do seu tecido urbano. Reconhecendo as diferenças existentes no processo de acumulação entre os países, Kowarick (1978) afirma que a realização da espoliação no Brasil se dá através das condições de pauperização absoluta ou relativa112 da classe trabalhadora e pelos movimentos contraditórios do capital decorrentes desta pauperização, a espoliação urbana: [...] é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho. (KOWARICK, 1979 : 59)

Como já dito, ao se tornar massa produtiva, a cidade reproduz a força de trabalho e o capital obtendo acumulação de riqueza através de trabalho não pago, concretizando no âmbito da cotidianidade o modo de vida urbano. Kowarick explanou que recentemente essas dilapidações da vida urbana ocorrem através da precarização das condições de habitação, transporte e trabalho caracterizadas respectivamente pela existência de loteamentos clandestinos localizados nas periferias formadas pela autoconstrução; com residências distantes do centro impondo a noção de “tempo obrigatório” devido à existência de longos trajetos a se percorrer (“interpretando, na vida cotidiana, o aumento do percurso entre a moradia e o trabalho, a migração pendular” (DAMIANI, 2009 : 333)); e o aumento das jornadas de trabalho acompanhada da diminuição do poder de compra dos salários. Tais eventos garantiram plenamente o objetivo central do modo de produção: a acumulação de capital. Para isto, o Estado respondendo aos interesses da classe social que o controla, cumpriu papel fundamental de ser o estruturador de uma infraestrutura que efetivasse a lógica da valorização-desvalorização na cidade – por exemplo, por meio da expansão industrial e da especulação urbana – e manteve a “ordem social” 112

“De acordo com Braz e Netto (2006), existem dois tipos de pauperização: absoluta e relativa. A pauperização absoluta se refere à degradação geral das condições de vida e trabalho dos proletários. Assim, registra-se uma queda do salário real, uma precarização dos padrões de alimentação e moradia, intensificação do ritmo de trabalho, crescimento do desemprego. Já a pauperização relativa caracteriza-se pela redução da parte que cabe ao trabalhador em relação ao total dos valores criados, enquanto a parte apropriada pelos capitalistas aumenta. A pauperização relativa pode ocorrer mesmo quando há uma melhora nas condições de vida dos trabalhadores, com melhores padrões de alimentação e moradia.” In: , visitado em 01 de Julho de 2012.

63

impedindo que ações organizadas pelos trabalhadores intervissem sobre a política da cidade, garantindo a perpetuação do modelo de acumulação. Na atual condição em que o Estado se encontra sobre a égide da lógica neoliberal, implementa-se políticas de desregulamentação das ações estatais, beneficiando mais ainda o interesse privado em detrimento do público. Neste aspecto, quando os recursos estatais se canalizam preponderantemente para os imperativos da acumulação de capital em detrimento daqueles mais diretamente acoplados à reprodução da força de trabalho, acirrando o processo de espoliação urbana, e quando a criação de excedente se realiza também através da pauperização absoluta de vastos contingentes sociais, o Estado, para viabilizar semelhante “modelo de ordem social” de características selvagens para a força de trabalho, só pode assumir feições nitidamente autoritárias e repressoras. (KOWARICK, 1978 : 59)

Essas relações contraditórias do capital durante o processo de valorização se encontram aprofundadas no Brasil devido sua formação histórica fundamentada na lógica do favor, tornando-se objeto e sujeito da acumulação de capital. Com isto, a inviabilização do acesso pleno aos direitos sociais por causa das relações de clientelismo e compadrio, faz da acumulação por espoliação sua realização máxima. *** Recuperando os elementos apresentados no primeiro capítulo, o modo de produção capitalista, ao se fundamentar na relação contraditória entre CapitalTrabalho, configura na sua essência à imanência da crise, apresentada como: conflitos entre as relações de produção e as forças produtivas, a luta de classes e a queda tendencial da taxa de lucro. A atual realidade social mundial pode ser distinguida das anteriores pela condição de sobreprodução que, mesmo se manifestando de maneira desigual entre os diferentes lugares, encontra semelhança na proporção e dimensão com a crise de 1929; trazendo à luz novamente o aspecto estruturante em que possui tal situação do modo de produção113. Destaca-se, entretanto, a impossibilidade de relacionar mecanicamente esta tensão econômica – que produz desdobramentos sociais e políticos – como um momento precedente a ruptura social, pois além das características referentes ao processo de alienação do sujeito, há a particularidade desse modo de produção em conseguir realizar a reprodução da valorização do capital, mesmo em situações de profundo colapso no processo ampliado da geração de valor. Aponta-se para a necessidade de desvendar os elementos da engrenagem 113

Cf.: Mészáros, 2010.

64

capitalista a fim de que haja uma contribuição radical e crítica para o feito revolucionário, partindo da compreensão de que a lógica produtora de mercadorias se substancia na busca pela menor quantidade possível de trabalho – denomina-se de crise do trabalho114: Desde logo, o capital é inerentemente circulante, é circulação ampliada do capital. Sob este fundamento, o processo do capital tende, historicamente, a transformar os modos de produção anteriores e os alçar a modo especificamente capitalista. Considerada a relação capital-trabalho, com base da produção de mais-valor, o movimento orienta-se em direção ao trabalho abstrato e à mais-valia relativa. Isto é, à conversão das diferentes qualidades de trabalho a uma medida abstrata e comum de tempo socialmente necessário de trabalho, à exploração não só extensiva, mas intensiva de trabalho, invertendo a produtividade social do trabalho em produtividade do capital. Quanto mais próximo o capital está de seu conceito, da sua realização como processo ampliado do capital, maior é a produtividade do capital, menor a unidade elementar de trabalho, como unidade de capital. A produtividade social do capital realiza-se como crise do capital e crise do trabalho. (DAMIANI, 2009 : 317-318)

Desta maneira, o desemprego maciço consequente com esse ritmo, acompanhado pela economia da “sobrevivência” – os aspectos aparentes e reais do cotidiano da crise do trabalho – atuam nas grandes metrópoles como trabalho em tempo

integral,

no

entanto

completamente

desvalorizado115,

um

trabalho

desnecessário. Entendida primeiramente como massa produtiva no processo de acumulação, enquanto capital fixado no território, a cidade ao longo da história se metamorfoseou a fim de que obtivesse maior valorização, se tornando na forma mercadoria (contendo o valor de troca) e na forma de capital circulante, apropriando-se da lógica urbana ao processo de valorização, põe-se como sujeito na produção do valor: De modo fenomênico, as cidades tornam-se sujeitos sociais; em sua essencialidade, é o processo de urbanização, tendo como fundamento a proletarização absoluta. Deslocar o sujeito na direção do processo de urbanização significa que todos os espaços urbanos e tempos sociais são absorvidos, tendencialmente, pelo processo do capital. (DAMIANI, 2008 : 240)

Formalizando esses processos, o planejamento urbano enquanto tática do capital para reprodução da forma mercadoria no espaço urbano, atualiza seu discurso e incorpora à preocupação ambientalista atrelando o “caos urbano” a depredação do meio ambiente. Desse modo, articula-se a lógica natural (não 114

Ver mais em: Damiani, Amélia Luisa (coord.); Alfredo, Anselmo; Baitz, Ricardo; Branquinho, Evânio dos Santos; Gonçalves, Jean Pires de Azevedo; Marini, Luciano; Rocha, Alexandre Souza da; Silva, Flávia Elaine da e Silva, Márcio Rufino. O futuro do trabalho: Elementos para a discussão das taxas de mais-valia e de lucro. São Paulo: AGB/SP, LABUR/Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana, Departamento de Geografia, FFLCH/USP, 2006. 115 Cf.: Damiani, 2008, p. 238-239.

65

correspondendo necessariamente a um tempo cíclico) com a lógica abstrata da produção de mercadorias, naturalizando o fenômeno urbano – essencialmente social – sugerindo a gestão sustentável do território como uma solução equilibrada ao problema urbano. Assim sendo, os aspectos da crise do trabalho enquanto crise do capital; a cidade enquanto sujeito social historicamente determinada para a realização da acumulação de capital; e a “naturalização do humano” utilizada pela ideologia neutralizadora projetada através do planejamento urbano se apresentam de maneira atomizadas contendo, porém, relações recíprocas que lhe dão nexos e complementaridade.

Damiani

(2008,

2009),

designa

este

processo

como

urbanização crítica: [...] todos os momentos da vida social e humana estão implicados na abstração do capital [...]. À luz desta tese, o cotidiano e o urbano são momentos essenciais de interpretação dos termos da reprodução social; adiantando que a produção do espaço generaliza têmporo-espacialmente os fundamentos da sociedade moderna, capitalista. Alcançamos assim um momento da concepção da urbanização crítica em que ela adere à idéia de que a produção do espaço urbano constituiria a atualização da grande maquinaria nos séculos XX e XXI. O que aparecia como economicismo, isto é, derivar a produção do espaço de uma relação implicada e direta com a grande maquinaria, na verdade, além de propiciar a compressão do espaço social produzido, quanto às finalidades mercantis que o alimenta, confere a possibilidade de determinar simultaneamente o vasto processo de alienação interno à produção do espaço; assim, seu sentido pleno na reprodução social da modernidade. (DAMIANI, 2009 : 326327)

Dessa maneira, chega-se ao estudo de caso das enchentes do Jardim Pantanal, bairro da periferia Leste da cidade de São Paulo, como uma exemplificação particular do processo geral de acumulação em que a noção de urbanização crítica oferece a possibilidade de evidenciar a negatividade da reprodutibilidade do modo de produção capitalista, no atual período histórico. Enchente que será tratada enquanto produto social116, esta vinculada à construção do Parque Linear “Várzeas do Tietê” pelo governo estadual, permitindo verificar a partir do discurso dos moradores e de documentos oficiais o papel de “regente” do Estado ao “orquestrar desvalorizações para permitir que a acumulação por espoliação ocorra” (HARVEY, 2009 : 126). Para tanto, acredita-se que a análise deva privilegiar a escala metropolitana sem que se atomize enquanto produto socialmente construído, isto significa não se restringindo a dimensão formal da escala. Pois, além do lugar estudado estar na 116

Cf.: Seabra, 1987.

66

conurbação de São Paulo com Guarulhos e Itaquaquecetuba, o urbano, enquanto uma maneira histórica e fenomênica da produção do valor, não se atém ao âmbito da cidade relacionando em diversas escalas.

67

MAPA

1

LOCALIZAÇÃO

DO

PANTANAL

68

MAPA 2 LOCALIZAÇÃO DO PANTANAL e área do PVT

69

CAPÍTULO 06 – NOTAS SOBRE AS ENCHENTES NO JARDIM PANTANAL “A urbanização de São Paulo foi uma coisa tão violenta que ocupou o lugar do rio. Então, a enchente é coisa que nós inventamos. Ela é produto da urbanização.” Odette Seabra

O geógrafo bacharel, ao realizar um planejamento urbano, projeta expressar os conhecimentos apreendidos em anos de ensino universitário, possibilitando empreender uma relação entre a teoria com a prática. A teoria geossistêmica que buscou solucionar impasses de sua época como exposto na primeira parte desse trabalho, tratou de oferecer um conhecimento aplicável concretamente a partir de uma ação unitária entre Sociedade e Natureza sobre o objeto geográfico. Numa situação histórica em que o discurso ambiental se insere em todos os momentos da cotidianidade e que a reversão do “caos urbano” se torna premente para a gestão do espaço urbano, o planejamento e a Teoria do Geossistemas se encontram efetivando determinada lógica social. Argumentar criticamente sobre o planejamento urbano, indicando ser este uma tática a fim de que se realize o processo de produção do valor, permite identificar algumas idiossincrasias existentes na realidade social determinada por tal lógica corroborando, dessa maneira, para a construção de outra possibilidade de análise do conhecimento geográfico substanciado em outra práxis social. É à luz da crise de sobreacumulação que a lógica do modo de produção capitalista sofreu, desde a passagem dos anos de 2007/08, que se situa esse trabalho. O governo brasileiro, interessado em não ser assolado severamente pela crise como os outros países e oferecendo, à sua forma, uma maneira de reverter esta situação, vem implementando um conjunto de políticas econômicas à favor do crédito e do consumo de massa: as políticas de transferência de renda, como “Bolsa Família”; as isenções de impostos aos produtos eletroeletrônicos e materiais de construção civil; o favorecimento para os créditos pessoais que acompanha o incentivo ao consumo de automóveis e o financiamento de imóveis como o programa “Minha Casa, Minha Vida”117. Ações que devem ser somadas às 117

Programa social que promete construir 1 milhão de moradias voltadas à população com renda mensal de 0 a 10 salários mínimos, revelando-se como dinamizadora do mercado imobiliário em um período de sobreprodução, beneficiando construtoras imobiliárias, empreiteiras e estimulado o setor da construção civil. Ver mais em: Fix, Mariana; Arantes, Pedro Fiori. Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação. Jurdiaí: Human Rights in Brazil, 2009 (Relatório).

70

megaobras em andamento para a realização da Copa das Federações (2013), Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016). Indica-se, dessa maneira, que o governo federal traçou medidas econômicas – que as instâncias estadual e municipal acompanharam – baseadas no incentivo à construção civil como sendo o modo de se realizar um conjunto de ativos financeiros (capital fictício) em ativos fixos (capital produtivo), tendo na reestruturação das cidades em dimensão metropolitana o lócus privilegiado de sua materialização. Assim, interpreta-se que o projeto de construção do Parque Linear “Várzeas do Tietê” emana dessa dinâmica seguindo a receita do incentivo à construção civil e do discurso ambientalista, viabilizados pela ação do Estado através da aplicação do planejamento urbano.

Contextualização sócioespacial do Jardim Pantanal Localizado na área periférica do extremo Leste do município de São Paulo, na Subprefeitura de São Miguel Paulista e nas proximidades com os municípios de Guarulhos e Itaquaquecetuba, o Jardim Pantanal tem seu sítio fincado na área de várzea do Rio Tietê, mais especificamente na área de proteção ambiental da Bacia do Alto Tietê118. Localizada na Macrozona de Proteção Ambiental, regulamentada pelo Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo (2002) como: Art. 148 - Na Macrozona de Proteção Ambiental os núcleos urbanizados, as edificações, os usos e a intensidade de usos, e a regularização de assentamentos, subordinar-se-ão à necessidade de manter ou restaurar a qualidade do ambiente natural e respeitar a fragilidade dos seus terrenos. (SÃO PAULO, 112 : 2002)

Região produto do processo de segregação sócio espacial produzido ao longo da história da cidade, marca-se pela ausência de equipamentos públicos, ocupação em áreas irregulares, população de baixa renda, loteamentos populares, entre outras características que a configuram como sendo um “bolsão de pobreza”. Definida também pelo seu contrário que é representando pelas periferias nobres, os condomínios fechados e fortificados, assim como, os fenômenos de gentrificação nas áreas centrais da cidade. A partir de materiais obtidos com um morador119, descobriu-se sobre a história. A região entre Ermelino Matarazzo e Itaim Paulista foi ocupada em meados 118

Área de Proteção Ambiental (APA) da Várzea do Tietê. Maiores informações: http://www.ambiente.sp.gov.br/apas/tiete.htm, visitado em 24 de Agosto de 2011. 119 Vagner, militante do Movimento de Urbanização e Legalização do Jardim Pantanal. Anexo 6.

71

dos anos 1970 por uma população pauperizada na busca de moradia digna, na qual o Jardim Pantanal foi a última área ocupada a partir de 1986, tendo um apogeu entre os anos de 1988 e 1993. Compondo um conjunto de aproximadamente 6.000 famílias ao longo das margens do rio – sendo uma das 17 comunidades ocupantes das várzeas do Tietê – os moradores sempre lidaram com a problemática das enchentes, no entanto, por se tratar de uma área em que a ocorrência se deu com maior frequência, a região acabou obtendo essa identificação correspondente a uma área periodicamente inundável. Há relatos que indicam terem acontecidos duas grandes enchentes no Jardim Pantanal com semelhanças a tratada nesse trabalho ao que tange a duração: uma no final da década de 1980 e outra em 1997 (a maior durou 18 dias). Fatos que proporcionaram grande visibilidade para área e trouxeram à tona aos órgãos públicos a questão da ocupação irregular das áreas de várzea. Atualmente, o local contém certa infraestrutura urbana: energia elétrica, saneamento básico, asfaltamento e iluminação – implementada somente em algumas ruas –, linhas de ônibus etc. que foram conquistadas pela reivindicação dos moradores através de associações e movimentos sociais, como por exemplo, o Movimento de Urbanização e Legalização do Jardim Pantanal. No entanto, mesmo com essa atuação política, ainda há locais que não possuem tratamento de água e esgoto120.

120

Vale dizer que quase a totalidade dos moradores tem energia elétrica em suas moradias, pois por se tratar de uma empresa privada (AES Eletropaulo) que se obstina ao lucro, não há “barreira natural” que impeça a instalação do relógio medidor de energia elétrica nas casas.

72

Fotografia 1: Canos improvisando distribuição de água, Jardim Pantanal. Créditos: J.V.P.Oliveira (28/12/2010)

Fotografia 2: Postes de energia com “gato”, Jardim Pantanal. Créditos: Obtida com MULP (s/d)

73

Parque Linear “Várzeas do Tietê”: visão do Estado e dos moradores O Parque Linear “Várzeas do Tietê”, lançado em Junho de 2010, consiste em um projeto do Governo do Estado de São Paulo que busca construir uma extensa área verde composta por diversos pontos recreativos (“núcleos de lazer, esportes e cultura” nos termos do projeto) acompanhando desde o leito da Bacia do Alto Tietê do Parque Ecológico do Tietê (localizado no bairro da Penha, em São Paulo) até sua nascente no município de Salesópolis. Na ocasião do lançamento do projeto, a então secretária de Saneamento e Energia, Dilma Pena121, falou sobre os objetivos do parque: “O conjunto de objetivos desse empreendimento é: controle de cheias, sustentabilidade ambiental e disponibilizar área de lazer, de cultura, de turismo para três milhões de pessoas que hoje tem carência desses equipamentos.” 122 De responsabilidade do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), o parque atingirá a extensão de 75 km passando pelos municípios de São Paulo123, Guarulhos, Itaquaquecetuba, Poá, Suzano, Mogi das Cruzes, Biritiba Mirim e Salesópolis. A partir da minuta Plano Diretor de Reassentamento do “Programa de Recuperação das Várzeas da bacia do Alto Tietê (PVT)” (2010) é possível obter maiores informações sobre os impactos sociais da construção do parque linear, na perspectiva do Estado. Tal documento reconhece logo no início a problemática das enchentes no dia a dia das pessoas, destacando os percalços sobre a mobilidade “por interromper o tráfego em um dos principais corredores viários da cidade [de São Paulo] que é a Marginal Tietê.” (SSE, 2008 : 03). Afirma, desse modo, que há tempos o poder público estadual e municipal vem estudando e realizando obras que minimizem e revertam tal situação, identificando que o “processo de ocupação urbana de suas

121

Formada em Geografia pela Universidade de Brasília e mestre em Administração Pública pela FGV/EAESP, esteve a frente da secretaria de Saneamento e Energia de 2007 a 2010, sendo escolhida em Janeiro de 2011 pelo governador Geraldo Alckmin para presidir a SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Atuante nas áreas de saneamento, recursos hídricos e planejamento, Dilma Pena já foi diretora de Saneamento da Secretaria de Política Urbana e diretora de Investimentos Estratégicos, ambas do Ministério de Planejamento e diretora da Agência Nacional de Águas. Na administração paulista, presidiu os Conselhos de Administração das empresas CESP e EMAE. 122 Cf.: “Parque linear zona leste”. http://www.youtube.com/watch?v=8JK1dN8ZU6U&feature=related, acessado em 17 de Julho de 2012. 123 A fim de contribuir na construção de áreas verdes na cidade, a prefeitura de São Paulo também elaborou o “Programa 100 parques para São Paulo”. Ver mais em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/parques/programa_100_parques/index.php?p= 22322, acessado em: 31 de Agosto de 2011.

74

várzeas”124 é produto “do crescimento desordenado da metrópole e do aumento da impermeabilização da bacia”125. Ainda no início do documento, são explanados os intuitos da reversão das enchentes na Região Metropolitana de São Paulo: Essas ações compreendem a transformação das áreas recuperadas em um grande parque linear com vias de trânsito local e ciclovias, equipamentos de lazer, turismo, cultura e educação, a proteção e recuperação da flora e fauna e o reassentamento da população residente nas áreas de inundação em condições adequadas de habitabilidade e acesso aos serviços básicos e fundamentais. (SSE, 2008 : 03)

Para isso, reconhece-se que atualmente nas áreas de várzea da bacia se encontram “bolsões de ocupação irregulares, carentes de infraestrutura básica e constantemente afetados por enchentes”126, afirmando haver a necessidade da remoção de aproximadamente 10.000 famílias (SSE, 2008 : 07). Desconsiderando ser um “impacto negativo”, entende-se terem pertinência tais remoções por se tratarem de “ocupação irregular de áreas de preservação ambiental (APP) e de riscos ambientais” e que “atende a uma das reivindicações mais importante das comunidades.”127,, ignorando os processos indutores dessa realidade social128. Conclui-se que: [...] independente da existência do PVT, a remoção das famílias e o tratamento ambiental das áreas objeto do programa é uma necessidade urgente e no caso de São Paulo, conforma a agenda de atenção da Prefeitura para diminuir o passivo social existente na região Leste da cidade. (SSE, 2008 : 04, grifo nosso)

Dessa maneira, os critérios utilizados para definição da área atingida pelas remoções foram: “cruzamento de estudos hidráulicos, com áreas de preservação permanente definidas no Código Florestal e aspectos sociais e urbanísticos dos bairros afetados.”129 A obra foi dividida em três etapas: a primeira em andamento para ser concluída em 2015 abrange da zona Leste de São Paulo até o município de Guarulhos, obtendo a extensão de 25 km. Área com maior número de remoções (7.500 famílias em São Paulo e 500 em Guarulhos), o equivalente a 80% do total previsto da obra, custando R$ 377.000.000,00. A segunda etapa, prevista para ser 124

Idem. Idem. 126 Ibid., p.04. 127 Idem. 128 Em outro ponto, mais adiante: “O grande problema das áreas de ocupação precária dentro das várzeas se relaciona com as questões ambientais e sanitárias. Praticamente a totalidade das áreas de remoção são conformadas por invasões ou loteamentos não regularizáveis, fato que dificulta ou mesmo impede a implantação de serviços públicos.” (SSE, 2008, p. 13) 129 Ibid., p. 08. 125

75

iniciada em 2016, contará com uma extensão de 11,3 km e removerá aproximadamente 1.500 famílias dos municípios de Itaquaquecetuba, Poá e Suzano. Por fim, a terceira etapa tem início previsto para 2019 e será a de maior extensão (38,7 km), envolvendo o menor número de remoções, 500 famílias130.

130

Ibid., p. 07-08. Cf.: “memoriadaee.mpg”. http://www.youtube.com/watch?v=AwThBYCUR-Q, acessado em 17 de Julho de 2012.

76

Imagem 1: Identificação das etapas para construção do Parque Linear Várzeas do Tietê (DAEE, 2009 : 29)

77

131

Imagem 2: Primeira etapa de construção do Parque Linear Várzeas do Tietê (BID, 2010 : 28) 131

Verifica-se que há diferença na metragem de cada etapa da obra em relação com a figura anterior.

78

Entorno expandido do Programa VÁRZEAS DO TIETÊ – 1ª ETAPA Legenda:

Localização dos distritos Municípios da Região Metropolitana de São Paulo Distrito dos municípios de São Paulo e Guarulhos

Área de abrangência do Programa Distritos que integram o entorno expandido Da área de estudo

Imagem 3: Entorno expandido da primeira parte do Parque Linear Várzeas do Tietê (BID, 2010 : 22)

79

Imagem 4: Segunda e terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê (BID, 2010 : 29)

80

Imagem 5: Parte da terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê (BID, 2010 : 30)

81

Imagem 6: Parte da terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê (BID, 2010 : 31)

82

Imagem 7: Parte da terceira etapa da construção do Parque Linear Várzeas do Tietê (BID, 2010 : 32)

83

A construção completa levará 11 anos, sendo gasto com o parque e os empreendimentos imobiliários populares que reassentaram os moradores um total de USD 199.780.000, em que USD 84.080.000 serão financiados pelo Governo Estadual de São Paulo e USD 115.700.000 pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento132. Caberão às prefeituras a tarefa de realizar a logística do reassentamento e fiscalização das áreas desocupadas para que não ocorram novas ocupações. *** A partir da realização do trabalho de campo nas comunidades do Jardim Pantanal, Cotovelo, Chácara Três Meninas, Jardim Romano, Jardim Fiorelo, Vila Aimoré e Vila Itaim, durante os meses de Dezembro/2010 e Janeiro/2011, foram obtidos relatos que descreveram o Parque Linear “Várzeas do Tietê” pela perspectiva de quem mora na área, isto é, pela ótica de quem vive(u) a enchente e sofrerá com a remoção involuntária. Coincidentemente durante este período se presenciou uma nova enchente133, de proporções menores da ocorrida no ano anterior, porém que possibilitou reconhecer o drama e recuperar na memória dos moradores a experiência de Dezembro/2009 até Fevereiro/2010. Buscou-se realizar entrevistas134 não dirigidas, indo até a residência das moradoras atingidas pela enchente, usando-se de perguntas “geradoras” que permitissem que as entrevistadas135 criassem seus próprios caminhos de interpretação. Objetivando localizar socialmente as entrevistadas e buscando desfazer o estranhamento inicial dessas conversas, partiu-se perguntando há quanto tempo mora(m) no bairro; se têm família constituída; quem(quais) é(são) a(s) pessoa(s) responsável(eis) financeiramente pela família; se têm filhos e se sim, quantos; se trabalham etc. Após este ritual inicial, partiu-se para perguntas geradoras atreladas ao processo da enchente-Parque Linear: Por que houve a enchente? Quais os motivos da enchente? Como que (a entrevistada) foi atingida pela enchente? A entrevistada acredita que poderá ter mais enchentes no verão de 132

Cf.: “BR-L1216 : Programa Várzeas del Tietê”. http://www.iadb.org/pt/projetos/project-informationpage,1303.html?id=br-l1216, acessado em 17 de Julho de 2012. 133 Maiores informações: “(Vídeo e Artigo) Novas enchentes no Jardim Pantanal”, disponível em http://passapalavra.info/?p=34360, acessado em 15 de Janeiro de 2011. 134 Todas as entrevistas foram acompanhadas por uma moradora, referência política da comunidade, ligada ao Movimento de Urbanização e Legalização do Jardim Pantanal. 135 As entrevistas sempre ocorreram no período das 08h às 17h, encontrando na maioria das residências apenas mulheres. Considerando esta maioria numérica e a existência da divisão sexual do trabalho que as atrelam para atividades domésticas, em nossa sociedade, privilegiará a utilização de palavras no gênero feminino.

84

2011? (antes da reincidência) Qual a opinião sobre a construção do Parque Linear “Várzeas do Tietê”? Conforme foram ocorrendo às entrevistas, verificou-se que temas sobre a história das enchentes no bairro, as maneiras de intervenção da Prefeitura

e

do

governo

estadual

(remoção,

demolição

das

casas,

auxílios/indenizações aos moradores etc.) foram recorrentes, incorporando-os ao repertório de perguntas possíveis a serem feitas.136 O processo de remoção dos moradores para construção do Parque Linear teve início em 08 de Dezembro de 2009 por ocorrência da enchente que perdurou por mais de 60 dias. Induzida pelo governo estadual há indícios de que houve um pedido de abertura das comportas da barragem de Mogi das Cruzes e o fechamento das comportas da barragem da Penha137, produzindo a inundação nos bairros localizados na várzea do Tietê evitando, assim, com que a marginal Tietê sofresse com o transbordamento do rio, pois passava por obras de ampliação no período. Relatos como o de “Dona Ana” afirmam que não chovia no momento da enchente: Ana: Então... teve provas né... aí eu falei assim “E... de novo... tá fechado”... e eles “Não fala isso Ana... não fala isso”... eu falei “Falo.”... que aqui sem chuva... alagamento com chuva é na HORA DA CHUVA... saiu no... óh... se falarem pra mim “Olha... o Pantanal encheu... tá chovendo e o Pantanal encheu d’água”... eu vô falar “Glória a Deus” porque é de Deus... mas depois que parar a chuva... e o Pantanal continuar com água... é GLÓRIA AOS HOMENS que querem isso... não... glória a Deus... que... cê vê na cidade toda... enche d’água... horas depois não já tem mais essa água... essa água... essa água todinha é escoada... então quer dizer... se ela é escoada... é o que... a chuva?... é por Deus... uma coisa de Deus... a gente vê como que é a natureza... mas dus homens... fica aí óh... [pág. 133, Anexos]

Com essa situação, o Estado no âmbito municipal realizou o cadastramento138 das famílias atingidas pela enchente por intermédio de uma firma contratada, a Empresa Diagonal139, a fim de remover140 as famílias do local inundado. Foi oferecida aos moradores a ida para albergues, acomodação provisória em uma 136

Nos anexos estão as entrevistas estão na íntegra. Cf.: “Como comportas fechadas na barragem da Penha para proteger a marginal ajudaram a alagar a zona leste de SP”. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/17/ult5772u6678.jhtm, acessado em: 24 de Agosto de 2011. Anexo 5. 138 “Em decorrência das enchentes a SEHAB realizou o cadastramento da população residente nos bairros de Novo Horizonte, Cotovelo e Pantanal S. Marinho, Três Meninas e Jardim Romano, totalizando 11.000 cadastros realizados. Com base nesses dados será definido o número de remoções e elaborado PER [Plano Executivo de Reassentamento] para o município de São Paulo.” (SSE, 2008, p. 40) 139 Ver mais: http://www.diagonal.net/, acessado em: 18 de Julho de 2012. Há relatos que essa empresa tenha atuado em outros processos de remoções populares. 140 “Também em decorrência das enchentes a SEHAB promoveu a remoção antecipada e o reassentamento de 1.160 famílias da área do Projeto. Dessas, 340 foram reassentadas de forma definitiva em unidades da CDHU construídas no município de Itaquaquecetuba, outra 100 serão reassentadas no mês de maio/2010 e 700 foram reassentadas de forma provisória através de um programa de aluguel social da PMSP.” (SSE, 2008, p. 40-41) 137

85

escola, bolsa aluguel de R$ 300141 por seis meses (atrelada, não desde o início, com uma bolsa móvel de R$ 200) e indenizações na quantia média de R$ 5.000 (“cheque despejo”, nos termos utilizados pelos movimentos de moradia) aos moradores ocupantes de áreas irregulares – o cadastro feito pela Diagonal permitia com que os moradores obtivessem os auxílios oferecidos pela prefeitura e governo estadual. Aos imóveis regularizados (especificamente na área do Jardim Romano) a indenização foi de R$ 50.000 à R$ 70.000 pagas pela construtora Queiroz Galvão, quantia referente à área do terreno e não ao imóvel construído. João Victor: Ih... Isabel... o que a prefeitura veio fazer aqui... quando teve a enchente? Isabel: Depois que abaixou né... João Victor: Só veio depois que abaixou? Isabel: Depois que abaixou... porque... eles não entraram aqui dentro na água não... depois que abaixou... eles vieram... falando que ia tirar o povo... tanto é que tirou mesmo... eles prometeram e tirou né... nem tanto foi a prefeitura... foi a firma que... indenizou a maioria dos pessoal daqui... João Victor: Firma? Isabel: É... foi a firma aí... do... do... dessa... não foi tanto a prefeitura não... [págs. 138-139, Anexos]

Desconsiderando os gastos que essas famílias tiveram na construção de suas casas, por meio de mutirões e autoconstruções aos finais de semana, a prefeitura ofereceu a inscrição em apartamentos da COHAB e CDHU para serem entregues em 2012, localizados em áreas distantes da região atingida pela enchente (Itaquaquecetuba, por exemplo), conforme constam nos relatos. Praticamente, a totalidade das entrevistadas apresentou indisposição em morar nos apartamentos por serem ambientes pequenos, sem privacidade, que cerceiam a liberdade em ter animais domésticos, plantas etc., conforme afirma Janaína quando lhe perguntada sobre morar em prédios: Janaína: Porque você não tem sua privacidade... porque o vizinho de baixo sempre recrama... você não pode rastar um móvel... às vezes se... a criança sua balança... éh... pula elas... querem recramar... muitos prédio tem negócio de síndico e eles dá multa... tudo isso... então pra eu não quero não... eu quero uma casa... eu não saio da minha casa pra morar em apartamento... porque eu já morei e é um inferno. [pág. 120, Anexos]

As moradoras relataram que devido à grande procura por casas para alugar na região houve um aumento significativo no preço dos imóveis, tornando insuficiente custear o aluguel com aquela quantia oferecida pelo auxílio; além disso,

141

“O aluguel social [pago pela Prefeitura de São Paulo] é valido por um período de seis meses, podendo ser renovado até que a família possa aceder à solução definitiva. O valor para o período é de R$ 2.000,00 sendo R$ 200,00 para despesas de mudança e R$ 300,00 para o pagamento de aluguel mensal durante seis meses.” (SSE, 2008, p. 41)

86

os proprietários criaram empecilhos em alugar casas para famílias que tivessem filhos. Fatos que impuseram a obtenção de casas para alugar em locais muito distantes da área que conviviam. Também disseram que moradores após terem recebido o bolsa aluguel por alguns poucos meses tiveram o benefício abruptamente interrompido (antes de completar 3 meses) sem ter os motivos explicados pelos órgãos do Estado (subprefeitura, Secretaria Municipal de Assistência Social e Secretaria Municipal de Habitação), criando novas dívidas e levando a outro despejo, agora do imóvel alugado; não restando outra solução a não ser retornar para área da várzea. Isabel: O bolsa-aluguel é trezentos reais... e se você vai... se você tiver duas três crianças... o povo não aluga... entendeu... depois é por isso que muita gente tá voltando... muita gente por tá indo com bolsa-aluguel... aonde tá suas casa em pé... tá voltando... estão voltando... eles não tão ficando porque... vai que (não) dá uma garantia este bolsa-aluguel né... vai ser até quando... até os apartamentos sair? se a maioria foi pra apartamento ih num::... já tão voltando porque não tem como pagar... né... o problema tá sendo isso... [pág. 139, Anexos]

87

Fotografia 3: Casa reocupada por moradora, Cotovelo. Créditos: J.V.P.Oliveira (28/12/2010)

Fotografia 4: Casa reocupada por moradora, Cotovelo. Créditos: J.V.P.Oliveira (28/12/2010)

88

Fotografia 5: Casa de Janaína. Créditos: J.V.P.Oliveira (23/12/2010)

Fotografia 6: Interior da casa de Janaína. Eletrodomésticos suspensos devido a dúvida de novas enchentes. Créditos: J.V.P.Oliveira (23/12/2010)

89

Ao aceitar o recebimento da bolsa aluguel pela prefeitura, os moradores precisavam deixar o imóvel em até 48 horas, pois caso contrário perderiam o benefício social obtido. Não sabiam que ao sair da casa ela seria demolida pela prefeitura, episódio que fez com que muitas famílias perdessem seus móveis e outros objetos pessoais por acreditarem na possibilidade de retorno assim que as águas baixassem. Relatos também afirmam que agentes da prefeitura, ao notarem a falta de movimento nas casas por alguns dias seguidos, demoliam o imóvel entendendo que a casa havia sido abandonada devido à enchente: João Victor: Ih... oh Ana.... como que acontecia isso [a demolição]? vinha... vinha... a prefeitura, o trator... batia na porta ((bate palmas))... Ana: Eles passavam na rua... e ficavam observando... a casa que tivesse... muitos dias assim... sem eles vê movimento... aí... não tem aqui... “Vamô derruba”... aqui nessa rua... não foi derrubada... porque a gente ficou em cima... porque eu fiquei em cima... também... [pág. 131, Anexos]

Verificando essa dinâmica, os moradores iniciaram um processo de solidariedade entre si fazendo carretos, retirando móveis e pertences. Houve também resistência às demolições, no entanto como algumas casas eram geminadas, a destruição de um imóvel danificava a estrutura de outro, o condenando ou até mesmo o impelindo a grandes reparos custosos. Moradoras entrevistadas afirmaram que devido à situação vivida pela enchente, do contato com a água poluída à tensão/pressão de sofrer com a remoção da sua casa, muitas pessoas (idosos e crianças, principalmente) adquiriram doenças, como: depressão, infecções, doenças de pele, leptospirose entre outras. Os médicos estavam proibidos de dar laudos diagnosticando tais patologias pelo convivo direto com a água contaminada, como afirma Dona Ana: Ana: [...] tive que ser internada... fiquei internada... uns... quase quinze dias internada... criou bolhas... umas feridas... na hora sabe... na minha perna... os médico falaram que era da infecção da água... mas não podiam dar... o laudo... estavam proibidos de dar o laudo... [pág. 135, Anexos]

Poucos meses antes desses acontecimentos, a prefeitura distribuía para todos os moradores da várzea do Tietê, através das escolas da região, um panfleto no qual que constava: “Várzea do rio Tietê. Construir em área de preservação ambiental é crime” indicando a necessidade dos moradores saírem das áreas de mananciais por estarem cometendo um crime contra o meio ambiente.

90

Imagem 8: Material impresso pela prefeitura, obtido com moradores durante trabalho de campo. Créditos: Obtida com MULP

Com o final repentino das enchentes – pois as águas não abaixavam mesmo em dias sem chuva –, no princípio do mês de Fevereiro/2010, a Polícia Militar, a Guarda Civil Metropolitana Ambiental e agentes da prefeitura permaneceram de maneira ostensiva nas comunidades da várzea do Tietê à procura de moradores que realizassem novas construções nas casas não removidas, e impedindo com que houvesse novas ocupações. Quando identificadas, as famílias eram notificadas para deixar a residência em um determinado prazo, sendo encaminhadas para albergues, sem oferecimento de bolsa aluguel ou qualquer outro auxílio, e tendo sua moradia demolida em seguida. Evidenciando esta condição, no primeiro dia do trabalho de campo se presenciou uma ação de despejo na Chácara Três Meninas em que a família, após ter sido notificada, não saiu da casa por não ter para onde ir. 142 A partir das declarações obtidas, durante a enchente várias casas foram identificadas com um “selo” colocado pela prefeitura de São Paulo, informando quais auxílios haviam recebido os moradores daquela residência. Além deste tipo de identificação, durante o trabalho de campo foi encontrada outra identificação realizada pela Secretaria de Habitação, correspondente ao “Programa de 142

Ver relatos em Anexos.

91

Regularização Fundiária de Loteamentos”143. Servia para marcar as casas que ocupavam irregularmente a área e deveriam ser retiradas. No Jardim Romano a enchente atingiu severamente um conjunto habitacional popular e um Centro Educacional Unificado/Centro de Ensino Infantil (CEU-CEI Três Pontes), ganhando maior destaque midiático – dizem que a imprensa se instalou permanentemente na Rua Capachós. Com isto, a Prefeitura de São Paulo contratou a construtora Queiroz Galvão para construção de obras hidráulicas (dique e canal de escoamento), iniciadas em 19 de Abril de 2011144, a fim de evitar que ocorressem novas inundações. Afirmam as entrevistadas que mesmo com a construção hidráulica a prefeitura indicou a realização de novas remoções das casas em situação irregular: Zélia: Então há a possibilidade de depois desse dique eles quererem tirar vocês? Isabel: Éh... foi isso que eles falou... depois... passando as festas... passando dezembro... entregando a obra aqui... eles via vê se... mexiam com a gente aqui... [...] Isabel: Aqui embaixo eles falam que... o mesmo... que quer tirar o pessoal pra fazer condomínio... eles quer condomínio aqui embaixo... igual lá de cima... e esse esse piscinão que eles fizeram foi mais pra proteger o CEU... esse piscinão aí... porque o CEU ali... era... qualquer chuvinha alaga ali... a rua toda e você não entra... a rua sete e a rua do CEU é a primeira coisa que enche... não tem nem como você entrar nem como você sair... as duas rua... [pág.139 e 143, Anexos]

*** A partir dos relatos das moradoras, buscou-se expressar os aspectos do caráter espoliativo que há na acumulação urbana, que ao instrumentalizar o discurso ambiental – “preservação das áreas de mananciais ocupadas irregularmente” – se conquista a efetivação da lógica da produção de mercadorias, aprofundando a condição de pauperização destas moradoras. Simultaneamente, tal processo social se encontra imbricado na lógica financeira do atual período de acumulação de valor, favorecendo empreiteiras como a Queiroz Galvão e desdobrando para especulações imobiliárias – ambas intermediadas pela ação gerencial do Estado. A Geografia, envolta nesse processo, vem assumindo um papel favorável à reprodução da acumulação por meio do planejamento territorial e ambiental. Desconsiderar o fato de que esta enchente foi induzida, a fim de que se obtivesse a 143

Ver anexo, p. 117. Cf.: “Dique Jardim Romano”. http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/infraestrutura/noticias/?p=17878, acessado em 09 de Setembro de 2012. 144

92

remoção daquelas(es) que ocupam irregularmente a área de várzea da Bacia do Tietê, evidencia o quão esta produção geográfica se encontra apartada dos dilemas sociais que afligem as populações mais precarizadas da cidade. No sentido contrário desse raciocínio é que se propõe este trabalho.

93

MAPA 3 ENCHENTE

94

QUESTÕES CONCLUSIVAS Ao longo desse trabalho, buscou-se apresentar que há uma relação entre a Teoria dos Geossistemas (reconhecendo sua diversidade) com um momento específico do modo de produção de mercadorias, entendendo-a como sendo a maneira pela qual a Geografia contribuiu no processo de reversão da crise do capitalismo nos anos 1970. A filosofia estruturalista, expressão em pensamento das relações de produção historicamente definidas, auxiliou na criação de uma abordagem metodologicamente científica para os estudos da sociedade. Incorporada a Geografia através da análise sistêmica,

produziu

uma

interpretação

da

relação

Sociedade-Natureza

correspondendo à interação entre sistemas que demandam pela condição de equilíbrio. Desse modo, coube a Geografia, se utilizando da análise sistêmica representada na abordagem geossistêmica, encontrar os pontos de desequilíbrio na relação Sociedade-Natureza, revertendo-os e conquistando a manutenção da Estrutura (social). Compreendendo a Sociedade como ação antrópica e a Natureza como meio ambiente, a Teoria dos Geossistemas verificou que na relação entre estes dois “sistemas”, apreendida como ação antrópica sobre o meio ambiente, produziu a condição de desgaste da natureza resultado de uma interação antrópica irracional. Caberia, portanto, a teoria encontrar um Modelo que melhor representasse esta interação, a fim de que estabilizasse a relação antrópica com o meio. Assim, a preocupação em oferecer uma solução era tão relevante quanto a ideia de catástrofe global apregoada pelo discurso ambientalista. A Geografia que mirava por praticidade desde os anos 1950 e não a conquistava devido o abstracionismo dos estudos teoréticos, encontrou na reversão do problema ambiental sua saída. Bastava utilizar do planejamento territorial, profundamente estudado nas diversas modelagens espaciais já feitas, para neutralizar a “irracionalidade” sistêmica da relação entre ação antrópica e o meio ambiente. Do mesmo modo, saudava sua problemática epistemológica entorno do objeto e do método, alcançando o caráter de ciências e estabelecendo a integração entre os estudos de Geografia Física com os de Geografia Humana. Com isso, a ciência geográfica se encontrava atenta em solucionar as incongruências expressas nos Sistemas, despreocupada em reconhecer sua essência contraditória. 95

Há de se compreender que essa maneira de pensar e fazer Geografia esteve atrelada a determinações específicas de um momento histórico sobre as relações sociais, consistindo no reconhecimento de que ao modificar tais relações sociais, a reflexão e a prática geográfica também se alteram. A leitura estruturalista, fundamentada na concepção de encontrar e contemplar Estruturas, responsável por tecer a realidade social objetivada, preocupava-se em reverter possíveis pontos de instabilidade e de fraquezas desta totalidade historicamente definida. Por vezes, tangenciou de maneira míope a ideia de que tais incongruências estruturais pudessem ser intrínsecas a determinação social. Porém, voltada ao interesse de oferecer uma metodologia tão científica ao pensamento social quanto àquelas utilizadas pelas ciências da natureza, transplantou (com frequência mecanicamente) a abordagem analítica natural para compreensão das relações sociais. Processo este que foi radicalmente aprofundado na Teoria Geral de Sistemas e apreendida pela abordagem geossistêmica a partir do relacionamento da Natureza com a Sociedade pela visão naturalista, garantindo uma salvaguarda para este escopo do saber. Ao observar, pela dimensão da vida cotidiana, a empiria de uma enchente e a construção de um parque linear, situadas na modernidade urbana, permitiu-se a identificação das fissuras contraditórias do processo de acumulação. Potencializar esta crise do modo de produção ao invés de encontrar formas de revertê-la foi o intuito almejado nesse trabalho, indicando como saída dessa crise da Geografia a Geografia das Crises. Assim, focalizando nas contradições do processo de produção que determinam as relações espaciais entre os sujeitos sociais e destes com a Natureza, essa relação possibilita com que se reconheça as incongruências desta estrutura social (cisão Sociedade-Natureza, conflito Capital-Trabalho, alienação etc.) apontando como alternativa sua superação, isto é, a possibilidade da transformação social como maneira de ultrapassar tais dissonâncias sociais. Conforme reconheceu Seabra (1987), o crescimento da cidade de São Paulo esteve pautado pela lógica da estruturação viária e da propriedade privada, contemplando os interesses destes setores que fizeram a cidade (capitalista) ser apropriada pela lógica da acumulação. Utilizando-se dos rios para a navegação, produção de energia elétrica e despejo de dejetos e, incorporando suas várzeas na lógica da propriedade privada 96

da terra, o capitalismo se utilizou da Natureza, mais especificamente, para efetivar a lógica de produção do espaço urbano como força produtiva. Desse modo, envolvida na conquista da acumulação de capital, a Natureza se tornou sujeito das relações sociais naturalizando questões sociais. A autora verificou que desde o último quartel do século XIX vem-se debatendo maneiras de se apropriar as águas do Tietê e do Pinheiros como mecanismo de valorização das terras da cidade: Como toda obra de produção da cidade (asfalto, iluminação, praças, etc.) a retificação em projeto e a retificação em execução abria enorme perspectiva da valorização das terras. Tanto daquelas beneficiadas imediatamente como eram as várzeas, como das áreas adjacentes, envolvendo até mesmo a cidade como um todo. Trata-se da incorporação de trabalho à terra na forma de valores fixos, fixados no solo, que induzem naturalmente, nas condições de vigência de um mercado de terras, a uma valorização diferencial da terra. Uma valorização que deriva em princípio da aplicação dos elementos envolvidos no processo material de produção (trabalho e capital), os quais aparecem no preço da terra como renda diferencial por tecnologia. (SEABRA, 1987 : 114)

Assim, não se identifica outro interesse que não o da acumulação de capital na área atingida pela enchente – mais imediatamente, mas também por toda a cidade – ao se impelir a remoção dos moradores da várzea do rio Tietê. Com a indução da enchente pelo Estado, permitiu com que se utilizasse o discurso de culpabilização dos pobres145, ocupantes irregulares das áreas de preservação ambiental, assim como, a alegação ideológica de que a construção do Parque Linear “Várzeas do Tietê” cumprirá o papel de reverter a problemática ambiental146. Em síntese, toda a argumentação estava tacitamente voltada para conseguir a remoção das comunidades tocadas pela enchente, promovendo a valorização diferencial das terras. Nesse sentido, a lógica espoliativa do capital que promoveu o processo de segregação sócioespacial e aprofundou a desigualdade social, gerenciadas pelo Estado, incorpora a prática de criminalização da condição de pobreza como outro recurso na expropriação da riqueza – processo evidentemente expresso no panfleto distribuído pela subprefeitura (Imagem 08). No atual período histórico, em que não se incorpora no processo produtivo parte significativa da massa daqueles que só vivem do seu trabalho (representação da crise do trabalho), e seguida pela situação de que as relações sociais se 145 146

Cf.: Seabra, 2005 Discurso já presente no Plano Regional Estratégico da Subprefeitura de São Miguel Paulista.

97

encontram fundamentadas por relações monetarizadas, verifica-se a formação de “bolsões de pobreza” que envolvem completamente a metrópole, marcados por: moradias precárias, déficits em saneamento básico, aumento da população de rua, etc. Na ilusão de que a redução numérica desse conjunto populacional possa reverter a situação de crise do trabalho, lança-se mão da criminalização da população que se encontra na condição de pobreza. Assim, incorpora-se na lógica da produção de mercadorias o extermínio, direta ou indiretamente, de massas de pauperizados. Para ilustrar, além dos acontecimentos relatados sobre o Jardim Pantanal, pode-se citar a remoção das favelas do Real Parque147 em 2007 e do Moinho em 2011 (ambas com artifício do incêndio), da comunidade do Pinheirinho em Janeiro de 2012 no município de São José dos Campos, do processo de higienização social que vem ocorrendo na região central da cidade de São Paulo, tendo como marco a remoção de dependentes químicos na área conhecida como Cracolândia, entre muitas outras. Partindo-se da ideia central de que a construção do parque linear valorizará a propriedade privada por todo espaço urbano não especificamente na região da zona Leste de São Paulo, entende-se que o parque promoverá o processo de acumulação da renda da terra, não mais somente como força produtiva. Isto quer dizer que a apropriação da Natureza agregará valor as propriedades privadas, sendo obtida pelo trabalho não pago pela renda da terra. Portanto, é possível relacionar a construção do Parque Linear “Várzeas do Tietê” com outros processos de reestruturação urbana que estão ocorrendo pela metrópole, se utilizando do processo de criminalização da pobreza para reproduzir o processo de acumulação. Refere-se: programa habitacional “Minha Casa, Minha Vida” que poderá se incorporar ao grande potencial residencial que há na região do Itaim Paulista148; os mega eventos que envolvem mais especificamente a construção do estádio de futebol do Corinthians em Itaquera; o Código Florestal, aprovado no 1º semestre de 2012 e que interferirá nas políticas de zoneamento da cidade; a Operação Urbana Consorciada Rio Verde-Jacú Pêssego que corta transversalmente a zona Leste, intercruzando ao eixo Leste do Rodoanel Mário Covas. Vale 147

Ver mais: Silva, Fernanda Pinheiro. A lei do Capital: Uma possibilidade de compreensão da dimensão jurídica da produção do espaço urbano e a investigação da ação de reintegração de posse da favela Real Parque. Trabalho de Graduação Individual, Dep. de Geografia/FFLCH-USP. 2011. 148 Cf.: LabHab, 2006.

98

reconhecer que todas estas articulações são gerenciadas, direta ou indiretamente, pelo Estado que visando a reprodução do capital, atende aos interesses da classe social que a controla. Zélia: Ih... deixa eu te perguntar... o que você sabe do dique? Do dique não... desculpa... do Parque Linear? Isabel: Oh... Eles dizem que isso... isso aqui... tem que ficar pronto até dois mil e quatorze... Zélia: Por que? Isabel: Por causa da copa... até dois mil e quatorze... eh por isso que eles qué... qué desocupa né... mas também não é o jeito que eles qué... porque... a maioria do pessoal... que quem indenizou a maioria das casa aqui... foi a firma... essa firma aqui... [pág. 143, Anexos]

Desfazer as formalidades atomizadas impressas nesses eventos, localizando o processo da enchente-Parque Linear “Várzeas do Tietê” no interior da complexa trama social que vem reestruturando o espaço urbano da metrópole foi o caminho que esse trabalho buscou trilhar, apropriando-se da noção de urbanização crítica (DAMIANI, 2008) para tentar desvendá-la. Levando em consideração a representação cartográfica Urbanização Crítica em Processo149, pode-se verificar que o processo de remoção vinculado com o de valorização de terras que se dá a partir da várzea do Tietê, se articula com a dinâmica da reprodução social pela vinculação do discurso ambiental apresentado de maneira ideológica. Promovido e intermediado pelo Estado, circunscritos na dimensão do espaço urbano, permitem com que a lógica da acumulação se promova por meio do discurso da sustentabilidade. O discurso proferido por Dilma Pena150 na ocasião do lançamento do parque linear explicita a dimensão articuladora da totalidade do fenômeno urbano. Ao afirmar que o empreendimento de melhoria ambiental atingirá três milhões de pessoas, carentes por equipamentos urbanos, induz o ouvinte a crer que serão os atuais moradores da área da várzea que se beneficiarão por tal iniciativa. No entanto, tal lógica perversa de valorização fundiária promoverá a remoção desses moradores institucionalmente pelo Estado, como também seu desdobramento pelo processo de valorização de terras. Ampliando, com isso, a mancha urbana através da valorização-desvalorização.

149

Idem. “O conjunto de objetivos desse empreendimento é: controle de cheias, sustentabilidade ambiental e disponibilizar área de lazer, de cultura, de turismo para três milhões de pessoas que hoje tem carência desses equipamentos.” (“Parque linear zona leste”. http://www.youtube.com/watch?v=8JK1dN8ZU6U&feature=related, acessado em 17 de Julho de 2012). 150

99

Com isto tudo, buscou-se evidenciar de que é o discurso ambientalista articulado com a tática de criminalização da pobreza que impulsiona a reprodução do espaço urbano pela ideologia da “modernização sustentável e higienizada da cidade” – considerando como adequado um crescimento ambientalmente equilibrado e asséptico de sujeitos empobrecidos. A prática geográfica que incorporou e reproduziu esse discurso esteve baseada na Teoria dos Geossistemas, naturalizando as relações sociais entre Sociedade-Natureza e se utilizando da compreensão sistêmica para entender a interação (nos seus termos) da ação antrópica sobre o meio, enquanto fluxos de matéria e energia. As expressões contraditórias do modo de produção nesses Sistemas

foram

chamadas,

popularmente,

de

“problemas

ambientais”.

Possivelmente solucionadas com análises adequadas entre os polos da interação, meio e ação antrópica, como expressa na formulação bertrandiana de GeossistemaTerritório-Paisagem, em que, o primeiro item corresponderia aos aspectos naturais, o Território, ao âmbito socioeconômico, e o último, as características culturais da humanidade. Com efeito, o Sistema GTP propiciaria formulações possíveis de serem implementadas no território que respeitassem a interação ação antrópica-meio. Assim, o planejamento territorial corresponderia ao instrumento aplicado pelo Estado, que ao solucionar a problemática ambiental permite com que haja a perpetuação da ideologia do equilíbrio através do discurso ambientalista e a efetivação da reprodutibilidade do capital. No entanto, ao considerar a existência de situações de crise (estrutural) no processo de acumulação, fez se localizar a

relação Sociedade-Natureza

aprioristicamente como sendo resultado socialmente contraditória impossível de se obter a condição de equilíbrio. Motivar outra práxis geográfica que seja radicalmente crítica e comprometida em contribuir para a transformação dessa realidade social, significa ter implicada a relação teoria-prática visando a reversão da condição de opressão e pauperização dos sujeitos aqui retratados. Impõem, sendo assim, fundamentar-se em perspectivas críticas da realidade historicamente determinada, não a entendendo de maneira linear e isenta de contradições; fortalecer os conflitos sociais, apontando criticamente as saídas institucionais; e estando diretamente ligado a estes sujeitos, 100

pois só com esta forma de contato é que será possível formular alternativas coletivas. Para isto denominou-se Geografia da Crise.

101

REFERÊNCIAS ANDRADE, Manuel Correia de. Geografia: ciência da sociedade. 2ª Edição. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008. ______. O pensamento geográfico e a realidade brasileira. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros. Nº54, Jun. 1977. p.: 05-28. BAITZ, Ricardo. A implicação: um novo sedimento a se explorar na Geografia?. In: Boletim Paulista de Geografia. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Local São Paulo, n.º 84, Julho de 2006. p.: 25-50. Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Programa de recuperação das várzeas do rio Tietê- Etapa I. Relatório de Gestão Ambiental e Social (IGAS) BRL1216, 2011. Disponível em: http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=35324557, acessado em 09 de Julho de 2012. BASTIDE, Roger. Introdução ao estudo do têrmo “Estrutura” In:______. Usos e sentidos do têrmo “Estrutura” - Nas ciências humanas e sociais. São Paulo: Ed. Herder, Ed. da Univ. de São Paulo, 1971. p.: 01-14. BERTALANFFY, Ludwig Von. Teoria Geral dos Sistemas: desenvolvimento e aplicações. Petrópolis: Vozes, 2008.

fundamentos,

BERTRAND, Georges & BERTRAND, Claudie. O geossistema: um espaço-tempo antropizado. In: PASSOS, Messias Modesto dos (org.) Uma geografia transversal e de travessias: meio ambiente através dos territórios e das temporalidades. Maringá: Ed. Massoni, 2009. p.: 307-314. BERTRAND, Georges. A paisagem e a geografia: um novo encontro. In: PASSOS, Messias Modesto dos (org.) Uma geografia transversal e de travessias: meio ambiente através dos territórios e das temporalidades. Maringá: Ed. Massoni, 2009. p.: 328-339. ______. La ciencia del paisaje una ciencia diagonal. In: MENDOZA, Josefina G. (org.) El pensamiento geográfico. Madrid: Alianza, 1982. p.: 465-469. ______. Paisagem e geografia física global. Esboço metodológico. In: Revista RA´E GA, n. 8, Curitiba: Editora UFPR, 2004. p.: 141-152. BOUDON, Raymond. Polissemia do termo estrutura. In:______. Para que serve a noção de estrutura? Ensaio sobre a significação da noção de estrutura nas ciências humanas. Rio de Janeiro: Ed. Eldorado, 1974. p.: 04-20. BURTON, Ian. A revolução quantitativa e a geografia teorética. In: Boletim de Geografia Teorética. Rio Claro: Associação de Geografia Teorética. Vol. 7, nº 13, 1977. p.: 63-84.

102

CHORLEY, Richard. J. & HAGGETT, Peter. Modelos, Paradigmas e a Nova Geografia. In:______. Modelos físicos e de informação em geografia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos S.A. 1975. p.: 01-19. CHRISTOFOLETTI, Antônio. Definição e classificação de sistemas. In.: ______. Análises de Sistemas em Geografia – Introdução. São Paulo: HUCITEC - Editora da Universidade de São Paulo, 1979. p.: 01-20. ______. Geografia Física. In: Boletim de Geografia Teorética. Rio Claro: Associação de Geografia Teorética. Vol. 11, nº 21-22, 1981. p.: 5-18. ______. Significância da teoria de sistemas em geografia física. In: Boletim de Geografia Teorética. Rio Claro: Associação de Geografia Teorética. Vol. 16-17, nº 31-34, 1986-1987. p.: 119-128. CHRISTOFOLLETI, Antonio & OLIVEIRA, Lívia de. Geografia Teorética. In: Boletim de Geografia Teorética. Rio Claro: Associação de Geografia Teorética (AGETEO), nº 1, 1971. p.: 05–23. COELHO, Eduardo Prado. Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e estruturalismos. In:______(org.). Estruturalismo Antologia de textos teóricos. Trad. Maria E. R. Colares, Antónia R. Rosa e Eduardo P. Coelho. Lisboa: Portugália, Ed. Martins Fontes, 1967. p.: I-LXXV. CONTI, José Bueno. A geografia física e as relações sociedade/natureza no mundo tropical. 2ª Edição. São Paulo: Humanitas Publicações – FFLCH/USP, 2002. CRUZ, Olga. A Geografia Física, o Geossistema, a Paisagem e os estudos dos processos geomórficos. In: Boletim de Geografia Teorética, Rio Claro: Associação de Geografia Teorética, vol. 15, nº 29-30, 1985. p.: 53-62. DAMIANI, Amélia Luisa. Espaço e Geografia: observações de método – Elementos da obra de Henri Lefebvre e a Geografia. Ensaio sobre Geografia Urbana a partir da Metrópole de São Paulo. Tese de Livre-Docência em Geografia Urbana ao Departamento de Geografia FFLCH/USP. 2008. ______. O Lugar e a Produção do Cotidiano. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri. (Org.). Novos Caminhos da Geografia. 1ª edição. São Paulo: Contexto, 1999, v. 1. p.: 161-172. ______. Urbanização crítica e produção do espaço. In: Cidades. Presidente Prudente: Grupo de Estudos Urbanos. Vol. 6, nº 10, 2009. p.: 307-339. DEPARTAMENTO DE ÁGUAS E ENERGIA ELÉTRICA (DAEE). “Programa Parques Várzeas do Tietê”. Governo do Estado de São Paulo, Outubro de 2009. Disponível em: http://www.slideshare.net/chicomacena/apresentao-projeto-vrzeas-tiet, acessado em 09 de Julho de 2012.

103

DOSSE, François. História do Estruturalismo – I O campo do Signo, 1945/1966. 2ª Edição. Campinas: Ed. da Unicamp e Ed. Ensaio, 1994. DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. Marx e a natureza em O Capital. 2ªEdição. São Paulo: Ed. Loyola, 1986. FROLOVA, Marina. A paisagem dos geógrafos russos: a evolução do olhar geográfico entre o século XIX e o XX. In: Revista RA´E GA. Curitiba: Editora UFPR, n. 13, 2007. p.: 159-170. GEORGE, Pierre; GUGLIEMO, Raymond; LACOSTE, Yves e KAYSER, Bernard. A Geografia Ativa. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. GIANNOTTI, José Arthur. Notas sobre a categoria “modo de produção” para uso e abuso dos sociólogos. Filosofia miúda e demais aventuras. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.: 46-53. GREGORY, Kenneth J. A natureza da Geografia Física. São Paulo: Ed. Bertrand Brasil, 1992. HARVEY, David. A acumulação via espoliação. In: ______. O novo imperialismo. 3ª Edição. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p.: 115-148. ______. Teorías, leyes y modelos em Geografia. Madrid: Alianza editorial, 1983. INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Tradução: Álvaro Cabra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. KOWARICK, Lúcio. A Espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. KURZ, Robert. A biologização do social In:______. Os últimos combates. Petrópolis: Ed. Vozes, 1997. p.: 191-197. LABHAB. Relatório I – Caracterização de áreas de estudo para a implementação de Parques Lineares. São Paulo: Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos, FAUUSP, agosto de 2006 (coordenadores Prof. Dr. Nabil Bonduki e Prof. Dr. João Sette Whitaker Ferreira). Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/produtos/pesquisa_analise_areasparqueslineares01.pdf, acessado em 14 de Julho de 2012. LEFEBVRE, Henri. Claude Lévi-Strauss e o nôvo eleatismo. In: vários autores. Debate sôbre o estruturalismo. São Paulo: Ed. Documentos, 1968. p.: 7-53. ______. Mas alla del estructuralismo. Buenos Aires: La Pléyade, 1973. ______. O direito à cidade. 5ª Edição. São Paulo: Centauro, 2008. LEPARGNEUR, François Hubert. Introdução aos estruturalismos. São Paulo: Ed. Herder e Ed. Univ. de São Paulo, 1972.

104

LÉVI-STRAUSS, Claude. As noções de estrutura em etnologia. Antropologia Estrutural. Trad.: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2008. p.: 299– 344. LUKÁCS, Georg. O Que é Marxismo Ortodoxo? In: História e Consciência de Classe: Estudos sobre a dialética marxista. Trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003. p.: 63-104. MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã I – Feuerbach. Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: HUCITEC - Editora da Universidade de São Paulo, 1977. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política – Livro 1. Trad.: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Coleção Os Economistas. MENDONÇA, Francisco. Geografia física: ciência humana? São Paulo: Ed. Contexto, 1989, Col. Repensando a Geografia. MÉSZÁROS, István. Das crises cíclicas à crise estrutural. In: Atualidade histórica da ofensiva socialista – uma alternativa radical ao sistema parlamentar. São Paulo: Editora Boitempo, 2010. p.: 69-98. MONTEIRO, Carlos Augusto Figueiredo. A Geografia no Brasil (1934-1977) – Avaliação e tendências. Instituto de Geografia-USP, Série Teses e Monografias, nº 37, São Paulo, 1980. ______. Geossistemas – A Estória de uma Procura. Florianópolis: Edição piloto do autor, 1995. PASSOS, Messias Modesto dos (org.) Uma geografia transversal e de travessias: meio ambiente através dos territórios e das temporalidades. Maringá: Ed. Massoni, 2009. p.: 09-14. PISSINATI, Mariza Cleonice; ARCHELA, Rosely Sampaio. Geossistema, território e paisagem - método de estudo da paisagem rural sob a ótica bertrandiana. In.: Geografia. Londrina: n. 1, v. 18, 2009. p.: 5-31. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/, acessado em 01 de Maio de 2012. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A Geografia está em crise. Viva a Geografia!. In: MOREIRA, Ruy (org). Geografia: teoria e crítica. O saber posto em questão. Petrópolis: Vozes, 1982. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/58420639/RuyMoreira-Geografia-teoria-e-critca, acessado em 09 de Janeiro de 2012. ______. Os (des)caminhos do meio ambiente. 5ª Edição. São Paulo: Ed. Contexto, 1996. QUAINI, Massimo. Marxismo e Geografia. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2002. 105

RODRIGUES, Cleide. A teoria geossistêmica e sua contribuição aos estudos geográficos e ambientais. In: Revista do Departamento de Geografia (USP). São Paulo, v. 1, nº14, 2001. p.: 69-77. Disponível em: http://www.geografia.fflch.usp.br/publicacoes/RDG/RDG_14/RDG14_Cleide.pdf, acessado em: 02 de Set. 2010. RODRIGUEZ, José M. Mateo & SILVA, Edson V. da Silva. A classificação das paisagens a partir de uma visão geossistêmica. In: Mercator, Revista de Geografia da UFC, ano 1, nº 1, 2002. p.: 95-112. ROSS, Jurandyr L. S. Ecogeografia do Brasil: subsídios para planejamento ambiental. São Paulo: Oficina de Textos, 2006. SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova – Da crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2002. SÃO PAULO (Município). PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO, LEI nº 13.430, de 13 de setembro de 2002 (Projeto de Lei nº 290/02, do Executivo). SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do Lugar. In: Ao vencedor as Batatas: forma literária e o processo social nos inícios do romance brasileiro. 5ª Edição. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2000. p.: 9-31. SEABRA, Odette Caravalho de Lima. Os meandros dos rios nos meandros do poder. Tietê e Pinheiros: valorização dos rios e das várzeas na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP. São Paulo, 1987. ______. Economia política do espaço – A reestruturação da Bacia do Alto Tietê. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri e CARRERAS, Carles (orgs.). Urbanização e mundialização – estudos sobre a metrópole. São Paulo: Contexto, 2005. p.: 51-59. SEC. DE SANEAMENTO E ENERGIA (SSE). Programa de Recuperação das Várzeas da Bacia do Alto Tietê - PVT (Br-L1216) Plano Diretor de Reassentamento (Minuta 08_04_2010). Governo do Estado de São Paulo, Abril de 2010. Disponível em: http://www.saneamento.sp.gov.br/varzea_bid/PDR%20vers%C3%A3o%2027_05_10 _sem%20logo%20BID.pdf, acessado em 17 de Janeiro de 2011. SILVA, Armando Corrêia da. O espaço fora do lugar. São Paulo: HUCITEC, 1978. SILVA, Neilson José da & SILVA, Adelmo José da. A propósito da introdução à critica da Razão Pura de Immanuel Kant. In.: Metanoia, Primeiros Escritos em Filosofia. São João del-Rei: FUNREI, n. 1, 1998. p.: 84-91. Disponível em: http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistalable/numero1/neilson11.pdf, acessado: 05 de Maio de 2012. SMITH, Neil. Desenvolvimento Desigual. Natureza, Capital e a Produção do Espaço. Tradução: Eduardo de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1988. 106

SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à Geografia (Geografia e Ideologia). 6ª Edição. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987. SOTCHVA, Viktor B. O estudo de geossistemas. In: Métodos em Questão, Inst. de Geografia da USP, nº16, São Paulo, 1977. p.: 1-52. ______. Por uma teoria de classificação de geossistemas da vida terrestre. In: Revista Orientação, Inst. de Geografia da USP, nº14, Biogeografia, São Paulo, 1979. p.: 2-24. SOUZA, Reginaldo José. O sistema GTP (Geossistema-Território-Paisagem) como novo projeto geográfico para a análise da interface sociedade-natureza. In: Revista Formação. Presidente Prudente: nº16, v. 2, 2009. p.: 89-106. SUBPREFEITURA DE SÃO MIGUEL PAULISTA. Plano Regional Estratégico de São Miguel Paulista. Disponível em: http://ww2.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/secretarias/planejamento/zoneamento/0001/ parte_II/sao_miguel/519%20ANEXO%20XXIII%20do%20Livro%20XXIII.pdf, acessado em 14 de Julho de 2012. TRICART, Jean. O conceito ecológico; Ecodinâmica e problemas do meio ambiente. In: ______. Ecodinâmica. Rio de Janeiro: IBGE-SUPREN, 1977. p.: 17-33. ______. Paisagem & Ecologia. Trad. Profº Carlos A. F. Monteiro. São Paulo: Instituto de Geografia, USP, 1981. TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980. VIDAL DE LA BLACHE, Paul. As características próprias da Geografia. In.: CHRISTOFOLETTI, Antônio (org.) Perspectivas da Geogafia. 2ª Edição. São Paulo: Diefel, 1985. p.: 37-47.

Sites acessados: “Comportas fechadas na barragem da Penha para proteger a marginal ajudaram a alagar a zona leste de SP”. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/17/ult5772u6678.jhtm, acessado em 24 de Julho de 2010. “Leda Paulani: Sobre-Acumulação de Capital, Crise e a Expansão Financeira”. Aula da Prof.ª Leda Paulani, originalmente gravada pela TV Cultura disponível na TV UNIVESP. Disponível em: http://marx21.com/2012/02/27/leda-paulani-sobreacumulacao-de-capital-crise-e-a-expansao-financeira/, acessado em 07 de Julho de 2012. “Parque Linear Várzeas do Tietê”. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=YS6Hk7diF7M, acessado em 07 de Julho de 2012. 107

“Programa 100 Parques para São Paulo”. Disponível em: http://site.sabesp.com.br/uploads/file/audiencias_sustentabilidade/prog_100parques_ sp_12aud.pdf, acessado em 09 de Agosto de 2011. “Parque Várzeas do Tietê”. Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE). Disponível em: http://www.daee.sp.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=565:parq ue-varzeas-do-tiete-o-maior-parque-linear-do-mundo&catid=48:noticias&Itemid=53, acessado em 07 de Julho de 2012. “memoriadodaee.mpg”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=AwThBYCUR-Q, acessado em 17 de Julho de 2012. “Parque Linear Várzeas do Tietê”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8JK1dN8ZU6U&feature=related, acessado em 08 de Julho de 2012. “BR-L1216: Programa Várzeas del Tietê”. Banco Interamericano de Desarrollo. Disponível em: http://www.iadb.org/pt/projetos/project-informationpage,1303.html?id=br-l1216, acessado em 07 de Julho de 2012. “Dilma Pena. Presidente”. SABESP. Disponível em: http://site.sabesp.com.br/site/interna/Default.aspx?secaoId=150 , acessado em 10 de Julho de 2012. “Dique Jardim Romano”. Prefeitura de São Paulo. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/infraestrutura/noticias/?p=17878, acessado em15 de Julho de 2012. “Entre Rios”. Direção Caio Silva Ferraz, Luana de Abreu e Joana Scarpelini. 2009. Disponível em: http://vimeo.com/14770270, acessado em 05 de Janeiro de 2012.

108

ANEXOS Anexo 1

Fotografia 7: Rua Cotoxó com vista para o CEU Três Pontes(primeiro plano) e conjunto residencial, Jardim Romano. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

Fotografia 8: Rua Cotoxó com vista para o CEU Três Pontes, Jardim Romano. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

109

Fotografia 9: Rua Cotoxó com vista ao conjunto residencial, Jardim Romano. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

Fotografia 10: Caminhos improvisados por moradores, Vila Itaim. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

110

Fotografia 11: Moradias regulares, Jardim Helena. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

Fotografia 12: Chácara Três Meninas. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

111

Fotografia 13: Moradias demolidas, Vila Itaim. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

Fotografia 14: Moradias demolidas, Vila Aymoré. Créditos: MULP (2010?)

112

Fotografia 15: Trabalhadores demolindo moradias, Jardim Pantanal. Créditos: Obtida com MULP (2010?)

Fotografia 16: Moradias em parte destruídas, Jardim Pantanal. Créditos: MULP (2010?)

113

Fotografia 17: Dique em construção, Jardim Romano. Créditos: J.V.P.Oliveira (28/12/2010)

Fotografia 18: Área que teve casas removidas, Jardim Romano. Créditos: J.V.P.Oliveira (28/12/2010)

114

Fotografia 19: Casas demolidas, Jardim Romano. Créditos: J.V.P.Oliveira (28/12/2010)

Fotografia 20: Casa alagada durante enchente de Janeiro de 2011, Jardim Pantanal. Créditos: J.V.P.Oliveira (11/01/2011)

115

Fotografia 21: Interior de casa alagada durante a enchente de Janeiro de 2011, Jardim Pantanal. Créditos: J.V.P.Oliveira (11/01/2011)

Fotografia 22: Casa alagada durante a enchente de Janeiro de 2011, Chácara Três Meninas. Créditos: J.V.P.Oliveira (11/01/2011)

116

Fotografia 23:Selo de identificação para remoção das casas.

117

Anexo 2 Entrevistada: Janaína Dia 23 de Dezembro de 2010 João Victor: Bom... vamo lá... Janaína... éh::... desde quando você tá morando aqui no Pantanal? Janaína: Já tem três ano... João Victor: E porque você veio morar aqui? Janaína: Porque eu tava morando no prédio do CDHU e... lá a gente tava mais pagando do que comendo... João Victor: Qual CDHU? Janaína: Aqui no Ermelíno... Matarazo. Aí eu vim pra cá... não... primeiro eu fui pra São Matheus e de São Matheus eu vim pra cá... João Victor: E você é de SP? Janaína: Sô... João Victor:Eh:::... Então... cê era de Ermelínio Ermelínio São Matheus e aí você veio pra cá... e... eu vi que você tem criança... são quantos filhos? Janaína: Dois... Zélia: E o terceiro ((risos)).. Janaína: E... terceira agora... João Victor: Terceira? É uma menina... Já tem nome? Janaína: Já Mariana... João Victor: Mariana.... Eh... aqui mora você seu marido e os dois filhos?! Janaína: Éh... João Victor: Você o ano passado... foi atingida pela enchente? Janaína: Fui... João Victor: Como... o que que aconteceu? Janaína: Hói... o que eu lembro meu marido tava saindo pra trabalhar já era 5horas da manhã aí ele falou assim: “Fia... lá na casa da minha irmã tá cheio... será que aqui vai enche?” Eu falei assim: “Ah! Você tá mentindo” e eu nem acreditei... aí daqui a pouco eu só escutei... e fez assim um PAH... aí abriu uma cratera dentro de casa... começou a ceder o chão e nóis teve que comprar um caminhão de concreto pra pode coloca esse concreto [apontando para o chão da casa] porque cedeu o chão... o chão aqui todinho cedeu... fez um buracão... porque era bem fundo né... a casa... aí foi que a gente percebeu mas também... foi a pior coisa... João Victor: Isto já... isto já no dia 09 [de dezembro de 2009]? Janaína: Não... na minha casa foi dia 08 [de dezembro de 2009] a enchente... João Victor: Ah éh... podes crer... o primeiro dia da enchente... Janaína: Foi... João Victor: Eh:::... qual foi o motivo... que disseram pra você da enchente? 118

Janaína: Falaram pra nóis que soltaram a barragem... João Victor: Que barragem? Janaína: Eu não sei se foi da Penha... eu não lembro mais qual que foi... assim na cabeça eu não lembro memo... João Victor: Eh aí aqui sua casa ficou... alagado? Tipo... alagado todos os dias? Foram 60 dias? Janaína: Não... na primeira enchente... baixou... na segunda aumentou do nada também... e na terceira já não dava mais pra ficar aqui... João Victor: Quando que foi a segunda e a terceira? Janaína: Viche... sabe que eu nem lembro... não lembro... foi tudo assim oh... nói num tava sabendo o que era hora... o que era dormir... o que era comer... tava.... João Victor: E como que você fez com as crianças? Janaína: As minhas duas crianças eu mandei pra casa da minha mãe e eu e meu marido nois ficamo aqui. João Victor: Eh.... a... prefeitura... o governo estadual... alguém veio aqui conversar com vocês? Janaína: Não só veio oferecer bolsa aluguel... João Victor: De quanto? Janaína: De trezentos reais... João Victor: E você... não aceitou? Janaína: Não... João Victor: Por que? Janaína: Uma... porque eu não vou sair da minha casa por 300 reais... eu não comprei ela por 300 reais... e::: hum:::... muitos lugar que cê vai éh:::.... como que fala... procurar aluguel ninguém quer criança... quer só casal... os aluguel de hoje em dia não acha de 300... de 400 pra cima... João Victor: E a prefeitura só ofereceu... bolsa-aluguel? Janaína: Só... João Victor: E... você conhece alguém que aceitou bolsa aluguel? Janaína: Conheço... João Victor: E como foi com essas pessoas? Janaína: Tem pessoas ainda que voltaram até pra cá... porque::: uma eles atrasam muito o aluguel os aluguel não é garantido... se você não tiver trabalhando e não pagar o seu aluguel você eles põe você pra rua... que a pessoa aluga a casa sem dinheiro né... tá precisando do dinheiro mas... João Victor: Essas pessoas conseguiram... alugar nesse valor? Janaína: Tem gente que tá pondo do bolso... minha sobrinha mesmo ela irá botar 150 do bolso.... que ela vai ter que mudar dessa casa que ela tá que ela paga 300 reais aí... como a muié vendeu a casa ela terá que botar... 150 do bolso dela... João Victor: É aqui perto... no Pantanal? Janaína: É lá pra cima... João Victor: Eh:::... essas pessoas que aceitaram o bolsa-aluguel... o que aconteceu com a casas dela aqui? 119

Janaína: Demoliram... derrubaram as casa... João Victor: Teve alguém que teve a casa demolida sem... ter aceito o bolsa aluguel? Janaína: Aí eu não sei informa... mas diz que tem caso né porque tem gente que foi esperto fez na casa da pessoa quando a pessoa foi sabe já pegou o dinheiro... muito disso aconteceu... João Victor: Eu não entendi... como assim? Janaína: É tipo assim... vamos supor... eu não fiz na minha... aí a pessoa veio e fez na minha sem morar na casa... muita gente fez isso... João Victor: Então vamos supor... éh:::... eu tô aqui aí vem a prefeitura... aí eu encontro a prefeitura... aí eu falo “Ah! Minha casa é aquela” eu aponto para a sua casa e falô “Ah! Eu qro aceitar o bolsa-aluguel”. Janaína: Sabe que aqui que eles tavam aqui fazendo e não sabiam de onde o povo tava vindo... tava vindo gente lá de cima... pego... teve gente de não sei de onde que pego aqui dentro. Teve gente do Ermelínio que pegou tanto aluguel tanto aluguel aqui dentro... João Victor: Mas... o que que era necessário pra se inscrever? Janaína: Só ter os documentos... eles tavam querendo tirar o povo... João Victor: Documento pessoal não o documento da casa? Janaína: Não... eles não pede isso... porque aqui não é uma área legalizada... Então quem chegasse na fila fazia... João Victor: E isso é o tal do cadastro que a prefeitura fez? Janaína: Foi... João Victor: Entendi... então... existe algumas pessoas... você conhece essas pessoas que perderam a casa... que teve a casa demolida... sem te se inscrito no bolsa-aluguel? Janaína: Não conheço mas já ouvi falar... o que aconteceu na casa da Dona Lusia uma mulé ali... ela teve que cancelar um monte de cadastro que fizeram na casa dela porque se não eles vieram... eles vieram com a máquina pra derrubar... ela falô “Não... ocêis não vai derrubar! Eu fico dentro... ocêis vão derrubar comigo dentro... mas vocês não vai derrubar porque eu não fiz cadastro!”... João Victor: Por que a prefeitura queria derrubar... depois que as pessoas aceitaram o... bolsa-aluguel? Janaína: Porque eles acham assim... vendeu a casa pra eles né... João Victor: Entendi... eh:::... você sabe alguma coisa do parque... do parque linear... a enchente... pra você tem alguma coisa haver com a construção do parque? Janaína: Tem... tem porque eles qué tirar as pessoas daqui a força né... e eles não qué dá... como fala... dá uma moradia digna... eles qué tirá as pessoa a força... João Victor: Eh:::.... o que você sabe... desse parque? Janaína: Sei que vai fazer bastante coisa né... pra esse povo chiqu... pra gente é que não é né... porque se fosse pela gente eles deixava a gente aqui né... e procurava outro lugar... tem tanto lugar que dá pra fazer esse parque... eles qué fazê logo aqui... João Victor: Você quer... você prefere ficar aqui do que ir pra outro lugar? Janaína: Assim... se eles vier com uma proposta boa de me dar uma casa... minha casa... por outra casa tudo bem... eu posso aceitar... mas se for pra ficar aqui eu também eu fico... João Victor: Tipo... uma idenização... 120

Janaína: Éh... digna que eu possa comprar uma casa que não seja num lugar igual aqui... que seja tudo legalizado... João Victor: Você desejaria isto? Janaína: Com certeza... João Victor: A gente... até passou na televisão que tiveram algumas pessoas que ganharam... foram morar no CDHU em Itaquaquicetuba... chegaram a oferecer isto pra você? Janaína: Não... me chamaram pra ficar na escola pra poder ganhar esse prédio... aí eu falei que eu não ia... porque eu moro aqui em São Paulo... o qué que eu vô fazer lá?... João Victor: Entendi... então... se fosse pra você morar em alguma casa dada pela prefeitura... Janaína: Prédio eu não quero!... João Victor:: Prédio você não quer... Janaína: Não quero... João Victor: Por que não? Janaína: Porque você não tem sua privacidade... porque o vizinho de baixo sempre recrama... você não pode rastar um móvel... às vezes cê... a criança sua balança... éh... pula elas... querem recramar... muitos prédio tem negócio de síndico e eles dá multa... tudo isso... então pra eu não quero não... eu quero uma casa... eu não saio da minha casa pra morar em apartamento... porque eu já morei e é um inferno... João Victor: Já morou em apartamento? Janaína: Já... João Victor: Aqui em São Paulo? Janaína: Isso... João Victor: Que bairro? Janaína: Do Ermelínio... João Victor: Ah... antes de você vir pra cá... Janaína: Éh.... João Victor: Você morava de aluguel... em apartamento... Janaína: Apartamento... João Victor: Você já tinha as crianças? Janaína: Já... tinha eles pequeno... João Victor: Putz... então devia ser... Janaína: Era um inferno... porque o vizinho de baixo... de baixo odiava criança... o síndico de cima não podia ouvir meus filho chorando que vinha toda hora pra recramar... João Victor: Oh... Janaína... voltando a falar um pouco mais de como foi a enchente.... éh... o que que mudou na sua vida durante aquele 60 dias aproximadamente da enchente? Janaína: O que que mudou?... o meu filho ficou doente... ele... João Victor: O que que ele teve? Janaína: Porque assim:::... ele tem sopro e uma veia no coração entupida e uma...médica falou que se ele tivesse esse... essa coisa... já ia te dado no exame do pezinho... e nunca 121

tinha dado... não deu nada... ele fez dois exame do pezinho e não deu nada... e agora direto tem que correr com ele pro hospital... porque dá parada cardíaca... na enchente mesmo... ele teve duas parada cardíaca... quase morreu... é direto... direto eu corro com ele... graças à Deus que eu::: ele está mais calmo na chuva... meu marido tá com depressão da chuva... não dorme quando chove... nesta noite memo ele não dormiu... e eu também... eu enfrentei pressão na enchente que eu queria até se matar... Zélia: E o cabelo... Janaína: E o cabelo caiu... eu tive que corta ele... meu cabelo tava grande e eu tive que cortar... porque meu cabelo ficou curtinho aqui na frente... todinho... fiquei careca... João Victor: Eh... você foi no posto de::: saúde...? Janaína: A gente não é bem atendida nesses posto de saúde daqui... eu fui lá... aí os médico falou falou que era normal... e mandou volta pra casa... João Victor: Seu marido... você falou que quando teve o primeiro dia da enchente... no dia oito... ele tava saindo pra ir trabalhar... Janaína: Trabalhar... João Victor: Eh:::... ele ficou trabalhando durante esses dias? Janaína: Não... João Victor: Mas ele perdeu o emprego? Janaína: Não... ele:::... tá indo agora né... mas agora como tá com a chuva de novo ele não vai porque... tá com medo... João Victor: É o mesmo serviço? Janaína: Mesmo serviço... João Victor: Desde aquele ano? Janaína: Mas se ele não for... ele não ganha porque... não é registrado... João Victor: Ele trabalha com que Jana? Janaína: Ajudante Geral... João Victor: Aqui:::.... pelo Itaim? Janaína: Em Bom Sucesso... João Victor: Bom Sucesso::::....? Janaína: Fica aqui em Guarulhos. João Victor: Ah:::... tá.... entendi... ((risadas)) Eh:::... Janaína o que se tá... o que vocês estão esperando pra esse ano? Janaína: Enchente... João Victor: Enchente?! Janaína: Oh lá [apontando para um dos cômodos da casa]... as coisas... João Victor: Tudo no alto... ((risadas)) verdade.... a geladeira.... verdade.... Janaína: Tudo... que já não tem mais nada pra perdê... João Victor: Como assim mais nada... porque... a gente... eu tô fazendo... eu tô visitando conversando com algumas pessoas desde a semana passada... mas esse ano[2010] em março eu vim com a faculdade aqui... a gente fez um trabalho aqui... e aí a gente ficou sabendo que:::.... teve um bolsa-móvel... 122

Janaína: Não foi pra todos... foi pra quem pegou bolsa-aluguel... João Victor: Explica um pouco... como foi isso? Janaína: Foi assim... quando a gente ficou sabendo que tavam dando esse bolsa-móveis a gente foi atrás... aí chegou lá eles falaram que a gente não ia pega porque a gente não pegou o bolsa-aluguel... que era só tinha direito... pra quem pegou o bolsa-aluguel... aí disse que o:::... subprefeito... eu esqueci o nome dele... ele veio aqui dentro... e falou que o bolsa... que esse bolsa-móves era pra todo mundo... aí não foi pra todo mundo... alguém (embolsou) esse dinheiro né... que ninguém sabe quem foi... João Victor: Então você não teve nenhum auxílio da prefeitura... do estado? Janaína: Não... João Victor: E como que foi... a gente ficou sabendo que... foi uma situação muito difícil pros moradores... a gente ficou sabendo mais sobre esta área aqui do Pantanal... com os processos de remoção... como que foi isso? Quem que vinha fazer a remoção? Janaína: Era o povo do ( ) se eu não me engano... O povo da prefeitura... e vinha a máquina... João Victor: Tinha polícia? Janaína: Teve caso que veio a polícia... teve caso que... João Victor: Mas a polícia vinha... e ficava acompanhando? O que que a polícia fazia? Janaína: Não... porque esse povo da... aí meu Deus... da ambiental... eles são muito são muito ignorante... João Victor: Ah é... a GCM ambiental... Janaína: São muito ignorante... João Victor: Mas com você... nunca... Janaína: Não... João Victor: Nunca aconteceu nada? Janaína: Não... João Victor: Eh:::::.... Janaína: Só falaram assim que... quando derrubaram essa casa aqui [apontando para o vizinho]... que nem... minha casa tá toda rachada porque derrubaram a casa daqui... eles falaram assim... que eu tinha que pegar bolsa-aluguel porque não tinha condição de ficar na minha casa... eu falei assim “pois eu vô fica na minha casa não vô pega bolsa-aluguel... porque eu não sô obrigada a pega bolsa-aluguel”... João Victor: Tiveram algumas pessoas que tiveram... que pegaram bolsa-aluguel por causa disso... porque a casa do lado foi::: demolida... Janaína: Não... João Victor: E aí abalou a estrutura? Janaína: Não... só no meu caso memo... por causa daqui... demoliram... João Victor: Ah... Você tá sozinha? você não tem mais vizinho? Janaína: Não daqui do lado não... João Victor: Tudo bem depois de eu tirar... uma fotografia... do lado de fora?...

123

Janaína: Aí daqui... fecho... porque... tem bastante cara que mexe com coisa errada... pulava no quintal ficava tudo aberto e como o meu quintal aqui no fundo é tudo aberto... aí eles viam e pulavam... João Victor: Eh... é assim... até pra gente terminar... Éh:::... a gente passou... eu passei em março aí eu via que algumas casas tinham um selo... colado da prefeitura... ou falando que era área:::... que ia ter o parque... ou falando que era área do:::... de manancial... eh:::... a sua casa chegou a ter esse selinho?... Janaína: Teve... porque eu fiz só o cadastro... João Victor: Que cadastro foi esse? Janaína: Ele falou assim que era pra esperar a nova proposta deles... se era casa prédio... aí eu falei que eu não quero prédio eu quero casa... João Victor: Mas aí esse selo... ele indicava o que? Janaína: Ele indicava... tem:::... cada numeração tinha como saber se a pessoa pegou bolsa-aluguel... e:::.... como que não né... aí cada selo tinha um número pra saber se a pessoa tinha bolsa-aluguel... João Victor: E o que que deu com você? Janaína: Nada... João Victor: Não te procuraram mais? Janaína: Não... João Victor: E sobre as enchentes nesse ano... você acha que vai ser como as enchentes? Janaína: Eu sei que vai pegar bastante gente de surpresa... João Victor: Mas você acha que os motivos vão ser o mesmo do ano passado[fim de 2009 início de 2010]? Janaína: Com certeza... João Victor: Tem haver com o fechamento da barragem... e tudo mais... Janaína: Com certeza... João Victor: Mas.... Janaína: Porque o Kassab mesmo ele falou nesses dia no Datena que sabe que vai dá enchente... como que ele sabe que vai dar enchente se ele não é Deus? João Victor: Isso é verdade... Janaína: Aí depois até o Datena ficou metendo o pau na gente aqui do Pantanal... Zélia: É eu fiquei sabendo disso... João Victor: É... qual é o nome daquele senhor?... Zélia: Oh... do... Rosalvo falou... Janaína: Meteu o pau na gente... Zélia: Sendo que as outras áreas tão enchendo porque a gente... Janaína: tamo ocupando... porque aqui era pra tá as água... João Victor: E Janaína mas... por que? por que... alguém vai lá e fecha a barragem pra alaga o Pantanal?...

124

Janaína: Porque eles quer tirar os povo daqui né... e como eles tão oferecendo o bolsaaluguel e ninguém que eles quer tirar o povo a força. aí... aí eles acham quea solução é essa mandar a água.... João Victor: Eh:... esse povo... tem pra onde ir? Janaína: Não... João Victor: O que que você acha que o povo vai fazer? Janaína: Muita gente vai aceitar né... como foi a primeira fez... muita gente aceita. se eles vier com cinco mil o povo aceita... João Victor: Como assim cinco mil? Janaína: Se eles dé cinco mil pro povo sai da casa o povo aceita... Porque tem muita gente que já tá cansado de viver aqui dentro por causa dessas enchentes... tem gente aqui que já não dorme mais... quando tá chovendo assim o povo nem dorme... fica quatro cinco hora da manhã olhando o rio... pode vê onte dis onte deu uma chuvona e não encheu... no dia que deu a chuva aí o rio já tava na boca... estranho né?!... que esses dia choveu... até granizo e o rio continua do mesmo jeito... João Victor: É eu lembro que semana passada eu vim... choveu muito muito muito muito. éh... eu tava com o Vagner... sabe o Vagner? Janaína: Sei... João Victor: A gente... eu tava acreditando muito que ia alagar ter enchente... não aconteceu nada... ficou até a boca... Janaína: Agora eu faço uma pergunta... como num vai alaga quea defesa civil tá vinte e quatro horas aqui? chove... pode vê... daqui a pouco... daqui uns minuto eles tão aqui... chovei agora de tarde... eles tavam aqui. esses dias duas hora da manhã tudo preocupado... a defesa civil tava aqui pra olha o Pantanal... João Victor: Mas... O que a defesa civil diz? Janaína: Não... eles falou que vinham aqui embaixo pra vê se tava alagado... mas falo que naquele dia a gente não podi... que:::... a gente podia não esperar que não ia enchente mas ele não sabia os outro dia... e o que que ele quis dizer com isto?... aí ficou aquele suspense no ar... João Victor: Você ficou sabendo que houve uma remoção... aqui... na... Chácara Três Meninos semana passada? Janaína: Fiquei sabendo... João Victor: Semana passada... sexta-feira... Janaína: Fiquei sabendo... teve até caso de polícia né... tirou as pessoas... disse também hoje -- é que eu não tava aqui... fui levar os meninos pra cortar o cabelo... mas...que aqui do outro lado tinha uma perua já sabendo quem tava aqui... ainda a menina até falou o nome do cara da prefeitura... disse que ele veio pra saber quem tá nas casa... agora o que vai acontecer... acho que vai acontecer a mesma coisa lá da Chácara aqui... João Victor:Mas... tem gente que:::.... porque... o caso da Chácara foi que foram novas construções né... tem gente... você conhece pessoas de famílias que fizeram novas construções aqui... nessa parte do Pantanal?... Janaína: Não... construção não... eu conheço gente que nem saiu da sua casa porque não achou:::.... como é que fala.... aluguel e ficou... tá recebendo até hoje... João Victor: Todo mundo... Janaína: Não... a maioria né... 125

João Victor: Tem um.... eu conversei com uma mulher que tá morando lá no cotovelo... ela se inscreveu no bolsa aluguel só que ela deixou de receber... e ela voltou pra cá... tentou resolver isto mas não conseguiu... você conhece... mais pessoas? Janaína: Conheço... bastante... João Victor: Que deixaram de receber o bolsa-aluguel?... Janaína: Bastante... que todo mundo não tá achando aluguel... ninguém quer aceitar criança... João Victor: E o valor dos alugueis? Janaína: trezentos reais... João Victor: Não... não da bolsa... dos aluguéis das casas... Janaína: Tem... de:::: trezentos e cinquenta quatrocentos quinhentos... só pra cima não acham menos que... e tem gente que não tá achando lá fora e tá vindo alugar aqui dentro... João Victor: Verdade?! Zélia: ((risada)) Acontece muito isso... João Victor: Explica isso... como assim? Janaína: Porque... vai lá pra fora né... como a família é grande e a pessoa trabalha e o dinheiro que... ganha... só pra comer e aí não dá pra repor o dinheiro pra pode pegar o aluguel... volta pra cá... aluga casa aqui dentro... Zélia: Lá... na chácara... na rua que eu moro na primeira enchente a vizinha... teve uma família que morava aqui na... eu morava... foi atingida pelas enchente... pegou bolsa-aluguel e aí alugou lá na rua que eu moro que da primeira vez não tinha enchido... aí quando foi da segunda vez... encheu e eles perderam tudo de novo... João Victor: Bom... então... acho que... a ideia era um pouco isso... eh:::... mas pra tentar finalizar... se tem enchente de novo... o que você pretende fazer? Janaína: Eu... eu não sei... ((risos)) você me perguntou uma coisa que eu não sei... não sei... porque eu nem tenho pra onde ir... meu marido não tá trabalhando... e eu vô ficar no (Caio) igual que eu fiquei da outra vez. Zélia: ( ) Janaína: Éh... João Victor: Você tá de quantos meses? Janaína: Sete... João Victor: Poxa... então:::.... você tem que ficar calma... não pode mais cair o cabelo porque... Janaína: Não consigo... não consigo ficar calma... quando chove assim eu nem durmo... chove forte... eu já saio correndo... já vô logo lá pra casa da mãe do ( ) porque eu não aguento ficar dentro de casa sem gente... às vezes... assim... quando:::.... ele até um tempo atrás... tava trabalhando tava chovendo forte ele ligava aqui e fala “Vô embora”... eu fico desesperada... tenho medo... João Victor: Mas... a tendência... cê acha que é a prefeitura oferecer de novo bolsa-aluguel? Janaína: Foi porque até ele [Kassab] falou na televisão... ele falou que não tem nada pra dá em dinheiro indenização... o que ele tem é o bolsa-aluguel... João Victor: Tá bom... obrigado Janaína... Janaína: De nada... João Victor: Desculpa aí...qualquer coisa... 126

Anexo 3 Entrevistada: Ana Dia 23 de Dezembro de 2010 João Victor: Como assim... você se importa em abaixar... um pouquinho só a televisão?... não precisa... nem desligar... mas... como assim?... o que que você participou Ana?... pela democracia?.... você participou do movimento estudantil? Ana: Fui... João Victor: VERDADE?... Em que época? Ana: Em setenta e sete... João Victor: Olha... bacana... Ana: Apanhei de polícia e tudo... eu sou filha de militar ( )... apanhei muito pra ter direitos humanos e democracia... que eu... hoje me arrependo... João Victor: Por que? Ana: só trinta por cento dos jovens... tenta... procurar... melhoria e ideais que agente pensava... João Victor: Ãhan... Ana: Setenta por cento dos jovens tão nas drogas... tão nas nave.... tão hum eu não sei o quê... um olha pra cara do outro... que eu tiro pelos meu próprio filho que... a única que tá... assim... hoje... participando que nem eu... é a Renata... os outros... estão cada um indo curtir sua própria vida... então qué dizer... não era isso a intenção nossa naquela época... João Victor: Sim... sim... Ana: Então:::... são coisas assim:::... João Victor: Você tem quantos filhos? Ana: Eu tenho quatro... e dois que não é meu... entiados... né... eh::: quatro meus... João Victor: E todos eles moram aqui com você? Ana: Não... só tem um agora que tá separado... separou da mulher e tá agora comigo... João Victor: Com você aqui... mora quem? Ana: Só um... o Ricardo... João Victor: O Ricardo... você... e ela... pequeninhinha? Ana: Não... não... só nós dois João Victor: Opa.... ((tocou o celular do entrevistador)) Só um momento... Éh:::...ih:::... há quanto tempo você mora aqui?... no Pantanal? Ana: Nove anos eh.... oito meses... João Victor: E você veio pra cá... por que? Ana:Não... aqui nessa região eu moro... a vinte cinco anos já... João Victor: Você mora há VINTE E CINCO ANOS... no Pantanal... Ana... Ana: Eu sou uma... uma das primeiras que quando surgiu o Pantanal defendi um barraco... que é... justamente na pessoa que tava falando... que é a vó do Toshiba... o primeiro barraco construído dentro do Pantanal... a vinte e cinco anos atrás... quando começou... foi atrás do (baiama)... um barraco que tinha com uma senhora morena... com várias crianças 127

que... hoje em dia eu vim saber que era a vó do Toshiba... a dona Maria que tanto eu ouvi falar... dona Maria dona Maria... dona Maria é avó do Toshiba... que hoje em dia mora em Guarulhos né... que foi retirada daí por ver a situação da filha né... levar os filho do jeito que leva... os outro filho dela ainda tão aqui... mas eu conheci... aqui no Pantanal... lá em cima na... ( )... enchia lá também... na época... João Victor: Ih... você veio morar aqui... por que? Aqui... Ana: Na região do Pantanal? João Victor: Na região do Pantanal... Ana: Eu morava no centro de Guarulhos... aí:::... a família do meu marido... é daqui... aí:::... falou que queria vir pra cá... aí nós viemos morar nessa região... que queria ter mais conhecimento... o modo dele trabalhar que ele era... é pedreiro né... era não... que é pedreiro ele não morreu... João Victor: ((risos)) Ana: Éh... o modo dele trabalhar... tinha mais profissão... éh:::... tinha mais coisas pra ele... João Victor: Oh... Ana.... você comentou que tinha... já tinha enchentes naquela época... Ana: Não... foi ah.... enchente de:::... oitenta e sete... João Victor: Que enchente é essa? Ana: Que encheu aqui... por quarenta e oito horas... aqui no Pantanal... João Victor: Eu não sei nada... eu nunca ouvi falar sobre essa enchente... Ana: Éh... foi uma enchente que houve... éh:::... casionada também... só que::: o governador da época... João Victor: Qual que era... era o Quércia?... não.... Ana: Era oh:::... Zélia: Não foi em noventa? Ana: Não... Janaína: Foi em (noventa) e sete. João Victor: Noventa e sete ou oitenta e sete? Janaína: Oitenta e sete. Ana: Oitenta e sete... Era oh:::... João Victor: Montoro? Ana: Era oh... Covas... e uh.... Quércia... João Victor: Era o Quércia... ou era o Fleury? Ana: Não... o Fleury não... era o Quércia... então eles... em quarenta e oito horas as pessoas foi... deu divulgação nos jornais... num sei o QUE... em quarenta e oito horas as águas acabaram... não foi como agora... essa enchente que... que foi provocada TAMBÉM... eh... durou dois meses e quatro dias... João Victor: Ih... qual foi o motivo dessa enchente... de oitenta e sete? Ana: Retirada da::: população... tanto é que retirou todo mundo... daqui desse local... a mãe dela mora aqui nessa época também... tirou todo mundo... mas as pessoas num... foram pr’um:::... abrigo né... mas... não teve... esse negócio... assim... di:::... retirar... assim retiraram... queriam retirar o pessoal da ( )... João Victor: Sim... 128

Ana: Mas... não conseguiram né... porque... muitas casas éh:::... as pessoas não aceitaram... como hoje também muitas não aceitam... João Victor: Mas... naquela época... não houve::: auxílio... a prefeitura num:::... num... ofereceu nada?... Janaína: Os alojamento... Ana: É... foi alojamento... João Victor: Eh... a turma aceitou?... Ana: Ah... olha... as (água) cobriram até os teto né... não tinha como ficar nas casa... eu desci aqui... di:::... teto di:::... perua pra ajudar a tirar as pessoas... os bombeiros não davam conta... na época... de tirar as pessoas João Victor: Ih::: o que que.... falando um pouco mais da enchente que aconteceu agora... assim... como... o que que você... pra você... quais são os motivos da enchente... desse ano... Ana: Que passou agora?... do ano que passou? João Victor: É... agora... desse ano de dois mil e dez... Ana: Que passou agora é assim... eles queriam fazer esse parque... esse projeto desse parque... éh:::.... tanto é que eu falei com eles... com a Beth Franç(a)151 de... disso tudo acontecer... eu... eu falei com ela na assembleia... ih... e falei pra ela que assim... Zélia: Quem é essa Beth França? Ana: É junto com Delfino.... éh:::... Filinto... Zélia: Ela é da secretaria da... Ana: {Da habitação... Éh:::.... Ela é o Delfino.... FILINTO... não é Delfino é Filinto... eu falei pra eles que eles primeiro fizesse as moradias... depois retirasse as pessoas... mas não foi isso que eles fizeram... tanto é que todo mundo aqui... ligou pra prefeitura no dia oito... dia SETE de feve... de DEZEMBRO... falando “Oh... o córrego tá cheio... tenta vê... abrir a barragem da Penha...” só que isso não aconteceu... tá vindo uma chuva... não sei o quê... ninguém deu atenção... o que que aconteceu... no dia oito... um menino buscava qualquer... eu tinha um barzinho aqui... o menino que buscava pão pra mim... chegou... falou assim “Oh dona Ana... eu vô demorar com seu pão.”... “Éh...” ele falou... “porque tem água descendo ali na rua da Augusta... na esquina...” falei “Eu vô vê isso”... nós fomos na... saímos no portão... a água já tava correndo a rua... SEM CHUVA... não tava chovendo na hora... seis horas da manhã... as enchente aqui foi provocada sem chuva... não era... dia... na hora que tava chovendo que alagava as coisas... é na hora que não tinha chuva... por exemplo choveu hoje... AMANHÃ ia enche aqui... que é uma coisa impossível... mas era isso que tava acontecendo... foi isso que aconteceu na época... foi uma coisa provocada... não foi uma coisa... João Victor: Mas... o objetivo... Ana: ERA a retirada das pessoas TAMBÉM... João Victor: E o parque? Ana: Eh... e fazer o parque né... mas quando iam fazer o parque... que nem que eu falei pra ela... faça moradia depois retira as pessoas... ninguém é contra o parque de ninguém mas... faça uma coisa digna pra pessoas... eu mesmo não troco minha casa por dois mil pra 151

Secretária Adjunta da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo. Cf.: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/organizacao/quem_e_quem/index.php?p=138, acessado em 23 de Julho de 2012.

129

morar... pra mora em prédio... eu quero casa... se for... pra mim sair daqui... eu quero uma casa... porque eu quero minhas planta meus animais... eu quero uma casa... João Victor: Por que não prédio?... Ana... Ana: Eu já morei em apartamento eu não gosto de apartamento... não gosto... você não tem direito de uma planta... de um animal... cê não tem uma vida normal... em prédio não... casa não... você tem a sua... a sua liberdade entendeu... você tem... éh:::... por exemplo se você quiser dar festa... cê fica com seus amigos até a hora que você quiser... e em apartamento você sabe que não pode... tem horário... em determinado horário você não pode nem ter nem uma conversa mais alta... não... João Victor: Ih... Ana... cê falou que não sairia daqui por dois mil reais... Ana: Não... João Victor: Mas... te ofereceram... dois mil reais pra sair daqui? Ana: Ofereceram pra todo mundo... mas EU que não aceito... João Victor: Mas que... Ana:

{Esse bolsa-aluguel...

João Victor: E você não aceitou bolsa-aluguel por qual motivo? Ana: Porque eu não acredito nessa proposta deles... tanto é que... o pessoal tá aí... até agora foi... ahn... foi no bolsa-aluguel.... entendeu... ih:::... eu não vejo nenhuma casa sendo construída... Zélia: Ela tá falando desse dois mil reais... porque o valor que eles ofereceram inicial... era dois mil reais... Ana: Mais trezentos... éh:::... Zélia: Era dois mil reais... oitocentos que era os seis meses de aluguel e... trez... duzentos né... que era pra mudança... Ana:

{ mudança...

Zélia: Éh... por isso que ela tá falando desses dois mil reais... João Victor: Entendi... Eh... cê sabe de alguém que aceito o bolsa-aluguel? Ana: Um monte... João Victor: E o que que aconteceu com essas pessoas? Ana: Ah... tão passando aí dificuldade... porque os donos das casas querem aumentar seus valores... Janaína: ( ) Ana: Fora... entendeu então quer dizer que num... num tão é... podendo se manter direito... que... muitas pessoas que pegaram esse bolsa-aluguel... nem salário fixo... nem salário nenhum num tinha... vivia de reciclagem... por aqui a fora... João Victor: Mas era... ou aceitava o bolsa-aluguel... Ana:

{ não...

João Victor: Ou... Ana: { não não não... você tinha o livre-arbítrio de não aceitar... as pessoas aceitaram por... por... não... eu não vô falar que é ignorância porque aí eu tô maltratando as pessoa... mas... Janaína: Desespero... 130

Ana: Nem chega a desespero porque assim... em oitenta e sete... teve enchente pior que essa... e as pessoa não aceitaram esse tipo de coisa... então quer dizer... foi um pouco de necessidade... foi... teve... teve casos sim de desespero... pessoas com gente acamada... com crianças tudo... mas tinha gente que podia suportar sim... que a gente pedia... “Não... não aceita não aceita não aceita”... as pessoas num::: puderam ver o dinheiro e se apoderar... hoje se arrepende... João Victor: E o que aconteceu com a casa dessas pessoas? Ana: Foram derrubadas... João Victor: Teve alguém que teve a casa... derrubada sem ter aceito... o bolsa-aluguel? Ana: Teve... o Carlos é um... que tá aqui... mesmo... Janaína: aquele homê que tá preso... Ana: Éh... teve uma que eu notei... entendeu... éh... se você me perguntar... hoje eu sei a cor dela... mas na época eu não sabia se ela era branca preta amarela azul... não sabia cor dela... chegaram pra mim e disseram assim... “Olha... tem uma mulher ali... que tá presa... e as filha dela... a casa tá sendo derrubada e as filha vão ficar na rua... que são de menor...” NA HORA... cheguei no Wilson... que era o Wilson que tava aqui na época né... dã:::.... da prefeitura... cheguei no Wilson... cheguei no pessoal e falei assim “Eu QUE-RO a casa da Ivonete... ou o dinheiro pras filha dela sobrev... ter uma moradia digna... uma coisa o outra... é AGORA... não quero saber de amanhã... AH mais... eu quero AGORA... vocês não derrubaram a casa da mulher?... ela tá presa... eu não sei quem é ela... só que eu quero a casa dela...” eu fui na lu-ta pra conseguir a casa dessa mulher... João Victor: E aí... o que aconteceu? Ana: Eles tão no bolsa-aluguel... João Victor: A casa foi derrubada... Ana: Foi... já tinha sido derrubada... na hora que eu cheguei jun... junto com eles... eles já tinham derrubado a casa dela... João Victor: Mas... ninguém conversou com as me-ni-nas...? Ana: Nada... elas não estava nem aqui... elas tinham subido... porque... não tinha condições de ficar na casa... são várias pessoas que:::... sabe... perderam suas casa assim... sem ainda tá recebendo nada... João Victor: Ih... oh Ana.... como que acontecia isso? vinha... vinha... a prefeitura o trator... batia na porta ((bate palmas))... Ana: Eles passavam na rua... e ficavam observando... a casa que tivesse... muitos dias assim... sem eles vê movimento... aí... não tem aqui... “Vamô derruba”... aqui nessa rua... não foi derrubada... porque a gente ficou em cima... porque eu fiquei em cima... também... ... João Victor: Oh... Ana... ih:::... a sua casa... aqui também foi atingido pela enchente? Ana: Encheu também... João Victor: E cê perdeu tudo?... cê... você não ganhou nenhum auxílio da prefeitura? Ana: Não... João Victor: Nem bolsa-aluguel?... a gente ficou sabendo... eu fiquei sabendo de um:::... bolsa-móveis... neim... Ana: Nada... só que a gente falou com:::... Milton... Nilton... o subprefeito teve aqui esses dias... tem uns quinze dias que o Milton teve aqui... e falou que ele soltou o dinheiro pra 131

pagar todo mundo... só que nós falamo... eu e a Augusta falamo pra ele que:... ninguém recebeu esse dinheiro não... só pegou esse dinheiro quem tava no bolsa-aluguel... as pessoas que não teve o bolsa-aluguel não... não pegou não... Zélia: Que já estava morando... na verdade... na casa... Ana: Não então... quem pegou o bolsa-aluguel... todos que pegaram bolsa-aluguel... mesmo tando... que a gente sabe que tem muita gente que tá no bolsa-aluguel tá ( ) Zélia: { não... não foram todos que pegaram... só... lá na Chácara... só pegou... quem já estava no bolsa-aluguel e morando em outra casa... Janaína: { não... era todo que tava no bolsa-aluguel... Zélia: Mas não era todo mundo... LÁ não foi assim não... tem muita gente... que tava no bolsa-aluguel e não conseguiu alugar casa... e não pegou... ou melhor... e esse dinheiro foi declarado pra TO-DOS que perderam os móveis... que acreditaram em bolsa-aluguel... ou não.. Janaína: { foi o que ele falou... Ana: Foi o que ele falou... que ele soltou esse dinheiro... agora... onde que tá esse dinheiro? pra quem ele deu esse dinheiro?... Zélia: E eram dois mil reais... e as pessoas que... Ana:

{ mil reais...

Zélia: Pegaram lá... chegou a pegar... só:::... mil e trezentos... não... algumas pessoas pegou lá... Ana: Não... Zélia: Não... é mil reais mesmo... sabe porque... porque os outros trezentos eram no va-lor... Ana:

{ do aluguel...

Zélia: Do aluguel... tá certo... então... os outros... o outro mil ninguém sabe onde que foi... tá certo... Ana: Ele falou que deu... agora... agora.... tem que saber quem... Janaína:

{ (é a palavra dele contra a) nossa...

Ana: Éh... porque foi assim... uma palavra sem nada gravando... ninguém gravou na hora o que ele falou... a gente... pegou a gente de surpresa... então quer dizer... foi uma coisa... João Victor: Ih:::... oh Ana... éh... voltando um pouco sobre o parque assim... éh:::... que que cê sabe desse parque?... tipo assim... o que vai ser o parque?... qual o objetivo do parque?... Ana: Eles querem ah:::... entregação da barra... da área... do rio né... pra ajeitar... modificar de novo o Tietê como em outros lugares... que a água é pura né... isso daí.... ninguém é contra isso daí entendeu... uma preservação... mas eles não estão preservando direito... si parar pra pensar nesse parque... porque sim... vão fazer um projeto de plantação do lado do rio... normal... é ótimo... mas logo ali pista... logo ali pista... então isso aí não tá favorecendo TANTO... João Victor: A parte... Ana: A par-te de parque né... João Victor: Pre-ser-va-ção... Ana: Éh... se for igual a Vila União entendeu... o parque que eles fizeram lá... João Victor: Como que é o parque da Vila União? 132

Ana: Na Vila União já tem um parque já pô... é começo desse parque... já tem lugares de teatro... lugares pras crianças brincar... tem um parque lá... mas... isso daí é mais pros americanos verem né... uma coisa bonita pra... pras pessoas de fora... não pra nós... João Victor: Ih:::... você acha que parque éh... é o que a prefeitura tá falando... pra ter a remoção? o objetivo é remover... Ana: O motivo da remoção é a integração do Rio Tietê... mas não é totalmente que eu acho... que seja uma integração do rio... se vem asfalto... e vem outras coisas não é intregração total do rio Tietê... então é... mais boniteza pra... coisas de fora também... João Victor: Ih:::... Ana... você acha que esse ano vai ter enchente? Ana: Olha... é::: semana passada teve uma chuva forte... as águas começa... o rio... o (córrego)... encheu bastante... transbordou pouquinho... vindo do pesqueiro pra cá... a água já tava bem avançada pra... meio subindo na rua... nós passamos quase a noite todinha quase... passando aí no meio da rua... a família dela tava dormindo... até o marido dela acordou pra passar com a gente... aí... veio a defesa civil e ele... aí a gente... a menina perguntou pra ele “Vai te enchente?” eu falei assim “É CLARO... já tá tendo... oh í óh... tá sem chuva e o córrego enchendo”... e ele “Não... não faça isso Ana...” e num sei o quê... eu falei “Eu FALO... porque as comportas da Penha fica fechada... vocês fecham”... “Ah... não fala isso”... “Falo... falo... porque a gente tem prova”... João Victor: Prova?... Ana: Cadê as foto? cadê as coisas... Zélia: As... tá com a gente... e tem num::... tem na internet também tá num::::::.... Uol João Victor: Site da DAEE? Ana: Na Uol né... Zélia: Não... site da Uol... éh:::... da Uol tá bem visível mesmo... que a... foi a matéria dela... João Victor: Ah... eu vi... eu vi... umas fotografias... Ana:

{ mostrando ah:::...

João Victor: Que o Raul Marcelo tava presente... Zélia:

{ isso... isso...

João Victor: Ah... eu vi... Zélia: { éh... então... foi através daquela matéria dela... que foi... alastrado... porque até o promotor... chamou a Fabiana... que ela que escancarou... as matéria e as foto... e aí eles não tiveram como alegar... aí foi quando eles começaram a falar “Realmente... fechou...” ( ) Ana: Então... teve provas né... aí eu falei assim “E... de novo... tá fechado”... e eles “Não fala isso Ana... não fala isso”... eu falei “Falo.”... que aqui sem chuv... alagamento com chuva é na HORA DA CHUVA... saiu no... óh... se falarem pra mim “Olha... o Pantanal encheu... tá chovendo e o Pantanal encheu d’água”... eu vô falar “Glória a Deus” porque é de Deus... mas depois que parar a chuva... e o Pantanal continuar com água... é GLÓRIA AOS HOMENS que querem isso... não... glória a Deus... que... cê vê na cidade toda... enche d’água... horas depois não já tem mais essa água... essa água... essa água todinha é escoada... então quer dizer... se ela é escoada... é o que... a chuva?... é por Deus... uma coisa de Deus... a gente vê como que é a natureza... mas dus homens... fica aí óh... João Victor: Éh... foram sessenta dias... Ana: Então... até que nóis saímos daqui... dia oito de fevereiro... com ÁGUA na canela... na hora que nós voltamos... já não tinha mais água... que lá... quando a gente tava protestando na prefeitura... vieram reporters antes de começar a reunião... vieram reporters e 133

comprovaram... horas depois... que terminou a reunião lá... que a gente viemos embora... não tinha mais água no Pantanal... e esse ano ele falou... que enchente igual o ano passado não vai ter... quer dizer... se enchente igual o ano passado não vai ter então porque... provavelmente vai ter enchente... Janaína: Deixou aquela coisa no ( )... Ana: Éh... Zélia: Não... mas a defesa civil éh... quando asfaltaram as ruas lá em cima... colocaram goma de asfalta lá: na::... Ana: Éh... que é um erro... sem... canalização sem nada... Zélia: Aí... foram reclamar... o chefe de gabinete falou pra gente (tá procurando) o corpo de bombeiro... só que... assim... quando a gente vai conversar com esses cara... eles são bem maleáveis... quando a política... bem mais truculento... ou quan-do eles vem com a polícia... agora... quando a gente vai conversar com eles diretamente... nossa... eles tratam a gente... modesta... parte... bem... agora... aí... quando foi agora na reunião do dia oito... lá na (Rigeti)... eu... os caras do corpo de bombei... dáh:::... defesa civil tão falando que pra segunda quinzena... eles estão sendo TREI-NA-DOS... tanto Guarulhos quanto São Paulo... treinados... quando foi questionado... pra onde vão levar essas pessoas... Ana: Não souberam... Mas COMO... eu falei com a Elizabeth França também... Janaína: Mas a escola ( )... Ana: Se ela queria... tanto é... Zélia: A polícia ( )... Ana: ((tchiu)) Zélia... você era pra te ido e não foi... depois da enchente... Zélia: Nãnaninanã... Ana: Não... a gente vai reunião com a Elizabeth antes da enchente... após a enchente a primeira enchente... no Rigueti teve outra reunião... com a Elizabeth... que eu chamei ela de mentirosa... bati boca com ela de novo... como todas as vezes que eu ver aquela mulher eu vô chama de mentirosa... porque ela é mentirosa mesmo... bati boca com ela... lá no Ri-gueti... de novo... já estava... acontecendo a enchente... entendeu... eu perguntei pra ela de novo “Aonde vai colocar as pessoas?”... João Victor: E ela? Ana: Bolsa-aluguel... “Mas e as pessoas que não tem condições?”... como fizeram aí... que muitos não tinham nem lugar pra í... essa menina passou dentro do carro... eu peguei infecção dentro das águas ajudan... sabe... tentando ajudar as pessoas... até hoje eu não consegui colocar minha ponte na boca... porque eu me incho demais... fora o pobrema de saúde... Janaína: ((sussurando)) Mostra a perna pra ele... Ana: Isso aqui dia oito de fevereiro era uma ferida só... hm:::... lá na prefeitura... tiraram foto e tudo... a Fabiana... o pessoal do PT tudo:::... tiraram foto disso aqui... da minha perna... eu faço tratamento até hoje... tanto é que me ligaram aí ó... lá da... do Santa Marcelina de Itaquera ( )... aí segunda-feira eu tenho que buscar meu agendamento... pr’um exame que eu to fazendo... que eu tive... eu tive um po-ble-ma na perna... eu tive um poblema nas perna eu tenho poblema de sa... to com... já tinha um pobrema de saúde que eu tinha câncer... já me trato no câncer... e agora... mais esse pobrema entendeu... que mexe com:::... a circulação também... por causa da infecção que eu peguei... João Victor: Por causa da enchente? 134

Ana: Por causa da enchente... fui internada e tudo... do dia oi... do dia vinte e seis de janeiro eu fui tra... assim... no dia vinte e três de janeiro eu fiz uma compra pro meu bar... estoquei meu bar... no dia vinte e seis fui trabalhar... sai com água aqui... no meio da canela... dava pra si ir né... aí quando voltei... éh:::... eu entrei com água aqui... na cintura... lá em cima eu já entrei com água aqui... aí o telefone tocou o celular tocou... era minha patroa... “Volta... vem... vem pro serviço que sua filha tá embaixo d’água até o pescoço com água” que era aqui... eu não foi isso que fiz... eu falei pra ela “Eu já to aqui... vo ver o que eu posso fazer”... subi lá no asfalto... aonde passa os ônibus ali da Artur Alvim... ali onde tem um ponto cego... ali eu comecei a chamar os bombeiro... foi a intenção que eu tive... chamar os bombeiro pra resolv... pra resgatar as pessoas que tavam... éh... acamada... outras pessoas... idosa... criança... aí::.... comecei a chamar os bombeiro... aí... éh.... tive... discussão né... porque não quiseram soltar... aí... quando eu consegui cinco carro de bombeiro com:::... com os barco... mas mesmo assim não re... não conseguiram re... éh:::... pegaram nem todo mundo que tava dentro da área... mas eu fiquei... mas... nesse instante que eu entrei de volta nessa água... que veio até aqui... eu não sabia o que que ia acontecer com a minha perna... porque foi nessa enchente que eu isso... isso... esse pobrema... nesse dia... eu não sei o que passou naquela água entedeu... que me deu essa infecção... éh:::... aí eu fui... chamaram polícia pra mim... porque eu comecei a falar que ia colocar as pessoa numa escola... desse o que desse... aí teve uma mu-lher que não teve paciência... de esperar com outras pessoas... “Aí... eu vô bater na escola”... foi e bateu na escola... falou com hm:::... com o segurança... o cara fez o que... chamou a polícia... aí desceu um monte de viatura... foi oito ROCAM... dez viatura... tudo em cima de mim... eu falei “Me prenda... me prenda AGORA... porque se vocês não me prender agora... eu vo invadi uma escola... eu vo coloca essas pessoa tudo dentro de uma escola... não importa aonde... mas que eu vo invadi eu vô... se cês não me levar presa A-GO-RA... cês não vão consegui outra coisa a não ser... eu invadir uma escola”... aí uma das viatura... pois essa mulher no carro... e foi lá::: no::: Romano... aonde tava o pessoal da defesa civil... que eu tentava ligar pra eles... e eles batiam o telefone... que eu tenho o telefone direto deles... eles pegaram ih... não me atendiam... essa viatura não podiam sair dessa área... mas saiu com essa mulher e foi lá... não demoro dez minutos volto... a viatura... ih:::... a defesa civil... aí eu falei com seu Jair “Se você em quarenta minuto não arrumar... uma escola pra mim... pra colocar essas pessoas... eu vô invadi... eu te do quarenta minutos... quarenta e um... eu já to invadindo”... falei pra ele... trinta e nove minutos ele chegou... com um onib... ( )... chegou com a resposta que já tava... com uma escola pra colocar as pessoas... aí eu passei a noite com esse pessoal... aí... quando foi na madrugada... minha perna ficou vermelha que nem... tá aquela fronha ali... ( )... vermelho... comecei com uma febre febre febre... né Janaína.. aí comecei a delirar... tive que ser internada... fiquei internada... uns... quase quinze dias internada... criou bolhas... umas feridas... na hora sabe... na minha perna... os médico falaram que era da infecção da água... mas não podiam dar... o laudo... estavam proibidos de dar o laudo... aí falaram que era uma:::... isipele... EU sou... EU... éh... mas eu sou enfermeira... eu sei que aquilo não era... não é daquele jeito que sai o ( ) entendeu... então quer dizer.... eu não podia ir contra eles... eh éh... quer dizer... eles não podiam também... perder também o serviço deles por causa... de gente maiores ... que a prefeitura e o estado... né... João Victor: Você estava em que hospital? Ana: Santa Marcelina do Itaim... João Victor: Ih... o que que colocaram no laudo? Isipele? Ana: A isipele... ((choro)) com pobremas vasculares... teve pessoas que conseguiram laudo de... éh:::... leptospirose... João Victor: Infecção por causa da enchente? Ana: É... não consegui... NÃO... infecção... pela enchente... ele jamais... ele jamais poderia colocar... isso dava pobrema pro hospital... muita gente aí morreu aí... sem... sem laudo nenhum aí sabe... como se não fosse nada e era... infecção... da enchente... leptospirose... 135

tanto é que... esse ano agora quando começou a chuva... teve um senhorzinho... que na enchente... a gente conseguiu levar ele... com os bombeiro... na hora que ele viu ele começou “Vanuza... vai começar de novo a encher... Vanuza vai encher...” e ele faleceu... João Victor: AGORA? Ana: Agora... quando começou essa chuva forte... ele foi enterrado já... ele faleceu... ele resistiu a outra enchente... essa não... ele faleceu... marido... oh... o tio do Renato... aí da igreja... Zélia: Mas ele não sabe do que que ele morreu? Ana: Foi do SUS-TO de ver a enchente... aquela água... “Aí vai chover”... Zélia:

{ ficou apavorado...

Ana: A hora que ele viu a chuva entendeu... ele começou passar mau... Janaína: Quando a pressão subiu né.... Ana: Uma pessoa de idade... mas de noventa anos... Janaína: Aí subiu a pressão deu... derrame cerebral... parou o cérebro... Zélia: Eu... imagino... eu por exemplo... hoje eu to sentindo... eu to bem mais alterada... eu não to tendo paciência... Ana: Tanto é que... todo mundo aqui... começou a chover... que nem nessa noite... começou a chuva... eu fiquei acorda... aí... parou a chuva quatro e meia... eu dei uma cochilada até as seis... levantei abri a porta... o menino foi buscar o pão... sentei pra assistir o jornal... eu gosto de assistir o jornal da manhã... joguei o lençol aqui... em cima de mim... e dormi sentada de novo... na hora que acabou a Ana Maria Braga... que acordei de novo... o pânico tá sendo muito grande sabe... em (termos) da chuva... o pânico tá demais entendeu... a preocupação... que que a gente vai fazer com as outras famílias... entendeu... porque ninguém que perder suas casas... que... ninguém quer perder nada... sabe... que tentou reconstruir... ninguém conseguiu recuperar... nem tudo... que perdeu... eu mesmo não... pela minha saúde entendeu... habilitada como eu to... eu não pude repor as coisas que... sabe... o que será?... primeiro minha saúde depois as coisas... e até agora eu não consegui repor nada... ((choro)) então... quando fala... tá difícil... quando fala... tá muito difícil ainda sabia... a gente fica preocupada com o que vai acontecer... com as crianças... com as pessoas... eu mesmo... eu não to preocupada CO-MI-GO... sabe... eu to preocupada com o que vai acontecer com... os demais... porque eu... já tenho a idade que eu tenho né... eu já vivi... e as pessoas que ainda tem a viver?... então... muitas crianças mesmo... vem muitas crianças mesmo... tem pobrema cardíaco... outros pobrema entendeu... por causa dessa enchente... João Victor: Oh... Ana você acha que:::... o que a prefeitura vai oferecer de novo? Ana: Eu não acho de nada de bom não... que vem aí... tá muito assim... João Victor: O que que cê acha que vem... Ana? Cê acha que vai vim... vai vim enchente pra tirar todo mundo... acabar... definir... Ana: Olha... se:::... vié enchente... vai vim... e vai resistir... mas eu acho que as proposta deles... não vai ser boa... pra gente agora... João Victor: Por que? Ana: Eles trataram muito bem o Romano... porque... o Romano éh:::... a maioria das pessoas... éh:::... a maioria das pessoas... ((crianças interagindo com a entrevistada)) pagavam:::... João Victor: Imposto... 136

Ana: Imposto... João Victor: E porque tava regularizada... Ana: Éh... como eu já perguntei pra eles... como eu já perguntei pra eles... como eu já perguntei pra eles também... como eu já perguntei pra eles também assim que:::... aí meu Deus... agora eu me (perdi de novo)... João Victor: IPTU... que que o Romano foi bem tratado... Ana: Porque que eles... que eu dei uma entrevista pra Ana Maria Braga que isso ela não passou... essa semana... ela falou aqui que eles quiseram né... Zélia: É a Globo né... Ana: A gente perguntou pra eles assim... porque... porque que eles... ((interrupção)) éh... antes de acontecer... as pessoas morarem em lugar de várzea... que nem eles falam... porque que eles antes... das pessoas fazerem suas casas... invadi aonde que... que eles acham que não era pra ser invadido... já não permitiram na época... proibiram entendeu... colocasse... o pessoal da... defesa civil... florestal... pra não deixar as pessoas... fazer suas casa... mas... deixaram não deixaram?... agora tem que tratar dignamente cada pessoa que esteja nesse local... é o meu modo de pensar... que eu falei pra eles... João Victor: E eles? Ana: Não deram... não me responderam... não me deram resposta... eu queria também... sabe o quê?... um debate... um debate... assim:::... é uma coisa que eu sempre falo... pra todos em todas as área... um debate assim... na televisão... nós... com e-les... prefeitura e estado... porque eles não fazem um debate ao vivo?... como outros países tem isso... nosso país também precisa... de um debate ao vivo... com a população... a gente precisa de um debate... com a população... Zélia: No dia que foi proposto pro Ronaldo... eles convidaram o Ronaldo... aí o Ronaldo falou que ia ser debate ao vivo... ah... tava tudo certo ( )... Ana: Foi que... o Marquinhos chamou também... eu ia também... era na Globo até... Zélia: Não... esse daí era... Ana: Era na GLOBO... era na GLOBO... Zélia: Esse daí era na.... na Recordo ou era na.... Ana: Não... era na Globo... porque o negócio foi da Globo... foi a Globo que propôs... Zélia: Não... o do Ronaldo não foi... eu tenho certeza... foi outro canal... eu tenho certeza... aí eles não aceitaram... o Ronaldo falou que só iria ao vivo... João Victor: Ana... como eu disse... eu tô fazendo um trabalho.... ih:::... teria problema... de eu voltar outro dia... a gente conversar mais...? Ana: Não... tem muita coisa pra falar... tem muita coisa pra você saber entendeu... agora assim... se entertendo com as criança... é meio assim dizer... eu perdi os focos né... mas tem como conversar sim... João Victor: Não... mas foi ótimo... em hipótese alguma... foi... foi muito bom... Ana: Sabia... tem muita coisa assim... que agente... sabe... no momento agente... se você se distrai alguma... né... você fica... João Victor: Não... tudo bem...

137

Anexo 4 Entrevistada: Isabel Dia 28 de Dezembro de 2010 João Victor: Qual qui o é seu nome? Isabel: Isabel João Victor: Isabel.... Ih::: você mora aqui no Romano… há quanto tempo? Isabel: Trinta anos... João Victor: Trinta anos... ih::... diz aí... o que que está acontecendo aqui... Isabel... tão construindo este dique... por que do dique?... Isabel: É… bom… vamô ver o que vai dar... se não vira isso aí... acho que não vai segurar a enchente... não... viu... João Victor: Mas... o dique... é pra segurar a enchente? Isabel: Assim eles dizem né… porque alaga tudo isso aqui... a água do jeito que veio... ficou ( ) tudinho... Zélia: Agora encheu? Isabel: Não… a rua sete encheu... Zélia: Não... mas e agora... com essas chuvas? Isabel: Encheu… aqui encheu tudinho isso aqui óh... tá vendo esse... da chuva que deu... eles não colocaram grade ainda aqui... óh... as criança... ficou mais ruim... não tanto... encheu toda vez... a gente dá um jeito e vai e volta né... agora... se eles não coloca grade aqui... essas criança aqui... vai ter muito acidente com essas crianças... porque eles colocaram grade só até ali... tá vendo... óh... as crianças tudinho dentro d’água... tá tudo brincando de final de semana aí... então... é um perigo... que nóis queria... já falemo pra eles... sobre isso aí... é as grade de proteção... pras crianças... porque aqui tem muita criança né... enchente tem toda vez... todo ano... dá mesmo... João Victor: Sempre teve enchente aqui? Isabel: SEMPRE teve enchente... João Victor: Mas... não que nem a desse ano? Isabel: Não… João Victor: Que ficou sessenta dias... com água... Isabel: Ano passado... nóis fico... sessenta dias fora de casa... João Victor: As enchentes antes... como que eram? Isabel: Antes a água vinha... no máximo... dois... três dias... ela já abaixava... ih iá embora... pois... agora não... agora tá ficando né... ano passado... agente ficou mais de... sessenta dias... começou novembro... nóis só voltou pra casa em março... por causa das enchente... agora... vamô ver o que vai dar né... com esse dique que fizeram aqui né... esse piscinão... se segura a água... ainda bem né... aí não vai ter mais enchente né... mas a gente só pede proteção pras criança aqui do lado... ( )... o importante é só isso... essa grade pra essas crianças... João Victor: Ih... Isabel... o que a prefeitura veio fazer aqui... quando teve a enchente? Isabel: Depois que abaixou né... João Victor: Só veio depois que abaixou? 138

Isabel: Depois que abaixou... porque... eles não entraram aqui dentro na água não... depois que abaixou... eles vieram... falando que ia tirar o povo... tanto é que tirou mesmo... eles prometeram e tirou né... nem tanto foi a prefeitura... foi a firma que... indenizou a maioria dos pessoal daqui... João Victor: Firma? Isabel: É... foi a firma aí... do... do... dessa... não foi tanto a prefeitura não... Zélia: E quanto foi essa indenização? Isabel: Óh... a maioria das casa... foi cinquenta... sessenta... setenta mil... Zélia: Mas as casas eram muito pequena... grande... era uma casa só por morador ou pra moradores? Isabel: Era muitas casa... a maioria tinha duas... três casas no quintal... Zélia: E... mesmo nessas três casas... Isabel: Aqui mesmo... na casa da comadre... a casa da comadre que era um sobradão ( )... deram cinquenta mil... e ainda foi embaixo de polícia... porque ela não queria sair... porque eles tavam dando um valor muito baixo... que era um sobrado... vinte e cinco com cômodo embaixo bem grande né... era cinco cômodo embaixo e cinco em cima... eles só deram cinquenta mil... Zélia: Éh... e agora... ela mora aonde? Isabel: Ela tá na irmã dela de aluguel... porque... com cinquenta mil num::... por aqui... todo tá segurando suas casas... pra vender por este preço né... muita gente que eles tão oferecendo este bolsa-aluguel... que eles tão dando... muitos com bolsa-aluguel... João Victor: Era de qual valor? Isabel: O bolsa-aluguel é trezentos reais... e se você vai... se você tiver duas três crianças... o povo não aluga... entendeu... depois é por isso que muita gente tá voltando... muita gente por tá indo com bolsa-aluguel... aonde tá suas casa em pé... tá voltando... estão voltando... eles não tão ficando porque... vai que (não) dá uma garantia este bolsa-aluguel né... vai ser até quando... até os apartamentos sair? se a maioria foi pra apartamento ih num::... já tão voltando porque não tem como pagar... né... o problema tá sendo isso... Zélia: Éh... mas você fez bolsa-aluguel? Isabel: Não... a minha casa é aqui... essa aqui... eles estava em negociação com nóis aqui da rua... aí depois eles falou que num:::... chamou a gente falando que não ia sair... João Victor: Por que não iriam sair? Isabel: Por enquanto eles falou que não iriam mexer... Zélia: Mas por enquanto... não deram a garantia...? Isabel: Não deram garantia... a garantia que eles deu que... depois de passar as festas em janeiro... eles iam ver o que pode fazer com esta área porque eles quer fazer um parque... Zélia: Então há a possibilidade de depois desse dique eles quererem tirar vocês? Isabel: Éh... foi isso que eles falou... depois... passando as festas... passando dezembro... entregando a obra aqui... eles via vê se... mexiam com a gente aqui... João Victor: Ih:... Isabel... o que que cê acha que vai acontecer esse ano? Você acha que vai alargar de novo... que nem alagou no ano passado? Isabel: Óh... eu tô achando que esse piscinão aí tá muito... raso pra água toda que teve... que foi água... a gente pra passar tinha que passar com bote... pra í pegar ônibus lá em cima porque a água subiu muito... 139

João Victor: Caramba... Isabel: A pior enchente que deu foi ano passado... porque eles também soltaram a represa... ele seguro seguro depois ele soltou... porque precisa soltar porque senão... ESTOURA TUDO né... Zélia: Estão fazendo a mesma coisa... agora... de novo... Isabel: Então... o que tá acontece é isto... se ele solta a água isto aqui não segura não... antes dava pra segurar um pouco por causa das casa... que né... as casa muito protegia... agora que tá aberto de ponta a ponta... mas da gente só por Deus né... Zélia: Toda essa área que eles ( )... a gente veio andando desde lá da ponta... Isabel: Era tudo casa... Zélia: Aí... a gente desistiu... porque o negócio é muito longo... era tudo casa? Isabel: Era tudo casa... de ponta a ponta... aqui era tudo casa... tanto atrás... como na frente quanto no fundo... tinha saída também pr’outro lado né... nos dois lados era casa... e eles deram a indenização muito baixa... pra cada casa que tinha aqui... João Victor: Éh... a indenização era pela casa ou pelo terreno? Isabel: Não sei... eles desde... deu o valor pela proposta da casa... com cinquenta mil você não compra uma casa... você entendeu... você não compra... de jeito nenhum... pra sair daqui... eles falou que ia melhorar essa rua asfaltar... agora quando terminou aquela ali... agora eles vieram falando que não vão mais mexer nessa rua porque o povo vai sair em janeiro... e eu não to entendendo mais nada... João Victor: Janeiro agora? Isabel: É... João Victor: Início do ano? Isabel: Disse que passando as festas já vão começar a mexer... só que não vai ser mais pela firma... vai ser a prefeitura... e a prefeitura dá um valor muito baixo... e no valor baixo a gente vai lutar muito... porque a gente não vai sair... Zélia: Ih... eu também moro na Chácara... Isabel: Entendeu... aqui... nói já tá tudo reunido... a gente não vai sair pelo valor que eles quer não... o valor baixo que eles dão... ih... é pra gente ir de aluguel... o dinheiro do aluguel é um dinheiro que você não vê mais na vida... João Victor: Sim... Isabel: Entendeu... por exemplo eu mesmo já criei meus filho tudo mesmo aqui... né... e a gente já entrou com um:::... só tá esperando o papel sair com:::.... usucampião... que a gente mora aqui mais de trinta anos né... e foi a pior enchente que a gente teve que... foi essa do ano passado... Zélia: Mas aqui você comprou? Isabel: Não... eu morava na outra rua antes... aí o CDHU tirou... aí eles fizeram troca... porque na época tava eu e meu marido desempregado... ele procurou... aí a gente procurou uma pessoa que queria... ir pro apartamento... a gente passou o apartamento... a gente passou o apartamento... e nóis fiquemo com a casa... mas eu tenho os documento do CDHU tudo... Zélia: Em que época que foi isso? porque esse processo não foi só aqui não... Isabel: Olha... foi em noventa e oito... Zélia: É isso aí.... lembra que eu falei pra você? era isso que eu tava tentando lembrar... 140

Isabel: Foi em noventa e oito... aqui... aí nóis pegei aí... a casa era só cômodo e cozinha... pequenininho... não tinha telha... era só com lona e tudo... eu falei “Ah! eu to desempregada... meu marido tá desempregado... pra gente ir pra lá também... perder o apartamento...” então... vou passar o apartamento e o CDHU fez a documentação todinha...” foi isso que fizeram... viu... e agora com documento desse eles quer tirar a gente... Zélia: Vocês precisa desses documento... Isabel: Tem... os documento do CDHU... que passou o apartamento... que passei o apartamento... ( ) escritura do apartamento e o CDHU fez o documento... a única que tem o documento aqui é:... nóis três... aqui a Dona Fátima... eu e a Maria Neta... que nóis fizemo troca na época... foi em noventa e oito... né... João Victor: Eh... Isabel... como é que tá essas reuniões... pra... evitar... o processo de remoção... agora em Janeiro? como que vocês estão se organizando? Isabel: Ah... eu... nóis estamo nos reunindo porque... a gente não quer apartamento... né... se eles indenizar no valor que dê pra gente comprar uma casa em outro canto... a gente não vai negar de sair... João Victor: Vcs querem sair? Isabel: Éh... porque eles vão tirar então... a gente... como que é que a gente... eu sou um peixe pequeno perto deles... né... mas apartamento a gente não quer não... tem casas do CDHU... num tem?... tem muitas casas do CDHU... porque eles não oferece as casa do CDHU... os apartamento tão cheio... muita gente foi pro apartamento aqui em Itaqua... o prefeito de Itaqua já tão querendo expulsar todo mundo de lá... porque... não sei que confusão que pegaram daqui e levaram pro outro lado... que a divisa daqui de Itaqua é o riozinho... é outro município... o prefeito de lá... tá em guerra com o prefeito d’aqui por causa quer tirar os pessoal de lá... porque os pessoal do Fiorelo... pior gente é do Fiorelo também... esses dia essa semana memo... tava tudo lagado... né... que minha sogra meus meninos moram tudo pra lá... né... então quer dizer... eu tiro de lá vem pra cá... eles vem pra cá... aí quando aqui... quando aqui não enche.. aí fica assim... lá tá tudo cheio... abaixou a água do rio... né... então quer dizer... o prefeito de lá quer os apartamento... pro pessoal... do Fiorelo... de Itaqua... então tá essa guerra... não tem mais... o prefeito não tem mais como... enfiar ninguém no apartamento... eles dizem que vão fazer apartamento ainda no Curuçá... que Ermelino quie num sei o que... mas ninguém quer apartamento... Zélia: Ih::... os terreno está tudo do mesmo jeito... eu tenho... a gente tá sempre verificando... Isabel: Daí... pra eu ir pra apartamento... com filho especial... num dá fiu... né... eu já saio com ele aqui... Zélia: Esse daí é seu fi...? Isabel: É... Zélia: Hm... não parece... Isabel: É... ele tem água no cérebro... então eu saio com ele um pouco e fico aqui... tá vendo... é assim... aí daqui a pouco já ponho pra dentro... deixo brincar a vontade... agora no apartamento não tem como... ele não pode ficar trancado vinte e quatro horas ali dentro... né... ih... eu pra apartamento... se quiser tirar tira... se indenizar... no valor que veio... a gente não vai se negar de sair não... entendeu... como... o pessoal da casa de cima lutou... pode ver que este pedaço de casa não saiu... entendeu... que foi a luta... porque tem um sobradão ali óh... dá hora... que a mulher falou que menos de trezentos mil reais... trezentos mil... não dá... né aí eles parou ali... eles não tirou... entendeu... agora tá aí... diz que vão começar em dezembro... janeiro agora... tirar o povo daqui... por aonde?

141

Zélia: Eu moro na Chácara... e eu to vendo isto... eu participo das reuniões e sei que a situação tá feia... eles não tão respeitando ninguém nem nada... essa obra aqui é feita sem licitação... o pessoal de Guarulhos não sabe... Isabel: Então agora me diz uma coisa... olha o que que eles estão fazendo... eles estão pondo (terra) até ali... domingo estava tudo cheio de água... por causa da chuva... que choveu... então parece que eles soltam a represa que num::... eles tem que soltar um pouco né... óh... às vezes a molecada as criançada tão tudo brincando aí... agora ceis liga a bomba lá... quando começar a funcionar a bomba a bomba via puxar um desses meninos pra dentro... tendeu... já que eles quer faze as coisas... então eles faz certo... eles coloca grade... proteção pras criança não fica... né... porque aqui tem muita criança... o pobrema tá sendo esse negócio aí... eles falaram que não vão colocar grade... falei “então pra que vocês fizeram? pra chamar morte muita morte... até o povo começar a quebrar as bomba ae... vocês vão começar aprender” né... porque tem que ter proteção... quer fazer as coisas tem proteção pras crianças... Zélia: E assim que:... tem um horário certo quando tem residência pra começar a trabalhar... os caminhões... que horas mais ou menos eles começam a trabalhar... que horas eles param? Isabel: Minha fia... aqui não tem hora não... é dia e noite... ninguém dorme mais aqui... é dia e noite caminhão passando aqui... esses dias nóis fechou aqui a rua porque não tava aguentando mais... agora arrumaram lá... aí estão passando por lá... porque... não dava... pode falar... Zélia: Eu percebi que lá embaixo... tem um monte de entulho espalhado... aqueles entulho são das casa? Inclusive... Isabel: Não. Os entulho das casa tão tudo aterrado embaixo... Zélia: Aterrado Isabel: Tá tudo a-ter-ra-do... eles só passaram a máquina... abriram aí... sabe... meteram essa valeta aí... porque os entulho mesmo... eles não aterrou nada... eles não arrastou o entulho não... tá bem enterrado os entulho aí... Zélia: Sabe que não pode né... esses entulho eles tinha que levar... pra um lugar... não podia pegar esse próprio entulho e fazer isso... Isabel: Foi com o próprio entulho a maior das casa que ele fez... tá tudo aí... eles não tiraram não... ih essas terra vermelha a maioria pra fazer esse paredão aí... foram eles que truxeram né... pra fazer esses paredão aqui... mas o resto... tá tudo aí Zélia: Uma coisa que eu tava observando é que do outro lado eles estão ampliando... Isabel: É uma lagoa do outro lado... Zélia: É. Aí nós passamos ali por cima... Aí... eles plantam a grama... agora no lugar que é grama eles tão tirando a grama e aterrando mais pra dentro da lagoa... Isabel: É... eles começou fazendo aqui desse lado... agora eu não to entendendo o porque que eles estão fazendo isso daqui... cada pedaço eles tão abrindo um buraco... tá vendo... óh... Zélia: ahn-rã Isabel: Eles vão colocar... o que eles tinham que fazer do outro lado pra proteger essa lagoa aí que vem do Tietê atrás... eles tinham que jogar aqueles... como é que fala... aquelas pedra... aqueles concreto pra poder o paredão... entendeu... mas tão colocando é grama... do outro lado... e a grama não vai segura isso... entendeu... a grama não segurar... do jeito que eles tão fazendo aí... esse serviço aí também... esse serviço aí... em primeiro lugar tá muito raso... porque a chuva que deu... encheu tudo 142

Zélia: ENCHEU AQUI!? Isabel: Encheu... Zélia: Só com a água da chuva... Isabel: O caminhão tava puxando com:::... tava puxando com caminhão... que dizer que isso enche... aí eles vem com o caminhão... enche o caminhão... joga num sei aonde... entendeu... então não tem... Zélia: E a questão desse CEU152... desses prédio... aí... quando tá tendo chuva... Isabel: Aqui embaixo eles falam que... o mesmo... que quer tirar o pessoal pra fazer condomínio... eles quer condomínio aqui embaixo... igual lá de cima... e esse esse piscinão que eles fizeram foi mais pra proteger o CEU... esse piscinão aí... porque o CEU ali... era... qualquer chuvinha alaga ali... a rua toda e você não entra... a rua sete e a rua do CEU é a primeira coisa que enche... não tem nem como você entrar nem como você sair... as duas rua... Zélia: Ih... deixa eu te perguntar... o que você sabe do dique? Do dique não... desculpa... do Parque Linear? Isabel: Oh... Eles dizem que isso... isso aqui... tem que ficar pronto até dois mil e quatorze... Zélia: Por que? Isabel: Por causa da copa... até dois mil e quatorze... eh por isso que eles qué... qué desocupa né... mas também não é o jeito que eles qué... porque... a maioria do pessoal... que quem indenizou a maioria das casa aqui... foi a firma... essa firma aqui... João Victor: Que firma Isabel? Eu não entendi isso... Isabel: Galvão153 João Victor: Mas ela fica aqui no bairro? Isabel: É a empresa daí... é a empresa que fez isso aqui... João Victor: Ah! a empresa que tá fazendo isso... Isabel: Foi... A empresa Galvão que indenizou... porque a gente viu o cheque da comadre e do pessoal né... foi o cheque da empresa Galvão... Zélia: Vocês tiraram foto... essas coisas? Isabel: Minha... minha comadre... o pessoal daqui... a maioria tudo... Zélia: Ah... ótimo... porque esses são os documentos que vocês tem como prova depois... Isabel: Foi... não foi a prefeitura que indenizou não... no entanto algumas aí... segurou a casa até o final... qui não queria sair... aí a prefeitura entrou no meio... aí falou que se a comadre não aparecesse lá... a tarde com o (marcão) compadre... e a Simone... ih ficou umas quatro família aqui ainda... aí na prefeitura ia negociar só por dez mil... ih... ( ) em vés da empresa dar os cinquenta... ia negociar lá na prefeitura com os dez mil... ficaram com medo ( )... da polícia civil... tudinho aí... aí ela foi lá e negociou... se não ia pru chão... ela não ia pegar nada... até hoje tá aí óh... sem comprar casa... e ela não acha... ( )... Zélia: Mas assim... tinha o dinheiro na conta... quando eles foram descontar o cheque? Isabel: Tinha... tinha... já pega o cheque... já joga lá na conta já... o dinheiro já cai... isso daí tinha mesmo... Zélia: Também... esse valor pra eles não é nada... 152 153

[Centro Educacional Unificado – Três Pontes] Empreitera Queiroz Galvão

143

Isabel: Não é nada... mas tinha muita casa aqui que era um cômodo... e eles deram setenta oitenta mil... pra dois cômodo... e cada casarão sobradão... eles tavam dando quarenta... cinquenta... entedeu? é que muita gente das casa grande segurou no final... né... então não tinha como... eles precisavam mesmo ficar aqui... janeiro disse... que a partir de janeiro eles vão... querer pro parque... tudo ( )... que... até dois mil e quatorze eles qué... fazer::... sei lá... o parque... condomínio... sei lá que diabos eles vão faze... Zélia: Deixa eu perguntar... é possível você pegar a cópia desse cheque... pra gente? Isabel: Eu vô falar com a minha comadre... Zélia: Éh porque assim... eu faço parte de movimento de assim... de legalização do bairro mesmo... aí... também... eu tenho documentos que eu posso.... Isabel: Tá na luta também... Zélia: Tá passando pra vocês... Isabel: Que nem a gente... aqui embaixo... Zélia: É uma troca mesmo... A gente pega... entra num poder público... a gente vai pra cima mesmo... nem sempre a gente vence porque... diante das nossas provas... as deles... são muito poderosas... Isabel: Éh... porque eu acho assim... que se foi a empresa qui qué... ih tá indenizando bem... porque a prefeitura quer diminuir... o valor da casa da gente...? porque são todas iguais... né... eu acho que são direitos iguais... porque chamaram a gente pra negociar a primeira vez... na minha vez queriam dar setenta... aí:... porque são três negociação... são três chamada que eles chamam... aí... na segunda vez já chamou... que não ia mexer nessa rua... só a partir de janeiro... João Victor: Quando foi isso?... Isabel... Isabel: Foi em dezembro... foi:::: em novembro... não... setembro... a negociação aquilo tudo... foi em setembro... [interrompição] Isabel: Aí foi a partir de setembro... a negociação... aí no fim de setembro... eles queria tudo livre... ai chamou nóis aqui... das du nóis ( )... ali do meio saiu... tá vendo? do lado da minha aqui... com aquele portão de ferro que tá quebrado em cima... que era um sobrado... ali saiu... ai ficou esse vão... ai eles falou... que não iam mexer também... de jeito nenhum... aí o pessoal foi e invadiu... João Victor: Quem invadiu era... quem... pegou bolsa-aluguel... e não fun.. Isabel: Não... a mulé que morava aí... foi pro bolsa aluguel... tá esperando... os predinho... aí ficou vaziu... outra pessoa foi e invadiu... João Victor: Você conhece quem invadiu? Isabel: Aí... eu conheço.... mas... eu não me meto não... [risos] aqui... aqui cada um tem que ficar... né... mas é assim... eles vão esvaziando... vão esvaziando... aonde tão em pé... eles vão entrando... viu que muita gente não encontre prédio... essas coisas... eles dizem que... não aceitam não... Zélia: Lá na Chácara... eles foram lá... derrubaram SEIS casa também... porque as pessoas vão... não aguenta pagar... e volta... Isabel: Volta... porque eles falam que é um valor... um valor... por exemplo... se eu ganho um salário mínimo... então o apartamento vai sair no máximo por sessenta reais... entendeu... mas fora... éh:::... sessenta reais... aí vem água luz... o condomínio... vem o gás... que não é gás da gente... entendeu... não é esse que a gente usa normal... então vai dar mais de trezentos reais... num compensa... e pagar trinta anos... entendeu... não 144

compensa... compensa comprar um barraquinho... pra eles irem indenizando a gente... pra gente comprar... e pronto... entendeu... porque eles tão lucrando... eles vem... derruba a casa da gente... quem sai no lucro são eles... que vão dar apartamento pra gente pagar... entendeu... então não compensa não... e aqui... a gente vai lutar até o fim... entendeu... Zélia: Vocês vão::... fazer... éh:::... reuniões de vila? Isabel: Vai... faz reunião de tudo quanto é canto... a Márcia às vezes... você já ouviu falar da Márcia? Zélia: Conheço a Márcia... eu conheço... Isabel: Então... a Márcia qué::::... daqui da gente... do movimento todinho... ela que mexe com tudo aqui... que ela falar... que ela fala pra gente... ela vai... ela resolve... entendeu... ela quem resolve tudo aqui... Zélia: Éh... tá na hora da gente ir pra prefeitura... de novo... não sei você chegou ir... pra prefeitura... assim:::.... nessas... em manifesto mesmo... Isabel: Já minha filha... já levei tanta bomba de gás... tanto num sei o que... Zélia: Você foi naquele lá do::... da prefeitura... lá di São Paulo... do centro... Isabel: Fomos... Zélia: Eu tava lá... Isabel: Eu... a Márcia... o pessoal mora tudinho aqui... foi... dois ônibus lotado... Zélia: Então... é o único jeito di... di... ainda combater... por isso que eles ainda estão recuando... Isabel: Agora estamos esperando eles começar... eles primeiro né... como a Márcia falou “vamos esperar passar as festa... janeiro... eles começa...” aí... nóis começa do outro lado né... porque... não tem como... Zélia: Só pra você ficar sabendo... teve... você não participou... participou... daquela reunião que teve... no Rigueti?... no dia oito.... Isabel: Não Zélia: Então... a defesa civil de Guarulhos... e a de São Paulo falou... pelo menos a de Guarulhos falou... eles estão sendo:::.... treinados... pra segunda quinzena de janeiro... que vai ter enchente mesmo... eles já deixaram claro que as represas estão cheias... Isabel: Eles vão soltar... eles já começaram a soltar... porque em Itaquá... já tá... a maioria lá já tá alagado... Zélia: Então tem que se preparar muito... Isabel: Aqui no Fioreli tá tudo cheio... você vê um campo lá do Fiorelo e na... isso porque abaixou mais... porque domingo... minha sogra... foi... domingo eu levei ela... que ela tava aqui... não ia deixar no meio da rua né... tava tudo alagado... ali qualquer chuvinha... que eles fizeram o paredão pro lado de cá... o prefeito do lado de lá não fez nada... entendeu... então quer dizer... a água quando vem vai tudo mais... protege pro outro lado... porque eles fizeram mais isso daqui... protegendo o CEU... entendeu... o CEU e os predinho... porque... nos predinho no ano passado molho muita gente... qui:::... até no primeiro andar subiu água... os pessoal de baixou... mudou tudo... mudou vendeu tá fechado... até hoje... alguns... predinhos... ali embaixo... né... João Victor: É de quando os predinho... Isabel? é de quando os predinho... quando construíram? Isabel: Os predinho... o CEU tem três anos... tem uns quatro pra cinco anos... por aí... que era um campo também... era um campo... uma lagoa ali... a mesma coisa daqui... isso 145

aqui... só tem embaixo... aqui... a maioria aqui era tudo com pneu... de aterro... entedeu... a lagoa... os caminhão di di... pneu descia... aí... aí ia cobrindo... jogando... Zélia: E esses caminhão de pneu... você sabe de que empresa que era? Isabel: Não... eles descia tudo sem praca. Zélia: Olha só... mas de qualquer forma... não foram os moradores que aterrou com pneu... Isabel: N-Ã-O.... Zélia: A empresa mesmo que... Isabel: A empresa mesmo que vinha... e jogava na lagoa... entedeu? ih eles descia aqui... e nóis cansava... deles taca... jogava... aonde num tinha mais espaço... eles jogava nos canto... que tava vaziou... queimava... aí vinha aquela fumaça aí... a gente falava... pegava o coiso... mas quando a gente via... não tinha praca nos caminhão... eles descia aqui tudo... tiravam a praca do caminhão... então... não tinha como a gente... então a maioria... é tudo aterro de pneu... e você que a enchente... essas coisa... vai aguentar... os pneu... conforme ele vai ficando podre... sei lá... vai cedendo né... daqui nóis sai... tá tudo rachado... cedido... que a maioria aqui tudo... os prédinho... ali... o CEU mesmo... o CEU ali mesmo... cada parede que entra ali... é cedida... os piso é tudo assim óh... entendeu... porque... num foi... foi o CEU da Marta... foi o do Kassab né... então... olha o que ele fez ali... tão tudo torto... os ralinho... são disso aqui... Zélia: E quando tá chovendo agora... tá enchendo lá? Isabel: Oh CEU?... primeiro a encher. Zélia: Mesmo com essa obra? Isabel: Mesmo com essa obra... não tem jeito... e se vai ter enchente... mesmo... agora em janeiro... vai encher tudo de novo... Zélia: É de se esperar... porque essa obra não vai acabar... Isabel: É... porque... eu moro aqui há muitos anos... então... a gente sabe... com é enchente... como não é... entendeu... quando ela vem alta... quando ela não vem... quanto tempo... que abaixa... vai embora... né... agora que aqui memo... encheu esses dia... mas logo memo... abaixou... porque eu acho que vieram buscar com caminhão... os caminhão tava tudo lá em cima puxando... Zélia: Vocês tiram foto... quando acontece isso? Isabel: Não... a gente tá até costumado... Zélia: Mas é bom vocês tirar foto... porque é o único jeito de denunciar... Isabel: A Márcia... domingo quando os caminhão tava parado ali... ela tirou um monte de foto... dos caminhão... puxando a água né... do piscinão... porque... ela falou... que... que a primeira... primeira quinzena de janeiro... essas casas aí... vai ser as primeira... Zélia: Aqui? a da Márcia vai sair também? Isabel: Por isso que ela tá lutando... ela falou que não... Zélia: A casa da Márcia... a gente vai lá... você vai ver... puta casarão Isabel: A casa da Márcia é... Zélia: Ih nem é tanto pelo casarão... né... mas a pessoa trabalhou... a pessoa... deu... deixou de se divertir... tantas coisas deixou de fazer... de se alimentar direito... de se divertir... pra construir... que não é barato... Isabel: Gente... eu pesquei o olho.... 146

Zélia: Uhn? [interrupção] Isabel: Ôh Tê... to dando uma entrevista aqui... dessas águas... desse dique aí... dessas coisas aí... que quando chove... é uma maravilha... Tê: Verdade... Jesus... Isabel: Ele tá perguntando o que que eu acho do dique... Tê: Só depois da enchente que nóis pode dar uma resposta... Isabel: Éh... aqui... qualquer chuvinha... é tá alagando é tudo... Tê: Eu só posso dar uma resposta depois da enchente... porque... né... assim... seco... tá uma maravilha... Isabel: Deixa chover... Tê: Deixa chover... aí... retorna pra nóis vê... pra nóis fala... Isabel: Vai busca o Luquinha? Tê: Eu vô buscar o Lucas... cheguei mais cedo hoje... Isabel: Eu tava perguntando dele... Tê: Ele tá na babá... ele fica lá até a hora de eu chegar do serviço... Isabel: Vamo ver o que vai dar nessa... Tê: Éh... Isabel: Ih vamo vê se agora em janeiro... se eles vão mexer com a gente mesmo... como eles tavam falando... Tê: Se mexer... tem que pagar o que vale... eu só saio da minha casa... pra minha casa... Isabel: Né... como eu tava falando aqui... pra ele... que muitos... que tinham... um cômodo e cozinha... foram indenizados melhor do que... os que tinham um casarão... é ou não é? Tê: Exato... Isabel: Era... setenta... oitenta mil... e quem era... que... a casa maior... Tê: Na minha casa memo... mudar por quatorze mil... não tinha nem como fio... ali óh... Isabel: Eles ofereceram quatorze mil... na dela... (...) Zélia: É sobrado? Tê: É sobrado... em cima e embaixo... Isabel: Mas isso foi a prefeitura... né... não foi ah::: empresa Galvão... porque quem tava... eu tava falando pra ela... o cheque... mesmo... era da empresa Galvão... né... não tinha nada haver com a prefeitura... Tê: Não vô mesmo... ih... se entra água... passo tudo lá cima... ih... eu fico com os meus filho... (...) Isabel: Chega

147

Anexo 5 Reportagem de Fabiana Uchinaka, publica no UOL Notícias, em 18 de Dezembro de 2009. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/17/ult5772u6678.jhtm, acessado em 24 de Agosto 2011. Comportas fechadas na barragem da Penha para proteger a marginal ajudaram a alagar a zona leste de SP As seis comportas da barragem da Penha, na zona leste de São Paulo, foram completamente fechadas às 2h50 do dia 8 de dezembro, dia em que a cidade enfrentou fortes temporais e viu diversos pontos alagarem como há muito tempo não se via. Somente dois dias depois, às 17h20, todas as comportas foram abertas. Os dados, fornecidos pelo engenheiro responsável pela barragem, João Sérgio, indicam que houve uma clara escolha da empresa responsável: alagar os bairros pobres da zona leste para evitar o alagamento das marginais e do Cebolão, conjunto de obras que fica no encontro dos rios Tietê e Pinheiros. "Mesmo fechando as comportas, encheu o [córrego] Aricanduva. Se eu não tivesse fechado aqui, teria alagado as marginais e toda São Paulo", justificou Sérgio, que explicou que a decisão vem da direção da Emae (Empresa Metropolitana de Águas e Energia), apesar de a barragem pertencer ao DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica). Ele acrescentou ainda que no dia 9 duas comportas foram abertas às 10h10 e mais duas às 21h.

Barragem da Penha, na zona leste, vista com todas as comportas abertas

O engenheiro argumenta que cada barragem (são quatro em São Paulo: Móvel, Penha, Mogi das Cruzes, Ponte Nova) é responsável apenas por administrar o fluxo de água do local e não sabe o que acontece nos outros pontos, porque não há comunicação. Mas ele acredita que as comportas foram abertas nas barragens de cima, em Mogi, e isso influenciou no alagamento da região da zona leste. 148

"Não recebo informações de outras barragens. As de cima são administradas pela Sabesp e as de baixo pela Emae. Eu só respondo por essa barragem e às ordens da Emae", disse. "Também acho estranho o nível da água não baixar aqui e não sei por que está indo para os bairros, mas não precisa ser especialista para ver que está assoreado [o rio]". Ele trabalha há quase 15 anos no local e conta que desde o governo de Orestes Quércia (1987-1991) não são colocadas dragas para desassorear o rio na parte que fica acima da barragem. "O governo tentou colocar de novo, mas a própria Secretaria de Meio Ambiente não deixou, porque não tinha bota-fora [local para despejar a terra retirada]", afirmou. O desassoreamento do rio daria mais velocidade ao escoamento da água e aumentaria a área de reserva de água perto da barragem, o que impediria o transbordamento para os bairros adjacentes. Para Ronaldo Delfino de Souza, coordenador do Movimento de Urbanização e Legalização do Pantanal, o governo fez uma opção. "Ou alagava a marginal ou matava as pessoas no Pantanal. E matou", disse. "E ainda bota a culpa nas moradias. O Estado só se preocupa com o escoamento de mercadorias, só pensa em rodovia. Vida humana não importa". Moradores e deputados estaduais fizeram nesta quarta-feira (17) uma inspeção no local para saber se a abertura das comportas tinha relação com o alagamento no Jardim Romano e no Jardim Pantanal, que já dura nove dias. O movimento, formado por moradores de diversos bairros localizado na várzea do rio Tietê, acusa o governo do Estado e a prefeitura de manterem a água represada além do necessário como forma de obrigar as famílias a deixarem a região, onde será construído o Parque Linear da Várzea do Rio Tietê. Há anos, os moradores resistem em sair dali, porque dizem que o governo não apresenta um projeto habitacional concreto e apenas oferece uma bolsa-aluguel. "Não era para as máquinas estarem trabalhando aqui? Cadê? Não tem um funcionário do governo aqui", reclamou Souza, apontando para as ilhas que aparecem no meio do rio, logo acima da barragem da Penha. As dragas são vistas somente na parte de baixo da construção.

O assoreamento do rio Tietê é claramente percebido na parte de cima da barragem

149

"Os córregos do Pantanal já estavam muito cheios três dias antes da chuva. Como não abriram a barragem sabendo que ia chover?", perguntou Souza, indignado. "O que a gente viu aqui é que não houve possibilidade de escoamento, porque a água ultrapassou o nível das comportas e não tinha velocidade para descer, não tinha gravidade", concluiu. Segundo os registros da barragem, no dia 8 a água ficou acima do nível das comportas por 5 a 6 horas. Sérgio explicou que o nível de queda do rio Tietê é de apenas 4% e por isso a vazão demora cerca de 72 horas desde a barragem de Mogi das Cruzes até o centro da cidade -- isso sem chuva. "É demorado, sempre foi", disse. "Imagina o que uma hora de comportas fechadas não faz de estrago lá no Pantanal", falou Souza, diante dos dados. "Se fecha aqui, a água para de novo, perde velocidade e vai demorar mais 72 horas para descer", afirmou.

Garoto utiliza cavalo para passar pelas águas represadas do Jardim Romano, na zona leste

Os deputados estaduais que acompanharam a inspeção concordam com a teoria dos moradores. "Foi feita uma escolha e a corda estourou do lado mais fraco", afirmou o deputado estadual Raul Marcelo (PSOL). "É uma questão grave. A falta de comunicação e de um gerenciamento unificado são prova de uma falta de governança e de um planejamento na administração das barragens, o que levou, em grande parte, ao fato do bairro do Pantanal ter sido alagado". "Há uma estranha coincidência de que no momento da desocupação há um alagamento desses e ninguém consegue escoar a água. Não havia uma inundação dessas há 15 anos e o nível das águas está subindo mesmo sem chuva. É muito estranho e as autoridades têm que explicar", completou o deputado estadual Adriano Diogo (PT). Eles farão um relatório sobre a inspeção e pretendem denunciar o caso, junto com a situação da estação de tratamento de esgoto, aos Ministérios Públicos Estadual e Federal. 150

Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Sanemaneto e Energia, responsável pela Emae, informou que a escolha foi técnica e foram aplicadas as regras de abertura e fechamento das comportas estabelecidas pela Emae desde o início de 2007, quando a empresa assumiu o comando das operações da barragem da Penha.

151

Anexo 6

152

153

154

155

156

Anexo 6 Fonte: http://www.fflch.usp.br/dlcv/nurc/normas_para_transcricao.htm , visitado em 02 de Janeiro de 2011 Normas para Transcrição OCORRÊNCIAS Incompreensão de palavras ou segmentos Hipótese do que se ouviu Truncamento (havendo homografia, usa-se acento indicativo da tônica e/ou timbre) Entoação enfática Prolongamento de vogal e consoante (como s, r)

SINAIS () (hipótese)

/

maiúscula :: podendo aumentar para :::: ou mais

EXEMPLIFICAÇÃO* do nível de renda...( ) nível de renda nominal... (estou) meio preocupado (com o gravador) e comé/ e reinicia porque as pessoas reTÊM moeda ao emprestarem os... éh::: ...o dinheiro

Silabação

-

por motivo tran-sa-ção

Interrogação

?

eo Banco... Central... certo?

...

são três motivos... ou três razões... que fazem com que se retenha moeda... existe uma... retenção

Qualquer pausa

Comentários descritivos do transcritor Comentários que quebram a seqüência temática da exposição; desvio temático Superposição, simultaneidade de vozes Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto. Não no seu início, por exemplo.

Citações literais ou leituras de textos, durante a gravação

((minúsculas))

-- --

((tossiu)) ... a demanda de moeda -vamos dar essa notação -demanda de moeda por motivo

{ ligando as linhas

A. na { casa da sua irmã B. sexta-feira? A. fizeram { lá... B. cozinharam lá?

(...)

(...) nós vimos que existem...

""

Pedro Lima... ah escreve na ocasião... "O cinema falado em língua estrangeira não precisa de nenhuma baRREIra entre nós"...

* Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP No. 338 EF e 331 D2.

Observações: 157

1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc.) 2. Fáticos: ah, éh, eh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? você está brava?) 3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados. 4. Números: por extenso. 5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa). 6. Não se anota o cadenciamento da frase. 7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa). 8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto-e-vírgula, ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa, conforme referido na Introdução.

158

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.