A Terra do Nunca de Barrie: uma análise histórica de Peter Pan

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS COORDENADORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA INFANTOJUVENIL

A Terra do Nunca de Barrie Uma análise histórica de Peter Pan

Aluno: Gabriel Machado Rodrigues da Silva Disciplina: História da Literatura Infantojuvenil (2013) Professor: Sonia Monnerat

Até que ponto se pode culpar o Capitão Gancho pela tática usada no ataque só um historiador poderá decidir (BARRIE, 2012a, p.171)

Peter Pan, Wendy, Sininho, Capitão Gancho são personagens memoráveis que fazem parte do imaginário de crianças por todo o planeta, de uma fama talvez só comparável aos contos de fadas. Porém, para a grande maioria, sua história só é conhecida por meio de peças, filmes animados ou não e/ou livros com versões adulteradas. O original, Peter e Wendy, raramente é lido, como se pode ver pela surpresa da atriz Denise Fraga descrita na quarta capa da edição da Cosac Naify: ela só conhecia o desenho e acabou se encantando tanto pelo protagonista como pelo próprio autor, levada a ler devido a uma atividade escolar do filho. Mas que importância pode ter o escritor, J. M. Barrie, para o deleite provocado pela história? Bem-cotado nos círculos literários até a década de 1970, o autor começou a ser muito criticado pela ideia da recusa de crescer (marcada na emblemática frase “Dois anos é o começo do fim”) e foi perdendo o destaque. Hoje, com certeza seu nome nunca foi ouvido por muitos fãs do intrépido menino, sendo substituído pelo de Walt Disney – que lançou o filme de Peter em 1953 –, como bem mostra Vera Lucia White em sua dissertação sobre a grande influência do longa-metragem americano nas traduções e adaptações de Peter Pan. Contudo, para se entender a verdadeira obra, é necessário entender o escritor por trás e o contexto da época, seguindo o “novo historicismo”, que abrange estudos que integram a análise dos textos com a do contexto sócio-histórico (COLOMER, 2003, p. 39), e a crítica histórica, relativista e descritiva (COMPAGNON, 2010, p. 196-7). Maria Cristina Soares de Gouvêa ainda afirma que “O estudo das obras literárias sem o recurso a outras fontes documentais produz muitas vezes investigações em que a criança e a obra pairam num vazio, desligadas do contexto histórico que sustentou a produção dos textos analisados” (2007, p. 34). Dessa forma, é necessário interrogar-se primeiro sobre as condições de produção e recepção da obra, que informam sua estrutura textual, especialmente quando se trata de cânones como Peter Pan, que também envolvem a mediação da instituição escolar e mudanças históricas nas edições (Idem, p. 22, 25). De acordo com essa linha de pensamento, a história literária se dá a partir do momento em que se sai, mesmo que pouco, do texto para ir ao encontro da história (LANSON apud COMPAGNON, 2010, p. 199), vide a epígrafe deste trabalho pinçada do próprio clássico – ainda que ela seja

jocosa. Porém, é preciso tomar cuidado para não se cair no determinismo e numa leitura redutiva, puramente documental, que acabe destruindo a condição literária das obras (CHARTIER apud GOUVÊA, 2007, p. 35). A edição a ser abordada aqui, Peter e Wendy, da Cosac Naify, possui um posfácio primoroso, escrito por Jack Zipes em 2004, que em muito ajuda a compreender J. M. Barrie e sua obra e será fonte recorrente de informações e análises deste trabalho. Zipes é professor da Universidade de Minnesota e especialista em contos de fadas, em sua transformação e papel sociopolítico no processo civilizatório. De acordo com ele, os contos de fadas “têm uma função social significativa, não só pela compensação, mas pela revelação: os mundos projetados pelos melhores contos de fadas revelam os abismos entre a verdade e a falsidade em nossa sociedade atual”.1 Seus argumentos são baseados na teoria crítica da Escola de Frankfurt e nas mais recentes teorias da evolução cultural. Portanto, vê-se que o autor tem uma bagagem intelectual que pode contribuir para este estudo. James Matthew Barrie, ou J. M. Barrie, nasceu em Kirriemuir, na Escócia, em 9 de maio de 1860, sendo o nono filho e o terceiro homem. O pai, David Barriquelo, era tecelão e a mãe, Margaret Ogilvy, filha de um pedreiro. Embora a família fosse grande e o dinheiro, escasso, os Barrie conservavam uma independência altiva e acreditavam profundamente no poder da religião e da educação. Os pais tinham “grandes ambições” para os filhos: todo o dinheiro ganho destinava-se à educação dos meninos e a uma boa formação cristã para as meninas – já aí se percebe a divisão entre os sexos presente à época. O pai trabalhava muito e mal era visto pelos filhos e a mãe os controlava bastante, para que frequentassem a igreja todo domingo, lessem a Bíblia e se saíssem bem na escola. As figuras paterna (símbolo de sustento e respeito) e materna (domesticidade e controle) viriam a influenciar depois, de certa forma, os personagens Sr. e Sra. Darling. Quando Barrie tinha 6 anos, seu irmão David morreu em um acidente de patinação, aos 14 anos, e essa figura do menino eterno teria mais tarde grande importância. David fora o filho preferido, preparado para ser pastor protestante, e sua mãe caiu em depressão. Barrie tentou conseguir sua afeição vestindo-se com as roupas do irmão falecido e quis buscar sucesso na vida para alegrar a mãe. Mesmo não sendo tão estudioso, era um leitor ávido e compartilhava histórias com ela: “Eu passava 1

Tradução própria de trecho disponível em: www.chi.ac.uk/news/leading-fairy-tale-experts-talk-brothersgrimm-university. Acesso: 05/03/2014.

bastante tempo sentado na cama dela, tentando fazê-la esquecer-se dele, em minha maneira tortuosa de interpretar o papel de médico” (BARRIE, 2012a, p. 262). A relação obsessiva que surgiu entre os dois marcaria a vida de Barrie e, depois da morte da mãe, em 1896, ele publicou uma biografia em sua memória: Margaret Ogilvy. Aos 13 anos, Barrie saiu de sua casa no vilarejo. Na escola, interessou-se por teatro e devorou obras de autores de aventura como Julio Verne e James Fenimore Cooper. Estudou na Dumfries Academy e na Universidade de Edimburgo e esperava que os pais o apoiassem na carreira de escritor. Tornou-se crítico freelance de teatro e, depois, articulista no Nottinghamshire Journal, onde pôde escrever também contos, resenhas e peça de teatro. Mudou-se para Londres em 1885, de bolsos vazios, como escritor independente. Em 1888, ganhou fama com o livro Auld Licht Idylls, um retrato da vida rural escocesa no início do século XIX, e em 1890 já era visto como um dos jovens literatos mais promissores da Inglaterra. Era amigo de escritores famosos como Arthur Conan Doyle e P.G. Wodehouse e também correspondia-se com figuras como Thomas Hardy, Robert Louis Stevenson e H. G. Wells, entre outros, fora diversos contatos proeminentes. Seu terceiro romance, The Little Minister (1891), se tornou um imenso sucesso, falando sobre as revoltas dos tecelões na década de 1840. Posteriormente, virou peça, fazendo-o mais conhecido na Inglaterra e nos Estados unidos, e foi filmado por três vezes. Depois disso, Barrie passou a se dedicar ao teatro, destacando-se por seu estilo de narração “manipulador”, que, por meio de charme e senso de humor, cai nas graças do leitor/espectador. Zipes afirma que, por meio de suas obras, “O tempo todo Barrie revisa a história da vida dele, quase escrevendo o que seria o „conto de fada da minha vida‟, tal como Hans Christian Andersen fez em sua autobiografia [The Fairy Tale of My Life]” (p. 266). Barrie melhorou sua situação financeira e se casou com a atriz Mary Ansell em 1894. Os dois se mudaram para uma residência perto de Kensington Gardens, um dos parques públicos reais no centro de Londres, onde costumava passear com seu sãobernardo, Porthos – exemplo da relação de Barrie com a ficção, no caso, com Os três mosqueteiros. O cachorro seria a inspiração para Nana, a cadela dos Darling. Em 1897, encontrou-se casualmente nesses jardins com a babá Mary Hodgson e os três meninos da família Llewelyn Davies: George, Jack e Peter, respectivamente com 4, 3 e 1 ano. Barrie começou a fazer truques de mágica para eles e a inventar histórias com fadas, piratas, ilhas mágicas e personagens estranhos. Só depois que conheceu a mãe das

crianças, Sylvia (filha do romancista George du Maurier), que ainda teria dois filhos, Michael e Nicholas. Barrie ficou obcecado pela família, impulsivo, intrometido, despertando o desagrado do pai dos garotos, Arthur. O roteirista Andrew Birkin (apud WHITE, 2011, p. 22) afirma que os Llewelyn Davies seriam a inspiração para os Darling e que Barrie chega a usar de um humor perverso para se referir a sua intrusão na casa alheia: “Nunca houve uma família mais simples e feliz, até a chegada de Peter Pan” (BARRIE, 2012a, p. 12). É espantoso ver que o filme Em busca da Terra do Nunca (2004) deturpa a história: nele, Barrie conhece Sylvia logo no primeiro encontro em Kensington, e Arthur já está morto, propiciando um relacionamento mais próximo, mas que também não chega a ser amoroso. Em meio a um casamento fracassado, que viria a terminar em divórcio em 1909, foi que ocorreu um dos períodos mais férteis da vida de Barrie. Em 1900, escreveu Tommy and Grizel, que já prenunciava Peter Pan: “Gostava tanto de ser menino que era incapaz de crescer. [...] tão apegado à meninice que os anos não o transformaram num homem” (Idem, p. 265). A seguir, veio o livro The Boy Castaways of Blacklake Island Being a Record of the Terrible Adventures of the Brothers Davies in the Summer of 1901, criado no ano do título, que é considerado o mais antigo esboço de Peter Pan. Trata-se de uma obra cheia de fotos com as brincadeiras dos irmãos e já menciona piratas, um cachorro, uma ilha e outros elementos do mundo fantástico posterior. Barrie também teve influência de Bluebell in Fairyland (a que assistiu com os pequenos Davies), uma das primeiras peças comerciais encenadas especificamente para crianças, em 1902, que falava de uma pequena florista que vai parar na terra das fadas, onde vive incríveis aventuras. No mesmo ano, lançou The Little White Bird, romance adulto narrado em primeira pessoa, sobre a ligação entre um rico solteiro e um garotinho, David (talvez homenagem ao irmão morto). Levando o menino para passear em Kensington Gardens, o narrador lhe conta sobre Peter Pan, que podia ser encontrado nos jardins, à noite. É a primeira aparição de seu célebre personagem em alguns capítulos, que seriam reunidos depois em Peter Pan in Kensington Gardens (1906). Como se vê, os jardins sempre tiveram papel importante para Barrie, que escreveu nessa última obra: “Vocês precisam entender que será difícil acompanhar as aventuras de Peter Pan, a menos que estejam

familiarizados com o Kensington Gardens” (BARRIE, 2012b, p. 34).2 Além disso, percebe-se que, originalmente, a história de Peter Pan não visava às crianças. Aliás, o crítico Marcus Crouch tem a polêmica opinião de que não existem livros para crianças; isso seria algo inventado por motivos comerciais. “O autor honesto [...] escreve o que está dentro de si e precisa sair. Às vezes o que ele escreve terá ressonância nas inclinações e interesses dos jovens, outras vezes não” (apud HUNT, 2010, p. 74). Prosseguindo em seu período fértil de criação, Barrie produziu ainda sete peças, entre elas, a primeira versão de Peter Pan, em 1904. Ele tentou atrair a atenção do grande ator inglês Beerbohm Tree e lhe faz uma leitura particular. Decepcionado e quase chocado com a peça de caráter de conto de fada, algo até então não produzido pelo escritor, Tree escreveu para Charles Frohman, o futuro produtor da peça, amigo de Barrie, dizendo que o dramaturgo havia enlouquecido. Porém, o produtor ficou entusiasmado ao ler o roteiro. A reação de Tree exemplifica a dificuldade de legitimação da literatura infantil, quando escrever uma obra popular representa muitas vezes fazer uma concessão (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p. 15). Zipes completa: “Com medo de que o público – a maioria adultos – não reagisse muito bem à história fantástica, instruiu os membros da orquestra que depusessem seus instrumentos e batessem palmas quando Peter, pedindo ajuda para salvar a vida de Sininho, gritava „Batam palmas se vocês acreditam em fadas‟” (p. 271). No entanto, o que aconteceu foi que nesse momento a plateia prorrompeu em aplausos, levando Nina Boucicault, a atriz que fazia Peter, chorar. A temporada foi bem-sucedida, durando 4 meses, a peça saiu em turnê e teve o mesmo resultado em Nova York. Ela foi encenada todo Natal em Londres, mas o texto final revisado só foi publicado mesmo em 1928 e, um ano depois, Barrie cedeu os direitos sobre a obra relacionada a Peter ao Hospital para Crianças Doentes de Great Ormond Street. Em 1907, Arthur Llewelyn Davies morreu de câncer e, em 1910, foi a vez de a esposa falecer. Assim, em 1911, segundo o testamento da família, Barrie se tornou o tutor dos meninos e, de modo significativo, foi nesse ano que enfim adaptou sua peça e escreveu o romance Peter e Wendy, obra analisada neste trabalho. A demora de sete anos entre a estreia da peça e o lançamento do livro fez com que muitas pessoas aproveitassem a “brecha” e realizassem inúmeras versões e adaptações com base nos

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À exceção de um comparativo, todas as referências à edição de Peter Pan da Zahar dirão respeito ou à apresentação de Flávia Lins e Silva ou às notas de rodapé de Thiago Lins, pois o texto-base da história utilizado neste trabalho é da edição da Cosac.

elementos do mundo de Barrie. Mesmo com o nascimento do livro, as iniciativas comerciais se intensificaram, pois em 1911 Peter Pan já era um fenômeno cultural universalmente aclamado, impossível de ser controlado: a obra se tornara maior que o autor (ROSE apud WHITE, 2011, p. 17-8). Essa longa duração para o surgimento do livro, assim como as diversas versões da peça, mostra como Barrie nunca parou de introduzir alterações em função das performances realizadas através dos anos. E é interessante perceber que, no livro, ainda se mantiveram algumas características teatrais, como o narrador que é quase um personagem e a clássica cena, citada anteriormente, em que Peter pede às crianças que batam palmas. No processo produtivo de Barrie, destaca-se a gestação de sentido a partir da experiência do espectador-leitor, numa espécie de história da leitura. O texto foi apropriado por determinadas práticas de leitura, enfatizando-se que a produção autoral envolve um diálogo com o leitor, uma interação mediada; só assim ela adquire significação (GOUVÊA, 2007, p. 25-6). Voltando à história da obra, em 1 o de maio de 1912, a estátua de Peter Pan tocando a flauta de Pã “surgiu” em Kensington Gardens. Encomendada por Barrie ao escultor Sir George Frampton, tinha por modelo uma fotografia de 1906 de Michael Llewelyn Davies vestido como Peter Pan e foi instalada no meio da noite. Depois, o escritor a anunciou no jornal como uma surpresa e um presente para as crianças. Em 1913, Barrie recebeu o título de baronete, passando a ser um Sir (em 1922 ainda viria a ganhar a Ordem ao Mérito), mas no mesmo ano morreu seu irmão mais velho. Em 1915, faleceram George, na Primeira Guerra, e Frohman, num naufrágio – Barrie o homenageou com o livro Charles Frohman: A Tribute. Em 1921, foi a vez de Michael, num afogamento, talvez um suicídio. Sem se conformar com a morte do último, só escreveu mais uma peça, em 1936, sem sucesso, e em 19 de junho de 1937 faleceu de pneumonia. Ainda houve a morte trágica de Peter, que se tornara editor e se jogou na frente de um trem do metrô em 1960. Diz-se que ele se tornou muito infeliz ao longo da vida, por nunca conseguir se desassociar do personagem que recebeu seu nome. Vê-se, então, a série de desgraças fatais que acomete a família, tornada imortal pelas mãos de Barrie. É interessante, ainda, destacar que o autor de Peter Pan escreveu mais duas peças de fantasia, ambas com características que podem remeter a sua própria vida. Dear Brutus (1917) descreve um grupo de pessoas que entram numa floresta mágica, onde são transformados nas pessoas que eles poderiam ter se tornado se tivessem feito

escolhas diferentes. Já Mary Rose (1920) é a história de uma mãe que procura seu filho perdido e, por fim, se torna um fantasma. Em anotações de Barrie de 1921, há opções de título para uma nova peça sobre Peter, como “The Man Who Couldn‟t Grow Up” e “The Old Age of Peter Pan”, indicando o crescimento do menino, porém, na única sequência autorizada existente, isso não acontece. Peter Pan Escarlate, lançado internacionalmente em 5 de outubro de 2006, é um livro de Geraldine McCaughrean, permitido pelo Great Ormond Street Hospital após um concurso mundial. A obra continua a história dos Meninos Perdidos, da família Darling e Peter Pan em 1926, nos tempos do reino de George V, quando os sonhos começam a vazar da Terra do Nunca e é necessário empreender uma nova aventura. Apesar de Barrie ter escrito um roteiro para filme mudo e um conto curto (The Blot of Peter Pan) em 1926, além de modificar a peça até 1928, o romance de 1911 é considerado “a obra definitiva”, a mais complicada e sofisticada de todas as versões de Peter Pan. Em vez de mostrar Peter como uma simples figura escapista, ele é exibido como um rebelde que rejeita conscientemente o papel de adulto na sociedade convencional porque ela (os adultos) o traiu. Porém, muitos críticos ainda veem Barrie como infantilizante e manipulador de crianças e censuram elementos presentes, como crueldade, sexualidade, morte, ação danosa do tempo, perda da inocência. Embora possa dirigir-se em parte aos leitores jovens, o livro é um testamento a Sylvia Llewelyn Davies, escrito antes de tudo para adultos. Aliás, não é à toa que o nome de Wendy acompanha o de Peter no título: é a figura de mãe/esposa ligada a Sylvia, o amor da vida de Barrie, a mulher morta, que supostamente queria casar-se com ele. Mas também remete à ausência da própria mãe, à perda da infância, que influencia toda a sua obra (BARRIE, 2012a, p. 276). Além disso, há diversas referências e homenagens nos personagens da obra. Barrie batizou Peter Pan em homenagem ao terceiro filho dos Davies e ao mítico deus grego dos rebanhos, Pã, conhecido por seu comportamento desordeiro e por suas farras, representante da natureza, do paganismo e do mundo amoral, contrário à sociedade cristã convencional. Especialmente durante a era eduardiana (1901-1910), o culto a Pã foi um fenômeno, presente em obras de Rudyard Kipling (1906), Frances Hodgson Burnett (1911) e Robert Louis Stevenson, amigo de Barrie que, em 1881, escreveu: “para os jovens e para as mentes abertas e adequadas, Pã não está morto” (BARRIE, 2012b, p. 36).

Já a inspiração para o nome de Wendy veio da filha de um amigo próximo dele, que chamava Barrie de fwendy em vez de “friend” (amigo), diz o autor em seu livro de ensaios The Greenwood Hat, de 1930 (Idem, p. 31). Os nomes George, Michael e John também vieram dos Llewelyn Davies e a neta de Wendy, Margaret, é uma homenagem de Barrie à própria mãe. Fora o fato curioso de que Gancho leva o mesmo nome do autor. Zipes comenta que “as alusões cômicas cifradas, os apartes, os gracejos e as intrusões [...] são numerosos demais para que uma criança possa perceber tudo” (p. 276). Não que o adulto possa entender tudo, mas o narrador conta a história para adultos, assumindo a missão de explicar as crianças para eles, pois tem um conhecimento íntimo delas que adora ostentar, como, por exemplo, o mapa da mente e as Terras do Nunca existentes. Zipes completa que a peça pode ser usufruída na mesma medida por crianças e adultos, pois é cheia de ação que dispensa explicações. Já o romance “é difícil de ser apreciado por leitores jovens e às vezes sentencioso; é explicativo e serve como um comentário à peça” (p. 278), algo que poderia ocorrer com facilidade na época, já que todos teriam ido primeiro ao teatro e o livro funcionaria como complemento. Segundo Zipes, o livro é um “anticonto de fada”, pois explica o mistério em situações nas quais os contos apenas expõem a mágica; é um “livro de autoajuda” para auxiliar os adultos que tivessem perdido o contato com sua imaginação. A linha entre o narrador e os personagens é marcada como uma divisão, até oposição, justamente por essa dicotomia adulto/criança. Ele é “escorregadio”, inseguro, alternando entre criador, autor e, inclusive, criança. Mas isso não significa que Barrie não tenha talento, pois é claro o domínio que ele tem sobre todos os elementos da narrativa. Em seu livro The Case of Peter Pan: the Impossibility of Children’s Fiction [O caso de Peter Pan: a impossibilidade da ficção infantil], a crítica Jacqueline Rose diz que Barrie tentou mesclar duas vertentes da ficção infantil (a história de aventuras e a história doméstica e de fadas), ainda que sem alcançar um resultado definitivo, o que, para ela, mostra a impossibilidade de definir as crianças e a infância e a dificuldade de se estabelecer um clássico – aspectos que mencionaremos adiante. Quanto às vertentes, Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1987, p. 20-1) afirmam que, a partir do século XIX, definem-se as principais “linhas de ação” das obras infantis – histórias fantásticas, histórias de aventuras ou apresentação do cotidiano da criança – e que Peter Pan se encaixaria na primeira categoria, ao lado de Contos (1833), de Hans

Cristian Andersen, Alice no País das Maravilhas (1863), de Lewis Carroll, e Pinóquio (1883), de Carlo Collodi. É interessante notar que, de todas as obras pioneiras citadas pelas duas autoras em seu livro, apenas Peter Pan é do século XX (1911). Jacqueline Rose chega ao ponto de dizer que a literatura infantil como um todo envolve um tratamento abusivo dos personagens infantis, em narrativas com representações da infância destinadas a satisfazer desejos, impulsos e carências do autor, racionalizando o comportamento das crianças. Na verdade, essa literatura não seria para proveito ou deleite infantil (BARRIE, 2012a, p. 258). É verdade que, por vezes, adultos usam a forma do gênero para sublimar ou fugir de seus problemas, como parece ser o caso de Barrie, mas os livros para crianças também podem ser “sede da subversão”, em que os escritores “conspirem” com os leitores contra o resto do mundo adulto. Ainda que possam compartilhar com grande parte da cultura popular “a aparência destrutiva que disfarça um profundo conservadorismo” (HUNT, 2010, p. 290). A rebeldia de Peter Pan seria no fundo justamente o contrário? De qualquer forma, há casos em que as histórias caem nas graças das crianças mesmo não sendo o objetivo primordial, como já reconheceu a Disney com relação a, pelo menos, seus primeiros filmes de animação: eles são sobre preocupações adultas ou do final da adolescência, com exceção, veja só, de sua versão de Peter Pan (Idem, ibidem). Porém, o que Rose não entende é que um livro se torna popular entre várias pessoas porque o público implícito nele é tanto adulto quanto infantil (Idem, p. 79). Como já dizia C. S. Lewis (2009, p. 743), “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim. As boas permanecem”. Quando se fala em literatura infantil, é necessário lembrar que há uma grande ruptura entre a possibilidade de leitura dos livros históricos e dos contemporâneos. As condições de leitura se modificam muito com o passar do tempo e isso influi na recepção do leitor, que não tem muita dimensão do contexto e ainda está adquirindo competência leitora, podendo ter um distanciamento com relação a referenciais linguísticos, temporais, culturais, sociais... (COLOMER, 2003, p. 35) E ao se considerar a história dos livros para crianças, o tipo de infância para o qual se destinavam – por eles definido – varia um tanto (HUNT, 2010, p. 94). Para Compagnon (2010, p. 199-200), a obra de arte é eterna e histórica: pelo ponto de vista sincrônico e universalista, ela é julgada como contemporânea do leitor atual; pelo ponto de vista diacrônico e relativista, dentro de uma cronologia. Porém, o autor também cita Jauss (p. 211), para quem a literatura nunca será um “presente

intemporal”, como prega a ideia universalista, pois toda obra tem as marcas do tempo, apesar de também elementos simultâneos. Vê-se, assim, que a discussão sobre públicoalvo inadequado é bem mais complexa, pois envolve diferenças de visão e a significação da obra baseia-se na relação dialógica existente em cada época entre ela e o público. “Essa primeira apreensão da obra pode em seguida desenvolver-se e enriquecer-se de geração em geração, e vai constituir através da história uma „cadeia de recepções‟ que decidirá sobre a importância histórica da obra e indicará sua posição na hierarquia estética” (JAUSS apud COMPAGNON, 2010, p. 208). Apesar de tudo, os chamados clássicos permanecem porque não esgotam sua capacidade de comunicação (COLOMER, 2003, p. 35). O filólogo Jan van Coillie (apud WHITE, 2011, p. 108) destaca que, hoje em dia, as crianças são “seres globalizados”, em contato com outras culturas o tempo todo e que, por isso, o “estrangeiro” é um conceito extremamente relativo. Assim, nem sempre toda informação cultural é incompreensível, ainda mais para leitores com a mente aberta, ainda muita receptiva. Embora, para muitos, pareça apenas um escrito superficial, Peter e Wendy é uma obra complexa que admite várias interpretações: pode ser encarada como reflexo da ansiedade masculina ao final do século XIX, quando o processo de modernização trazia grandes mudanças para a família e o local de trabalho; como desejo nostálgico de retornar ao passado idílico de uma meninice despreocupada; ou como fruto da relação edipiana mal resolvida representada pelo papel de mãe em Wendy (BARRIE, 2012a, p. 280). Pode-se fazer a analogia entre Peter e Barrie, ambos baixinhos (o autor tinha cerca de 1,55 metro), cheios de caprichos, generosos e cruéis, com dificuldade de amar e serem amados, assexuados – como prova o fato de o personagem ser geralmente interpretado por mulheres. Devido a seu jeito exótico, Barrie é muitas vezes acusado de pedofilia e homossexualidade enrustida, como costuma acontecer a escritores reclusos que se aproximam de crianças (vide Lewis Carroll). Porém, de acordo com Andrew Birkin (apud WHITE, 2011, p. 23), o contato com as crianças era porque o autor apenas queria se purificar, retomar aspectos da vida inadulterados – palavra que evoca a corrupção da vida adulta – e retornar à infância. O romance seria sua luta para conceber as relações familiares que lhe faltaram na juventude: os pais precisariam ser reeducados para conceder a liberdade de alçar voo. A passagem pela Terra do Nunca seria um “terreno de treinamento” para todas as crianças, para que no futuro pudessem ser bons pais. Peter as leva para viverem

“experiências que lhes permitem amar, compreender a confiança e ser amadas num ambiente repleto de conflitos, mas de imensa riqueza” (BARRIE, 2012a, p. 281). Ou seja, ao mesmo tempo que Peter se opõe à estrutura tradicional do lar, querendo se manter à parte e abominando a ideia de mãe, pai, filhos, ele segue o padrão familiar, que, no século XVIII, passa a ser considerado moderno e ideal, elevado a modelo a ser imitado, onde o beneficiário maior seria a criança (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p. 17). E, em sua obra, Barrie se vale do preceito do filósofo Horácio de instruir e divertir ao mesmo tempo, passando “lições” para os pais. Porém, não se pode ver o livro apenas pelo lado dos conflitos do autor. Ele também contém a recusa do indivíduo de integrar-se à sociedade inglesa “normal”; Peter é um ícone cultural que defende com vigor seu estilo de vida, assemelhando-se a grandes personagens da literatura infantojuvenil criados mais ou menos na mesma época: o protagonista de As aventuras de Huckleberry Finn (1884), de Mark Twain; e Dorothy, de O mágico de Oz (1900), de L. Frank Baum. Enquanto o primeiro prefere “ir para o inferno” a ser civilizado, a segunda, no sexto livro da série, se recusa a voltar para o Kansas e permanece em Oz pelo resto da vida. Os três rejeitam a sociedade para viver em seus domínios. Zipes cita o filósofo Herbert Marcuse e sua obra Eros e civilização para afirmar que a Terra do Nunca tem um valor utópico: é a “„grande recusa‟ romântica de participar numa sociedade determinada a „instrumentalizar a imaginação‟” (BARRIE, 2012a, p. 259-260, 281). Peter se opõe a que a criança tenha introjetados os discursos-padrão da sociedade, que desejam produzir um adulto capaz de autocontrolar suas emoções e submetem-nas a uma racionalidade própria do indivíduo civilizado (GOUVÊA, 2007, p. 29). Enquanto o núcleo familiar dos Darling simboliza a ordem e a estabilidade, a vivência dos garotos na Terra do Nunca mostra o desejo inato, mas reprimido, pelo desvio social, livre das regras vitorianas (MACDOUGALL apud WHITE, 2011, p. 36). É interessante notar que, após a morte de Gancho, Peter usa as roupas e a piteira de dois charutos do capitão e, com o dedo indicador curvado, simula um gancho. Ou seja, o menino imita o comportamento de um adulto, do mesmo modo que todas as crianças fazem durante seu crescimento, apesar de antes tanto censurar coisas do tipo. Ainda assim, Peter mantém o firme propósito de não querer crescer. Barrie lhe dá razão ao criar figuras masculinas adultas patéticas, que o tempo todo são ridicularizadas, desvalorizadas, como será abordado adiante.

Contudo, existe certa dubiedade na interpretação de Peter e Wendy, pois, ao mesmo tempo que tudo pode ser uma sátira, pode também ser reflexo do contexto da época e da ideologia de Barrie, inclusive levando-se em conta que, já no início do século XIX, o romance passou a ser expressão literária clássica da burguesia proeminente (LYONS, 1999, p. 166), ou seja, corroborava seus valores, às vezes adotando posturas pedagógicas para exibir sua utilidade, seu pragmatismo, o que poderia render bons dividendos. Por isso, vê-se a desconfiança de teóricos e críticos – como a já citada Jacqueline Rose – em relação à literatura infantil, por ser mais suscetível à escolarização e ao mercado. Obras como a de Barrie desmitificam a literatura, pois mostram que sua difundida autonomia não passa de pretensão e esforço, já que a arte tem um projeto para a realidade, dependente dela. Por vezes, esse projeto parece se chocar com as vivências infantis, deixando transparecer o adulto por trás da criança, mas em geral o que se nota em Barrie é um fortalecendo o outro, numa relação dialética (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p. 18-20). É importante frisar que Barrie, como todo autor, não reproduz o real, mas o reconstrói com base nos signos, trazendo para a escrita sua compreensão da realidade. (GOUVÊA, 2007, p. 23). Para destacar essa ideia, Maria Cristina Soares de Gouvêa cita Antonio Candido, que afirmou: “A fantasia às vezes precisa modificar a ordem do mundo para torná-la mais expressiva” (p. 23). E é isso que o pequeno escritor faz. Assim como se pode analisar uma obra por meio de seu autor e de seu contexto, também pode-se analisar um contexto por meio de uma obra. Através da fonte literária, tem-se acesso às representações sobre os modelos de ação social e conhecimento do mundo então legitimados; padrões de comportamento e conduta (Idem, p. 29). Para Roger Chartier (apud GOUVÊA, 2007, p. 24), ela permite o acesso à expressividade e à sensibilidade da época, à memória e ao patrimônio, às ferramentas mentais, aos objetos, práticas, sonhos de outros períodos. E, se a abordagem for feita “de trás para frente”, ou seja, do presente para o passado, também é possível ter a perspectiva de como o livro era visto pelas gerações de então e descobrir que obras hoje tão consumíveis como Peter e Wendy podem ter tido, quando lançadas, um efeito desfamiliarizante, de ruptura (COMPAGNON, 2010, p. 205, 210-1). No livro de Barrie, o homem/pai é mostrado como o indivíduo que deve ser respeitado, honrado, tomando as decisões. O Sr. Darling é “um desses homens profundos, que entendem tudo de títulos e ações. Claro que ninguém entende essas

coisas direito, mas ele dava a impressão de entender” (p. 8-9). Ou seja, muito dele é apenas aparência, visto que se incomoda com o que os outros falam e diz ter uma reputação a zelar no “Mundo dos Negócios” – com caixa-alta mesmo, mostrando a pomposidade e a importância que dá ao trabalho. Ele é muito bobo, parecendo uma criança, mas, segundo o narrador, tem um senso de justiça muito nobre e uma coragem de leão. Numa atitude quixotesca, enfia-se na casinha da cadela Nana, arrependido, e anda por todo lado dentro dela. Mas acaba gostando da admiração, da atenção pública, e a ação perde todo o sentido. A mãe cuida do caderno de contas quase com alegria. Os Darling fizeram contas para saber se poderiam ter Wendy, John e Michael: calculam possíveis doenças (caxumba, rubéola, sarampo, coqueluche) e usam o padrão monetário pré-decimal, vigente até 1971. O casal é adulto, logo “cheio de juízo” e não acredita em Peter Pan. Eles têm uma babá só porque os vizinhos têm, mas, sem serem ricos, só podem ter uma cadela terra-nova (raça dócil e de grande porte), que foi encontrada nos Kensington Garndes – mais uma vez a presença dos jardins. O Sr. Darling acha que os vizinhos zombam disso e que Nana não tem muita admiração por ele, o que é ridículo. No jardim de infância, ela espera com outras babás num porão, mostrando a segregação social da época. Além disso, a cadela só acredita nos remédios dos “velhos tempos”, como o chá de folha de ruibarbo, um estimulante digestivo para crianças desde o século XIII, despreza “essas conversas de agora”, sobre germes (p. 11), um assunto novo naquele contexto. Em Peter e Wendy, vê-se o ideal do início do século XX da mulher como dona de casa leal: uma pessoa muito respeitosa, que põe os filhos para dormir, ajeita suas cobertas, cerze roupas, costura bolsos, faz faxina, lembra aos outros de trocar roupas de baixo e tomar remédio. Diante das propostas de Peter para que Wendy fizesse tudo isso a ele e aos Meninos Perdidos, o narrador diz “Como ela poderia resistir?” e ela exclama “Claro que é fascinante!”. No imaginário coletivo feminino dessa época, a grande fantasia era ser dona de casa, ser mãe. Além disso, para Wendy, essa situação também implicava que Peter seria o pai, logo constituiria uma espécie de relacionamento amoroso. Por isso, quando quer chatear Wendy, Peter age de forma patética, não tomando remédio e não se cobrindo. E ele ainda pensa: “Wendy amarrada e levada para o navio [...] Logo ela, que gostava das coisas bem arrumadinhas” (p. 183). Como se isso fosse o mais importante.

A Sra. Darling é retratada como a mãe “perfeita”, carinhosa, paciente, prendada, aumentando ainda mais a distância entre a condição de Wendy e a orfandade de Peter. Ela conta histórias para os filhos, tendo como papel o de guardiã dos bons costumes, da tradição e do ritual familiar (LYONS, 1999, p. 168). Wendy também é desejada na Terra do Nunca por ser uma boa contadora de histórias como contos de fadas. De qualquer forma, os afazeres domésticos eram a prioridade e, se uma mulher ocupava seu tempo lendo, isso significava “negligenciar” as responsabilidades femininas (Idem, p. 174). A mulher é exibida como frágil, uma dama que deve ser protegida, além de dependente; é notória a exclamação constante da mãe de Bicudo: “Ah, como eu queria um talão de cheques só meu!” (p. 76). A mulher não pode admitir queixas contra o marido e sempre responde “seu pai é quem sabe”. Além disso, ninguém pode sentar na cadeira do pai à mesa de jantar e os filhos devem esperá-lo à porta. Para que o casal seja “de respeito”, não pode dançar e, para que a família fique completa, é necessário um bebê, como diz Wendy: “Preciso de alguém num berço [...] Um berço é uma coisa que dá tanta paz a uma casa...” (p. 145). Para Peter, o assunto “mãe” é proibido e ele o considera perda de tempo. Tudo fruto do rancor que o garoto nutre porque, na volta da Terra do Nunca, a janela de seu quarto estava fechada e havia outro menino em sua cama: a mãe não o esperou. Esse trauma é reflexo da rejeição sofrida por Barrie, que não era o favorito; uma ferida que nunca cicatriza. Assim, o tema materno perpassa todo o livro: todos falam/pensam nisso a toda hora, lamentando a ausência. A Ave do Nunca, inclusive, é mostrada como figura materna, que se derrete ao ver que Peter “tinha todos os dentes de leite” (p. 135). Segundo a visão do livro, toda mãe diria que cada filho deve ter quarto próprio e não deixaria os filhos comerem algo grande e gorduroso, controlando a hora de comer e de dormir, que seria sempre fixa. Após a fuga dos filhos, a zelosa Sra. Darling não sai mais de casa e deixa tudo arrumado à espera deles. Nesse ponto, é interessante destacar a diferença gritante entre a tradução das edições da Cosac e da Zahar – aliás, há divergências notáveis por todo o livro, evidenciando originais bem diferentes ou uma adaptação mais livre. Na primeira versão, de Sergio Flaksman, Wendy comenta: “Pode ser que a mamãe esteja achando que nós três morremos” (BARRIE, 2012a, p. 158). Já na segunda, de Julia Romeu, a frase é a seguinte: “Talvez a mamãe já esteja de meio-luto!” Segundo a nota de rodapé (BARRIE, 2012b, p. 150), as mulheres vitorianas cumpriam “estágios” de luto: o luto completo (de trajes completamente negros) durava um ano e um dia; o segundo luto

(joias e elementos decorativos permitidos), nove meses; e meio-luto (roupas cinza e violeta permitidas), três a seis meses. Ou seja, a Sra. Darling estaria esperando pelos filhos havia pelo menos dois anos e um dia! Realmente uma mãe exemplar. Dando prosseguimento às figuras masculinas patéticas, que também tem suas referências de época, aparece o Capitão Gancho, que se preocupa muito em ser “adequado”, independentemente da situação, até mesmo na própria morte, em uma ironia com a pomposidade inglesa. O pirata estudou em Eton, na mesma escola de quatro dos irmãos Llewelyn Davies, e veste-se de modo extravagante e antiquado, como o rei Carlos II, que governou a Inglaterra de 1660 a 1685. Por crescer, ao contrário de Peter, ele é perseguido pelo tempo, pelo tic-tac do crocodilo, e entristece-se porque as crianças não gostam dele, mostrando-se um vilão infantilizado, sem mãe. Para o acadêmico David Park Williams, Peter Pan é uma espécie de paródia ou sátira a Moby Dick (1851), de Herman Melville, pois a perseguição de Ahab à baleia se transforma na do crocodilo a Gancho e os dois capitães carregam os mesmos adjetivos: “sinistro”, “sombrio”, “inescrutável” (BARRIE, 2012b, p. 174). Além disso, ao criar os piratas, Barrie inspirou-se em personagens do amigo Stevenson, de A ilha do tesouro (1883), como Capitão Flint e seu contramestre Long John Silver (que na edição da Cosac também é chamado de Barbacoa, devido a seu apelido Barbecue). Assim como Silver foi “o único homem que Flint temeu”, o Capitão Gancho é descrito como “o único homem de quem Barbacoa tinha medo” (p. 63). Mais para o fim do livro, seu ex-serviçal Smee passa a vagar pelo mundo contando a história de que era o único homem no mundo que metia medo no Capitão Gancho – também Silver viajava depois de não mais servir Flint. Barrie também menciona piratas reais, como Barbanegra (c. 1680-1718) e Henry Morgan (1635-1688), evidenciando o estudo que fez do tema. E, por fim, nomeia o pirata Cecco em homenagem ao filho do seu amigo escritor Maurice Hewlett (BARRIE, 2012b, p. 78, 85-6, 173). Já ao falar de crianças, Barrie o faz em nome de algumas específicas – os Llewelyn Davies e as de sua época –, como costumam fazer adultos que leem, ou escrevem, textos infantis (HUNT, 2010, p. 80). Para o autor, elas são “egoistinhas”, não têm coração: esnobam os adultos e, só quando querem, os procuram para ter atenção. Quando uma novidade se oferece, estão prontas a abandonar os de que mais gostam, aproveitam-se de as mães estarem dispostas a sacrifícios. São as únicas que acham que os filhos não podem viver sem elas. O tempo todo Barrie trabalha com generalizações, mas Luciano Faria Filho e Rogério Fernandes afirmam:

Não existe, a bem dizer, uma infância. Existem várias experiências humanas que modelam a criança dentro de limites cronológicos determinados. A esses períodos que desenham a pessoa da criança ou a criança como pessoa sobrepõem-se as alteridades dos tempos sociais que delimitam o território onde cada um se faz. (2007, p. 8)

É claro que os estereótipos são criados para construir a história e a sátira e combinam com o narrador, que parece até um psicólogo profissional especializado em crianças e família, sabendo tudo de domínios imaginários e a necessidade de manter viva a fantasia. Ele fala da criança como outro, a ser desvendado ou colonizado, para quem a lógica é um caos de ideias (GOUVÊA, 2007, p. 30, 32). Uma marca de época é que, no século XIX, o personagem criança era desejoso de morrer, para ir até Deus, como um alívio para seus pais (HUNT, 2010, p. 291) e, assim, Peter pensa que morrer será “uma aventura e tanto” (p. 132). Essa frase foi dita por George quando Barrie lhe falou que Peter guiava as crianças que morriam até a Terra do Nunca, mostrando mais uma vez a importância dos Llewelyn Davies. Além da morte, destaca-se a violência no imaginário infantil masculino, com uma Terra do Nunca repleta de assassinatos, enforcamentos, lutas sangrentas, em que todos vivem sedentos de sangue (Meninos Perdidos, índios, piratas, “bestas sanguinárias”), matando ursos, lambuzando-se de sangue, fazendo escalpos, dando chibatadas. Ao lado da temática da família, Barrie também faz referência, ainda que em menor grau, à questão da educação, tanto nos estudos do Capitão Gancho quanto no latim do Sr. Darling, e um trecho desponta nesse sentido: “Nenhum deles conseguia voar, apesar de Michael saber ler e escrever palavras de várias sílabas” (p. 50). Ou seja, no mundo da magia, conhecimentos são inúteis. A escola aparecia como suporte para que as crianças enfrentassem o mundo de forma madura (LAJOLO; ZILBERMAN, 1987, p. 17) e Barrie parece se opor à seriedade, formalidade e falta de ludicidade do ensino, que formaria pessoas mecânicas indo e voltando do escritório – medo de Peter Pan. Zipes faz uma observação muito interessante sobre o assunto: Ironicamente, Peter, que declara na peça e no livro „Não quero ir para a escola e aprender essas coisas de cerimônia. [...] Não quero virar adulto‟, é levado para os colégios numa edição escolar autorizada do romance em 1915, e é mais conhecido por meio de versões adulteradas. [...] O espírito imaginativo que Barrie criou para se opor à institucionalização tornou-se amplamente institucionalizado e comercializado ao longo de todo o século XX. (p. 282)

Apesar dos pesares, é importante resgatar cada detalhe que faz dessa história o documento de uma época, não uma narrativa superficial. E indícios é o que não falta. A roupa de Peter, por exemplo, feita de folhas secas, lembra um passatempo das donas de casa da Inglaterra vitoriana (1837-1901), que faziam esqueletos de folhas. O título do capítulo 3 de Peter e Wendy, “Vamos embora! Vamos embora!” (em inglês, “Come away, come away!”), faz eco a um verso do poema “The Stolen Child” (1889), de Yeats, que retrata crianças de mãos dadas com fadas chegando a uma ilha longe dos problemas mundanos (BARRIE, 2012b, p. 55). Os peles-vermelhas chamavam Peter de Grande Pai Branco, possivelmente uma brincadeira de Peter com a alcunha da rainha Vitória (1819-1901), “A grande mãe branca” (Idem, p. 137). O chicote usado pelos piratas é o “gato de nove rabos”, que foi utilizado como instrumento de punição pela Marinha e Exército britânicos até 1881 (Idem, p. 185). E, em uma ironia de Barrie, Levemente-Estragado casa com uma moça da nobreza e vira lorde, mas, segundo os protocolos da aristocracia britânica, isso só acontecia ao contrário, ou seja, a mulher se tornava lady. Esses são apenas alguns dos inúmeros resquícios contextuais. Segundo o crítico Harvey Darton, citado por Peter Hunt (apud WHITE, 2011, p. 37), Peter Pan foi uma das obras que mais influenciaram o espírito dos livros infantis e a visão dos adultos sobre eles, ficando atrás apenas dos volumes da Alice e dos contos de fadas de Andersen. E Zipes completa que “jamais conseguiremos descobrir o significado „essencial‟ do ícone de Peter Pan” (p. 260). Provavelmente não, mas podemos ter um aperitivo dele no diálogo entre Dona Benta e Emília que fecha a versão de Lobato para Peter Pan: – [...] Peter Pan é eterno, mas só existe num momento da vida de cada criatura. – Em que momento? – No momento em que batemos palmas quando alguém nos pergunta se existem fadas. – E que momento é esse? – É o momento em que somos do tamanhinho dele. Mas depois a idade vem e nos faz crescer... e Peter Pan, então, nunca mais nos procura. (1973, p. 105)

Bibliografia

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