A tese fregeana da indefinibilidade da verdade

May 24, 2017 | Autor: Pedro Muniz | Categoria: Gottlob Frege, Verdade
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE CURSO DE FILOSOFIA

Pedro Henrique Gomes Muniz

A TESE FREGEANA DA INDEFINIBILIDADE DA VERDADE

FORTALEZA – 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE CURSO DE FILOSOFIA

Pedro Henrique Gomes Muniz

A TESE FREGEANA DA INDEFINIBILIDADE DA VERDADE

Monografia apresentada ao curso de filosofia do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Dirk Greimann. Co-orientador: Prof. Dr. André Leclerc.

Fortaleza – 2010 2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE CURSO DE FILOSOFIA

Pedro Henrique Gomes Muniz

A TESE FREGEANA DA INDEFINIBILIDADE DA VERDADE

Monografia aprovada em __/__/____ para obtenção do grau de Bacharel em Filosofia.

Banca examinadora: _________________________________ Prof. Dr. André Leclerc (Co-orientador) _________________________________ Prof. Dr. Cícero Antônio Cavalcante Barroso _________________________________ Prof. Dr. José Maria Arruda 3

Àqueles sem os quais nada disso seria verdade, Francisco Luiz Muniz e Josefa Gomes da Silva.

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AGRADECIMENTOS

A semente deste trabalho foi plantada durante a cadeira de Tópico Especial em Filosofia da Linguagem, ministrada pelo prof. Dirk Greimann no segundo semestre letivo de 2009. Foi durante esse período que decidi começar a estudar Frege de forma mais profunda e sistemática. Tomei essa decisão por pensar que Frege é o ponto de partida ideal para qualquer estudante interessado em filosofia analítica em geral. Tenho sorte de ter contado com a valiosa ajuda do prof. Greimann desde o momento em que primeiro lhe falei das minhas intenções. Sua gentileza, seu apoio, sua competência enquanto professor e filósofo, tudo o que ele me deixou é grande demais para colocar aqui. Portanto, é a ele que, naturalmente, agradeço em primeiro lugar. Agradeço também àqueles que aceitaram participar da banca examinadora e dedicaram seu tempo a analisar o que eu ousei escrever sobre Frege. Ao prof. André Leclerc, por sua preciosa atenção e orientação; e também aos professores Cícero Barroso e José Maria Arruda, pela dedicação, que não foi de forma alguma menos importante. Tive a felicidade de ter contado com o apoio direto e indireto de várias outras pessoas muito importantes para a filosofia no nosso curso e no nosso país. Expresso meu agradecimento a todos os meus mestres, sem exceção, e em especial: ao prof. Manfredo Oliveira, com toda sua experiência e constante bom-humor; a profª. Maria A. de Paiva Montenegro, sempre tão elegante e perspicaz; ao prof. Guido Imaguire, cuja importância eu descobri não cedo demais; ao prof. Konrad Utz, que é um profissional excelente, e alguém muito caro para mim; e ao prof. Thomas Grundmann, cujo apoio eu recebi de longe, mas que sempre vou levar comigo. Muito obrigado também aos amigos Alex Lima, Mateus Uchôa, Letícia Alves, Roberta Félix, Thomas Hein... De fato, todos esses, e todos aqueles cuja amizade, da mesma forma, eu não sou capaz de definir satisfatoriamente. Meu agradecimento também ao Immanuel R. Lima, pela paciência e carinho. A todos vocês, queridos amigos, agradeço profundamente pelo incentivo direto e indireto.

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É provável que o conteúdo da palavra “verdadeiro” seja único e indefinível. Gottlob Frege, O Pensamento. 6

RESUMO

Em seu artigo O Pensamento, de 1918, Gottlob Frege defende a tese de que verdade é algo tão fundamental que seria impossível defini-la. Pode-se dizer que a idéia por trás de tal tese é que qualquer tentativa de definição de verdade já teria que pressupor um conhecimento pelo menos implícito daquilo que estamos tentando definir explicitamente, ou seja, a verdade. Qualquer tentativa de definição dessa natureza está fadada ao fracasso, pois fica caracterizada por uma definição circular. Verdade é de fato algo tão básico que está pressuposto sempre que afirmamos qualquer coisa, pois ela está intimamente ligada com o ato da asserção. A verdade está implícita em qualquer asserção. Neste trabalho buscar-se-á apresentar a tese de Frege da indefinibilidade da verdade tal como o filósofo alemão a apresenta em seu texto O Pensamento e também no fragmento póstumo Logic. Tentaremos elucidar o contexto da concepção de verdade no sistema fregeano, bem como sua concepção de verdade em geral. Buscaremos também explicitar os argumentos utilizados por Frege, bem como suas motivações ao formular tal teoria, além do peso que ela tem na obra de Frege como um todo. Serão ainda discutidas algumas das críticas mais importantes a esta tese fregeana. Analisaremos as reconstruções e comentários da tese feitas por Scott Soames, Michael Dummett, Hans Sluga e Wolfgang Künne.

Palavras-chave: Frege, Verdade, Indefinibilidade.

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ABSTRACT

In his paper The Thought, of 1918, Gottlob Frege defends the thesis that truth is something so fundamental that it would be impossible to define it. It may be said that the idea behind such thesis is that any attempt to define truth would need to presuppose at least an implicit knowledge of what we are trying to define explicitly, that is, of truth. Any attempt of a definition of that nature is doomed to be a failure, for it is characterized to be a circular definition. Indeed, truth is something so basic that it is presupposed whenever we affirm anything, for it is closely linked with the act of assertion. Truth is implicit in any assertion. In this work we will seek to present Frege’s indefinability thesis the way this German philosopher presented it in his paper The Thought and also in the posthumous fragment Logic. We will pursue an elucidation of the context, in the fregean system, of the conception of truth. We will also seek to make explicit the arguments used by Frege, as well as his motivations in formulating such a theory. Moreover, we will analyze the weight that it bears throughout Frege’s work as a whole. Some of the most important critics to this fregean thesis will also be discussed. We will analyze the reconstructions of the thesis and comments on it made by Scott Soames, Michael Dummett, Hans Sluga and Wolfgang Künne.

Keywords: Frege, Truth, Indefinability.

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SUMÁRIO CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10 CAPÍTULO 2. O CONTEXTO DA VERDADE NO SISTEMA FREGEANO ................... 15 2.1. O PROJETO GERAL DE FREGE ......................................................................................................... 15 2.1.1. O PROJETO DO LOGICISMO .......................................................................................................... 19

CAPÍTULO 3. A CONCEPÇÃO FREGEANA DE VERDADE E A TESE DA INDEFINIBILIDADE.............................................................................................................. 27 3.1. A CONCEPÇÃO FREGEANA DE VERDADE EM GERAL E O CONCEITO DE VERDADE EM QUESTÃO .... 27 3.1.2. Valores de verdade são objetos ................................................................................................... 29 3.1.3. A análise do conteúdo da palavra “verdadeiro” e a concepção fregeana de verdade ................ 32 3.1.4. Pensamentos, os portadores primários de verdade e falsidade e o papel do predicado de verdade .................................................................................................................................................. 34 3.2. O QUE SIGNIFICA “DEFINIR”? ........................................................................................................ 38 3.2.1. Definição e Elucidação ................................................................................................................. 41 3.3. O PENSAMENTO E A CRÍTICA À TEORIA DA VERDADE COMO CORRESPONDÊNCIA ........................ 45 3.4. O ARGUMENTO DA INDEFINIBILIDADE .......................................................................................... 49

CAPÍTULO 4. AS RECONSTRUÇÕES DA TESE NA LITERATURA ............................. 52 4.1. SCOTT SOAMES: UMA FORMA DE CETICISMO COM RELAÇÃO A VERDADE? .................................. 52 4.2. MICHAEL DUMMETT: PODE A VERDADE SER DEFINIDA? ............................................................... 56 4.3. HANS SLUGA: UMA VISÃO HISTÓRICA........................................................................................... 60 4.4. WOLFGANG KÜNNE: FREGE COMO UM NIILISTA ........................................................................... 65

CAPÍTULO 5. CONCLUSÃO ................................................................................................. 71 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 72

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CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO

The word ‘true’ specifies the goal. Gottlob Frege, Logic.

O principal objetivo do presente trabalho é esclarecer e discutir o conteúdo da tese de Gottlob Frege (1848-1925) de que o conceito de verdade é indefinível. Buscarse-á, assim, reconstruir o argumento de que Frege se utiliza em O Pensamento e, em seguida, avaliar cada passo deste. Também buscaremos material de apoio e referência em outras obras de Frege, principalmente, no que diz respeito a tese da indefinibilidade, no fragmento póstumo intitulado Logic. Além disso, serão discutidas algumas das mais relevantes reconstruções e comentários desta tese na literatura. Por tal razão, o resultado final provavelmente servirá também como um pequeno compêndio de algumas das principais referências bibliográficas sobre este tópico, que poderá ser de interesse para alguém que deseje iniciar uma pesquisa no assunto. Vejamos como nosso trabalho está estruturado. No segundo capítulo, que segue esta introdução, buscaremos contextualizar a concepção de Frege de verdade em seu sistema como um todo. Dessa forma, falaremos, embora brevemente, sobre o projeto geral de Frege, a saber, o projeto logicista. Frege desejava encontrar um fundamento seguro para a aritmética e definir rigorosamente suas noções, conceitos e leis primordiais. Isso ele acreditava ser possível atingir utilizando-se apenas da lógica. O projeto logicista é por isso, como divisado por Frege, um projeto de redução da aritmética à lógica. Tentaremos explicar como esse projeto deveria proceder para ser bem sucedido, analisando como deve proceder, em geral, o trabalho de redução de uma ciência à outra. Veremos ainda que o projeto logicista tem uma parte negativa, que consiste na crítica a teses adversárias a ele, e de uma parte positiva, consistindo de um intenso trabalho por parte de Frege de análise da linguagem a fim de construir um tipo de lingua characterica, similar àquela divisada por Leibniz, com a qual a fundamentação da aritmética deveria ser feita. Ao analisarmos a parte negativa do projeto logicista fregeano, salientaremos principalmente a relevância da crítica de Frege ao psicologismo. Para aqueles que defendem o psicologismo, a psicologia deve ser 10

entendida como a base da lógica, já que a lógica é em geral entendida como a ciência que trata das leis do pensamento correto. Assim, para os psicologistas, enquanto ciência que trata de todos os tipos de leis do pensamento, a psicologia deve ser entendida como a base para a lógica, sendo esta uma parte subordinada daquela. Ao falarmos sobre a parte positiva do projeto de Frege, enfatizaremos como as investigações sobre a verdade representam uma parte essencial na formulação de sua Begriffsschrift, sendo a própria verdade uma noção central para a lógica fregeana. De fato, muitas vezes Frege fala sobre a verdade, tal como ele a entendia, ser o objetivo de todas as ciências. Ele nos diz, além disso, que a palavra “verdadeiro” indica o principal objeto da lógica. No terceiro capítulo analisaremos em maiores detalhes a concepção fregeana de verdade em geral, para então reconstruirmos sua tese da indefinibilidade da verdade. Dessa forma, levantamos a questão de se a verdade é de fato uma propriedade para Frege. Em alguns de seus textos, como em O Pensamento, Frege sugere que a verdade não é uma propriedade no sentido comum. Veremos que os portadores de verdade e falsidade primários para Frege são o que ele chama de pensamentos, que contemporaneamente entendemos como proposições. Mas nesse contexto falaremos sobre a curiosa tese de Frege de que os valores de verdade, o verdadeiro e o falso, são objetos, as referências de frases declarativas, e que tais objetos estão em relação ao sentido das sentenças (os pensamentos) como referências estão em relação aos sentidos de expressões. Veremos ainda que Frege parece distinguir entre o verdadeiro e a verdade. A verdade, Frege defende em O Pensamento, é indefinível, mas em suas Leis Básicas, mais especificamente no parágrafo 10, Frege nos fornece o que parece ser uma definição do objeto o verdadeiro. Analisaremos esses aspectos das investigações de Frege sobre a verdade. E tentaremos investigar um pouco mais qual é a concepção que Frege tinha de verdade em geral. Junto a isso observaremos a análise que o filósofo faz da palavra “verdadeiro” em O Pensamento e em outros de seus escritos, bem como o papel do predicado de verdade na linguagem natural, já que Frege considera que, em determinado contexto, o predicado de verdade aplicado a sentenças assertóricas tem um papel redundante e seu sentido em nada contribui para o sentido da sentença a qual ele é aplicado. Ainda assim, em alguns contextos o predicado de verdade não parece ser redundante.

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No terceiro capítulo falaremos ainda sobre a distinção traçada por Frege entre definição e elucidação. Diante da tese de que a verdade é indefinível, é importante que entendamos o que significa definir nesse contexto, o que Frege entendia por definição. Veremos que ele fazia a distinção entre dois tipos de definição, que ele chama de definição analítica e definição construtiva. Na definição analítica analisamos um conceito complexo em conceitos mais simples, mais ou menos como um químico divide uma molécula em átomos simples. Já a definição construtiva, que também poderia ser chamada de estipulativa, estipulamos o significado de um signo novo a partir de um conjunto complexo de significados que já são conhecidos: esse tipo de estipulação é útil, como veremos, para simplificar a linguagem da ciência. Para Frege aparentemente não podemos definir a verdade, mas podemos elucidar seu significado. Veremos que Frege se utiliza desse recurso longamente no fragmento póstumo Logic, comparando o predicado de verdade com outros predicados, para apontar características desse, tanto negativamente, mostrando características de outros predicados que não são compartilhadas com o predicado de verdade; quanto positivamente, destacando características únicas da verdade. Finalmente, na última sessão do capítulo, começaremos analisando e reconstruindo a argumentação de Frege em O Pensamento, começando pelos seus argumentos contra a teoria da verdade como correspondência, reconstruindo também o argumento que Frege constrói a favor da indefinibilidade da verdade. O quarto capítulo será dedicado a uma breve revisão bibliográfica, intencionando mostrar a situação da pesquisa sobre esta tese fregeana até hoje. Neste capítulo analisaremos as reconstruções da tese fregeana feitas por quatro dos mais importantes estudiosos e comentadores de Frege. Além de mostrar quais as opiniões a respeito da tese fregeana da indefinibilidade que esses estudiosos sustentaram, buscaremos também fazer uma breve discussão crítica dessas reconstruções, mostrando possíveis problemas e pontos fortes que são recuperados em nossa própria análise. Os autores cujas reconstruções da tese abordamos são os seguintes: Scott Soames, Michael Dummett, Hans Sluga e Wolfgang Künne. Scott Soames, em um dos capítulos de seu livro Understanding Truth, analisa a argumentação de Frege sobre a verdade em O Pensamento tendo dois objetivos principais. Primeiro, ele busca elucidar alguns dos motivos por trás da tese da 12

indefinibilidade de Frege, analisando algumas das teses do filósofo. Então Soames faz uma crítica aos argumentos utilizados por Frege em O Pensamento para defendê-la, em alguns aspectos parecida com as críticas de Dummett e Künne, como veremos. Diferente, no entanto, no que Soames não considera que os argumentos de Frege sejam fortes o suficiente nem mesmo para refutar a teoria da correspondência. Diferente de Soames, Michael Dummett, em seu famoso livro Frege Philosophy of Language, tenta mostrar que os argumentos elaborados por Frege em O Pensamento podem ser fortes o suficiente para refutar a teoria da correspondência, mas não fortes o bastante para chegarmos à conclusão de que a verdade é indefinível. Hans Sluga, como parece ser habitual em seus trabalhos, faz uma análise histórica das idéias de Frege sobre a verdade, distinguindo uma evolução em seu pensamento com pelo menos sete fases diferentes. Sluga parece identificar a principal razão para a tese da indefinibilidade na idéia de Frege de que a verdade está pressuposta sempre que nos utilizamos de asserções. Sluga traça ainda uma relação entre Frege e Tarski, que ficou famoso por fornecer uma definição de verdade para linguagens formais. Wolfgang Künne dedica um capítulo de seu livro Conceptions of Truth para discutir o que ele chama de niilismo com relação a verdade. Ele considera Frege um niilista nesse sentido, e tese um amplo comentário de alguns problemas na tese fregeana da indefinibilidade da verdade. Em especial, Künne se concentra no que ele chama de tese da identidade fregeana, segundo a qual todas as instâncias de “a proposição que p = a proposição que é verdade que p” são corretas. Künne argumenta que essa tese, que é muito importante para a idéia de que verdade é indefinível, se mostra implauzível. Concluímos nosso trabalho, no quinto capítulo, mostrando os resultados obtidos por nossa pesquisa e tentando analisar que questões ainda permanecem em aberto sobre o tópico. Realçamos a dificuldade em reconstruir e reconciliar coerentemente as diversas teses relacionadas à verdade que Frege defendeu ao longo de sua carreira. De fato, tal tarefa não é o nosso objetivo aqui, já que demandaria mais espaço e pesquisa avançada. Apesar da reconhecida lucidez e objetividade com a qual Frege escrevia, mostrando um domínio admirável da linguagem, suas teses parecem muitas vezes

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contraditórias, e em muitos pontos Frege parece escolher não desenvolver em muitos detalhes suas doutrinas, ou não explicar sua conexão com outras.

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CAPÍTULO 2. O CONTEXTO DA VERDADE NO SISTEMA FREGEANO

Tanto mais deve a matemática recusar qualquer subsídio por parte da psicologia, tanto menos pode renegar sua conexão íntima com a lógica. Na verdade, partilho da opinião daqueles de consideram impraticável uma separação precisa entre ambas. Gottlob Frege, Os Fundamentos da Aritmética.

Neste capítulo será o nosso objetivo contextualizar a concepção de verdade de Frege em seu sistema como um todo. Discutiremos em breviedade o projeto geral de Frege, a saber, a fundamentação da lógica e da aritmética, e o ideal logicista de redução desta àquela. Será discutido o método de Frege para a realização do seu projeto, quais são as etapas desse projeto, como se dá sua parte negativa – principalmente com relação à crítica fregeana ao psicologismo, e como se dá sua parte positiva – principalmente como a tese da indefinibilidade está relaciona a esta última.

2.1. O PROJETO GERAL DE FREGE

O principal projeto de Frege, e o que ele perseguiu durante praticamente toda a sua vida, foi o que chamamos de logicismo. Frege acreditou, como muitos filósofos da matemática da chamada escola logicista,1 que a aritmética poderia ser analisada de forma que suas leis, noções e regras primitivas fossem demonstradas utilizando princípios puramente lógicos. A aritmética deveria ser entendida, portanto, como um tipo de ramo da lógica, sendo à esta reduzida. O ponto de partida desse projeto é a idéia de que o conhecimento aritmético, assim como o lógico, é analítico – não sintético, como proposto por Kant, em sua célebre distinção entre proposições ou juízos analíticos e sintéticos. Naturalmente, na base do projeto logicista de Frege está também um ideal de clareza e fundamentos seguros para a matemática. Frege foi a princípio um

Dummett usa a expressão “escola logicista” na introdução de seu livro. Cf. DUMMETT, Michael. 1981, p. xxxvi. 1

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matemático, mas desde o início de sua carreira acadêmica parece claro que a falta de rigor e clareza na explicação das mais simples noções da matemática o incomodava profundamente. Incomodava-lhe especialmente que os matemáticos não chegassem a um acordo nem com relação à natureza dos números. Ele diz: “Ora, não é vergonhoso para a ciência estar tão pouco esclarecida acerca de seu objeto mais próximo, e aparentemente tão simples? Tanto menos poder-se-á dizer o que seja número”.2 Mostrando

uma

tendência

evidentemente

cartesiana,

Frege

desejava

fundamentar e definir rigorosamente as noções, conceitos e leis primordiais da aritmética, a fim de tornar a matemática uma ciência mais precisa, que se utilizasse em sua base apenas de idéias claras e distintas. Frege faz uso da lógica para alcançar esse objetivo. Tal como ele a entendia, a lógica constituía as bases de toda formulação aritmética. Além disso, o saber lógico gozaria de mais segurança e clareza do que o saber matemático, se na lógica fossem feitos alguns ajustes. Reduzindo o saber matemático ao saber lógico, Frege estaria conferindo àquele não só uma base segura como mais rigor e clareza. Naturalmente, podemos perguntar pelo fundamento da própria lógica, e se esta, por sua vez, não deveria ser também reduzida a alguma outra ciência mais basilar. Em caso afirmativo, que ciência seria essa? Na época de Frege uma corrente bastante influente, chamada de psicologismo, propôs resolver essa questão. Frege e Husserl foram figuras centrais no debate acerca da validade da proposta do psicologismo, contra a qual Frege argumentou durante toda a sua carreira. Grosso modo, para os defensores do psicologismo a psicologia deveria ser entendida como a base da lógica. Isso porque a lógica é em geral entendida como a ciência que trata das leis do pensamento correto, sendo também, por isso, uma ciência normativa. Mas enquanto ciência que trata de todos os tipos de leis do pensamento, a psicologia seria também uma ciência descritiva, e assim deveria ser entendida como a base para a lógica, sendo esta uma parte subordinada daquela.3 A lógica não seria, na verdade, mais do que a teoria de processos 2

FREGE, Gottlob. 1884, p 198.

Para uma explicação introdutória mais detalhada sobre o psicologismo, cf. KUSCH, Martin. Psychologism, In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2009 Edition) , Editado por Edward N. Zalta, URL: . 3

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que ocorrem interiormente: na mente de cada indivíduo, naquele mundo interior acessível apenas pela introspecção. Como veremos com mais detalhe a seguir, Frege se posicionou radicalmente contra essa idéia. Para ele a psicologia e a lógica pertenciam a campos do saber diametralmente opostos. Em muitos de seus livros ele lança de argumentos para fazer uma distinção nítida entre esses dois campos. De fato, embora a lógica se mostrasse uma ciência mais criteriosa e segura que a aritmética, Frege precisou conferir a ela uma estrutura e descrição mais criteriosas. Tal trabalho ele busca realizar em sua Begriffsschrift, também chamada “Conceitografia” ou “Ideografia”, e cujo subtítulo se lê “uma linguagem formal, baseada naquela da aritmética, para o pensamento puro”.4 A lógica até Frege, de fato, não dispunha de todas as ferramentas necessárias para o cumprimento do ideal logicista. Além disso, em muitos aspectos a lógica clássica se deixava contaminar pelas imprecisões da linguagem natural, necessitando de uma formalização mais rigorosa. Na Begriffsschrift, Frege se dedicou a tarefa de desenvolver uma nova linguagem lógica, livre das ambigüidades características das línguas naturais. Uma linguagem com a qual uma tese pudesse ser expressa e provada com a clareza e evidencia de um axioma lógico. É impossível não fazer algum tipo de analogia aqui com o projeto leibniziano de uma lingua characterica. A diferença entre o ideal de Leibniz e a Begriffsschrift de Frege está justamente no objetivo da notação formal fregeana. Embora a linguagem imaginada por Leibniz e a Begriffsschrift tenham ambas o objetivo de suplantar a linguagem natural evitando mal entendidos e erros no processo de pensar, a “ideografia” busca realizar tal meta apenas naquelas “partes abstratas da ciência”, tão vulneráveis a esse tipo de erro.5 A Begriffsschrift tem como objetivo ser, no máximo, o primeiro passo de desenvolvimento de um meio de expressar conteúdos da ciência, e da ciência apenas, de uma forma rigorosamente segura, o que seria impossível usando apenas a linguagem comum. De fato, Frege quer usar sua “ideografia” apenas no trabalho de fundamentação da aritmética. Mas ele demonstra certa esperança, na própria Begriffsschrift, de que talvez sua seu sistema notacional pudesse vir a ser expandido de forma a poder incluir

FREGE, Gottlob. 1879. Tradução nossa. Usamos aqui, como para todos os outros textos de Frege que não foram ainda publicados no Brasil, uma versão em inglês. 4

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FREGE, Gottlob. 1884, p. 189.

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as linguagens de outras ciências que não possuem tal ferramenta, sendo usado de certa forma para estabelecer bases seguras a outras áreas do saber humano. No prefácio da Begriffsschrift, Frege compara sua “ideografia” a um microscópio, enquanto a linguagem comum seria como o olho humano, numa metáfora bastante elucidativa quanto à semelhança em desempenho e a diferença em escopo de aplicação entre a “ideografia” fregeana e a lingua characterica de Leibniz: Por causa da extensão de seus possíveis usos e da versatilidade com a qual ele pode adaptar-se às mais diversas circunstâncias, o olho é muito superior ao microscópio. Considerado como um instrumento óptico, com certeza, ele mostra muitas imperfeições, as quais normalmente passam desapercebidas em conta apenas de sua conexão íntima com nossa vida mental. Mas, assim que objetivos científicos exigem grande agudeza de resolução, o olho se prova insuficiente. O microscópio, por outro lado, é perfeitamente adequado para precisamente tais objetivos, mas é justamente por isso que ele é inútil para todos os outros.6

De fato, Frege fala, ainda no prefácio de sua “ideografia”, diretamente sobre o ideal de Leibniz de uma lingua characterica, ou um calculus philosophicus, atentando para a diferença entre o projeto leibniziano e o seu próprio. Frege mostra de forma clara que sustenta uma posição fundacionalista. Em seus Fundamentos da Aritmética, Frege fala com certa tristeza de nossa compreensão deficiente dos “fundamentos do edifício global da aritmética”.7 Em certo nível, Frege parecia ver na lógica não só as bases possíveis para a aritmética, como a possibilidade de um fundamento do saber humano em geral. Nesta acepção, lógica é aquela ciência cujas crenças são auto-evidentes, não precisando e nem mesmo permitindo uma justificação ou fundamentação ainda mais profunda. De fato, Frege nos diz que a aritmética foi, naturalmente, sua motivação para a criação da Begriffsschrift, e que por isso ele deseja aplicá-la primeiramente à aritmética, “tentando prover uma análise mais detalhada dos conceitos da aritmética e

Because of the range of its possible uses and the versatility with which it can adapt to the most diverse circumstances, the eye is far superior to the microscope. Considered as an optical instrument, to be sure, it exhibits many imperfections, which ordinarily remain unnoticed only on account of its intimate connection with our mental life. But, as soon as scientific goals demand great sharpness of resolution, the eye proves to be insufficient. The microscope, on the other hand, is perfectly suited to precisely such goals, but that is just why it is useless for all others. Tradução nossa. FREGE, Gottlob. 1879, p. 6. 6

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FREGE, Gottlob. 1884, p. 198.

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uma fundamentação mais profunda para seus teoremas”,8 deixando em aberto, no entanto, um possível trabalho de fundamentação de outras disciplinas através da lógica. No prefácio das Leis Básicas da Aritmética o seguinte trecho parece sugerir que Frege pensava ser a lógica a melhor candidata para uma fundamentação última de nosso conhecimento: “considero um sintoma seguro de erro que a lógica necessite da metafísica e da psicologia, ciências estas que precisam dos princípios da lógica. Qual é aqui a verdadeira base originária sobre a qual tudo repousa?”.9 Depois da publicação da Begriffsschrift seguiu-se um período no qual Frege realiza alguns trabalhos no sentido de justificar e esclarecer os motivos por trás da construção de sua linguagem formal. Ele responde então críticas e busca mostrar os benefícios da Begriffsschrift. Tendo feito isso, Frege inicia de fato o projeto de demonstrar que a aritmética tem seus fundamentos na lógica. É então que ele escreve Os Fundamentos da Aritmética. Nessa obra Frege não se utiliza da linguagem desenvolvida na Begriffsschrift, mas tece uma série de críticas às diversas propostas que haviam surgido até então sobre a questão dos fundamentos da aritmética e da lógica. Dummett chega a dizer que Os Fundamentos marca a transformação de Frege de um matemático para um filósofo.10 Nessa obra, além da elaboração de críticas a posições opostas a sua, Frege nos traz também um esboço de como será realizado seu projeto de fundamentação da aritmética, sem o uso de símbolos. É nos Fundamentos que Frege defende e explica filosoficamente seu projeto e método de redução da aritmética à lógica. Mas será nas Leis Básicas da Aritmética que ele tentará de fato demonstrar tal redução.

2.1.1. O PROJETO DO LOGICISMO

Podemos dizer que projeto do logicismo deveria dividir-se em pelo menos três partes, três etapas gerais que precisariam ser cumpridas para que a redução da aritmética à lógica fosse bem sucedida. Poderíamos pensar nessas etapas como três tipos distintos 8

FREGE, Gottlob. 1879, p. 8.

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FREGE, Gottlob. 1893a, p. 14.

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DUMMETT, Michael. 1973, p. xxxvii.

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de redução, que ainda assim estão intimamente conectados, sendo o sucesso de uma dependente do sucesso da outra. Essas reduções podem ser chamadas de: redução conceitual, redução doutrinal e redução ontológica. De fato, a redução de qualquer ciência ou teoria a outro saber mais básico deve satisfazer cada uma dessas etapas para ter sucesso. O primeiro tipo, ou a primeira etapa da redução funciona como uma tradução da linguagem da ciência candidata a redução para a linguagem da ciência que servirá como base da redução. É o que podemos chamar de redução conceitual, ou também de redução definicional: faz-se um tipo de tradução de todas as expressões e termos da ciência a ser reduzida para a ciência base. Por exemplo, provêm-se todas as expressões, termos e conceitos básicos da aritmética com correlatos sinônimos que usam a linguagem da lógica apenas. Nessa etapa devem ser criadas regras de tradução e, portanto, de definição dos termos de uma ciência para os termos da outra ciência, que servirá de base para a primeira. Através de um procedimento similar, que funciona como um tipo de tradução, é preciso encontrar correlatos das leis da ciência a ser reduzida nas leis da ciência base. Essa etapa pode ser chamada de redução doutrinal ou redução derivacional. Esse segundo termo deve-se ao fato de que é preciso fazer aqui uma derivação das leis da ciência candidata a redução a partir das leis da ciência base. A terceira etapa em uma redução é a redução ontológica e consiste em reduzir os objetos de uma ciência aos objetos de outra ciência mais básica, identificando-os entre si. Se entendermos que ao usar expressões sinônimas estamos falando dos mesmos objetos, é possível que uma redução conceitual e uma redução doutrinal tenham como conseqüência natural uma redução ontológica. Na aritmética temos objetos simples que são os números. Frege pensava que os objetos lógicos correlatos aos números, que na realidade seriam extensões de conceitos, eram os conjuntos. Assim, Frege entendia os números logicamente como conjuntos, e queria reduzir aqueles a estes. Em geral os benefícios de uma redução são uma economia em nosso saber (economia essa que é tanto ontológica quanto conceitual e doutrinal), uma maior clareza no que concerne o funcionamento geral da ciência reduzida, e também um maior rigor: uma fundamentação segura para tal ciência. Com o projeto logicista, Frege buscava 20

principalmente clareza e rigor para a aritmética, já que ele via a lógica como uma ciência clara e melhor fundamentada: de fato, provavelmente a base fundamental de todo o conhecimento. Parece claro que Frege via a lógica como a ciência na qual encontramos um tipo de lei que não tem nem precisa de uma justificação mais profunda, pois tais leis são claras e evidentes por si mesmas. Ao tentar justificar uma lei como essa, precisaríamos pressupô-la em nossas derivações. Tais leis seriam as premissas últimas, os axiomas que servem como ponto de partida de toda justificação numa ciência rigorosamente fundamentada.

2.1.1.1. PARTE NEGATIVA: CRÍTICA AO PSICOLOGISMO

Como já sabemos, durante toda sua carreira, em diversos de seus trabalhos, Frege tece críticas ao psicologismo, em especial ao psicologismo na lógica. Mesmo quando ele está começando a esboçar seu plano de fundamentação da aritmética pela lógica em Os Fundamentos da Aritmética o psicologismo já é alvo de seus ataques: “deve-se separar precisamente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo”, diz ele.11 Já no início do prefácio das Leis Básicas Frege chama de perniciosa a imergência da psicologia na lógica, pois a mistura dessas duas ciências faz com que sejam confundidos conceitos e objetos da lógica e da aritmética – que, tais como Frege os entende, têm uma natureza objetiva –, com representações mentais deles, suas meras imagens mentais. Além disso, a tendência de se pensar dessa maneira estaria atrapalhando o impacto e a aceitação que a obra de Frege deveria ter tido sobre a comunidade de pesquisadores em lógica, matemática e filosofia. De fato, em muitos trechos do prefácio de suas Leis Básicas Frege deixa bastante transparente sua frustração e tristeza pela recepção fria que teve sua obra. E o prefácio como um todo carrega intensamente essa sensação de frustração, já que é voltado, praticamente em sua totalidade, a tecer críticas ácidas ao psicologismo e idealismo em geral, e em especial nas ciências. Por isso esse texto se mostra central ao analisarmos as críticas de Frege ao psicologismo. 11

FREGE, Gottlob. 1884, p. 204.

21

Frege destaca que, para traçar uma distinção clara entre psicologia e lógica devese analisar a concepção de leis lógicas, e com isso somos levados a uma análise também da verdade. Em O Pensamento, como veremos no próximo capítulo, Frege chama as leis da lógica de leis do ser verdadeiro e também inicia uma breve discussão sobre elas. Não pela primeira vez, Frege compara a lógica com uma ciência natural, neste momento com a geografia, procurando evidenciar o caráter objetivo dessas disciplinas. Neste contexto, ele faz uma investigação dos sentidos que podem ser atribuídos a palavra “lei”, a fim de mostrar em que sentido ele fala das leis lógicas. Aqui a comparação é feita também com a ética. Podemos entender “leis” no sentido de leis morais, que são prescritivas, e no sentido de leis da ciência, como as leis da geografia, que descrevem como as coisas são. As leis lógicas, nos diz Frege, são prescritivas apenas no sentido de que estabelecem de fato o modo com se há de pensar – e neste sentido apenas elas são leis do pensamento, pois servem como normas para o pensamento correto. O problema é que, aparentemente, os defensores do psicologismo querem reduzir as leis da lógica a esse aspecto somente. Os psicologistas entendem as leis lógicas como descritivas apenas no sentido de que descrevem como a mente humana opera racionalmente, sendo tais leis então normas que nos provêm com o padrão médio do raciocinar humano. Como em O Pensamento, e mais explicitamente do que no prefácio das Leis Básicas, Frege alerta para a diferença fundamental entre leis do ser verdadeiro (Wahrsein) e leis do tomar por verdadeiro (Fürwahrhalten). A lógica na concepção fregeana trata primeiramente daquilo que é verdadeiro. As leis lógicas são as leis do ser verdadeiro, e, nas palavras do próprio Frege, tal verdadeiro é “independente de que alguém o reconheça como tal”. O verdadeiro para Frege é eterno e por isso independente de nós. Frege quer nos dizer que, se as leis lógicas fossem leis que dissessem a respeito do padrão geral do raciocínio humano, descrevendo como normalmente um raciocínio válido se desenvolve chegando-se assim a verdade, então tais leis tratariam de algo relativo aos indivíduos; seriam leis do tomar por verdadeiro. Não reconhecer que as leis lógicas não são leis dessa natureza seria cair, em última instância, em um relativismo e em um subjetivismo intoleráveis na ciência. Essa é talvez a principal crítica de Frege ao psicologismo: aceitando-o teríamos como conseqüência a impossibilidade do discurso científico. Como um cientista, um matemático por formação, que entendia a verdade como objetiva e alcançável, Frege rejeitava completamente visões que levassem a tal conseqüência. 22

De fato, desde o primeiro parágrafo da introdução de sua outra grande obra, Os Fundamentos da Aritmética, Frege demonstra intensa preocupação com as conseqüências inaceitáveis de se sustentar qualquer visão que levasse a um relativismo. No contexto da busca pela real natureza dos números, Frege nos diz que se fosse válido que cada um entendesse a natureza do número um, por exemplo, de formas diferentes, no fim não estaríamos mais falando da mesma coisa, pois “tais proposições [acerca do número um] não teriam nenhum conteúdo comum”.12 Frege retoma essa mesma argumentação no prefácio de suas Leis Básicas, para dar um exemplo de que muitas vezes considera-se subjetivo algo que, na visão do próprio Frege, é objetivo. É o caso novamente do número um, da verdade e das leis da lógica, ou leis do ser verdadeiro. O número um é o mesmo para todos, argumenta Frege, e se apresenta da mesma forma para todos: “é tão impossível investigá-lo por meio da observação psicológica quanto a Lua”.13 Da mesma maneira deveria ser com a verdade e as leis lógicas. Naturalmente, também é muito forte em Os Fundamentos a argumentação de Frege contra o psicologismo (bem como contra várias teses contrárias a sua própria). Ainda na introdução de Os Fundamentos, e no contexto da crítica de Frege àquelas teses segundo as quais o conhecimento matemático é um conhecimento sintético (seguindo a análise kantiana), Frege é muitíssimo explícito ao afirmar que “a aritmética não tem absolutamente nada a ver com sensações. Nem tampouco com imagens mentais formadas a partir dos vestígios deixados por impressões sensíveis anteriores”. 14 Um dos principais objetivos de Frege em Os Fundamentos é, no entanto, demonstrar que a aritmética é um saber analítico a priori. Como já apontado, o prefácio das Leis Básicas é carregado da indignação de Frege com as correntes de pensamento contrárias a sua (especialmente o psicologismo), e por isso está repleto de ironias e críticas ácidas a tais correntes. Com isso, no entanto, o texto ganha em qualidade literária, tendo sido por isso comparado nesse aspecto até

12

FREGE, Gottlob. 1884, p. 197.

13

FREGE, Gottlob. 1893a, p. 12.

14

FREGE, Gottlob. 1884, p. 199.

23

mesmo aos escritos de Nietzsche.15 Analisemos agora as principais críticas de Frege ao psicologismo que se encontram nesse prefácio, tentando fazer um tipo de reconstrução delas. A maior parte dos argumentos fregeanos se encontra na forma de constatações antagônicas com respeito à natureza da lógica e da psicologia, bem como dos objetos dessas ciências. O principal argumento de Frege contra o psicologismo parece ser o seguinte: 1.

A lógica trata do que é verdadeiro.

2.

Leis lógicas = Leis do ser verdadeiro.

3.

A psicologia trata de como os seres humanos pensam, do que é tomado por

verdadeiro. 4.

Leis psicológicas = Leis do tomar por verdadeiro.

5.

Portanto, as leis e o objeto da lógica são de natureza distinta das leis e do objeto

da psicologia. Continuando sua crítica ao psicologismo, Frege lança mão ainda de argumentos tais como o seguinte, que pretende esclarecer ainda mais a diferença radical entre as leis lógicas e as leis psicológicas: O que é verdadeiro é eterno, escreve Frege, não-espacial e independente de qualquer indivíduo. Já o tomar por verdadeiro depende de indivíduos. As leis do ser verdadeiro valem universalmente. Já as leis do tomar por verdadeiro valem apenas em relação aos seres cujos pensamentos as determinam empiricamente. Por isso, as leis lógicas não são e não poderiam ser leis psicológicas. As leis da lógica, por serem as leis do ser verdadeiro, descrevem algo objetivo. Nesse sentido, Frege nos diz, elas são descritivas. Ainda assim, por serem descritivas, descrevendo o que é (atemporal), as leis lógicas podem ser também entendidas como normativas, já que se deve pensar de acordo com elas se o objetivo é alcançar a verdade. As leis psicológicas são leis descritivas do modo de pensar humano. As leis da psicologia, no entanto, também podem ser entendidas como normativas. Nesse sentido, podemos tomá-las como normas para o padrão médio do pensar humano. Essas semelhanças entre as leis da lógica e as leis da psicologia podem gerar confusão, 15

Cf., em FREGE, Gottlob. 1893a, p. 20, os Comentários do tradutor, por Celso R. Braida.

24

fazendo com que se acredite que as primeiras podem de fato ser reduzidas às segundas. Mas tal como Frege a entende, e vemos aqui mais um aspecto de sua argumentação, a verdade, que é o objetivo da lógica e das ciências em geral, é objetiva, independente dos indivíduos que emitem juízos. Para os psicologistas, ainda de acordo com Frege, aparentemente vale o contrário. Para estes últimos a verdade depende sim dos seres que formulam juízos. Não resta dúvida, tendo entendido todos esses aspectos da lógica e a diferença radical entre esta ciência e a psicologia, que a primeira não poderia jamais ser entendida com bases na última.

2.1.1.2. PARTE POSITIVA: A VERDADE E SUA INDEFINIBILIDADE

Com a intenção de dar conta de seu projeto logicista, além de tecer argumentos contra teses opostas a sua, Frege precisava, naturalmente, desenvolver sua própria tese de maneira positiva. Como vimos, Frege sentiu a necessidade de reformular a lógica tal como ela era conhecida antes dele, conferindo a ela maior rigor e amplitude em sua aplicação. Por isso ele cria a Begriffsschrift, sua notação simbólica, ferramenta com a qual Frege pretende desenvolver seu projeto de redução da aritmética à lógica. Como já discutimos brevemente, com a Begriffsschrift, Frege pretende transpor as dificuldades que podem surgir com o uso da linguagem natural, ou de uma linguagem lógica contaminada pelas imperfeições da linguagem natural, no fazer científico. Isso porque Frege entendia que na linguagem natural a real estrutura lógica do que dizemos muitas vezes não aparece superficialmente. Portanto, faz-se necessária uma análise da linguagem, a fim de descobrir qual é a natureza dessas estruturas que permanecem obscurecidas pelo falar cotidiano. Parte da análise da linguagem que Frege precisou realizar a fim de construir uma linguagem lógica adequada para seu projeto logicista, livre das imperfeições da linguagem comum, passa por uma análise do que é verdade. A verdade, de fato, e como ainda veremos com mais detalhe no próximo capítulo, representa uma noção central no sistema fregeano da Begriffsschrift, e principalmente quando, em suas Leis Básicas, Frege faz algumas modificações em sua notação lógica.

25

26

CAPÍTULO 3. A CONCEPÇÃO FREGEANA DE VERDADE E A TESE DA INDEFINIBILIDADE

What true is, I hold to be indefinable. Gottlob Frege, 17 Key Sentences on Logic.

No capítulo anterior tentamos contextualizar a concepção de Frege de verdade em sua filosofia, no contexto de seu projeto logicista. Neste capítulo buscaremos principalmente discutir tal concepção de verdade e apresentar o argumento de Frege a favor da tese da indefinibilidade, tal como ele é apresentado em O Pensamento. Onde parecer conveniente, traçaremos relações também com outros escritos de Frege, fazendo paralelos principalmente entre O Pensamento e o fragmento Logic. Buscaremos elucidar a curiosa tese fregeana de que os valores de verdade são objetos, as referências de sentenças declarativas. Também analisaremos qual é a concepção de verdade em questão aqui e o que significa para Frege definir neste contexto, traçando um paralelo, que o próprio Frege faz, entre definir e elucidar. Com isso, julgamos estarmos prontos para esmiuçar o argumento da indefinibilidade da verdade de Frege. Uma discussão crítica do argumento, bem como de suas principais reconstruções na literatura, será feita no penúltimo capítulo.

3.1. A CONCEPÇÃO FREGEANA DE VERDADE EM GERAL E O CONCEITO DE VERDADE EM QUESTÃO

A concepção fregeana de verdade é no mínimo curiosa e singular. Como veremos mais claramente neste capítulo, não é fácil entender com certeza o que Frege teria realmente defendido sobre a verdade. Frege é sem dúvida um dos filósofos que escreveu com mais clareza, mostrando tanto uma excelente didática quanto um primoroso poder de argumentação em muitos pontos, e uma clara maestria no trato com a linguagem. Ainda assim, muitas interpretações divergentes podem ser feitas de seu trabalho, e isso não é diferente quando o tema é a verdade.

27

As teses de Frege com relação à verdade chamam atenção por sua singularidade desde o primeiro instante. Podemos citar algumas das mais controversas. Primeiro, Frege não parece pensar na verdade como uma propriedade ou um predicado. É interessante notar que em nenhum momento Frege se refere à verdade como um conceito, o que nos leva a pensar se ele realmente considera verdade como tal, e, seguindo Logic e O Pensamento, como um conceito que não pode ser definido. Segundo, para ele os valores de verdade (o verdadeiro e o falso) são objetos, sendo eles as referências de sentenças verdadeiras ou falsas, dependendo de cada caso. Frege apresenta essas idéias em especial no seu famoso texto Sobre o Sentido e a Referência. Finalmente, como sabemos, há ainda a forte argumentação no início de O Pensamento a favor da indefinibilidade da verdade. Seria então a verdade um conceito básico, de fato o mais básico de todos, que por isso não pode ser definido? Sendo esse o caso, por que Frege nunca se refere à verdade como um conceito? Ou seria a verdade um objeto, a referência de sentenças verdadeiras, como Frege parece defender em Sobre o Sentido e a Referência? Não sendo nenhum desses o caso, o que seria, afinal, verdade para Frege? Como podemos notar, apesar da clareza com a qual Frege elabora seus textos ainda há ainda muita vagueza e ambigüidade. Neste capítulo tentaremos lançar um pouco de luz sobre a concepção fregeana de verdade em geral, e analisaremos em especial a tese da indefinibilidade. Não é nossa intenção aqui, no entanto, reconstruir a teoria da verdade de Frege em todos os seus aspectos, e nem responder as muitas questões que certamente ainda ficarão em aberto.

3.1.1. É A VERDADE UMA PROPRIEDADE?

Por seus escritos, parece que Frege não considerava a verdade uma propriedade. Muitas vezes em nossa linguagem a verdade de fato assume a forma de um predicado, algo que Frege atenta, por exemplo, logo no início de O Pensamento. Mas pensar, como as teorias tradicionais, que a real natureza da verdade está de acordo com o modo como ela se apresenta em nossa gramática seria um mal-entendido. Frege é reconhecidamente um tipo de revisionista: ao investigar a linguagem natural sua intenção é descobrir a 28

estrutura lógica verdadeira por trás dos enunciados, com o objetivo de formular uma linguagem adequada para o trabalho na ciência. Em O Pensamento, Frege pergunta retoricamente: “Será que não estamos lidando aqui com algo que não pode absolutamente ser chamado, no sentido corrente, de propriedade?”16 Parece que Frege não considerava a verdade uma propriedade no sentido em que normalmente entendemos uma propriedade. Mas a verdade não seria uma propriedade primária de proposições, ou de pensamentos, como Frege os chamava? Como veremos, tampouco parece ser exatamente esse o caso. O que está relacionado aos pensamentos são os valores de verdade, objetos especiais dos quais Frege fala em Sobre o Sentido e a Referência e na exposição de seu sistema nas Leis Básicas. E eles estão relacionados aos pensamentos, os sentidos das sentenças, como referências. Abordemos em um pouco mais de detalhe essa tese.

3.1.2. VALORES DE VERDADE SÃO OBJETOS

Ocupa uma parte especial de Sobre o Sentido e a Referência a defesa de Frege a curiosa tese de que os valores de verdade, o verdadeiro e o falso, são objetos, referências de sentenças declarativas, enquanto os pensamentos correspondentes a essas sentenças são seus sentidos. Logo no início de sua argumentação no referido texto, Frege nos convida a admitir que sentenças possuam referência. Por si só, tal tese já é ontologicamente bastante complicada. Pode ser mesmo intuitiva a tese fregeana de que as partes de uma sentença, palavras, termos e nomes próprios, tenham um sentido, ou um “modo de apresentação”, e tenham uma referência, ou “denotem” um objeto. Mas não parece mais ser tão intuitivo assim pensar em sentenças também como nomes para esses objetos especiais, que são os valores de verdade. Frege nos diz justamente isso: que sentenças funcionam como nomes cuja referência é o verdadeiro ou o falso. A assimilação de sentenças com nomes é problemática no sentido de que nomes e sentenças pertencem a duas categorias gramaticais distintas. É bastante provável que a maioria de nós concordaria que utilizamos nomes para designar objetos e sentenças assertóricas para afirmar coisas, para fazer asserções. Com essa tese sobre os valores de 16

FREGE, Gottlob. 1918, p. 16.

29

verdade das sentenças declarativas, Frege faz um tipo de assimilação entre asserção e nomeação, o que pelo menos a princípio parece fazer pouco sentido. Frege nos diz que quando atribuímos verdade a um pensamento fazendo uso do predicado de verdade, ao dizer que tal pensamento é verdadeiro, somos facilmente levados a crer que verdade é uma propriedade. Mas essa não é, para Frege, a verdadeira relação entre pensamento e valor de verdade. Esta não é uma relação como a de um objeto com uma propriedade, mas a de um sentido (Sinn) com a sua referência (Bedeutung). A fim de justificar sua tese de que os valores de verdade das sentenças são sua referência, Frege discorre da seguinte forma em Sobre o Sentido a Referência: “Que mais, senão o valor de verdade, poderia ser encontrado, que pertença de modo muito geral a toda sentença onde as referências de seus componentes são levadas em conta, e que permaneça inalterado pelas substituições do tipo mencionado?”.17 Podemos ver que na visão fregeana, assim como é possível usar diferentes termos (com sentidos diferentes, portanto) para fazer referência a mesma coisa – como no caso de “estrela matutina” e “estrela vespertina”, é também possível usar em uma sentença diferentes termos que tenham a mesma referência, mudando assim o sentido da sentença mas mantendo seu valor de verdade. Seguindo tal raciocínio, se o sentido da sentença muda, mas não muda seu valor de verdade, o valor de verdade é seu significado, sua Bedeutung, sua referência. Já vimos brevemente que na concepção fregeana a verdade não parece ser um conceito propriamente dito. Isso porque conceitos, como Frege os entende, têm uma natureza predicativa. Na realidade, como Frege tenta esclarecer em vários de seus textos, conceitos funcionam como funções matemáticas, tomando objetos como argumentos e dando como valores ou o verdadeiro, no caso de determinado objeto de fato cair sob o conceito em questão; ou o falso, no caso contrário. Frege diz que o predicado de verdade que usamos na linguagem corrente não é um predicado como os outros: ele é no mínimo peculiar, nas palavras de Frege, e “o que, em primeiro lugar, distingue-o de todos os outros predicados é que predicá-lo está sempre incluído ao se

17

FREGE, Gottlob. 1892, p. 70.

30

predicar qualquer coisa”.18 Verdade não parece então ser um predicado, pelo menos não um predicado como todos os outros, como nas palavras de Frege. Seria então a verdade o objeto o qual Frege chama de o verdadeiro? Essa tese seria bastante estranha e aparentemente entraria em choque com a argumentação de Frege em O Pensamento, a favor da indefinibilidade da verdade. Além de ser incompatível também com a tese de que verdade é aquilo que reconhecemos “sob a forma da sentença assertiva”.19 É exatamente neste importante trecho de O Pensamento que Frege nos diz claramente que a forma de expressar a verdade de um pensamento na linguagem natural é primariamente a asserção, ou “a forma da sentença assertiva”, como está dito aqui, e não o predicado “é verdade/é verdadeiro”. No § 10 das Leis Básicas da Aritmética, intitulado “Os valores de verdade de uma função mais exatamente especificados”,20 Frege parece fornecer o que seria uma definição do objeto o verdadeiro.21 Se Frege mostrou em suas Leis Básicas ser possível definir o objeto o verdadeiro, isso pode indicar o valor de verdade de sentenças verdadeiras não parece ser a mesma coisa que a verdade que, em O Pensamento e em Logic, Frege defende ser indefinível.22 Poderíamos então perguntar, pelo menos a princípio, que são então esses objetos, por que Frege os introduziu em sua lógica, e qual a sua relação, se alguma, com a verdade. No entanto

,

neste

trabalho

não

intencionamos ainda responder a essas intrigantes questões.

FREGE, Gottlob. 1897, p. 129. Em inglês se lê: What, in the first place, distinguishes it from all other predicates is that predicating it is always included in predicating anything whatever. Tradução nossa. 18

19

FREGE, Gottlob. 1918, p. 17.

Utilizamos, como para toda obra de Frege ainda não traduzida para o português, uma tradução em inglês. O título do parágrafo se lê, na versão em inglês, “The course-of-values of a function more exactly specified”. Cf. FREGE, Gottlob. 1893b, p. 45. 20

Cf. GREIMANN, Dirk. 2007, para uma sistemática investigação acerca desses objetos especiais, o verdadeiro e o falso, e uma análise da definição do objeto o verdadeiro nas Leis Básicas. 21

Como já dito, não é nossa intenção resolver todos os problemas que surgem na interpretação das teses de Frege sobre a verdade, nem tentar mostrar uma conexão coerente entre essas teses. Para uma discussão mais aprofundada dessas idéias cf. GREIMANN, Dirk. 2005. Greimann não só faz uma análise sistemática das teses de Frege sobre a verdade como busca recontruí-las de um modo a dar coerência a concepção fregeana de verdade como um todo. 22

31

3.1.3. A

ANÁLISE DO CONTEÚDO DA PALAVRA

“VERDADEIRO”

E A CONCEPÇÃO

FREGEANA DE VERDADE

É importante que façamos um exame mais atento do que Frege de fato diz sobre a verdade em O Pensamento, e a análise que ele faz, no mesmo texto, da palavra “verdadeiro” em nossa linguagem. Vamos nos remeter também ao fragmento Logic e eventualmente a outras obras, como o prefácio das Leis Básicas da Aritmética, onde ele faz análises muito semelhantes. “A palavra ‘verdadeiro’”, nos diz Frege, “especifica o objetivo”.23 É exatamente assim que ele começa Logic, sendo este o primeiro tópico de um sumário inacabado para o texto. Tanto em Logic quanto em O Pensamento Frege defenderá esta idéia: de que a verdade é a meta de todas as ciências, sendo a lógica aquela ciência que se ocupará de forma especial da verdade. De fato, esse ponto parece ser importantíssimo para Frege. A verdade é de tal forma central para a lógica fregeana que poderíamos, talvez, dizer que para Frege a construção de uma linguagem lógica anda de certa maneira em conjunto com a construção de uma teoria da verdade. Frege insiste na centralidade da verdade para a lógica já nas primeiras linhas de O Pensamento. Ele afirma: “Ela [a lógica] está para a verdade aproximadamente como a física está para o peso ou o calor”. Todas as ciências têm a verdade como meta, mas só a lógica trabalha diretamente com ela, ao “discernir as leis do ser verdadeiro [Wahrsein]”.24 Tais leis do ser verdadeiro são como leis da natureza, embora também sejam leis no sentido normativo. Em O Pensamento Frege enfatiza bastante esse ponto. Como vimos, também no prefácio de suas Leis Básicas, dentro de sua argumentação contra o psicologismo, Frege elabora essa questão. Frege compara a lógica com a ética e com a estética, e faz ainda uma pequena análise do sentido da palavra “lei”. As leis do ser verdadeiro, ou as leis da lógica, não são leis no mesmo sentido das leis jurídicas, da constituição, por exemplo. Estas podem nos dar indicações de como proceder, e apenas isso. De fato, as leis do ser verdadeiro também nos provêm com instruções a serem seguidas se nosso objetivo é alcançar a verdade. Ou seja, delas também tiramos

23

The word ‘true’ specifies the goal. FREGE, Gottlob. 1897, p. 126.

24

FREGE, Gottlob, 1918, p. 12.

32

prescrições para “asserir”: Fürwahrhalten, isso Frege admite, mas elas não ficam restritas apenas a essa função. É importante notar que “asserir”, tal como a tradução é feita em O Pensamento, não parece traduzir satisfatoriamente a expressão em alemão, Fürwahrhalten. Este verbo é composto por três palavras: für, que significa mais ou menos “por” ou “como”; Wahr, que significa “verdadeiro”; e halten, que é mais ou menos equivalente a “tomar”. Logo, o termo significa, grosso modo, “tomar por verdadeiro”. Tal tradução, que parece ser mais apropriada, já aparece no prefácio das Leis Básicas. (1893a, pp. 13-41.) Dessa maneira, é importante atentar para o fato de que, embora a partir das leis do ser verdadeiro possamos estabelecer prescrições para tomar algo por verdadeiro, elas não têm a ver com o ato subjetivo de cada um de tomar algo por verdade. As leis lógicas são prescritivas, como as leis jurídicas, apenas no sentido de que estabelecem de fato o modo como se há de pensar. Mas se elas fossem entendidas apenas desta maneira, elas seriam simplesmente leis do pensamento. Tal idéia iria contra a concepção de verdade da qual Frege está tratando aqui, a qual ele acredita ser a mais natural e intuitiva. Frege parece sugerir que as leis do ser verdadeiro são eternas e imutáveis, pois a verdade, meta última das ciências, também o é. Já vimos mais detalhadamente, no capítulo anterior, a crítica de Frege ao psicologismo, mas vale a pena atentar novamente para o que ele nos escreve no prefácio de suas Leis Básicas: “Toda lei que diz o que é pode conceber-se também como uma prescrição, posto que há que se pensar de acordo com ela, e neste sentido é portanto uma lei do pensamento”.25 De forma similar, em O Pensamento Frege traça mais uma vez críticas ao psicologismo, ao discorrer sobre a diferença entre leis do ser verdadeiro e leis do tomar por verdadeiro. Assim, ele busca elucidar a concepção de verdade da qual ele quer tratar. A essa tarefa Frege dedica logo o primeiro parágrafo do texto, parágrafo este que ele conclui com um tom um tanto categórico, ao dizer: “O significado da palavra ‘verdadeiro’ se explica pelas leis do ser verdadeiro”.26 De forma bastante didática Frege se dispõe então à tarefa de elucidar o que é esse verdadeiro do qual ele trata, através de uma breve análise dessa palavra em nossa linguagem. Com isso Frege pretende deixar 25

FREGE, Gottlob, 1893a, p. 10.

26

FREGE, Gottlob, 1918, p. 12.

33

claro qual é o sentido de uso do predicado de verdade ao qual ele se volta no texto. Veremos adiante que Frege também faz uma elucidação do predicado de verdade em Logic, comparando-o com outros predicados, em especial com o predicado de beleza, e mostrando que, apesar de aparentemente indefinível, podemos ainda dizer várias coisas sobre a verdade. Por enquanto seguiremos com o que ele nos diz em O Pensamento. Na linguagem natural usamos o predicado “verdadeiro” em muitos sentidos diferentes. Além disso, usualmente atribuímos verdade a diversas coisas, inclusive coisas de naturezas diversas, como idéias, objetos de arte, sentimentos, pessoas, etc. Quanto ao emprego da palavra, Frege então exclui da discussão: 1. O emprego de “verdadeiro” como “verídico” ou “veraz”; 2. O emprego do predicado em um sentido estético, como por vezes o empregamos na arte; 3. O emprego do predicado no sentido de “genuíno”, como quando disséssemos, por exemplo, “Este é o verdadeiro primeiro ministro inglês”. Mais uma vez, Frege afirma estar preocupado com verdade apenas no sentido daquilo que representa o objetivo de toda a ciência: “o que temos aqui em mente é a verdade cujo conhecimento constitui o objetivo da ciência”,27 diz ele.

3.1.4. PENSAMENTOS ,

OS PORTADORES PRIMÁRIOS DE VERDADE E FALSIDADE E O

PAPEL DO PREDICADO DE VERDADE

Logo em seguida, Frege introduz uma idéia que ele desenvolverá em outro momento no texto, a saber, a de que verdade é atribuída em primeiro lugar a pensamentos, que podemos entender melhor contemporaneamente como proposições. Isso Frege não deixa explícito neste momento, no início do texto, mas atenta para o fato de que atribuímos verdade à coisas de naturezas diversas, “coisas visíveis e audíveis, coisas que não podem ser percebidas pelos sentidos”.28 Isso se dá porque existe, segundo Frege, um “deslocamento de sentido” da palavra “verdadeiro”. De uma forma similar a que usamos, pelo menos em português, a palavra “doce” para falar sobre o cheiro de um perfume, ou como quando usamos as palavras “direita” e “esquerda” para designar partidos políticos, também usamos as palavras “verdadeiro” e “falso” para falar 27

Ibidem.

28

Ibidem.

34

de coisas como imagens, idéias e sentenças. Enquanto objetos físicos, uma imagem ou uma sentença são verdadeiras ou falsas apenas em um sentido derivativo. Os portadores primários de verdade são sim os pensamentos. Adiante, numa importante passagem do texto, Frege nos diz: É também digno de atenção que a sentença “Sinto um perfume de violetas” tenha exatamente o mesmo conteúdo que a sentença “É verdade que sinto um perfume de violetas”. Deste modo, parece que nada é acrescentado ao pensamento pelo fato de lhe ser atribuído a propriedade da verdade. E, no entanto, não é um grande feito quando um pesquisador, após muita hesitação e penosas investigações, pode finalmente dizer “o que eu supunha é verdadeiro”? O significado da palavra “verdadeiro” parece ser muito singular.29

Como veremos em detalhe no próximo capítulo, Scott Soames já expôs, em Understanding Truth, os dois tipos de uso que tem o predicado de verdade na linguagem natural, aos quais Frege chama nossa atenção no trecho acima.30 O primeiro tipo de uso do predicado Soames chama de “ambientes do tipo 1” (environments of type 1). Esse ambiente está ilustrado por Frege pela equivalência entre as asserções “Sinto um perfume de violetas” e “É verdade que sinto um perfume de violetas”. Nesse tipo de uso do predicado de verdade ele não acrescenta nada a simples asserção “Sinto um perfume de violetas”. O predicado se torna de fato supérfluo: o mesmo pensamento é expresso nas duas asserções. Elas são “trivialmente equivalentes”, nas palavras de Soames. Por ter defendido algo dessa natureza, Frege foi e ainda é visto como um tipo de deflacionista com relação à verdade. Ainda assim, é evidente que Frege não acreditava ser possível evitar o uso do predicado de verdade na nossa linguagem. Isso fica muito claro se observarmos seu uso no que Soames chama de “ambientes do tipo 2” (environments of type 2). Nesse segundo tipo de uso do predicado não há asserção explícita da proposição ou conjunto de proposições aos quais se deseja atribuir verdade. Para ilustrar esse tipo de uso do predicado de verdade Frege nos dá o exemplo do cientista que diz “o que eu supunha é verdadeiro”. Nesse tipo de contexto a atribuição do predicado é feita indiretamente. Assim, o predicado de verdade não é supérfluo e faz uma contribuição relevante ao sentido da sentença. Comparando desta maneira esses dois contextos de uso do predicado de verdade poderíamos ser levados a pensar que o uso desse predicado tem e ao mesmo tempo não tem uma função significante. 29

FREGE, Gottlob. 1918, pp. 15-16.

30

SOAMES, Scott. 1999, p. 22.

35

De fato, e como já vimos parcialmente ao falarmos sobre as considerações de Frege em Sobre o Sentido e a Referência, para o filósofo o predicado de verdade pode ser bastante enganador na linguagem natural. Mas isso acontece porque a utilização do predicado “verdadeiro” (ou “é verdade que”) pode nos levar a crer que tal predicado é parte do pensamento. É preciso lembrar aqui que pensamentos e valores de verdade são coisas distintas para Frege. Essa é uma interessante tese que parece mostrar, mais uma vez, como Frege estava preocupado em fazer uma análise da linguagem natural com o intuito apenas de formular uma linguagem livre das imperfeições lógicas. Para ele, é possível apreender um pensamento sem lhe atribuir verdade ou falsidade. De fato, parece que, na visão de Frege, seria melhor se na linguagem natural não precisássemos fazer uso do predicado de verdade de forma alguma. Isso, naturalmente, se torna impossível devido a sua imperfeição lógica.31 Um dos defeitos lógicos de nossa linguagem é que não há nela um sinal para a asserção (a não ser a própria forma da sentença assertórica, na linguagem escrita, e tal forma junto com sua força, no caso da linguagem oral) que a diferencie de uma predicação qualquer que não tenha o objetivo de expressar verdade. Frege chega então à conclusão de que em uma linguagem ideal uma simples predicação e a sua asserção teriam de ser expressos de maneiras distintas. É exatamente isso que ele faz em sua linguagem científica, ao criar o “traço do juízo” (judgement stroke), a saber, ├──. Esse interessante símbolo tem uma função dupla. Com ele, concatenamos os sinais que o seguem em um todo e afirmamos esse todo. Um traço vertical simples, como ───, tem a função, na notação fregeana, de concatenar os sinais que o seguem, sem afirmá-los. Assim, ao usarmos o traço do juízo atribuímos verdade a um pensamento. Ao usarmos o traço simples estaríamos apenas tomando posse de um pensamento, sem afirmá-lo. Essa diferença parece ser essencial para Frege. Em Sobre a Finalidade da Ideografia, Frege explica com muita clareza o traço do conteúdo e o traço do juízo. Com esses símbolos especiais ele pretendia diferenciar um conteúdo asserível ou julgável – um pensamento, de um juízo, ou o reconhecimento da verdade ou falsidade daquele pensamento. O uso do traço do conteúdo equivale na Para uma discussão mais detalhada da visão de Frege sobre a imperfeição da linguagem natural, cf. SLUGA, Hans. Truth and the imperfection of Language. Grazer Philosophische Studien 75, pp. 126, 2007. Cf. também GREIMANN, Dirk. Frege’s puzzle about the cognitive function of Truth. Nesse texto Greimann discute minuciosamente a saída de Frege para esse aparente paradoxo do uso do predicado de verdade. 31

36

linguagem corrente à mera apropriação de um pensamento, sem julgá-lo ou asseri-lo como verdadeiro ou como falso. O uso do traço do juízo indica a afirmação deste pensamento – o reconhecimento e a asserção deste como verdade. Nas palavras de Frege: Diante da expressão de um conteúdo asserível, como 2 + 3 = 5, coloco um traço horizontal, o traço do conteúdo [Inhaltsstrich], que se distingue do sinal de subtração por seu maior comprimento: ─── 2 + 3 = 5 Por meio deste traço quero dizer que o conteúdo que se lhe segue está unificado de tal modo que outros sinais podem a ele relacionar-se. Em ─── 2 + 3 = 5 ainda não se formula um juízo. Pode-se, portanto, sem incorrer em falsidade, escrever também ─── 4 + 2 = 7. Se quero asserir um conteúdo como correto, coloco na extremidade esquerda do traço do conteúdo o traço de juízo [Urtelsstrich]: ├── 2 + 3 = 5. [...] Mediante esta notação, julguei ter estabelecido uma nítida diferença entre o ato de julgar e a formação do conteúdo asserível, [...] A fim de expressar a negação de um conteúdo, acrescentar ao traço de conteúdo o traço de negação, por exemplo: ─┬─ 4 + 2 = 7. No entanto, com isto ainda não se asseriu a falsidade desta equação. Formou-se apenas um novo conteúdo asserível que, após o acréscimo do traço do juízo, torna-se o juízo “4 + 2 não é igual a 7”: ├┬─ 4 + 2 = 7.32

O traço do juízo na linguagem científica de Frege parece fazer então o papel que tem a asserção na linguagem natural. A forma da sentença assertórica não é o único 32

FREGE, Gottlob. 1883, pp. 146-147.

37

meio de se expressar verdade na nossa linguagem, mas parece que para Frege ele é o principal, ou o primordial. A cópula entre sujeito e predicado: tal é a maneira primária de se expressar verdade na linguagem corrente. Ainda assim, na linguagem natural a predicação nem sempre está ligada à asserção e, portanto, à expressão da verdade. Trata-se aqui da importante diferença em Frege de apenas apreender um pensamento e de apresentá-lo ou julgá-lo como verdadeiro (ou como falso). A simples apreensão de um pensamento ocorre, na linguagem corrente, quando fazemos uma suposição, como no caso do cientista, exemplificado por Frege. Ou também quando fazemos uma pergunta, como “A neve é branca?”. Frege faz uso do traço do juízo na tentativa de separar o que na linguagem comum está confusamente misturado: a expressão de um pensamento e sua apresentação como verdade. Assim como, ao usarmos o traço do juízo, apresentamos um pensamento como verdadeiro. Em uma asserção fazemos a mesma coisa. Talvez a principal razão para a tese da indefinibilidade, tal como Frege a apresenta em O Pensamento, esteja precisamente nessa idéia. Esse ponto retomaremos a seguir. Por hora é importante termos em mente as próprias palavras de Frege ao dizer que a verdade da qual ele trata em seus escritos é aquela almejada pela ciência; que a verdade assume a forma de um predicado em nossa linguagem, mas que tal forma é enganadora; e que na linguagem comum a verdade está intimamente ligada ao ato da asserção e à forma da sentença assertórica, enquanto em sua notação Frege a apresenta ligada ao traço do juízo.

3.2. O QUE SIGNIFICA “DEFINIR”?

Como já apontado por Hans Sluga, em seu artigo Truth and the imperfection of language,33 talvez a idéia de que a verdade desempenha um papel tão fundamental na lógica contraste com a conclusão última a qual Frege parece chegar em suas investigações sobre o tema: de que o predicado de verdade parece ser destituído de sentido e que a verdade mesma não pode ser definida. Entretanto, sobre Sluga 33

SLUGA, Hans. 2007.

38

especificamente, bem como sobre as suas considerações sobre este assunto, trataremos com detalhe no próximo capítulo. É muito importante, naturalmente, que entendamos o que significa definir no contexto no qual estamos trabalhando. Em alguns trechos de sua obra Frege tenta claramente fazer uma distinção entre definição e elucidação, e este é um aspecto bastante relevante para o nosso trabalho. Frege traça essa diferença principalmente nos textos póstumos Logic in Mathematics e On the Foundations of Geometry. Este último tem duas partes, o primeiro é On the Foundations of Geometry: First Series e o segundo é On the Foundations of Geometry: Second Series. Ambos são importantes para a nossa discussão. Em geral, ao tratar da definição de conceitos, Frege trabalha de uma forma que é análoga ao trabalho na química. Ele parece crer que para definirmos um conceito precisamos analogamente aos químicos, que decompõem moléculas em átomos simples. De maneira semelhante, para definirmos um determinado conceito precisamos dividi-lo em conceitos mais simples. Mais ou menos como no seguinte esquema: Fx ↔ Gx ^ Hx sendo F um conceito qualquer que queremos definir. Assim, poderíamos dizer que se um indivíduo é F, então esse indivíduo é G e H, dois conceitos os quais são mais simples e que definem, de certa forma também constituindo, o primeiro. Assim procedendo chegaríamos, em última instância, a conceitos que são completamente simples e que por isso não podem ser definidos por conceitos ainda mais simples. Algo como “átomos conceituais”. O conceito de verdade seria algo como um “átomo conceitual”. E ainda mais, o que o diferencia dos conceitos em geral é que a verdade parece ter características muito especiais, de fato únicas. É certo que na visão de Frege verdade é algo simples, fundamental, algo pressuposto sempre que se diz qualquer coisa. Assim, o conceito de verdade em especial não poderia ser definido, embora a verdade assinale o objetivo de todas as ciências e o principal objeto da lógica.34

Soames faz uma análise da questão similar a esta, como veremos a seguir, em Understanding Truth. SOAMES, Scott. 1999. 34

39

Ainda assim, não parece ser devido a essa sua peculiar tese de como procedemos ao definir conceitos que Frege chega à conclusão de que a verdade não pode ser definida. Como já discutimos em brevidade, o principal motivo para a tese da indefinibilidade parece estar na forma da sentença assertórica e na relação desta com a verdade. Ainda mais confuso é o fato de que, embora naturalmente tenhamos a tendência de tratar a verdade como um conceito, Frege nunca se refere a verdade dessa forma. De qualquer maneira, não é por ser a verdade supostamente o conceito mais simples que a tese da indefinibilidade, ou ainda melhor, que a tese de que o predicado de verdade seria destituído de sentido, parece entrar em contraste com a tese de que o predicado de verdade assinala a essência da lógica, como já foi apontado por Sluga.35 Mas destes pontos trataremos mais adiante, depois de termos analisado esta tese fregeana passo a passo. Apesar de tudo, da tese da indefinibilidade do conceito de verdade não decorre que nada possa ser dito sobre a verdade. Esse é um ponto muito importante, sobre o qual já falamos brevemente, e que vale a pena ressaltar. Em Conceptions of Truth, Wolfgang Künne já aponta nesta direção, como veremos em detalhe no capítulo seguinte. De fato, Frege sustenta a idéia de que é possível elucidar, embora não seja possível definir a verdade, ao compará-la com conceitos e predicados diversos, como o belo e o predicado de beleza. Em sua argumentação Frege faz justamente isso. E muito extensamente no fragmento póstumo Logic. Lá o predicado de verdade é longamente comparado com o predicado de beleza. Frege considera em especial duas características do predicado “belo”: 1. ele admite graus; e 2. ele possui um caráter subjetivo. Como Frege entende a verdade, esta não possui nenhuma dessas características: ela não pode admitir graus nem ter caráter subjetivo. Verdade para Frege é algo objetivo e mesmo atemporal. Sobre o predicado da beleza, é possível julgar uma coisa bela e julgar uma outra coisa mais ou menos bela que a primeira. E ainda, mesmo que uma pessoa considere bela uma determinada obra de arte outra pessoa pode não ver beleza alguma nela. Em O Pensamento, como ainda veremos adiante, Frege se utilizará da suposição de que verdade também admite graus, demonstrando, por reducio ad absurdum, que tal suposição é insustentável. Frege chama atenção ainda, tanto em Logic quanto em O Pensamento, bem como em vários de seus escritos, para o caráter objetivo da verdade. 35

SLUGA, Hans. 2007.

40

Em Logic, ele escreve: “Mas algo não tem de ser verdadeiro porque eu o considero verdadeiro, e se ele não é verdadeiro em si mesmo, tampouco é verdadeiro para mim”. 36 Enquanto isso, coisas belas são belas aos olhos de quem as vê assim: de gustibus non disputandum, nos lembra Frege.37 Dizer que verdade também é relativa aos olhos de quem vê seria cair em uma tese, em última instância, também absurda e insustentável, pois cairíamos em um relativismo. Não haveria chão seguro para qualquer discussão científica, pois ninguém estaria habilitado a dar um veredicto seguro em qualquer assunto. Mas desses pontos trataremos novamente na próxima sessão, quando analisarmos os argumentos de Frege em defesa da indefinibilidade da verdade.

3.2.1. DEFINIÇÃO E E LUCIDAÇÃO

Como já discutimos brevemente, parece que para Frege em uma definição fazemos um trabalho análogo ao dos químicos, que decompõem moléculas complexas em átomos simples a fim de descobrir mais sobre a natureza das moléculas. Reduzimos conceitos complexos a conceitos mais simples, tendo um ganho explicativo da natureza dos conceitos que queremos definir. Em uma elucidação, por outro lado, isso não ocorre. Em uma elucidação fazemos sim uma explicitação, que pode ser de natureza positiva ou negativa, das características de um conceito que é obscuro para nós. Em geral em tal processo o comparamos o conceito a ser elucidado com outros conceitos, com os quais ele compartilha semelhanças (e nesse caso fazemos uma explicitação de suas características de forma positiva) e dessemelhanças (fazendo uma explicitação das características de forma negativa). Mesmo que, por exemplo, o conceito de verdade não possa ser definido, ele pode ser elucidado, e muito pode ser dito sobre ele. On the Foundations of Geometry (tanto o primeiro quanto o segundo) e Logic in Mathematics são muito importantes para entendermos a diferença entre o que Frege

“But something does not have to be true because I consider it to be true, and if it is not true in itself, it is not true for me either”. Tradução nossa, do original em inglês. FREGE, Gottlob. 1897, p. 132. 36

37

Ibidem.

41

começa chamando de definições e exemplos ilustrativos,38 que trataremos aqui sempre por definição e elucidação, respectivamente. De fato o próprio Frege chama tais exemplos ilustrativos de elucidações,39 e também simplesmente de explicações.40 O próprio Frege faz ainda uma distinção entre dois tipos de definição. O primeiro tipo ele chama de definição analítica (analytic definition), embora afirme que prefere chamar este tipo de definição de axioma. Falaremos aqui, ainda assim, de definição analítica. Esse é o tipo de definição que mais nos interessa, e é a definição tal como a entendemos até agora, aquela que pode ser comparada a divisão de uma molécula em átomos simples. De acordo com Frege, em uma definição analítica o que se faz é a decomposição de um sentido complexo em sentidos menos complexos. Assim, se quisermos definir um conceito, só podemos definir um conceito complexo. De fato, isso nos leva a pensar que não podemos definir tudo, pois em certo ponto chegaríamos aos conceitos mais simples, os conceitos básicos, o que já chamamos de “átomos conceituais”. O segundo tipo de definição é o que Frege chama de definição construtiva (constructive definition). Definições construtivas são como estipulações, por isso poderíamos talvez chamá-las de definições estipulativas. O objetivo ao se fazer uma definição estipulativa é fazer um tipo de abreviação de uma definição complexa em um símbolo simples. Esse símbolo, que pode ser uma palavra ou uma expressão, adquire então um significado estipulado a partir do significado de um determinado número de expressões que na linguagem comum são similares. Aqui, de acordo com Frege, construímos o sentido de algo a partir do sentido de constituintes lingüísticos mais simples. Isso é necessário na ciência em geral para evitar ambigüidades. Um problema com o qual Frege aparentemente preocupava-se muito. Como sabemos, Frege buscou rigor para a linguagem lógica, a fim de atribuir com isso rigor também à matemática e fazer dela uma ciência clara e precisa. A linguagem de uma ciência em geral precisa ter um grau de clareza alto o suficiente para que avanços sejam feitos mais facilmente pela comunidade científica como um todo (de diferentes nacionalidades, inclusive). Para que 38

FREGE, Gottlob. 1914, p. 207.

39

FREGE, Gottlob. 1906, p. 301.

40

Ibidem.

42

esse alto grau de clareza seja atingido é necessário que a linguagem da ciência em questão seja arregimentada, ou seja, que se encontrem termos fixos com sentidos bem definidos. Isso facilita muito o compartilhamento, a divulgação e a discussão de novas idéias e descobertas entre pesquisadores de vários lugares diferentes. Há ainda outro aspecto relevante, dessa vez um aspecto da linguagem natural, que justifica o uso de definições construtivas. Muitas vezes na linguagem natural uma mesma expressão pode ser usada tento, em diferentes situações, vários diferentes significados. Por isso dependemos muito do contexto, algo que já é enfatizado por Frege, no uso cotidiano da linguagem, para entendermos qual é o significado de determinadas expressões. Como Frege diz: “Mas uma linguagem que é feita para emprego científico não deve deixar nada para adivinhação”.41 Então, a tarefa de uma definição construtiva, ou estipulativa, é estipular o significado de um termo. Isso é muito feito em filosofia ou em trabalhos acadêmicos em geral. Mesmo nos escritos de Frege. Basta lembrarmos que Frege usa palavras da linguagem natural como “pensamento”, ou expressões como “o verdadeiro” e “o falso”, para referir-se a objetos importantíssimos em suas teses que não necessariamente estão de acordo com os significados que cotidianamente podemos atribuir a essas expressões. Assim, tão clara quanto a diferença entre análise e estipulação, podemos perceber a diferença entre esses dois tipos de definição. No seguinte trecho Frege dá uma explicação muito clara de definições construtivas: Permanecemos então com a nossa concepção original: uma definição é uma estipulação arbitrária pela qual um novo signo é introduzido para tomar o lugar de uma expressão complexa cujo sentido nós conhecemos pelo modo como ela é reunida. Um signo que até então não tinha sentido adquire o sentido de uma expressão completa por definição.42

FREGE, Gottlob. 1914, p. 213. No original em inglês: “But a language that is intended for scientific employment must not leave anything to guesswork”. Tradução nossa. 41

Ibidem, p. 211. No original em inglês: “We stick then to our original conception: a definition is an arbitrary stipulation by which a new sign is introduced to take the place of a complex expression whose sense we know from the way it is put together. A sign which hitherto had no sense acquires the sense of a complex expression by definition”. Tradução nossa. 42

43

Não só em Logic in Mathematics, mas também em On The Foundations of Geometry Frege escreve longamente sobre a diferença entre o que ele chama de axiomas (definições analíticas) e definições (definições construtivas). Frege nos diz que em um axioma, ou definição analítica, há um ganho em conhecimento, enquanto definições construtivas não estendem nosso conhecimento de forma alguma. Ele escreve: “É apenas um meio de reunir um conteúdo variado em uma palavra ou signo breve, assim tornando a manipulação mais fácil para nós”.43 Como apontado, a idéia de que só é possível definir um conceito complexo pode nos levar a pensar que não podemos definir tudo; que em certo ponto chegaremos aos conceitos mais simples e indefiníveis. E de fato, Frege diz, no segundo Foundations of Geometry: “Devemos admitir elementos logicamente primitivos que são indefiníveis”. Mais a frente, ele continua: “Já que definições não são possíveis para elementos primitivos, algo a mais deve ser introduzido. Eu chamo isso de explicação”.44 Para a verdade, que em O Pensamento e em Logic Frege defende ser indefinível, ele faz exatamente isso: diante da impossibilidade de uma definição da verdade Frege a elucida, comparando o predicado de verdade com outros predicados e observando certas características dele. Diante dessa declaração de Frege, de sua conclusão sobre a indefinibilidade da verdade, e diante do fato de que ele não chama a verdade de conceito, novamente somos levados a confrontar a questão de se a verdade é de fato um conceito tal como em geral entendemos conceitos. Frege parece sim achar que a verdade é um elemento lógico primitivo, que não pode ser definido, e que por isso deve ser explicado, ou elucidado. Frege nos diz que a grande vantagem de uma elucidação é o entendimento mútuo sobre o que se fala, entre aqueles que investigam o aquilo que está em questão, e que prova ser indefinível. O importante é mantermos em mente que, para Frege, verdade é algo básico (mesmo que não seja propriamente um conceito, como poderíamos vir a pensar intuitivamente). Frege parece realmente defender que a verdade é pressuposta ao FREGE, Gottlob. 1903, p. 274. No original em inglês: “It is only a means for collecting a manifold content into a brief word or sign, thereby making it easier for us to handle”. Tradução nossa. 43

FREGE, Gottlob. 1906, p. 300. No original em inglês, respectivamente: “We must admit logically primitive elements that are indefinable” e “Since definitions are not possible for primitive elements, something else must enter in”. Tradução nossa. 44

44

afirmarmos qualquer coisa, pois está intimamente ligada sentença assertórica junto com sua força, na linguagem natural, e ao traço do juízo, em sua notação científica, o qual ocupa nesta um papel central. Verdade faz parte, provavelmente também por isso, do centro da lógica, tal como ela era então entendida por Frege.

3.3. O PENSAMENTO E A CRÍTICA À TEORIA DA VERDADE COMO CORRESPONDÊNCIA

O texto O Pensamento, apesar de discorrer sobre a verdade, tem como objetivo principal esclarecer o que Frege entende por “pensamento”. De fato, investigações sobre o conceito da verdade seguem naturalmente da discussão de Frege sobre os pensamentos. Nesse sentido, uma discussão está intimamente ligada à outra. Isso porque é uma das características dos pensamentos serem verdadeiros ou falsos. E é característico, segundo Frege, de pensamentos, e também dos objetos o verdadeiro e o falso, serem objetivos, como já vimos. De fato, Frege diz dos pensamentos que eles nem pertencem ao mundo físico nem tampouco ao mundo psicológico. Eles pertencem ao “terceiro reino” (ou “terceiro domínio”). É preciso admitir um terceiro domínio. O que este contém coincide com as idéias, por não poder ser percebido pelos sentidos, e também com as coisas, por não necessitar de um portador cujo conteúdo de consciência pertenceria. 45

A este reino também pertencem os valores de verdade, que, como vimos, para Frege são apenas dois: o verdadeiro e o falso. Frege torna muito explícita a relação íntima entre pensamento e verdade, bem como as semelhanças com relação a suas naturezas, já no final do texto. Ele diz: Pois o que chamei de pensamento está na mais estreita relação com a verdade. O que reconheço como verdadeiro, julgo ser verdadeiro independentemente de reconhecelo como verdadeiro e independentemente de pensa-lo.46

45

FREGE, Gottlob. 1918, p. 27.

46

Ibidem, p. 34.

45

Como vimos anteriormente, Frege defende esse ponto também em Logic. Os pensamentos, ou proposições, bem como os valores de verdade, o verdadeiro e o falso, são objetivos e atemporais, são objetos do terceiro reino, o “mundo do não-efetivo objetivo”. Frege não elabora o argumento da indefinibilidade imediatamente. Antes disso ele constrói diversas críticas a clássica teoria de que o conceito de verdade pode ser definido através de algum tipo de correspondência. Os argumentos que Frege concebe são apresentados todos de maneira indireta: ele assume algumas hipóteses de definição da verdade, deriva delas conseqüências inaceitáveis e conclui, por reducio ad absurdum, que devemos rejeitá-las. Sua argumentação é quase completamente baseada em redução ao absurdo, e é completamente indireta. O argumento mesmo da indefinibilidade é baseado principalmente em uma circularidade, portanto ele também rejeita a hipótese indiretamente. Frege constrói o argumento da indefinibilidade da verdade a partir de uma generalização de seu argumento anterior, contra um tipo de tese correspondentista. É possível dividir a argumentação fregeana contra a teoria da correspondência da verdade, grosso modo, em dois momentos. No primeiro desses encontramos dois argumentos que estão intimamente relacionados e no segundo momento podemos reconstruir três argumentos distintos, mas que também guardam certa semelhança entre si. Vejamos. No primeiro momento, Frege tece uma crítica que poderia ser, com alguma alteração, ser direcionado ao Tractatus de Wittgenstein.47 Frege assume a hipótese de que a verdade possa ser primariamente atribuída a imagens, e não a pensamentos. Ele conclui que para isso de fato ocorrer “a imagem tem que representar algo”.48 Seguindo a idéia de Frege de que por vezes há um deslocamento de sentido da palavra “verdadeiro”, enquanto um objeto físico, uma imagem não pode ser verdadeira ou falsa por si mesma, pelo menos não no sentido em que entendemos verdade aqui (a verdade que representa a meta da ciência). Uma imagem só é verdadeira ou falsa se existe uma

É muitíssimo provável que Frege tenha tido Wittgenstein em mente ao escrever O Pensamento. Sluga aponta para essa possibilidade em seu texto Frege on the Indefinability of Truth, como veremos detalhadamente no próximo capítulo. 47

48

FREGE, Gottlob. 1918, p. 13.

46

intenção de representar determinada coisa de determinada maneira. Por exemplo, um pintor poderia fazer uma imagem da catedral de Colônia bastante fiel à catedral real. Diríamos que tal imagem é verdadeira se a intenção do artista é aproximar-se ao máximo da realidade, ou, digamos, fazer algum tipo de documentário histórico. Se, no entanto, a intenção fosse criar uma imagem de como a catedral de Colônia seria se em sua construção um diferente estilo arquitetônico tivesse sido adotado, então aquela imagem seria dita falsa. Ora, para Frege a verdade não poderia depender de um aspecto subjetivo, tal como a intenção de alguém. Além disso, para que uma imagem seja considerada verdadeira deveria haver algum tipo de isomorfia com a coisa por ela representada, seja ela qual for. Por isso, esse argumento já é direcionado a teoria da correspondência, porque a imagem deveria corresponder de alguma maneira com a coisa retratada. No entanto, segundo Frege, em nossa linguagem o predicado de verdade não indica uma relação, e certamente não uma intenção. Como vimos, admitir que a verdade pressupõe uma intenção seria cair em alguma forma de psicologismo, contra o qual Frege luta constantemente. De fato, é claro que qualquer tipo de correspondência deve pressupor uma relação (quando não uma intenção), e Frege atenta para isso. Supondo então “que a verdade consiste em uma correspondência entre imagem e seu objeto”,49 Frege passa ao seu segundo argumento, que se trata de uma análise sintática do predicado de verdade. A argumentação de Frege continua então da seguinte maneira: “Mas correspondência é uma relação. Isto porém se choca com o modo habitual de se usar a palavra “verdadeiro”, que não é uma palavra relacional e nem contém nenhuma indicação de nada com o qual algo deva corresponder”.50 De acordo com Frege parece então ser um erro categorial identificar verdade com correspondência, pois do ponto de vista sintático verdade e correspondência pertencem a categorias diversas. Verdade, em nossa gramática, assume a forma de uma propriedade, um predicado que é atribuído a algo. E correspondência é uma relação. A princípio, se analisarmos o sentido de “é verdadeiro” não encontramos indicação do objeto ao qual aquilo que é verdadeiro deva corresponder, ou com o qual ele deva se 49

Ibidem.

50

Ibidem.

47

relacionar de alguma forma. Como veremos, em Understanding Truth, Soames tece uma interessante crítica a este argumento de Frege em particular. Trataremos disso no próximo capítulo.51 A partir daqui começa o que em nossa reconstrução é o segundo momento da argumentação fregeana contra a teoria da correspondência. Este momento é composto por três argumentos: três hipóteses que Frege tenta mostrar serem absurdas. Primeiro, Frege supõe que verdade seja definida como uma correspondência perfeita; então ele supõe que verdade possa ser explicada por uma correspondência imperfeita, em certo grau; e finalmente, supõe-se que verdade seja uma correspondência relativa a um determinado aspecto, ou “ponto de vista”. Frege escreve: “Uma correspondência só pode ser perfeita quando as coisas em correspondência coincidem; quando não são coisas distintas”.52 Quer dizer, um determinado x corresponde a y se, e somente se, para toda propriedade F de x, F também é propriedade de y e vice versa. Vemos que, para que a correspondência fosse perfeita, todos os aspectos, de x e de y, deveriam corresponder. Mas isso caracteriza uma relação de identidade. Agora, Frege não diz isto explicitamente, mas para ele o portador de verdade e o fornecedor de verdade necessariamente tem de ser diferentes. É nessa idéia que se baseia o argumento contra a verdade como uma correspondência perfeita. Se a correspondência é perfeita, isso implica que verdade é um tipo de identidade. Frege nos diz: “Ora, isto é justamente o que não se quer quando se define a verdade como a correspondência entre uma idéia e um objeto real. Pois é absolutamente essencial que o objeto real seja distinto da idéia”.53 Se a tese da verdade como correspondência perfeita leva a conclusão de que não há diferença entre verdade e identidade, Frege a rejeita por reducio ad absurdum. Diante do fracasso dessa primeira suposição, Frege se pergunta se a verdade poderia ser definida como uma “correspondência imperfeita”, como uma semelhança em um ou mais aspectos. Nesse caso, um determinado x corresponde a y se, e somente se, existe pelo menos uma propriedade F, de maneira que F é propriedade de x e de y 51

Cf. p. 54 abaixo.

52

Ibidem.

53

Ibidem.

48

em um determinado grau z. Tal tese implicaria que há graus de verdade, que algo poderia ser mais ou menos verdadeiro, ou parcialmente verdadeiro. Mas isso levaria a conclusão absurda de que nada é de fato verdadeiro, “pois o que é apenas parcialmente verdadeiro não é verdadeiro. A verdade não admite mais ou menos”.54 Assim, Frege levanta uma última hipótese, a saber, de que a verdade poderia ser definida como uma correspondência relativa a certo aspecto. Ele escreve então o seguinte: “Não se poderia estabelecer que há verdade quando a correspondência se dá sob um determinado ponto de vista? Mas sob qual ponto de vista? O que deveríamos fazer, então, para decidir se algo é verdadeiro?”.55 Tal aspecto, ou “ponto de vista”, poderia ser qualquer coisa. Poderia ser a estrutura lógica, num caso de isomorfia, novamente semelhante à tese do Tractatus, ou qualquer outra propriedade em comum entre o portador de verdade e o fornecedor de verdade, o objeto real. Frege chega à conclusão de que qualquer definição desse tipo gera um regresso vicioso. Ele vai então generalizar este último argumento, que refuta, por gerar um regresso vicioso, a tese da definição da verdade através da correspondência em relação a um dado aspecto. Frege concluirá que esta tentativa de definição da verdade, bem como qualquer outra, estão fadadas ao fracasso. Na próxima sessão avaliaremos o argumento da indefinibilidade em si.

3.4. O ARGUMENTO DA INDEFINIBILIDADE

Vejamos como Frege continua sua argumentação em O Pensamento, chegando afinal à tese da indefinibilidade: Deveríamos investigar se é verdadeiro que, digamos, uma idéia e um objeto real se correspondem segundo o ponto de vista estabelecido. E, desse modo, novamente nos defrontaríamos com uma pergunta do mesmo gênero que a anterior, e o jogo recomeçaria uma vez mais. Assim malogra esta tentativa de explicar a verdade como correspondência. E malogra também qualquer outra tentativa de definir o ser

54

Ibidem.

55

Ibidem.

49

verdadeiro. Pois numa definição cumpre indicar certas notas características da verdade; e ao aplicá-la a um caso particular surgiria novamente a questão de se é verdadeiro que tais notas são constatadas. E assim nos moveríamos em círculo. Por conseguinte, é provável que o conteúdo da palavra “verdadeiro” seja único e indefinível.56

O argumento a favor da indefinibilidade da verdade tal como ele é apresentado nesse trecho de O Pensamento intenciona mostrar a falha dessas e de quaisquer outras tentativas de definição da verdade, porque sempre é gerado um regresso vicioso ou uma circularidade. Na definição de um determinado termo, tal como é padrão em filosofia e nas ciências em geral, não podemos: 1. Gerar uma cadeia infinita de sentenças que igualmente precisam de definição; ou 2. Usar o termo que estamos tentando definir, ou pressupor um conhecimento prévio dele. Usualmente uma boa definição deve servir como uma explicação, possibilitando o entendimento daquilo que se busca definir por alguém que não sabe o que essa coisa é. Como vimos, Frege generaliza a refutação de sua última hipótese de definição da verdade, a saber, por correspondência relativa a um aspecto, para qualquer tipo de definição da verdade. Analisemos como seria o esquema de definição da verdade sob um aspecto. Chamaremos tal esquema de (I): (I) p é verdadeiro se, e somente se, p corresponde com um objeto real no aspecto A. Precisamos decidir então se um determinado pensamento, aqui representado por p, é verdadeiro. Para Frege, se para tal fazemos uso de (I), precisamos estabelecer também se é verdade que “p corresponde com um objeto real no aspecto A”. Portanto, para estabelecer a verdade de um pensamento, a saber, p, temos que estabelecer a verdade de outro pensamento, a saber, aquele que usamos para estabelecer a verdade do primeiro: “p corresponde com um objeto real no aspecto A”. Chamemos esse segundo pensamento de q. Assim, teríamos um esquema do tipo, que chamaremos de esquema (R), para “regresso”: (R) p é verdadeiro se, e somente se, q. Em uma definição como essa, geramos apenas mais uma sentença, dessa vez Ibidem, pp. 13-14. Fizemos aqui uma pequena correção na tradução, já sugerida em: GREIMANN, Dirk. 2007, pp. 138-139. 56

50

sobre a correspondência de p com alguma coisa, cuja verdade pode ser posta a prova, fazendo com que entremos em um regresso vicioso.57 Interromper o regresso não ajudaria, pois para afirmar q já estaríamos pressupondo a verdade que queremos definir.58 Mas podemos entender as razões de Frege ainda de outra forma. Parece que para ele qualquer tipo de definição tal como concebemos definições não poderia explicar o que é verdade. Isso acontece simplesmente porque uma definição nunca poderia explicar o que fazemos com a sentença assertórica, já que definições se utilizam de sentenças desse tipo. E na linguagem natural a verdade se encontra justamente na asserção, no que classicamente entendemos como a junção entre sujeito e predicado. Esse ponto parece bem claro pelo que Frege escreve em O Pensamento, especialmente quando ele nos diz que verdade é aquilo que reconhecemos “sob a forma da sentença assertiva”.59 Sempre que fazemos uma asserção de forma séria nos utilizamos da verdade. Por isso, nenhuma definição da verdade pode de fato ser dada.

57

Nossa reconstrução aqui se assemelha a de Dummett, sobre a qual falaremos mais logo a seguir.

58

Sluga sugere uma interpretação semelhante em: SLUGA, Hans. 1999, pp. 34-35.

59

FREGE, Gottlob. 1918, p. ??.

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CAPÍTULO 4. AS RECONSTRUÇÕES DA TESE NA LITERATURA

We’re truth seekers really, trying to figure out what’s the right thing to think. Julian Dodd, em entrevista para o The Guardian de 8 de dezembro de 2007.

Neste capítulo apresentaremos algumas das reconstruções da tese fregeana da indefinibilidade da verdade mais importantes na literatura sobre o tema disponível até hoje. Buscaremos, a princípio, apresentar as reconstruções o mais imparcialmente possível. Depois disso, faremos uma discussão crítica de cada reconstrução, analisando quais aspectos parecem estar de fato em acordo com a concepção que Frege sustentou, quais aspectos são problemáticos e quais são as críticas que parecem mais relevantes.

4.1. SCOTT SOAMES: UMA FORMA DE CETICISMO COM RELAÇÃO A VERDADE?

Em Understanding Truth, Scott Soames analisa a argumentação de Frege sobre a verdade em O Pensamento na tentativa de: 1. Mostrar alguns dos motivos por trás da tese da indefinibilidade; 2. Criticar os argumentos utilizados por Frege para defendê-la. No fim Soames parece concluir que os argumentos em O Pensamento não são suficientemente fortes para suportar a idéia de que o conceito de verdade não é definível. Para Soames, o principal argumento de Frege se ampara na circularidade e/ou no regresso ao infinito a que qualquer tentativa de definição do conceito de verdade levaria. Soames aponta, no entanto, falhas no argumento fregeano tal como ele o reconstrói. E vai além para tentar mostrar que, mesmo que tais falhas não sejam óbvias, das premissas de sua reconstrução do argumento de O Pensamento não segue um regresso ao infinito ou uma circularidade. Antes de analisar de fato o argumento de Frege reconstruindo-o, Soames chama atenção para alguns pontos no texto fregeano que são de fundamental importância para a tese da indefinibilidade. De fato, já tivemos a oportunidade de chamar atenção para alguns desses pontos anteriormente. Soames também se utiliza daquela importante 52

passagem de O Pensamento na qual Frege dá o exemplo da equivalência entre “Sinto um perfume de violetas” e “É verdade que sinto um perfume de violetas”, e do cientista que afirma “o que eu supunha é verdadeiro”. Soames apóia-se no exemplo de Frege para chamar atenção para os dois tipos de “ambientes” (environments) nos quais, na linguagem natural, o predicado de verdade possui diferentes funções de uso. No primeiro tipo de ambiente o uso do predicado é supérfluo e nada acrescenta ao pensamento. No segundo tipo de ambiente o pensamento ao qual se atribui verdade não é asserido diretamente, por isso o predicado não é dispensável. Soames chama atenção ainda para o fato de que verdade (ou falsidade) é uma propriedade de pensamentos (proposições). São os pensamentos os portadores primários de verdade, na concepção fregeana. Soames atenta também para o ato da asserção. Ele nos diz que, de acordo com Frege, ao asserir, o indivíduo entra em relação com um pensamento. A saber, o pensamento ao qual corresponde a sentença no momento de seu proferimento. Ainda antes de analisar o argumento mesmo da indefinibilidade da verdade de O Pensamento, Soames faz uma crítica a um dos argumentos de Frege contra as teorias correspondencionalistas da verdade. Soames tenta mostrar que esse argumento de Frege na verdade não tem força contra tais teorias. Como vimos,60 logo no início de sua argumentação em O Pensamento, Frege faz uma análise sintática da gramática da palavra “verdadeiro” na linguagem natural. Esse tipo de análise por parte de Frege parece estranha, já que seu objetivo não parece ser fazer uma análise da linguagem natural como as que se fazem hoje em dia em filosofia da linguagem. Poderíamos assim interpretar a escolha de Frege em tecer esse tipo de argumentação como um tipo de preparação para o argumento de fato, a ser apresentado em seguida? De qualquer forma, a argumentação em questão de Frege se dá basicamente da seguinte forma, tal como reconstruída por Soames: 1. Frege nos diz que a verdade assume a forma de um predicado que é atribuído a objetos individuais; 2. Correspondência é uma relação, que acontece entre pelo menos dois objetos; 3. Assim, a

60

Cf. pp. 48 e 49 acima.

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verdade não pode ser identificada com correspondência, já que não é uma relação de forma alguma. Soames argumenta que teorias correspondencionalistas não defendem que “ser verdadeiro” significa “corresponder a”. Elas defendem sim que a verdade é uma propriedade que se aplica à individuais. A verdade é uma propriedade de ter uma relação de correspondência com algo (na realidade. Soames dá o exemplo da propriedade de ser pai. Essa não é uma propriedade relacional, mas é a propriedade de ter uma relação de paternidade com alguém. Agora, esse argumento de Soames parece bastante plausível e pertinente. Mas o argumento de Frege criticado aqui não é o seu único argumento contra a teoria da correspondência dado em O Pensamento. Vimos que ele assume a hipótese de que a verdade possa ser definida através de uma relação de correspondência de várias formas – uma correspondência perfeita; uma correspondência em certo grau; uma correspondência com relação a um aspecto. Frege de fato não parece querer construir argumentos muito sofisticados ou elegantes. Seus argumentos certamente podem ser criticados de várias formas, principalmente se nos debruçarmos para o uso do predicado de verdade na linguagem natural. Por exemplo, ao criticar a definição de verdade através de uma correspondência em certo grau, Frege argumenta que a verdade não admite mais ou menos. Provavelmente isso combine bem com sentenças da sua Begriffsschrift, mas sabemos que na linguagem cotidiana é possível dizer de algo, como um relato, por exemplo, que ele é mais verdadeiro que outro. No entanto, não parece ser o objetivo final de Frege analisar o funcionamento da linguagem natural por si mesma, mas estabelecer as bases de uma linguagem logicamente aperfeiçoada. E de qualquer forma, o principal argumento de Frege é aquele que ele constrói contra a teoria da correspondência, mas que pretende generalizar contra qualquer tipo de tentativa de definição da verdade. Soames reconstrói o argumento em questão da seguinte forma: Uma das primeiras coisas que faz Soames ao escrever sobre a tese de Frege sobre a verdade é atentar para o fato de que pensamentos são, na concepção fregeana, os portadores primários de verdade (ou falsidade). Embora ele ainda se refira a verdade como uma propriedade de pensamentos, o que não parece realmente ser a opinião de 54

Frege. Mas Soames é muito feliz ao chamar atenção para a distinção dos tipos de uso do predicado de verdade a qual Frege se refere em O Pensamento. Ele reconstrói essa distinção fregeana de uma forma muitíssimo clara e elucidativa. No entanto, ao falar sobre o ato da asserção, Soames parece deixar um aspecto importante da tese fregeana fora de suas observações. Já abordamos brevemente tal aspecto acima. Trata-se da sentença assertórica. Ou mais precisamente, da forma da sentença assertórica combinada com a força assertórica, que, segundo Frege, é onde reside a forma de expressão primária da verdade na linguagem natural, tal como ele compreendia a verdade. Soames reconstrói o argumento de Frege a favor da indefinibilidade da verdade de duas formas, uma enfatizando a conclusão que leva ao regresso ao infinito e a outra com ênfase na conclusão que leva a circularidade. Ele começa por avaliar o argumento do regresso. E concentra suas críticas no seguinte ponto em sua reconstrução do argumento: Questionar (estabelecer) se S é questionar (estabelecer) se é verdade que S, que é questionar (estabelecer) se a proposição que S é verdadeira. Segundo Soames, esse é um esquema cujas instâncias podem ser usadas cada uma como um argumento por si mesmas. Para conseguir uma instância deve-se substituir S por uma sentença declarativa do português (ou da língua em questão, dependendo do caso). Soames, em uma argumentação que lembra a de Dummett em Frege Philosophy of Language, escreve que mesmo que alguém tenha estabelecido que S, pode ser que não se tenha explicitamente considerado a afirmação de que é verdade que S.61 É claro, para Frege o que parece é que a verdade é algo que está implícito em qualquer asserção (séria), então asserindo que S você está asserindo a verdade de S, apresentando esse pensamento como verdadeiro. Mas Soames argumenta que embora ao estabelecer que S pode ser que se estabeleça implicitamente que é verdade que S, tem que haver alguma asserção (é verdade que é verdade que... S) que não tenha sido estabelecida.62

61

Cf. SOAMES, Scott. 1999, p. 26.

62

Ibidem.

55

De acordo com a objeção de Soames é principalmente por isso que o argumento de Frege não gera o regresso ao infinito. Pois é absurdo pensar que não se pode estabelecer S sem antes estabelecer que é verdade que S e assim por diante. Soames vai em frente para fazer uma objeção a conclusão do argumento fregeano que leva a uma circularidade. Soames nos diz que ao definirmos um conceito, explicamos a compreensão desse conceito através da compreensão anterior que temos de conceitos que usamos para defini-lo. Ele diz que “uma definição é circular quando nossa compreensão mesma dos conceitos definidores depende de uma compreensão anterior do conceito a ser definido”.63 Soames não acha que o argumento de Frege mostra que as definições de verdade são circulares nesse sentido. Mas se a verdade na visão de Frege está implícita na asserção, ao asserir qualquer coisa, inclusive a tentativa de uma definição para a verdade, estaríamos nos utilizando (implicitamente) dela. Isso não seria suficiente para fazer da definição uma definição circular?

4.2. MICHAEL DUMMETT: PODE A VERDADE SER DEFINIDA?

É interessante notar que, pelo menos aparentemente, pelo que escreve em seu Frege Philosophy of Language, Dummett entende os valores de verdade fregeanos, o verdadeiro e o falso, como verdade e falsidade, respectivamente, e assim os trata, afirmando que verdade e falsidade são termos mais naturais.64 Talvez seja interessante para nós se analisarmos alguns pontos da interpretação de Dummett que antecedem e preparam sua análise do argumento fregeano da indefinibilidade. Um ponto interessante é a questão do ato do juízo, o ato da asserção, a força assertórica e como essas questões estão interligadas. Em uma longa argumentação, através de alguns experimentos de pensamento e analogias, Dummett compara a força das sentenças assertóricas com os atos lingüísticos que são realizados não só ao asserirmos algo, mas também ao darmos um comando, levantarmos uma questão ou manifestarmos nosso desejo entre duas opções. Na visão de Dummett todos esses tipos 63

Ibidem.

64

DUMMETT, Michael. 1981, p. 298.

56

de sentença expressam pensamentos, diferindo apenas no tipo de força que é ligado a elas. Tal opinião não é compartilhada, a princípio, por Frege, como escreve Dummett. Para Frege apenas asserções expressariam pensamentos.65 Tal era a tese fregeana pelo menos no início de sua carreira, provavelmente até o artigo Sobre o Sentido e a Referência. No fim de sua vida Frege admite que interrogações com a mesma forma de sentenças assertóricas expressam os mesmos pensamentos que suas asserções correlatas, com diferença na força empregada.66 Dummett discorre muito e muito bem sobre a necessidade que Frege via em criar um símbolo especial para a asserção, a saber, o traço do juízo. Não por causa das diferentes “forças” com as quais expressamos sentenças, ou não exatamente por isso, mas por causa da “possibilidade de usar sentenças assertóricas como sentenças completas, mas destituídas de sua força assertórica”.67 De fato, essa questão está no centro da teoria fregeana do juízo: a diferença entre a simples posse de um pensamento e o ato de julgá-lo como verdadeiro, para depois exprimi-lo como tal através da asserção. Dummett atenta também para a diferença entre o modo como opera o traço do juízo na linguagem formal fregeana, seu correlato na linguagem natural (a asserção, ou a forma da sentença assertórica – junto com sua força), e o predicado de verdade “é verdadeiro/verdade” ou “é verdade que”. Para Frege, salienta Dummett, o predicado de verdade não faz nenhuma contribuição para o sentido da sentença a qual o aplicamos. Essa tese Dummett retomará mais a frente, quando estiver de fato analisando o argumento fregeano a favor da indefinibilidade da verdade. Dummett parece entender o juízo como um processo interior, subjetivo, que tem como correlato o ato exterior da asserção, ou tem na asserção sua exteriorização. Segundo Dummett, o uso da asserção para Frege é a tentativa de atingir a classe das sentenças cuja referencia é o verdadeiro, ou como Dummett entende, a verdade. Dummett examina ainda três importantes teses fregeanas que envolvem de alguma forma o conceito de verdade: 1. Pensamentos são os portadores primários de

65

Cf. Ibidem, p. 307.

66

Ibidem, p. 308.

67

Ibidem, pp. 308-309.

57

verdade e falsidade; 2. Valores de verdade são as referências de sentenças verdadeiras ou falsas; e 3. A indefinibilidade da verdade. Ele deixa claro que entende Frege como um realista com relação a verdade, embora saliente que, diferente da maioria dos realistas tradicionais, Frege não entenda verdade como qualquer tipo de relação de correspondência. Dummett atenta para tal característica da noção fregeana de verdade logo no primeiro parágrafo do capítulo em Frege Philosophy of Language dedicado à análise da tese fregeana da indefinibilidade da verdade. Dummett ressalta a distinção fregeana, feita nas primeiras páginas de O Pensamento, entre as diferentes coisas às quais podemos atribuir verdade: imagens (pictures), sentenças e pensamentos. A verdade de uma imagem é relacional – dependendo do objeto representado. Em contraste, atenta Dummett, uma sentença “é simplesmente verdadeira ou falsa sem qualificação”. 68 Aqui Dummett parece usar “sentença” e “pensamento sem uma rigorosa distinção. De fato, ele atenta ainda para uma outra característica na tese fregeana sobre a verdade apresentada em O Pensamento sobre a qual já falamos aqui: é o deslocamento de sentido que às vezes ocorre da palavra verdadeiro. É dessa forma que a noção de verdade aplicada à imagens pode ser reduzida à noção de verdade de “sentenças ou pensamento”, nas palavras de Dummett.69 Pois ao perguntar sobre a verdade de uma imagem estamos, de acordo com Frege, em última instância perguntando se o pensamento de que aquela imagem corresponde ao objeto real (ou à qualquer que tenha sido a intenção do pintor ao produzir a imagem) é verdadeiro. A partir daí não se pode mais reduzir, nos diz Dummett: a verdade de uma sentença/um pensamento não pode corresponder a nada. De fato, Dummett aponta para a tese fregeana exposta no final do texto O Pensamento que identifica fatos com pensamentos verdadeiros, nos levando a crer que fatos “pertencem, não ao reino da referência, mas ao do sentido”.70 Dummett tenta então mostrar que o argumento de Frege a favor da indefinibilidade da verdade em O Pensamento não é suficiente para sustentar a conclusão

tão

forte

à

qual

ele

chega.

É

mostrado

que

a

verdade

de

68

Ibidem, p. 442. No original: “is simply true or false without qualification”. Tradução nossa.

69

Ibidem.

70

Ibidem. No original: “belong, not to the realm of reference, but to that of sense”. Tradução nossa.

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sentenças/pensamentos não pode ser reduzida a nada mais pelo seguinte argumento: se a verdade de uma sentença p consistisse na correspondência de p com alguma coisa W, então teríamos que perguntar se essa correspondência de fato ocorre, perguntando se a nova sentença q: “p corresponde com W” é verdadeira. Mas se verdade consiste em uma correspondência, então q deveria corresponder com outra coisa, que Dummett chama de W*. Nesse caso, teríamos que perguntar se essa nova correspondência de fato ocorre, perguntando se a sentença “q corresponde com W*” é verdadeira. Ficaríamos então presos em uma investigação dessa natureza que regressaria indefinidamente. Dummett argumenta que esse tipo de regresso na realidade não implica na definibilidade ou na indefinibilidade da verdade. De fato, Dummett defenderá que o argumento de Frege em O Pensamento não mostra que a verdade é indefinível, mas resulta apenas no estabelecimento de coibições a qualquer definição de verdade que possa ser considerada aceitável. Dummett argumenta que se o regresso mostrado por Frege não for aplicado à teoria da correspondência, na realidade ele não é vicioso. Isso porque, de fato, ao determinar que um pensamento p é verdadeiro, também determinaríamos a verdade de infinitos outros pensamentos, tais como “p é verdadeiro”, “o pensamento de que ‘p é verdadeiro’ é verdadeiro”, etc. Para Dummett, a fim de determinar a verdade de um membro da série não é necessário que determinemos a verdade do membro anterior. Mas aparentemente determinamos a verdade de todos esses pensamentos simultaneamente ao determinar a verdade do primeiro deles, a saber, p. É por isso que, segundo Dummett, o argumento de Frege não sustenta a forte tese da indefinibilidade da verdade. Ao nos voltarmos a uma análise do que Dummett escreveu sobre a tese fregeana da indefinibilidade da verdade percebemos que em muitos pontos as análises de comentadores posteriores a Dummett, como Soames e Künne, se assemelham à análise feita em Frege Philosophy of Language, levantando questões bastante similares. Diferente de Soames ou Künne, no entanto, Dummett parece achar que o argumento de Frege é bem sucedido pelo menos ao atacar a teoria da correspondência, por estabelecer uma condição para qualquer definição de verdade aceitável. O argumento não mostra que a verdade é indefinível, mas impõe a condição de que aplicando a definição “A é verdadeiro” deveríamos acabar com uma sentença que não mais se refere a A e é, de fato, a própria sentença A. 59

Em Frege Philosophy of Language, Dummett explora muito detalhadamente questões e problemas que encontramos em Frege, freqüentemente fazendo alusão a outros filósofos ou discutindo os diversos temas sob seu próprio ponto de vista. Pode não ser muitas vezes tão claro o momento em que Dummett para de elucidar as teses fregeanas e começa a defender suas próprias.

4.3. HANS SLUGA: UMA VISÃO HISTÓRICA

Em seu artigo Frege on the indefinability of Truth, Sluga busca fazer uma reconstrução histórica de todas as fases do pensamento de Frege sobre a verdade, desde seu primeiro trabalho, a Begriffsschrift, de 1878, até sua argumentação a favor da indefinibilidade da verdade em O Pensamento, de 1918. A tese da indefinibilidade marcaria, de acordo com Sluga, um tipo de clímax na reflexão de Frege sobre este tema. Sluga defende que a tese fregeana, tal como apresentada em O Pensamento, exerce grande peso em toda a obra do filósofo, e que, além disso, uma análise cuidadosa da tese, bem como de suas bases históricas e motivações, pode nos mostrar que Frege teve idéias sobre a verdade que em geral são ignoradas em trabalhos posteriores. Para Sluga as reflexões de Frege sobre a verdade passam por pelo menos sete fases distintas, numa evolução progressiva. De acordo com Sluga, na primeira fase, representada pela Begriffsschrift, a noção de verdade aparentemente fica em segundo plano, de certa forma em favor da noção de juízo. Sluga nos diz que nesta fase Frege parece dar mais atenção a questões de natureza epistemológica. Frege parece mais preocupado com a apreensão da verdade do que coma verdade em si. Essa é a razão para o principal símbolo da linguagem formal por Frege apresentada na Begriffsschrift ser o traço do juízo, como já vimos. E é uma característica que se reflete também em outros aspectos do sistema que Frege constrói na Begriffsschrift. Frege fala então não de pensamentos, mas de “conteúdos julgáveis”. E em sua notação apresenta como “A é afirmado” ou “B é negado”, nos exemplos de Sluga, coisas que entenderíamos posteriormente como “A é verdadeiro” ou “B é falso”, respectivamente. É muito interessante que Frege fale dessa maneira de afirmação e negação, pois, como Sluga salienta, isso mostra não que a verdade (ou a 60

falsidade) não desempenha nenhum papel em seu sistema, mas sim que desempenha um central, porém implícito. A noção central que está explícita é a de juízo, e parece claro que para Frege as noções de juízo de verdade estão intimamente ligadas. Mais tarde, como Sluga também mostra, Frege falará do ato da asserção como intimamente ligado com sua noção de verdade. Na teoria do juízo de Frege parece ser possível identificar três fases básicas no ato de descobrir uma verdade: a apreensão de um pensamento/conteúdo julgável como verdadeiro ou falso, o juízo e a asserção do pensamento (como verdadeiro ou falso, dependendo do caso). À asserção na linguagem natural, como vimos, corresponde, na Begriffsschrift, o símbolo ├──, que é o traço do juízo – usado no sistema de Frege para fazer afirmações. Portanto, o juízo do qual Frege fala na primeira fase de seu pensamento, representado pelo traço do juízo, representa na realidade a asserção – e esta é a forma da qual dispomos de apresentar a verdade. Sluga mostra ainda, mais adiante no texto, por que a noção de verdade desempenha um papel implícito no sistema da Begriffsschrift. Isso se deve ao fato de Frege acreditar que em uma linguagem livre das imperfeições da linguagem natural falar sobre verdade ou usar o predicado de verdade se tornaria desnecessário. Mas chegaremos neste ponto mais adiante. A segunda fase descrita por Sluga se mostra, de acordo com sua reconstrução histórica, apenas transitória. Nesta fase Frege faz pequenas modificações em sua Begriffsschrift, incentivadas por críticas feitas por Ernest Schroeder. Frege passa a falar de conteúdos errados (wrong [em alemão: falsch]) ou certos (right [em alemão: richtig]), e sua concepção mesma de lógica muda – ao passar dessa forma a caracterizála como lidando com as leis do inferir correto. Essa caracterização torna sua lógica mais objetiva, no sentido de que “errado” e “certo” seriam aplicáveis a proposições de forma independente dos juízos. Sluga insinua que não é absurdo pensar que nesta fase para Frege “estar certo” significaria “estar em correspondência com a realidade”, apesar do fato de que tal idéia nunca é explicitamente defendida por Frege. Esta segunda fase se mostra, na realidade, como um caminho para se chegar à fala fregeana explícita a respeito da verdade e falsidade, e da objetividade dessas noções, que é o ponto central da terceira fase. É nos Fundamentos da Aritmética que a verdade passa a ocupar um lugar central de forma explícita para Frege. Sluga questiona em seu texto o que teria motivado tal 61

mudança, e sugere que a motivação estaria na preocupação de Frege em dar ênfase ao caráter objetivo da lógica. De fato, já vimos aqui que a preocupação fregeana em criticar o psicologismo como a forma correta de se conceber as bases da lógica já está presente em seus Fundamentos. Sluga sugere que tal preocupação é central na razão para a escolha de Frege em enfatizar a noção de verdade. Sluga indica ainda como na fase da Begriffsschrift, a ênfase no anti-psicologismo não estava presente, e que na realidade Frege falou “largamente em uma linguagem psicológica de idéias e suas combinações”.71 Aqui, já na terceira fase, Frege passa a enfatizar o que se torna uma de suas mais importantes teses no que concerne a verdade: a separação do apropriar-se e do julgar de uma proposição, e da verdade dessa proposição. Sluga defende que um fragmento publicado postumamente, intitulado Logic, e que é anterior ao fragmento homônimo de 1897, deve pertencer a este terceiro período, tendo sido provavelmente escrito logo antes de 1884. Esse fragmento, como aponta Sluga, compartilha semelhanças tanto com O Pensamento quanto com Os Fundamentos da Aritmética. Por exemplo, em ambos Frege enfatiza a diferença entre a verdade de um pensamento e o reconhecimento desta, e defende o aspecto objetivo da verdade. Na quarta fase da evolução do pensamento de Frege sobre a verdade a construção de valores de verdade como objetos é introduzida pela primeira vez. Sluga sugere que Frege tenha construído essa tese com dois objetivos principais em mente: primeiro, distanciar-se de uma concepção de verdade como uma propriedade ou característica relacional de proposições; e segundo, dar conta do aspecto normativo das leis lógicas, tais como ele as entendia. Sluga defende que por trás dessa tese de Frege se esconde um anti-naturalismo, similar aquele que Moore defendeu na ética. A verdade não poderia ser uma propriedade natural, mas precisaria ter uma força normativa, e essa normatividade, como indica Sluga, precisa ser objetiva. Tal objetividade estaria garantida através dos objetos o verdadeiro e o falso. Sluga aponta ainda para as semelhanças entre esta tese de Frege e aquela de um contemporâneo seu, um neo-kantiano chamado Wilhelm Windelband, que teria chegado a uma conclusão parecida com a de Frege, atribuindo ser ao valor o verdadeiro, 71

SLUGA, Hans. 2002, p. 82.

62

garantindo sua objetividade. Frege apenas integra essa tese especulativa ao seu sistema formal. Além dessa polêmica tese, nesta quarta fase Frege lança Mao de suas célebres distinções entre função e objeto e entre sentido e referência. Sluga antenta para como a tese de Frege que constrói valores de verdade como objetos nomeados por sentenças é formulada em totalidade dentro e por causa da “maquinaria formal” de sua lógica. As teses formuladas nesse período, de fato, levam inevitavelmente a tese da indefinibilidade da verdade, que é o centro da próxima fase. A tese da indefinibilidade é defendida então na quinta fase, aparecendo pela primeira vez no texto Logic, em 1897, mais de vinte anos antes da publicação de O Pensamento. É interessante notar, como faz Sluga, que tanto em Logic quando em O Pensamento apenas uma pequena menção da distinção entre sentido e referência é feita, e nada se fala sobre a construção dos valores de verdade como objetos. Para Sluga, essa é uma decisão didática da parte de Frege, que não deve ser considerada como um abandono de suas teses, mas como uma preferência por começar a falar de verdade por uma visão mais intuitiva dela. Na sexta fase identificada por Sluga vemos uma tentativa de reconciliação da antiga idéia que Frege tinha acerca da lógica, a saber, de que esta se preocupava em primeiro lugar com juízos, com a nova concepção de Frege da lógica, segundo a qual a noção de verdade tem primazia. Sluga identifica esta nova fase por causa de uma nota no texto póstumo My Basic Logical Insights, o qual Sluga julga ser parte da tentativa de Frege de salvar o que ainda poderia ser salvo de todo o seu trabalho, depois da desastrosa (para Frege) descoberta por Russell da antinomia presente na lei básica V do sistema das Leis Básicas da Aritmética. É um momento de reflexão por parte de Frege sobre todas as suas teses e sobre o desenvolvimento delas desde a Begriffsschrift. Frege, como aponta Sluga, introduz aqui a idéia de que a verdade não deve ser entendida como um adjetivo, como um predicado, pelo menos não no sentido comum. A idéia de que o predicado de verdade é redundante quando aplicado diretamente a proposições já estava presente desde a quarta fase do pensamento de Frege sobre a verdade (tendo sido apresentada em 1892 em Sobre o Sentido e a Referência). No entanto, nesta penúltima fase, tal idéia parece ganhar uma nova roupagem e foco. Como já vimos, as idéias: primeiro, de que asserir p e asserir que p é verdadeiro significam a mesma coisa, e 63

segundo: de que qualquer definição de verdade deve se utilizar de uma asserção, formam ambas as bases para a tese de O Pensamento de que a verdade é indefinível. Seguindo Sluga, Frege tem a asserção como a noção básica da lógica. Mas a asserção está intimamente ligada com a noção de verdade, da qual não podemos deixar de falar, devido a imperfeição da linguagem natural. Mostrando uma visão que será defendida também em outro texto seu, a saber, em Truth and the Imperfection of Language, Sluga defende que para Frege “precisamos da noção de verdade para fazer a transição da linguagem imperfeita da vida cotidiana para a mais perfeita linguagem da Begriffsschrift.72 Agora, a última fase no pensamento de Frege acerca da verdade é caracterizada por Sluga como representada pelas Investigações Lógicas, o conjunto de textos do qual O Pensamento faz parte. De fato, O Pensamento é o centro dessa fase, e Sluga enxerga esse texto como representando em grande parte uma resposta de Frege a algumas idéias de Wittgenstein, que este expôs no Tractatus. Em especial, a crítica a teoria da correspondência tal como feita em O Pensamento pode ser direcionada a um tipo de concepção tractariana de verdade. Já atentamos aqui para o fato de que Frege critica uma definição de verdade enquanto correspondência por algum aspecto (que no caso do Tractatus seria uma relação de isomorfia entre pensamento e linguagem). Frege critica ainda a idéia de que verdade possa ser atribuída a algum tipo de imagem, argumentando que em última instância admitir isso seria cair no reino do subjetivo: para uma imagem seja dita verdadeira deve haver uma intenção. Sluga aponta, no entanto, para um aspecto que conecta as visões de Frege e de Wittgenstein: a recusa por parte de ambos em aceitar a possibilidade de uma teoria da verdade. Sluga finaliza suas reflexões sobre a evolução do pensamento de Frege sobre a verdade traçando um paralelo entre Frege e Tarski. Sluga indica como uma leitura minimalista da tese de Tarski de como o conceito de verdade de uma linguagem formal pode ser definido em uma metalinguagem pode apontar para a idéia de Frege de que a asserção é a noção primária para a lógica. Isso se dá porque o que a explicação tarskiana nos diz é que “uma sentença de uma linguagem objeto pode ser dita verdadeira quando

72

Ibidem, p. 88.

64

estamos em uma posição de asserir sua tradução metalingüística”.73 Já que, de acordo com Frege, a verdade está implícita na asserção, a definição de Tarski pressupõe que já entendemos o que estamos tentando definir em pelo menos uma das linguagens, no caso na metalinguagem. Então em termos fregeanos a definição tarskiana de verdade teria que ser rejeitada. Há ainda pelo menos mais um motivo para a rejeição por parte de Frege da tese de Tarski. O princípio do contexto, segundo o qual as palavras só têm sentido no contexto da sentença, bem como sua distinção categorial entre objetos e funções, não permitem que uma teoria ou uma explicação sobre a verdade de sentenças seja dada através dos significados de seus componentes. De fato, Sluga aponta tais doutrinas de Frege como o principal caminho que lida para a sua tese da indefinibilidade da verdade. Sluga defende ainda que a principal razão para a tese da indefinibilidade é o fato de que, seguindo o pensamento de Frege nenhuma definição de verdade é possível porque sempre que usamos uma asserção estamos pressupondo a verdade que estamos tentando definir.74 Como vimos no capítulo anterior, a verdade está intimamente ligada ao ato da asserção, e de fato é na sentença assertórica que, na linguagem natural, reconhecemos a verdade, como Frege nos diz em O Pensamento.

4.4. WOLFGANG KÜNNE: FREGE COMO UM NIILISTA

Em seu livro Conceptions of Truth, Wolfgang Künne dedica um capítulo ao que ele chama de “niilismo” com relação a verdade. Entre tais niilistas Künne coloca Frege, com sua visão sobre a indefinibilidade da verdade, e por ter defendido que o predicado de verdade seria destituído de conteúdo, que de fato a verdade não é um predicado. No referido livro, em especial ao falar sobre a tese fregeana e sobre os outros “niilistas” com relação a verdade, Künne se propõe a defender os seguintes pontos, principalmente: primeiro, que proposições são de fato os portadores de verdade primários; segundo, que a noção de verdade pode sim ser adequadamente explicada. 73

Grifo nosso. Cf. Ibidem, p. 93.

74

Em especial, cf. SLUGA, Hans. 1999, pp. 34-35.

65

Contra Frege, Künne acredita que a verdade é de fato uma propriedade, sendo primeiramente uma propriedade de proposições, que Frege chamou de pensamentos. Para Frege aparentemente a verdade não é uma propriedade, ou pelo menos não uma propriedade tal como normalmente entendemos o que é uma propriedade. A primeira vista, diante dos escritos de Frege, poderíamos ser levados a crer que ele entendia a verdade como aquilo que está em relação ao pensamento como sua referência. Mas depois de uma nova análise e comparação dos textos fregeanos, parece que o valor de verdade “o verdadeiro” é diferente daquilo que Frege concebia como a verdade. Como já vimos, em O Pensamento, Frege declara que verdade é aquilo que é expresso pela sentença assertórica, na linguagem natural, sendo indefinível. E em suas Leis Básicas, Frege nos fornece o que parece ser uma definição desse objeto, o valor de verdade de sentenças verdadeiras, “o verdadeiro”. Então, como ainda veremos mais detalhadamente até a nossa conclusão, a tese fregeana da indefinibilidade da verdade não é tão simples quanto ela pode parecer à primeira vista, tendo razões muito mais profundas do que aquelas que encontramos na superfície dos argumentos de Frege contra a teoria da correspondência, como construídos em O Pensamento. Discutiremos um pouco mais detalhadamente mais adiante. De qualquer maneira, talvez uma das idéias mais interessantes expostas por Künne em sua análise desta tese fregeana é a seguinte: ser um primitivista com relação a um conceito, como Frege se mostra com relação à verdade, não quer dizer que se sustente a opinião de que não podemos dizer nada sobre esse conceito. Ainda pode ser que muito de nosso conhecimento a priori envolva tal conceito essencialmente, Künne escreve. Künne recorre ao exemplo de outro importante filósofo, Donald Davidson, que também sustentou que a verdade é indefinível,75 mas que acreditava que, ainda assim, a verdade era o conceito mais claro que possuímos. De forma semelhante, a tese de que a verdade é indefinível não impede que Frege elucide o que é verdade, e afirme que a lógica está preocupada com a verdade de uma maneira muito especial, sendo sua tarefa descobrir as leis do ser verdadeiro. Como já vimos o próprio Frege sustenta ser uma saída possível e desejável elucidar um conceito que se mostra impassível de definição.

75

Cf. DAVIDSON, Donald. 2002.

66

Em sua análise da tese fregeana especificamente, Künne procura mostrar bastante sistematicamente, através de passagens de O Pensamento, que Frege defende três teses principais com relação a verdade que lhe servem como base para a tese da indefinibilidade. Tais teses Künne chama de: tese da identidade – na qual, segundo a reconstrução de Künne, está implícita a tese da redundância, e finalmente a tese da onipresença da verdade. Poderemos notar que a análise de Künne, inclusive a reconstrução dessas teses que ele atribui a Frege, em muito se assemelha a análise de Dummett e de Soames da tese fregeana. Para Künne Frege defende a validade do seguinte esquema, que ele chama de “esquema da identidade”: A proposição que p = a proposição que é verdade que p. Künne defende que na concepção fregeana todas as instancias desse esquema são corretas. A partir dele podemos, como Frege teria sugerido, derivar uma tese a favor da redundância do predicado de verdade, pelo menos em algumas situações específicas. É interessante notar que em sua reconstrução Künne enfatiza que o argumento fregeano não sugere que o predicado “é verdadeiro” ou “é verdade” seja em si redundante. O que é redundante é aplicar a sentenças o operador “é verdade que”. A aplicação de tal operador é na realidade apenas uma forma de explicitar a atribuição de verdade à proposição a qual a sentença corresponde. Künne nos diz, há redundância nos casos em que atribuímos verdade à nominalização de uma sentença (a qualquer instância de “que p”, sendo p uma variável para uma sentença). Aplicar o predicado “é verdadeiro” à nominalização de uma sentença e simplesmente asserir essa sentença tem, a rigor, o mesmo efeito. Nos dois casos, escreve Künne, Frege acredita que temos uma única proposição. No entanto, Künne atenta para o fato de que Frege defende o que ele chama de tese da redundância, tal como explicitada acima, sem com isso defender também uma teoria da redundância. Para esta, não há realmente um problema filosófico no que diz respeito a verdade, já que as características da verdade podem ser total e satisfatoriamente explicadas ao analisarmos o esquema acima, que Künne apresenta como esquema da identidade. Künne lamenta, de fato, que Frege tenha sido tomado como um redundancionista por muitos, já que parece ser claro, como já vimos nas 67

nossas análises e como Künne aponta na sua própria, que na visão de Frege nem todos os usos do predicado de verdade são redundantes, apenas aquele uso no qual atribuímos verdade a uma asserção diretamente. A terceira tese atribuída por Künne a Frege é a tese da onipresença da verdade, e ela é reconstruída por Künne no seguinte esquema: necessariamente, se alguém V que (se) p, ele V que (se) é verdade que p.76 V representa nesse esquema qualquer atitude proposicional ou ato de fala, de acordo com Künne. Dessa forma, a verdade estaria presente em todo tipo de reconhecimento da propriedade de alguma coisa, sendo necessariamente sempre atribuída à proposição pela qual alguém atribui uma propriedade à alguma coisa. Künne traz para a discussão uma questão que Dummett já tinha levantado em sua análise da tese fregeana da indefinibilidade da verdade. A saber, o aparente conflito entre a tese da identidade (que Dummett chama de tese da equivalência, como vimos) e outra tese defendida por Frege, segundo a qual sentenças que contém termos singulares sem referência não são nem verdadeiras nem falsas, caindo no que Künne (e boa parte da literatura atual) chama de truth-value gap, ou “lacuna de valor de verdade”. O grande foco na crítica de Künne a Frege é nessa tese, a tese da identidade. Künne procura mostrar que a tese da identidade fregeana pode ser compatível com a existência de proposições sem valor de verdade, mas que ainda assim a tese é implausível. Basicamente, poderia se argumentar que há um problema quando se aplica “É verdade que” a uma sentença que contém um termo sem referência e por isso não tem valor de verdade. Isso porque a sentença resultante, uma sentença como, por exemplo: “É verdade que o rei da França é careca”, deveria ser falsa. Mas como ela poderia ser falsa se a sentença simples “O rei da França é careca” não é verdadeira nem falsa, e se as duas proposições são equivalentes? Seria plausível sustentar que a identidade entre uma proposição “p” e “É verdade que p” só ocorreria de fato quando estivéssemos lidando com sentenças sérias, ou seja, no contexto da ciência, no qual as sentenças têm de fato valor de verdade? Sabe-se que na Begriffsschrift Frege pressupõe que todas as sentenças tenham um valor de verdade. KÜNNE, Wolfgang. 2003, p. 35. No original: necessarily, if somebody Vs that (whether) p, she Vs that (whether) it is true that p. 76

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De qualquer maneira, de acordo com Künne, a tese da identidade de Frege é compatível com a existência de lacunas de valor de verdade se entendemos que uma proposição pode não ser verdadeira sem ser falsa.77 Então Künne se propõe a analisar e criticar o critério geral de Frege da identidade de proposições. Ele apresenta o que chama de condição suficiente de Frege para a identidade de proposições. Segundo essa condição, temos duas proposições iguais (com respeito a um determinado contexto), se: 1. Elas são cognitivamente equivalentes e 2. Nenhuma delas é, ou contém uma parte que é, tal que alguém não pode entendê-la sem dar-se conta de que ela expressa uma verdade.78 Künne tece uma argumentação contra esse critério baseada nas idéias de Bolzano. Por exemplo, Bolzano nos diz que as sentenças “p” e “p é verdadeiro” parecem representar proposições diferentes porque o sujeito de “p é verdadeiro” é “p”. Dessa maneira, sentenças do tipo “É verdade que p” contém o conceito de verdade em si, enquanto a sentença simples “p” não o contém. Essa é uma idéia interessante, mas aparentemente vai de encontro ao que Frege parece ter de fato defendido sobre a verdade: que a verdade se encontra, na linguagem natural, na asserção. E que no sistema da Begriffsschrift ela se encontra no traço do juízo. Entender tal idéia não seria suficiente para entendera a “redundância” da expressão “É verdade que” quando aplicada a sentenças assertóricas diretamente? A expressão é supérflua porque a verdade já está implícita na asserção, como bem apontado por Sluga, como vimos. Ao asserir “p” apresentamos esse pensamento como verdadeiro, e é nesse sentido que asserir “p é verdadeiro” se torna desnecessário. Na realidade, Künne parece atentar para esse ponto. Ele concorda que adicionar o operador de verdade a uma asserção não altera sua força, ou não lhe dá força se ela já não existe. Mas para Künne isso não deveria implicar uma redundância com relação aos conteúdos dos pares de sentenças. Ele argumenta que defender a identidade entre pares como “p” e “É verdade que p” implicaria em ter de defender que “p” e “Qualquer um que acreditar que p estaria certo em assim acreditar”, por exemplo.79 O estranho é que acreditar não parece ter a ver com verdade, na concepção fregeana.

77

Cf. Ibidem, pp. 41-42.

78

Ibidem, p. 44.

79

Ibidem, p. 49.

69

Frege nos diz que o predicado de verdade parece ser predicado sempre que predicamos qualquer coisa. É possível argumentar, como fez Sluga, que para Frege, falar sobre a verdade não seria mais necessário em uma linguagem logicamente aperfeiçoada para a ciência. Para ele, ao fazermos asserções na ciência temos como o objetivo a verdade. Nas asserções de uma linguagem para a ciência a verdade está por isso implícita. Apesar de falar da linguagem natural, dando exemplos de uso dela, Frege parece estar interessado antes de tudo em construir as bases para essa linguagem científica. Künne argumenta que é possível ter perfeito domínio do pensamento de que está chovendo agora, por exemplo, sem que se tenha domínio do conceito de verdade. E de fato isso é o que acontece com crianças que estão aprendendo a dominar a nossa linguagem, por exemplo. Mas Frege não parece estar preocupado com o aprendizado da linguagem ou o domínio de conceitos por falantes da linguagem natural. Antes de tudo, novamente, ele parece estar preocupado com o funcionamento apropriado de sua Begriffsschrift quando estamos no campo da ciência.

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CAPÍTULO 5. CONCLUSÃO

Ainda hoje é difícil dizer com toda a certeza qual foi de fato a idéia que Frege teve sobre a verdade. É muito provável que seu pensamento sobre este tema tenha mudado no decorrer de sua vida e carreira, como indicado por Sluga em seu texto The Indefinability of Truth. No primeiro capítulo de Frege Philosophy of Mathematics, Dummett fala sobre a dificuldade de determinar a relação entre os escritos fregeanos mais antigos, aqueles do período no meio de sua carreira e os mais recentes. Isso, nos aponta Dummett, se deve ao fato de que em muitos pontos não é muito claro se Frege sustentou em um período posterior as mesmas idéias e doutrinas das quais ele falou num período anterior. Há casos nos quais Frege afirma uma determinada tese e não fala mais sobre ela em nenhum de seus trabalhos posteriores. Talvez algo análogo aconteça com sua teoria da verdade. Diante dos argumentos não muito fortes apresentados por Frege em O Pensamento contra a teoria da correspondência, bem como de tantas tentativas de se interpretar esta tese de Frege, ou de reconciliá-la com suas outras idéias sobre a verdade, parece que a melhor opção é seguir um caminho parecido com o proposto por Sluga. Assim, a verdade na concepção fregeana seria algo implícito na asserção. E essa é uma tese muito interessante e original, que pelo menos a primeira vista parece funcionar muito bem, em especial no contexto da pesquisa científica, que era o contexto que mais interessava a Frege. Em contextos sérios, como na ciência, a asserção é um artifício para apresentar um determinado pensamento como um pensamento verdadeiro. E é interessante notar, como vimos, que a verdade é apresentada de maneira objetiva. Com a forma da sentença assertórica apresenta-se um pensamento como verdadeiro, e não que o indivíduo toma o pensamento como verdadeiro.

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BIBLIOGRAFIA

As obras de Frege, que aqui separamos como bibliografia Primária, estão organizadas de acordo com as datas dos textos originais em alemão, na ordem, para facilitar sua localização a partir das notas no nosso texto. Utilizamos em sua maioria traduções em inglês, pois muito da obra de Frege infelizmente ainda não se encontra traduzida para o português. No entanto, as datas das traduções também são indicadas em suas referências, tanto das traduções em língua inglesa quanto em língua portuguesa.

PRIMÁRIA:

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SECUNDÁRIA:

DAVIDSON, Donald. 2002. Ensaios Sobre a Verdade. Organizado por Paulo Ghiraldelli Jr., Pedro F. Bendassolli e Waldomiro José da Silva Filho. Traduzido por Paulo Ghiraldelli Jr. e Pedro F. Bendassolli. São Paulo: Unimarco Editora. DUMMETT, Michael. 1973. Frege Philosophy of Language. 2ª ed., Cambridge, Massachusetts: Harverd University Press. ____________. 1991. Frege Philosophy of Mathematics. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press. GREIMANN, Dirk. 2007. Did Frege Really Consider Truth as an Object? In: Grazer Philosophische Studien 75, pp. 125-148. ____________. 2004. Frege’s Puzzle about the Cognitive Function of Truth. In: Inquiry 47, Routledge, pp. 1-18. ____________. 2005. Frege’s Understanding of Truth. In: Gottlob Frege. Critical Assessments of Leading Philosophers. Editado por Michael Beaney e Erich H. Reck. Londres e Nova Iorque: Routledge, volume II: Frege’s philosophy of logic. pp. 295314. ____________. 2000. The Judgement-Stroke as a Truth-Operator: a new interpretation of the logical form of sentences in Frege’s scientific language. In: Erkenntnis 52. Países Baixos: Kluwer Academic Publishers, pp. 213-238. KIM, Jaegwon. 1998. Reduction, Problems of. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy. Edição de E. Craig. Londres: Routledge, pp. 145-149. KIRKHAM, Richard L. 2003. Teorias da Verdade. Uma introdução Crítica. Tradução de Alessandro Zir. São Leopoldo : Editora Unisinos, Coleção Idéias: 10. 74

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