A textura silenciosa das cidades

July 18, 2017 | Autor: M. Albernaz | Categoria: Poetics, Leitura, Paideia, Cidade Educativa
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A TEXTURA SILENCIOSA DAS CIDADES Maria Beatriz Albernaz1 Na aprendizagem da leitura, usualmente, contrapomos escrita e oralidade. Aqui, trataremos das articulações entre escrita e visibilidade, considerando o mundo ou a cidade como texto a ser lido. Na teoria da comunicação, o ato de ler consiste num processo de decodificação, em que leitores apreendem significações, através de signos que estruturam materialmente a linguagem, em constante produção e retransmissão. Nesse processo, a ação de diferenciar é essencial, assim como a vivência e a experiência. Considerando que a leitura da cidade se dá em grande medida por uma experiência pedagógica direta do olhar, reportamo-nos a Walter Benjamin. Para ele, com a decadência da aura, perdeu-se essa capacidade e a de se relacionar de modo único com as coisas nas grandes cidades. Em sua correlação entre a perda da arte de narrar com a privação da faculdade de intercambiar experiências (1983, p.56), assim como em seu ensaio "Sobre alguns temas em Baudelaire" (1983, pp.30-1), Benjamin indica que "onde há experiência [...], determinados conteúdos do passado individual entram em conjunção, na memória, com os do passado coletivo” (1983, p.32). O uso comunicativo da linguagem implica vivência, mas a experiência se instaura quando, ultrapassando o mero uso, aprende-se a imprimir marcas visíveis no mundo. Mesmo recém-nascidos visualizam e se relacionam com coisas que se tornam signos à medida que as organizam e as valorizam. Grande parte do que sabemos advém do que vemos, diz Teresa Duran (2002). Mas o ato de ver não se restringe ao uso de uma linguagem visual retiniana2. “Inclusive vemos coisas que a vivência não nos mostrará nunca e que vão desde um dragão alado de sete cabeças até as erupções solares [...]. E vemos porque um desenhista, um pintor [...] os materializaram” (DURAN, 2002, pp.12-3). Como manifestações de nossa relação com a linguagem ou como expressões de visões de mundo, os atos de leitura e escrita sempre comprometem. Mesmo a gramática deixa entrever que os modos de dizer relacionam-se diretamente com a nossa capacidade de pensar. Pelo entendimento da sintaxe e da semântica, refina-se a produção de sentidos, a tessitura entre visível e invisível. Por analogia, também a cidade pode ser apreendida “como uma pauta de grande continuidade, com muitas partes diferenciadas e nitidamente vinculadas entre si”, com a estruturação de imagens em um sistema coerente, de acordo com Kevin Lynch (1974, p.10). No atual contexto multiforme, para aprender a ler uma cidade, é preciso saber reconhecer os elementos de sua linguagem, suas singularidades. Paradoxalmente, quanto mais se reconhecem diferenças, mais acurado o processo de atribuição de identidades, possibilitando a compreensão de que, ao lado das diferenças intrínsecas dos entes, caminham semelhanças entre eles. Graças a isso, é possível “considerar a nossa experiência como uma experiência comum, solidária” (DURAN, 2002, p.42). De acordo com Carneiro Leão, ao se ler o mundo, apreendem-se conteúdos de três modos. Pode-se apropriar da realidade, por saber usá-la e fazê-la funcionar, através de treinos e exercícios, sintonizando-se o “nosso modo de proceder e agir” (1977, p. 46) com as exigências da realidade. Pode-se aprender pela apreensão de múltiplos conhecimentos da realidade, como valores e finalidades, gerando especializações. E, por último, “a respeito da realidade de qualquer coisa há também um aprender a                                                                                                                        

Doutora em Ciência da Literatura/UFRJ, professora do Instituto Superior  de Educação do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] 2  Expressão de Michel Duchamps.   1

 

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conhecer mais originário”, advindo do questionamento em torno do sentido das coisas ou dos acontecimentos, como “base de sustentação e o fundamento de possibilidade para qualquer outro aprender” (1977, p.47). Desse modo, reconhece-se tanto o que está por vir quanto o que se mostra, apropriando-se o conhecimento pela busca de sentidos. Ler a cidade – como leitura da “palavramundo” referida por Paulo Freire (1989) –, implica em questionar o sentido do conhecimento que já se tem a seu respeito. Resta fazer a pergunta pelo sentido de ser cidadão, do que é cidade. Depende disso, a possibilidade de identificação de si mesmo com os outros cidadãos, assim como a imaginação de uma outra cidade possível. Para isso, é preciso nos voltarmos para o que sabemos por experiência, no aberto dos acontecimentos. Só de frente para o aberto, conceito heideggeriano em leitura feita por Giorgio Agamben (2010), pode-se reconhecer, identificar e imaginar os acontecimentos. A busca pelo sentido do que acontece na realidade parte da aproximação com tudo o que vive. Paradoxalmente, a possibilidade humana de se desligar do meio ambiente diferencia-o do animal, sempre dependente do que o meio lhe oferece. Por sua capacidade de não se deixar capturar inexoravelmente pelo meio, mas também pela aproximação extrema com tudo o que se expõe, o ser humano pode estar no aberto, acessível à observação da vida como criação. (cf. AGAMBEN, 2010, p.81-2) Mas como situar-nos, como fazer da imagem um mapa que nos oriente para um lugar ao qual possamos nos inserir, conhecer e acontecer junto? Pela superação da dualidade transcendência-imanência3; pela obediência à lei inaparente da terra, onde está o mundo4, do qual a cidade é um símbolo; pela superação de um discurso impregnado de vivências subjetivas e objetivas; pela realização da experiência do singular. Em interpretação livre dos topos indicados por Agamben (2006), eis os movimentos que levam à comunidade-que-vem5: qualquer que seja, por aqueles no limbo, no ter lugar, pelo exemplo. Entre lutas políticas, realiza-se uma tessitura anônima que não cessa de brotar realidades. Demoniza-se a rua, renega-se o que ela ensina. Mas o bem é um consentimento e as linhas de uma cidade são muitas. Para a leitura da cidade, algumas indicações: os passeios em suspensão pela cidade6, com o entrecruzamento de histórias e o estranhamento do habitual; a criação de referências nas paisagens, pela observação cuidadosa, a conversa, a comparação de diferentes imagens a partir de uma realidade visual; a visão do ambiente pela pedagogia do silêncio, com a contemplação e circulação em espaços abertos, áreas de vegetação, linhas de movimento por caminhos e rotas, regiões com contrastes visuais, zonas sagradas, locais tradicionais de descanso, bordas da paisagem; o destaque de exemplos de cidades reconhecidamente educativas, tomando o conceito de Cidade Educativa7 (BERNET, 1993) como uma dimensão tangível de uma aprendizagem em contínuo fluxo.                                                                                                                         3

Nesse caminho, busca-se o comunitário, “em que o outro não seja o portador da discórdia. [...] De um modo tal que a oposição entre nós e as coisas se torne descabida, ainda que a diferenciação se dê de modo evidente e necessário.” (ALBERNAZ, 2008, pp.169 e 173) 4 Cf. HEIDEGGER, 2002, p.85. 5 Fazer parte da comunidade-que-vem no Rio de Janeiro implica hoje em saber que o nome “comunidade” nesta cidade significa um lugar que antes era chamado “favela”, cuja história não pode ser apagada por força de uma nova denominação. Enfim, o sentido da mudança do nome ainda está por se realizar. 6 O termo é sugestão de Cristina Muniz, coordenadora do projeto “Ônibus da esperança”. Cf. MUNIZ, C. “A cidade como brinquedo”, mimeo. 7 Desde 1990, algumas cidades passaram a promover o “objetivo comum de trabalhar conjuntamente em projetos e atividades para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes”, de acordo com uma Carta de Princípios. Cf. http://www.bcn.cat/edcities/aice/estatiques/espanyol/sec_iaec.html. Acesso em 16 de maio de 2014.  

 

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Kevin Lynch aconselha seguir rotas imaginárias, por ruas que não mais existem em setores demolidos; dar nomes aos locais, diferenciando-os e vivificando-os, aprofundando assim a poesia da experiência humana. Em qualquer cidade, há vias de circulação; barreiras ou regiões fronteiriças; bairros ou distritos; centros de confluência ou cruzamento; e marcos naturais ou artificiais: sistemas de referência organizadores que não se centram no indivíduo, apesar de se moverem com ele. Para a leitura, é preciso objetividade, subjetividade, e diferenciação ou singularização. O aferramento a uma identidade não dá lugar à experiência. Possibilitada pela instabilidade, a leitura do mundo considera o invisível e imagens especulares inesperadas. Assim se lê a textura silenciosa da cidade, pela transformação da realidade em um prisma de fragmentos de memória, de redes políticas e poéticas. Referências Bibliográficas AGAMBEN, G. La comunidad que viene. Trad. José Luis Villacañas, Claudio La Rocca e Ester Quirós. Valencia: Pre-textos, 2006. ______________. Lo abierto: el hombre y el animal. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Valencia: Pre-textos, 2010. ALBERNAZ, B. Claricidade: a cidade segundo Clarice. Rio de Janeiro: Azougue/Faperj, 2008. (Coleção Invenção e Crítica) BENJAMIN, W. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, “Sobre alguns temas em Baudelaire” e “O narrador” In: BENJAMIN, W., HORKHEIMER, ADORNO, T., HABERMAS, J. Textos escolhidos, trad. de José Lino Grünnnewald et alli, 2a. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores) BERNET, J.T. “La educación y la ciudad”. In: Otras educaciones. Mexico: Universidad Pedagogica Nacional/Anthropos: 1993. DURAN, T. Leer antes de leer. Trad. Goretti López. Madri: Anaya, 2002. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. (Coleção Polêmicas do nosso tempo) HEIDEGGER, M. “A superação da metafísica” e “A coisa. in Ensaios e conferências. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback e Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Vozes, 2002. LEÃO, E. C. Aprendendo a pensar. Volume I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1977. LYNCH, K. La imagen de la ciudad. Trad. Enrique Luis Revol. Buenos Aires: Infinito, 1974.

 

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