A Tolerância_e_a_sua_fundamentação

June 8, 2017 | Autor: J. Silveira de Brito | Categoria: Ética, TOLERANCIA, Fundamentação
Share Embed


Descrição do Produto

CASTRO, Maria Gabriela; CARVALHO, Magda Costa (Coords.) Horizontes do Conhecimento, Estudos em Homenagem a José Luís Brandão da Luz. Ponta Delgada: Letras LAVAdas, 2015, pp. 193-209. A tolerância e a sua fundamentação1 José Henrique Silveira de Brito Faculdade de Filosofia / Universidade Católica Portuguesa

1.

Introdução

Para os defensores dos Direitos Humanos, a tolerância, «virtude indiscutível da democracia»2, é um bem cuja vivência é um dever; muitos até consideram um pouco incompreensível que o seu reconhecimento e prática tenham sido tão difíceis de alcançar. Que a tolerância é um valor, à primeira vista parece uma evidência, e que deva ser vivida como virtude, uma obrigação indiscutível. Isto não significa que a ideia seja partilhada universalmente, mas que os atentados contra a sua vivência não passam despercebidos e são considerados, por muitos, como absolutamente inaceitáveis. A condenação da intolerância é veemente entre aqueles que acreditam nos Direitos Humanos, de modo que criticam com rudeza a sua prática no passado, por vezes cometendo anacronismos, também eles evidentes, e que se detectam em muitas críticas endereçadas aos que fomentaram Guerras de Religião ou defenderam as Inquisições. Relativamente às intolerâncias hoje patentes em certos meios, a reacção de condenação é bastante generalizada e muitas vezes pergunta-se como é que tantos séculos de história e a reflexão filosófica – o texto de José Luís Brandão da Luz “Filosofia e Educação” para a Tolerância faz uma leitura da Filosofia como caminhada para a tolerância3 - e teológica 1



2 3



Agradeço aos Professores Roque Cabral e Onésimo Teotónio de Almeida, e à minha mulher, Maria Amélia de Araújo Silveira de Brito, a leitura atenta deste texto e as sugestões que deram para a sua melhoria. Camps: 73. Luz: 105-112. No resumo ao texto o autor afirma: «Se a filosofia tem partilhado a convicção de que a consciência encerra um modelo de realidade para além das aparências, também tem percebido que a compreensão do mundo se não pode decidir apenas pelo conhecimento das suas condições de verdade. A perspectiva dos que participam na sua interpretação traz consigo a marca do tempo; e é na troca de opiniões que todos reconhecem partilhar uma atmosfera favorável ao exame das suas inquietações». E acrescenta mais à frente: «Sem conceder a nenhum o privilégio de uma expressão definitiva, a filosofia cultiva assim a abertura de espírito que recusa o dogmatismo e propicia a tolerância».

194

José Henrique Silveira de Brito

dos últimos dois séculos sobre a tolerância ainda não levaram ao seu reconhecimento e prática universais4. Para muitos, a intolerância, quando se apresenta com justificações religiosas e praticada em nome de Deus, parece ser, e é, de facto, uma aberração. Contudo, se entre os defensores dos Direitos Humanos a defesa da tolerância é ponto assente e batalha em que não se pode deixar de entrar, quando se começa a pensar sobre o que significa a tolerância, e como pô-la em prática, as evidências referidas até aqui vão perdendo a sua transparência e as dificuldades começam a levantar-se. Quando se começa uma reflexão à procura de uma boa definição da tolerância e a tentar enumerar as razões que justificam a sua vivência, a clareza com que a intuição nos permitia convicções tão fortes e afirmações tão assertivas vai perdendo fulgor e a procura de argumentos, isto é, a passagem da sensibilidade para a razão, vai exigindo uma velocidade muito mais moderada nas afirmações que a intuição tinha levada a sentenças tão rápidas e peremptórias. E estas dificuldades permitem, por certo, explicar que, como afirma Ricoeur, logo no início do seu texto «Tolérance, intolérance, intolérable»: «[o] discurso sobre a tolerância corre dois riscos: o da banalidade e o da confusão. Banalidade de um propósito oficial dando livre curso a um genuíno cepticismo; confusão entre dois domínios em que o termo deveria revestir significações diferentes»5. Quando se começa a reflectir sobre a tolerância, algumas perguntas surgem imediatamente em ordem à clarificação do conceito e suas relações. As dificuldades surgem logo que se tenta uma definição do conceito de tolerância. Esta definição é importante para que se saiba com clareza do que se fala quando utilizamos o termo. Conexa com a problemática da 4



5



Sobre a importância da reflexão filosófica para o exercício da tolerância, cf. o excelente texto da autoria do homenageado por este volume: Luz: 105-112. Ricoeur, 1991 : 294. Para atenuar o primeiro risco, ao par tolerância-intolerância o autor acrescenta o “intolerável”. Para superar a confusão, como o grito de “intolerável!” tanto pode vir do intolerante como do tolerante, isto é, pode significar a injusta “rejeição” do outro por parte daquele, ou a descoberta dos limites da sua tolerância por parte do tolerante, há que evitar a ambiguidade que resulta de não se respeitar os géneros: a distinção entre dois planos, o do direito constitucional e o do plano das mentalidades e tradições culturais. Esta confusão de géneros, que Ricoeur pretende ultrapassar, está muito presente no discurso sobre tolerância-intolerância e dificulta a clareza das ideias e o rigor na argumentação.

A tolerância e a sua fundamentação

195

definição do conceito, há outras, não menos difíceis de responder, tais como: a tolerância será irrestrita, isto é, tudo será tolerável? Todos os modos de pensar e agir serão de aceitar em nome da tolerância? Todas as mensagens podem ser emitidas independentemente de se estar num espaço privado ou público?6 A tolerância deve tratar em pé de igualdade textos como a Bíblia e o Mein Kampf, mensagens a defender a igualdade dos seres humanos ou as que incitam à xenofobia e à discriminação? Parece evidente que não, porque, como lembra Victória Camps, no seu conhecido livro Virtudes públicas: «não esqueçamos que as virtudes para Aristóteles eram um termo médio muito propenso a sucumbir no vício por excesso ou defeito»7. A procura das razões da tolerância não se revela fácil, porque surgem incertezas, dificuldades na delimitação dos conceitos, na descoberta de princípios e valores cuja evidência possa ser partilhada. Em questões de verdade poder-se-á falar em tolerância? Se estamos perante uma falsidade, será admissível ser tolerante? Parece que não; parece evidente que a tolerância só intervém quando há falta de conhecimento, isto é, em questões de opinião. Mas será possível ultrapassar o nível da opinião? Será possível discutir o que seja a tolerância sem admitir a verdade? Aqui torna-se necessário discutir a questão da verdade e a questão do erro. Se se admite que a tolerância tem limites, isto não obrigará a admitir e achar aceitável que alguém tenha direito a dizer como se deve pensar? Para lá da verdade como desvelamento (ἀλήθεια), há pelo menos duas concepções de verdade: verdade como adequação e como coerência. A primeira, a verdade como adequação, se é de admitir como ideia reguladora à maneira de Kant – só faz sentido argumentar se se pressupõe que os argumentos nos vão aproximando da verdade – é impossível de alcançar, porque o conhecimento humano é sempre limitado8. Mas, no caso da tolerância, as dificuldades acentuam-se porque a tolerância prende-se com valores morais e políticos, e quando sujeitamos a 6 7 8



Cf. Ricoeur, 1991: 295. Camps: 73. A nossa ignorância é imensa e convém ter consciência disso. Sobre este tema cf. Almeida, 2009: 89-114.

196

José Henrique Silveira de Brito

problemática dos valores a uma reflexão filosófica exigente, as evidências intuitivas vão perdendo a sua luminosidade e força. Os valores são uma realidade muito especial, porque pertencem ao mundo do «não-racional», no sentido que Onésimo Teotónio de Almeida dá a este termo9. Como considera este autor, em torno dos valores há sempre um enorme debate, porque há uma consciência aguda de que há valores que conflituam, não apenas porque uns aparecem como positivos e outros negativos, mas mesmo entre valores positivos. É o debate sobre o pluralismo e a coerência dos bens, a pluralidade dos bens e as visões de conjunto10. O ser humano não é axiologicamente neutro; tem sempre um conjunto de crenças e de valores a partir do qual pensa e argumenta. Isto é, pensa e age sempre a partir de uma mundividência, de uma «rede complexa de crenças, valores, desejos, necessidades, interesses, informação acumulada e o mais que se quiser»11, cuja justificação última, por mais que se tente, para muitos parece impossível12. A tolerância surge porque o ser humano se confronta sempre com valores e, por isso, ela nunca poderá significar indiferença, pois que se o objecto da tolerância fosse indiferente, isto é, se não tivesse a ver com valores, a tolerância não seria necessária e, portanto, a problemática que a rodeia não existiria. Atendendo ao exposto até aqui, o objectivo deste texto será o da clarificação do conceito e do contexto em que a problemática da tolerância se coloca, e o de apresentar a problemática da sua fundamentação.

2.

Conceito de tolerância

Comecemos pela etimologia do termo. Tolerância vem do substantivo latino tolerantia, derivado do verbo tolerare que significa aceitar, suportar 9 Cf. Almeida, 2012. Nesta 10 Cf. Almeida, 2009: 101. 11 Almeida, 2012: 101. 12

obra o autor discute longamente a questão dos valores.

Para nos limitarmos a autores citados neste trabalho, consideram impossível esta fundamentação Paul Ricoeur e Onésimo Teotónio de Almeida. Sobre a fundamentação da Ética, cf. Brito, 2012: 639-658.

A tolerância e a sua fundamentação

197

um mal. Como se verá no desenvolvimento deste estudo, a tolerância implica “sofrer” por parte de quem é tolerante, o que também está contido no étimo latino. Para além disso, a tolerância traz consigo, como veremos, um sofrimento que não é momentâneo, o que significa que tolerar implica “persistir”, “manter-se”, “resistir”, “combater”, sentidos também presentes no étimo latino13. No seu clássico Traité des Vertus, diz Jankélévitch que a tolerância é «uma virtude hipotética: dito de outro modo o seu valor depende inteiramente das coisas que se tolera. Enquanto não se diz o nome da coisa tolerada, a tolerância permanece em questão. Ela depende portanto do seu objecto»14. É por isso que, segundo o autor, à primeira vista a tolerância parece uma virtude menor, algo de negativo que suscita desconfiança; ela «designa um simples comportamento exterior», porque, mais do que dizer o que temos que fazer ou pensar, ela diz o que não devemos fazer ao outro, não devemos reagir contra ele15. Virtude hipotética, condicional, tal como a esperança, porque depende do que se tolera como a esperança depende do objecto esperado, «a tolerância não é uma virtude incondicionalmente, absolutamente, em todos os casos, mas que o seu valor depende do seu conteúdo. O que é preciso tolerar? Em que condições? Até que ponto? Estas questões categoriais formam a matéria não do dever tout court, mas de um é preciso (τὸ δέον) circunstancial»16.

A tolerância é um comportamento cuja avaliação, em termos de ser ou não uma virtude, vai depender, por um lado, daquilo que se tolera mas, além disso, porque o que é tolerado é da autoria de alguém, esse alguém não pode deixar de ser tido em conta na avaliação do comportamento. O agir implica sempre um agir perante alguém e a sua avaliação deve ter 13 14 15 16

Cf. Justo: 15. Jankélévitch: 755. Jankélévitch: 753. Jankélévitch: 755.

198

José Henrique Silveira de Brito

em conta o que se faz e aquele que é afectado por esse agir. A tolerância não pode desentender-se destes dois elementos. Por isso Jankélévitch afirma que «[a] tolerância, digamos, é um comportamento, uma maneira de se comportar com o próximo; ora, se o falso nele mesmo não tem de ser tolerado, posso permitir aos homens que se enganem, e suportar que perseverem no seu erro»17. Esta observação é importante, porque chama a atenção para o facto de a tolerância não ter como objecto a verdade ou a falsidade do discurso, mas a pessoa do seu autor. Como faz notar Comte-Sponville, moralmente são intoleráveis coisas como o sofrimento dos outros, a injustiça e a opressão, quando estas coisas podem ser impedidas e combatidas por um mal menor; politicamente intolerável é tudo o que ameaça efectivamente a liberdade, a paz, a sobrevivência de uma sociedade, tudo o que ameaça a tolerância, quando essa ameaça não é expressão de uma posição ideológica, mas perigo real, embora surjam dificuldades na avaliação concreta desse perigo18. A definição da tolerância não é fácil, embora seja fundamental defini-la. À pergunta: “o que é tolerar?”, responde André Comte-Sponville, no seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes: «[t]olerar é aceitar aquilo que se poderia condenar, é deixar fazer o que se poderia impedir ou combater. É portanto renunciar a uma parte do nosso poder, da nossa força, da nossa cólera… […]. Não existe tolerância quando nada temos a perder»19.

A tolerância não significa aceitar a opinião do outro, ser indiferente ao que ele pensa e diz ou, discordando, não reagir por fraqueza. Se a tolerância é um comportamento perante algo ou alguém que suscita a nossa reacção, ela não pode ser confundida com a indiferença; ela relaciona-se com o que é desagradável e é moralmente repreensível. Como diz Nuno Ferro, 17 18 19

Jankélévitch: 756. Cf. Comte-Sponville: 175. Comte-Sponville: 172.

A tolerância e a sua fundamentação

199

«relativismo não é nem tolerância nem respeito pela liberdade alheia, porque nenhuma destas duas determinações admite a tese da incomensurabilidade: alguém pode tolerar ou respeitar o contrário, mas não por isso é obrigado a considerá-lo do mesmo valor que o próprio»20.

O relativismo implica uma neutralidade que a tolerância não tem. A tolerância surge porque há uma conflitualidade entre convicções cuja negação tornaria inútil a tolerância. Ela implica discordância, desaprovação, oposição de opiniões, capacidade de reagir e renunciar a ela. A tolerância é, tal como Jankélévitch disse, um comportamento perante alguém que não comunga da nossa escala de valores. Ela implica, portanto, que há valores e que os valores valem, distinguem-se e hierarquizam-se, não havendo sempre acordo nessas hierarquizações. Estas hierarquizações são feitas a partir de um ponto de vista ético e, como afirma Nuno Ferro, «em ética vigora o princípio de contradição, a tese da não equivalência dos opostos. Recorde-se que, do ponto de vista político, isto não tem forçosamente de ser assim, pois neste âmbito os contrários coexistem pacificamente»21. É preciso notar que o valor da tolerância surge com a modernidade e esta tolerância dos modernos liga-se à valorização da esfera privada, para onde é remetida a confissão religiosa, que é defendida a todo o custo, mesmo das interferências do estado. Mas também na tolerância «está - ou pode estar - uma “privatização” geral de valores e ideais, retirando-os da esfera pública. Nesta medida, a tolerância arriscase a tornar-se indiferença e a esvaziar de conteúdo a vida política, ameaçando simultaneamente a solidariedade social»22.

Se tolerância implicar indiferença, estaremos perante um relativismo sociológico e moral, o que parece filosoficamente insustentável e 20 21 22

Ferro: 238. Ferro: 239. Cabral: 89.

200

José Henrique Silveira de Brito

socialmente impossível. Sendo a moral intrínseca ao ser humano, como pode ele viver, realizar-se se todos os valores valem o mesmo? Por outro lado, se todos os valores valem o mesmo, como é possível a convivência social, uma vez que com-viver (viver juntos) pressupõe um conjunto de valores aceites que pautam o viver em comum. A vida em sociedade implica sempre vantagens e desvantagens, benefícios e prejuízos, pelo que é indispensável fazer uma avaliação de tudo isso e procurar uma distribuição equitativa, isto é, é preciso avaliar, em termos de justiça, o valor indispensável à convivência social. Em suma, a tolerância não pode significar indiferença.

3.

Os limites da tolerância

Como é evidente, pelo que se disse até agora, a tolerância não pode ser ilimitada, porque nem tudo é tolerável. Assim, confrontamo-nos com o intolerável e o intolerante. Comecemos pela problemática do intolerante: pode-se ser tolerante para com o intolerante? A resposta é sim, embora seja difícil dizer até onde pode ir essa tolerância, qual o seu limite, porque depende do perigo que ele representa. Como afirma Michel Renaud: «não aceitar o inaceitável […] não é a mesma coisa que ser intolerante»23. Aqui está o grande problema da tolerância: se ela fosse ilimitada, «acabaria por se negar a si mesma»24 e deixaria as mãos livres àqueles que a querem suprimir25. É o «paradoxo da tolerância» de que fala Karl Popper na sua obra A Sociedade Aberta e os seus Inimigos26. Como é evidente, a tolerância não pode significar passividade nem fraqueza, porque se a tolerância não se defendesse, os seus inimigos fá-la-iam desaparecer. Porque a tolerância 23 24 25 26

Renaud: 155. Jankélévitch: 758. Cf, Comte-Sponville: 174-175. Cf. Popper: 268: «Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: a tolerância ilimitada conduz ao desaparecimento desta. Se permitirmos uma tolerância ilimitada àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e da tolerância».

A tolerância e a sua fundamentação

201

tem os seus limites, cai-se naquilo que Jankélévitch chama a «casuística da tolerância»27. Esta “casuística da tolerância” exige a clarificação dos limites da tolerância. Na linha já acima sugerida, há autores, como Xabier Etxeberria, que afirmam, e com razão, que «[o] que não se pode tolerar é a violação dos direitos humanos, isto é, a violência nas suas diversas expressões»28, ou seja, a tolerância tem a sua última razão no respeito pelo outro. Mas se é de valorizar esta fundamentação da tolerância na Declaração dos Direito do Homem, essa mesma fundamentação apresenta dificuldades quando se tenta traduzir em termos concretos até onde deve ir a tolerância. É preciso ter em conta, como dissemos num texto sobre educação, que «os Direitos Humanos estão formulados de um modo tão abrangente, as formulações são tão universais, que têm um conteúdo muito vago»29. Como afirma Paul Ricoeur, as palavras são metáforas e o próprio da metáfora é precisar de interpretação que «é o trabalho de pensamento que consiste em decifrar o sentido escondido no sentido aparente, em alargar os níveis de significação implicados na significação literal»30. Não esqueçamos, como sublinha Paul Ricoeur, que palavras como liberdade, justiça e igualdade são palavras polissémicas, como já Aristóteles reconheceu no tratado sobre a Justiça, no livro V da Ética a Nicómaco. Não esqueçamos, por outro lado, que estas palavras pertencem à linguagem política que, por definição, é retórica31.

4.

Fundar a tolerância

Comte-Sponville aponta três razões32 para se ser tolerante. A primeira razão é o reconhecimento de que não é possível dominar toda a verdade. As três concepções de verdade que a história da Filosofia 27 28 29 30 31 32

Jankélévitch: 759. Etxeberria: 82. Brito, 2010 : 166. Ricoeur, 1969: 16. Cf, Ricoeur, 1991: 175. Comte-Sponville: 177-180.

202

José Henrique Silveira de Brito

consagra, verdade como adequação, como coerência ou como aletheia, são o reconhecimento de que a verdade afirmada é uma aproximação à verdade, é o reconhecimento dos limites do conhecimento. É por isso que o filósofo afirma que a tolerância como virtude se funda nas nossas fraquezas teóricas: na incapacidade que temos de deter toda a verdade33. A propósito desta primeira razão apontada por Comte-Sponville, pode citar-se o tratado das virtudes de Jankélévitch: «Também a tolerância é ela sobretudo importante lá onde a historicidade da verdade, a inserção da verdade no mundo dos acontecimentos, a relação da verdade com as situações humanas, jogam o papel mais saliente; lá onde a verdade depende mais da veracidade (véricidité). Na vida moral e religiosa, por exemplo, a articulação ou administração da verdade no tempo e no espaço é uma coisa essencial»34.

A segunda razão da tolerância referida por Comte-Sponville tem mais a ver com a política do que com a moral, porque se prende com os limites do estado: o totalitarismo começa por ser um dogmatismo. Nenhum estado pode impor a uma pessoa um modo de pensar diferente daquele que ela tem, nem a aceitar como verdadeiro o que ela considera falso; a pessoa merece respeito. Aliás o estado intolerante vai-se enfraquecendo e acabará por se desmoronar35, considera o autor. Comte-Sponville aponta como terceira razão para a tolerância a independência entre a verdade e o mal, entre verdade e bem36, problema, por sua vez, ligado à discussão de outro: a tolerância como conceito neutro quanto ao valor (isto é, se ela é mero desinteresse) ou é um ideal moral, isto é, se ela é uma virtude. É verdade que, do ponto de vista político, a tolerância é uma virtude considerada importante nas sociedades liberais. 33 34 35 36

Cf. Comte-Sponville: 178. Jankélévitch: 756. Cf. Comte-Sponville: 179. Cf. Comte-Sponville: 180.

A tolerância e a sua fundamentação

203

Mas implicará ela, do ponto de vista pessoal, indiferença? Como vimos, não é admissível identificar tolerância com indiferença, porque ela implica sempre aceitar a existência de algo que custa aceitar, que não se admite e se tem força para não aceitar. Assim sendo, como justificar a tolerância relativamente àquilo que moralmente se desaprova? Na tentativa de compreender este paradoxo, há que reflectir sobre a relação entre tolerância e pluralismo moral. A adesão ao pluralismo sugere uma atitude de maior abertura à tolerância porque, embora o pluralismo não garanta a tolerância, a recusa do pluralismo é um dos factores que mais contribui para o aumento da intolerância. Jankélévitch discute a questão dando o exemplo da mentira. Pergunta o autor como é admissível dizer a mentira sabendo que é mentira? Como admitir na prática o que em teoria é condenável? Considera o filósofo que estamos perante um problema, «um caso de consciência filosófica que não se pode minimizar»37. Há um conflito entre valores que necessariamente devem ser respeitados: a dignidade e liberdade da pessoa e a verdade, dois valores infinitamente respeitáveis em relação aos quais não podemos transigir. Há aqui, considera o autor, um mal-entendido suspeito e inconfessável: em nome da tolerância é-se obrigado a deixar dizer coisas que se sabe serem falsas, prejudiciais e absurdas. Ora, «[é] preciso portanto distinguir entre a verdade absoluta independentemente do tempo, e a inserção irracional desta verdade na trama dos acontecimentos: a verdade em si, e a verdade proferida por um ser encarnado»38. Assim respeitamos a verdade encarnada. O problema é, consideramos nós, saber até onde se pode ir no sacrifício de um dos dois valores. O que se acaba de dizer mostra, de novo, a complexidade da problemática da justificação da tolerância. Na Carta sobre a tolerância39, Locke (1632-1704) limita-se a tratar da tolerância religiosa. Considera o autor que, como se trata de uma questão

37 38 39

Jankélévitch: 757. Jankélévitch: 758. LOCKE, John - Carta sobre a tolerância. Trad. de João da Silva Gama; Rev. por Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987.

204

José Henrique Silveira de Brito

de crença e consciência individual, a religião não pode ser objecto de coacção; essa coacção é irracional, há que ser tolerante quanto à religião. O primeiro filósofo a sublinhar a relação entre tolerância e pluralismo foi John Stuart Mill (1806-1873). Em Sobre a liberdade (On Liberty, 1859), considerado o texto do século XIX mais importante sobre a tolerância, o autor apresenta análises importantes. Diferentemente de Locke, Mill interessa-se pela tolerância em geral, não apenas pela religiosa, e vê na intolerância algo com um carácter moralmente mau, e não apenas meramente irracional. O filósofo coloca o acento no valor da diversidade e sublinha que é bom que haja diversas maneiras de viver e experiências de vida diferentes. Como cada um é soberano sobre o seu corpo e espírito, isto é, em linguagem contemporânea, como cada um é autónomo, essa autonomia exige a tolerância. Sendo defensor da autonomia e, consequentemente da tolerância, Stuart Mill considera que essa autonomia tem limites e, portanto, a tolerância também. Segundo o autor, a sociedade não deve respeitar a autonomia dos seus membros e, se necessário, usar a força contra um deles quando visa evitar que ele prejudique os outros, isto é, o limite da tolerância de um está no mal que ele pode fazer a outro40. O problema está em saber quando essas situações acontecem e quando é que os outros são afectados por aquilo que um indivíduo faz. Actualmente, como afirma Susan Mendus, há três maneiras de fundar a tolerância: a dos que a fundam no cepticismo moral; a dos que a fundam na neutralidade do estado; e, por último, a dos que aponta a importância da autonomia para a justificar. Estes três modos de justificar/ fundar estão ligados à teoria da tolerância de John Stuart Mill. 4.1 Tolerância e Cepticismo Moral A tolerância é muitas vezes associada ao cepticismo. Nesta posição, se a verdade existisse e fosse descoberta, não haveria lugar para a 40

Tratámos da questão da autonomia em John Stuart Mill em Brito, 2012a: 657-672

A tolerância e a sua fundamentação

205

tolerância; ora como não há ou não é possível descobrir qualquer verdade moral, justifica-se a tolerância. Essa ligação entre a impossibilidade da verdade e a tolerância nem sempre se verifica na História da política e da moral. Houve cépticos que não defenderam a tolerância e intolerantes que não rejeitaram sempre o cepticismo moral. Locke não era céptico em matérias de moral e defendia a tolerância. Por sua vez, há cépticos que consideram que a tolerância é indefensável por razões de prudência. John Stuart Mill, por sua vez, defende a tolerância e considera que isto não é incompatível com a adesão a uma verdade moral e religiosa. Susan Mendus entende que a melhor defesa da tolerância está em que ela nos conduz à descoberta da verdade. 4.2 Tolerância e neutralidade Como o estado não deve impor uma determinada concepção de bem, e uma vez que esta é distinta da concepção de justiça, ele deve ser neutro e, por isso, tolerante. A sociedade deve ser uma arena neutra de modo a que cada um seja livre de viver segundo as suas opções e permitindo que os outros façam o mesmo. Como é evidente, esta defesa da tolerância está estritamente ligada à adesão ao pluralismo. Esta justificação da tolerância tem, contudo, as suas dificuldades, e uma delas, que não é das menores, prende-se com o problema de definir a neutralidade do Estado. Como é evidente, nem todos os modos de vida são indiferentes ao estado. O estado não pode ser neutro em relação a tudo, até porque os estados modernos assumem nas suas constituições a Declaração dos Direitos do Homem, o que aponta logo para a dificuldade da definição do seu conteúdo. Isto é, esta defesa/justificação da tolerância suscita a problemática da defesa da tolerância fundada no pluralismo, que não se pode confundir com o cepticismo e exige a definição dos mínimos morais, sem os quais uma comunidade não pode subsistir, porque sem um conjunto de valores que seja aceite por todos cai-se, facilmente, na lei da guerra, ou seja na lei do mais forte.

206

José Henrique Silveira de Brito

4.3 Tolerância e autonomia Autonomia foi um dos conceitos mais importantes a que se recorreu no século XX para defender a tolerância. Esta justificação tem na sua origem, concretamente, no pensamento de John Stuart Mill que, na obra On Liberty, afirma: «Se uma pessoa possuir uma quantidade aceitável de senso comum e experiência, o seu modo de viver a vida é o melhor, não porque é o melhor em si, mas porque é o seu próprio modo. Os seres humanos não são como carneiros; e até mesmo os carneiros não são exactamente todos iguais»41.

Há modos de vida diferentes e, mesmo que existisse só uma maneira ideal de viver, é melhor que cada qual encontre a sua. Isto é, se alguém escolhe um modo de vida, por ser essa a sua escolha, deve ser respeitado pelos outros, ou seja, deve ser tolerado porque tem na sua origem uma escolha fruto do exercício da sua autonomia e o exercício da autonomia tem como consequência o pluralismo quanto ao modo de viver a vida. Compreende-se assim esta afirmação de Susan Mendus: «a defesa da tolerância em nome da autonomia supõe portanto a adesão ao pluralismo, pois ela repousa na convicção de que pessoas diferentes serão atraídas para modos de vida diferentes, e põe o acento no facto de que os indivíduos devem ser autorizados a encontrar o seu próprio caminho para atingir o seu ideal»42.

Contudo, tal como na fundamentação da tolerância na neutralidade do estado, esta defesa da tolerância fundada no pluralismo suscita imensas dificuldades. Uma primeira dificuldade pode ser formulada nestes termos: se há valores antagónicos, e eles existem, e se todos eles devem ser aceites, 41 42

Mill: 70. Mendus: 1973.

A tolerância e a sua fundamentação

207

nem todas as pessoas poderão realizar a sua concepção de vida. Susan Mendus dá o exemplo da pornografia: numa sociedade que a tolera as mulheres podem e sentem-se inferiorizadas. E a autora observa ainda: «A conclusão parece ser que o pluralismo torna a tolerância ao mesmo tempo necessária e impossível: é necessária desde logo porque reconhecemos que não existe uma maneira ideal única de viver, mas é também impossível pois os valores não são simplesmente plurais mas igualmente conflituais»43.

Esta conclusão compromete as tentativas de fundar a tolerância na neutralidade e na autonomia. Diz Susan Mendus: «se a tolerância consiste em abster-se de intervir nas coisas que desaprovamos moralmente, como neste caso a tolerância pode ser uma virtude para os indivíduos e um bem para a sociedade? Como pode ser bom permitir o que é mau?»44. Um possível passo para se tentar ultrapassar esta dificuldade, e encontrar uma justificação para a tolerância, é conceber um pluralismo competitivo, uma vez que, sendo competitivo, não admite o mal. Além disso, esse pluralismo tem como corolário que as virtudes não podem ser todas praticadas na mesma grandeza por cada um nem por todos, o que permite compreender e considerar positiva a existência de modos de vida diferentes que permitem realizar as diferentes virtudes. Mas a justificação da tolerância no pluralismo coloca ainda o problema da tolerância quanto aos vícios. Serão eles toleráveis? Como vimos, Jankélévitch considera que em certas circunstâncias os vícios podem ser tolerados. O autor fala de uma casuística da tolerância como há uma casuística da mentira, e em nome dessa casuística pode acontecer que se tolera um mal menos grave em nome do respeito da pessoa.

43 44

Mendus: 1973. Mendus: 1973.

208

5.

José Henrique Silveira de Brito

Consideração final

Como é patente no que se acaba de dizer, toda a tentativa de fundamentação da tolerância aparece como limitada, ou pelo menos frágil. A tolerância é própria de sociedades pluralistas em que se vive um pluralismo competitivo: as hierarquias de valores variam de sujeito moral para sujeito moral, pluralismo que não pode implicar um relativismo moral radical. Este pluralismo, tal como é entendido no ocidente, tem como valor supremo a dignidade humana. Mas essa dignidade vai acompanhada de outros valores, como o da liberdade, que competem entre si e que podem mesmo competir com o da dignidade. Ou seja, o problema da tolerância, em termos da sua fundamentação, está articulado com a problemática da fundamentação da Ética que, como se disse, é considerada por vários filósofos impossível, mesmo por alguns que entendem ser inaceitável o relativismo moral.

Referências Bibliográficas Almeida, Onésimo Teotónio de (2009), De Marx a Darwin. A desconfiança das Ideologias, Lisboa, Gradiva. Almeida, Onésimo Teotónio de; Brás, João Maurício (2012), Utopia em Dói Menor — Conversas Transatlânticas com Onésimo, Prefácio de Carlos Fiolhais, Posfácio José Eduardo Franco, Lisboa, Gradiva. Brito, José Henrique Silveira de (2010), «Os Valores Morais e a Educação dos Afectos», Sexualidade e Educação para a Felicidade, org. Miguel Gonçalves et al., Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, pp. 2010, 159-170. Brito, José Henrique Silveira de (2012), «Será Possível uma Ética Global?: entre as Condições e os Fundamentos», Angelicum. 88, pp. 639-658. Brito, José Henrique Silveira de; Brito, Maria Amélia Cunha Antunes Araújo Silveira de (2012a), «A Autonomia Humana: da Filosofia à Bioética», Revista Portuguesa da Filosofia. 68, 657-672.

A tolerância e a sua fundamentação

209

Cabral, Francisco Sarsfield (2001), Ética na Sociedade Plural, Coimbra, Edições Tenacitas. Camps, Victoria (1996), Virtudes Públicas, 3ª ed., Madrid, Editorial Espasa-Calpe. Comte-Sponville, André (1995) Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Lisboa, Presença. Eteberria, Xabier (2012), Virtudes para Convivir, Madrid, PPC, Editorial y Distribuidora. Ferro, Nuno (2011), «Crise, Confusão e Modo de Pensar a Ética», Ética, Crise e Sociedade, org. Michel Renaud e al., Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus. Jankélévitch, Vladimir (1970), Traité des Vertus. 2. Les Vertus et L’amour. Paris: Bordas. Justo, José M. (1999), «Introdução. Dois Apontamentos sobre Prática e Teoria do Combate Voltaireano pela Tolerância», Voltaire, Tratado sobre a Tolerância, tradução e Introdução de José M. Justo, Lisboa, Edições Antígona. Locke, John (1987), Carta sobre a Tolerância, tradução de João da Silva Gama, revisão por Artur Morão, Lisboa, Edições 70. Luz, José Luís Brandão (1996), «Filosofia e educação para a tolerância», Arquipélago. Série Filosofia nº 5, pp. 105-112. Mendus, Susan (2004), «TOLERANCE. Tolerance et Pluralisme Morale», Dictionnaire D’éthique et de Philosophie Morale. T. 2, 1ª ed., dir. Monique Canto-Sperber, Quadrige, Paris, P.U.F., pp. 1969-1974. Mill, John Stuart, (1997), Sobre a Liberdade, Mem Martins, Publicações EuropaAmérica. Popper, Karl (1993), A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, vol. I: O Fascínio de Platão, tradução de Anabela Sottomayor e Catarina Labisa, Lisboa, Editorial Fragmentos. Renaud, Michel (1998), «Educação, Tolerância e Intolerância», Brotéria - Cultura e Informação, 146, pp. (1998), 155-168. Ricoeur, Paul (1969), Le conflit des Interprétations. Essais D’herméneutique, Paris, Éditions du Seuil. Ricoeur, Paul (1991), Lectures 1. Autour du Politique, Paris, Les Éditions du Seuil.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.