A Tortura no Estado Democrático de Direito

May 28, 2017 | Autor: Marcelo Branco Gomez | Categoria: Direito, Direito Penal, Democracia, Violência Policial, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, Tortura
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ESCOLA SUPERIOR DE ADMINISTRAÇÃO, MARKETING E COMUNICAÇÃO DE SANTOS

Marcelo Branco Gómez

A TORTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O uso da tortura no Brasil, desde a redemocratização em 1985

Orientador: Prof. Me. Marcelo Luiz dos Santos Chagas

SANTOS – SÃO PAULO 2014

Marcelo Branco Gómez

A TORTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O uso da tortura no Brasil, desde a redemocratização em 1985

Projeto

de

Graduação

ESAMC.

Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito da Escola Superior de

Administração,

Marketing

e

Comunicação de Santos. Orientador: Prof. Me. Marcelo Luiz dos Santos Chagas

SANTOS – SÃO PAULO 2014

Marcelo Branco Gómez

A TORTURA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O uso da tortura no Brasil, desde a redemocratização em 1985

Projeto

de

Graduação

ESAMC.

Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito da Escola Superior de

Administração,

Marketing

e

Comunicação de Santos.

APROVAÇÃO:

________________________

________________________

Prof. Me. Marcelo Luiz dos Santos Chagas

Profa. Dra. Fernanda de Magalhães Dias Frinhani

(Orientador)

(Avaliadora)

ESAMC - Santos

ESAMC - Santos

À Shirley e Giovanna dedico esta monografia.

AGRADECIMENTOS

À minha querida esposa Shirley pelo suporte e carinho. Ao Professor Marcelo Chagas, pela orientação neste trabalho, pela paciência, pelo incansável espírito educador e pelo afeto que tem por seus alunos. Ao ProUni, Programa Universidade para Todos, que me possibilitou, assim como a milhares de jovens, cursar uma faculdade com bolsa integral. Aos meus amigos Alice Lacerda, Bruno Procópio e Marianna Souza, por tornarem os cinco anos de graduação mais suaves e descontraídos.

“Todo camburão tem um pouco de campo de concentração” Latuff

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo desmistificar a crença de que a tortura foi um instrumento do Estado totalitário, restrito tão somente ao período da última ditadura militar, de 1964 a 1985. Para tanto, foi realizado um resgate histórico através de pesquisa bibliográfica, pelo qual pôde se verificar a presença da tortura como prática recorrente em toda a história do Brasil, desde a colonização, até a República. Inicialmente, foi estabelecido como paradigma o conceito legal de tortura, extraído da legislação brasileira e de convenções internacionais. Foi também realizado um breve estudo sobre os efeitos da tortura, conhecidos pela Medicina e pela Psicologia. Finalmente, foi analisada a necessidade premente do debate, da conscientização sobre a tortura e o inadiável combate e consequente erradicação da tortura das instituições públicas brasileiras. Palavras-chave: Tortura. Democracia. Violência policial.

ABSTRACT

This research has the goal to demystify the belief that torture was an instrument use by the totalitarian state, restricted to only the last military dictatorship from 1964 through 1985. In order to demonstrate it, a historical research made through bibliography research, in which the presence of torture was a recurrent practice on the course of the Brazilian history, since its colonization all the way to its Republic. Initially the legal concept of torture was establish as paradigm extracted from the Brazilian legislation and international conventions. The effects of torture were also briefly study accordingly to medical and psychological research. Therefore, the research points the urgency for the debate, the awareness of torture, the urgent combat and the consequent eradication of torture from the Brazilian government agencies. Keywords: Torture. Democracy. Police violence.

Sumário INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1. A TORTURA E SEUS EFEITOS ........................................................................... 12 1.1. O que é tortura ................................................................................................... 12 1.1.1. Definição de tortura por órgãos internacionais ................................................ 12 1.1.2 Conceito legal de tortura no Brasil ................................................................... 15 1.1.3 Principais formas de tortura utilizadas no Brasil ............................................... 17 1.2 Os efeitos da tortura ............................................................................................ 18 1.2.1 O impacto nas vítimas e familiares ................................................................... 19 1.3 O uso da tortura através da história .................................................................... 22 1.3.1 No Brasil ........................................................................................................... 22 2 RAÍZES DA TORTURA NA CULTURA BRASILEIRA ............................................ 23 2.1 Sociedade totalitária e cultura de violência ......................................................... 24 2.1.1 A escravidão negra no Brasil ............................................................................ 24 2.1.2 Órgãos de repressão ........................................................................................ 26 2.1.3 O direito de vida e morte .................................................................................. 28 2.1.4 Estado de exceção permanente ....................................................................... 30 2.1.5 Os regimes e seus inimigos ............................................................................. 32 3 O COMBATE À TORTURA .................................................................................... 36 3.1 Órgãos internacionais de combate à tortura........................................................ 36 3.1.1. Comitê Contra a Tortura – ONU ...................................................................... 36 3.1.2. Subcomitê de Prevenção à Tortura - ONU ...................................................... 36 3.1.3. Anistia Internacional ........................................................................................ 37 3.2 Órgãos nacionais de combate à tortura .............................................................. 37 3.2.1 Ordem dos Advogados do Brasil ...................................................................... 37 3.2.2. Ministério Público ............................................................................................ 38 3.2.3. Corregedorias das Policias Militares ............................................................... 38

3.2.4. Defensoria Pública .......................................................................................... 38 3.2.5. Pastoral Carcerária ......................................................................................... 39 3.2.6. Conectas ......................................................................................................... 40 3.2.7. Grupo Tortura Nunca Mais - RJ ...................................................................... 40 3.3 O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) .................... 41 3.4 Programas de proteção a testemunhas e denunciantes ..................................... 43 3.4.1 Provita .............................................................................................................. 43 CONCLUSÃO............................................................................................................ 44 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 46

10 INTRODUÇÃO

O uso da tortura no Brasil, como instrumento de confissão, obtenção de informações privilegiadas e punição não é novidade, nem tampouco coisa do passado. Verifica-se que, ao longo de toda a história do Brasil, ou seja, desde sua descoberta pelos portugueses em 1500 até os dias atuais (século XXI), a tortura tem sido prática recorrente. Desde a colonização, onde os portugueses a utilizavam contra índios e negros escravos, passando pelo Império, e chegando finalmente à República, a tortura é amplamente utilizada. Tal perversão permanece arraigada em nossas instituições policiais e judiciárias, apesar da Constituição Federal de 1988, reconhecidamente uma das mais avançadas dos países ocidentais. Dependendo do período histórico, a tortura teve objetivos práticos diferentes e públicos-alvo diferentes: primeiro o escravo rebelde, insubmisso, fugitivo; depois da abolição, o criminoso comum, o delinquente, o marginal, o vadio; durante as ditaduras, o preso político. Atualmente, com o fim da última ditadura militar, o objeto da tortura voltou a ser o criminoso comum (mas também o simples suspeito, o morador da periferia, etc). Ao estudar a tortura, buscou-se, ainda que de forma breve, conhecer os efeitos reconhecidos pela Medicina e pela Psicologia, sobre suas vítimas. Tais efeitos, por sua vez, não se restringem ao corpo e à psiqué das vítimas – perpassam todo o corpo social, atingindo os familiares, a comunidade a que pertencem e a sociedade. Atualmente, desde a reabertura política em 1985, a tortura, como instrumento de poder utilizado por agentes de segurança pública, tem um público bem específico. Nem todo cidadão é potencialmente torturável. Estas gravíssimas violações da dignidade humana basicamente se restringem à população pobre, negra ou parda, das periferias dos grandes centros urbanos. Finalmente, buscou-se compreender a necessidade urgente de se debater o problema e de se combater sua prática, através da reforma das

11 instituições policiais e judiciárias, bem como pela criação e fortalecimento de órgãos de fiscalização de suas atividades.

12 1. A TORTURA E SEUS EFEITOS 1.1. O que é tortura

Nem todo cidadão é potencialmente torturável, mas sim aqueles em condição de exclusão social, uma vez que a violência estatal é, em sua 1 essência, seletiva.

Não há como se combater um problema sem conhecê-lo. Por isso, é de vital importância que se defina o que é tortura antes de se avançar na problematização do assunto. Todavia, definir o que seja tortura não é das tarefas mais fáceis, inclusive para os pensadores mais experientes, tendo em vista que as variações culturais de cada país - ou até mesmo dentro de um mesmo país - trazem nuances do que é tolerado, ou não, em termos de uso da força do Estado sobre um cidadão. Dessa forma, achou-se por bem, neste trabalho, utilizar-se de definições legais, extraídas de tratados e convenções internacionais que versam sobre direitos humanos e especificamente, em alguns casos, sobre a tortura. Buscou-se também, como não poderia deixar de ser, qual a definição que o legislador pátrio deu à tortura.

1.1.1. Definição de tortura por órgãos internacionais

A tortura é definida, internacionalmente, através de Convenções, Pactos e Tratados. Utilizou-se neste trabalho as definições contidas na “Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”2 e

1

CHIARI, Vanessa. A tortura como violência instituída e instrumento para a simulação do réu confesso, p. 13 2 Adotada pela Resolução 39/46, da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10.12.1984 - ratificada pelo Brasil em 28.09.1989. Artigo 1º

13 “Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura” por serem frequentemente referenciadas em trabalhos científicos sobre o tema tortura. De acordo com a “Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, tortura é:

[...] qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.

Por sua vez, para a “Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura” 3, tortura é:

[...] todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.

Dessas duas definições, encontradas em duas importantes convenções internacionais, podem-se extrair os seguintes elementos em comum que devem estar presentes no ato para que seja considerado como tortura:

a) Ato intencional; b) Sofrimentos físicos ou mentais infligidos à vítima; c) Tem uma finalidade específica.

É de suma importância a compreensão dos elementos constitutivos dessas duas definições legais de tortura. Tal compreensão pode determinar, por 3

Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Artigo 2º.

14 exemplo, se uma denúncia apresentada perante a Corte Interamericana será considerada ou não como tortura.

Com base nisto, a jurisprudência interamericana vem estabelecendo que, para que um ato configure tortura sob o artigo 5(2), os seguintes três elementos devem estar presentes: 1) uma ação deliberada ou um ato intencional; 2) grave sofrimento ou aflição física ou psíquica infligido à vítima; 3) um propósito de aplicar tortura. Ademais, em parte de sua jurisprudência, a Comissão Interamericana tem também exigido, com base no artigo 3 da Convenção Interamericana sobre a Tortura, que o ato seja perpetrado por um agente do Estado ou cometido 4 sob sua instigação.

Apesar das definições positivadas sobre o que seja tortura, a jurisprudência das cortes internacionais têm aceitado uma flexibilização dessas definições, afim de adaptá-las às permanentes mudanças de valores nas sociedades democráticas. Tal flexibilização, diga-se, tem o escopo de ampliar o conceito de tortura, afim de uma melhor proteção aos direitos humanos.

A Corte [Interamericana] concorda com a posição da Corte Europeia de que a definição da tortura está sujeita a uma contínua reavaliação à luz das condições atuais e dos valores mutáveis das sociedades democráticas. Assim, determinados atos que eram classificados no passado como tratamento desumano ou degradante, mas não como tortura, podem, no futuro, serem classificados de modo diferente, isto é, configurar tortura, pois a exigência crescente pela proteção dos direitos e liberdades fundamentais deve ser acompanhada de uma resposta mais vigorosa para lidar com 5 violações dos valores básicos das sociedades democráticas.

A constante ampliação do conceito, na jurisprudência da Corte Interamericana, já contribuiu, em casos concretos, para melhor compreensão e enquadramento dos crimes cometidos contra a humanidade.

4

A proibição de tortura e maus-tratos pelo sistema interamericano - Um manual para vítimas e seus defensores, p. 103 5 Ibidem, p. 104

15 A Corte considerou ainda que o grau de sofrimento experimentado pelo Sr. Caesar foi agravado pelo tratamento recebido por ele antes e depois do açoitamento. Especialmente durante o período, caracterizado por uma demora excessiva, em que ele padeceu do medo, angústia e tensão à espera do castigo, sendo também submetido a presenciar o sofrimento de outros prisioneiros açoitados. Isto, além da extrema humilhação 6 representada pelo ato de flagelação em si.

Desta forma, a angústia causada pela expectativa do sofrimento vindouro pode também ser considerada como tortura.

1.1.2 Conceito legal de tortura no Brasil

No Brasil, após um período de 21 anos de regime totalitário, que vigeu de 1964 a 1985, onde a tortura foi amplamente utilizada como instrumento de informação e combate ao “terrorismo”, e em defesa da “segurança nacional”, é promulgada em 1988 a atual Constituição Federal, também conhecida como Carta Cidadã. Na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, onde estão elencados os direitos e garantias fundamentais, merece especial destaque, em seu inciso III e XLIII, respectivamente, a vedação à tortura e a estipulação da inafiançabilidade e da impossibilidade de graça e anistia aos acusados e condenados pela prática da tortura. Todavia, apesar da previsão constitucional, até 1997, por inércia do legislador infraconstitucional, não havia o tipo penal de tortura. Desta feita, diante do princípio da legalidade e da taxatividade que norteiam o Direito Penal brasileiro, a tortura era fato atípico até a promulgação da lei 9.455/97. Isso não quer dizer que a tortura fosse permitida. Mas não se poderia processar ou condenar alguém diretamente por tortura. Deveria haver enquadramento em outro crime, por exemplo o de lesão corporal. Na referida lei, em seu artigo 1º, tem-se a definição legal de tortura no Brasil. Porém, como a tipificação de crimes utilizada no nosso sistema penal prevê a 6

A proibição de tortura e maus-tratos pelo sistema interamericano - Um manual para vítimas e seus defensores, p. 110

16 conduta que se deseja incriminar, deve-se extrair a definição através da junção de elementos espalhados pelo tipo. Não há uma definição clara e direta. O artigo 1º da Lei 9.455 assim aduz: Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos. § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I - se o crime é cometido por agente público; II - se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; III - se o crime é cometido mediante seqüestro. § 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

Desta feita, pode-se definir legalmente a tortura no Brasil, como: Ato de violência ou grave ameaça, capaz de causar sofrimento físico ou mental em uma pessoa, com a finalidade de obter declaração, informação, confissão da vítima ou terceira pessoa; bem como, provocar ação ou omissão de natureza criminosa,

17 aplicar castigo ou medida de caráter preventivo na vítima, ou simplesmente em razão de discriminação racial ou religiosa. A definição brasileira possui uma vantagem importante sobre a definição utilizada pela Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da ONU. No Brasil, o crime de tortura é considerado comum, ou seja, qualquer pessoa pode ser agente ativo do crime. De forma diferente, para a definição dada pela ONU, somente um funcionário público ou alguém com sua aquiescência pode praticá-lo.

1.1.3 Principais formas de tortura utilizadas no Brasil

Nesses casos, os estabelecimentos mais parecem depósitos de presos, sem a mínima condição de qualquer ação no sentido de humanização da 7 pena.

Não há, no Brasil, até o presente momento, dados centralizados e homogêneos sobre as denúncias, processos e condenações sobre tortura, emitidos por órgãos oficiais. Desta feita, recorre-se mais uma vez a relatórios emitidos por organizações nacionais e internacionais para poder elencar quais são as principais formas de tortura utilizadas no Brasil e quais seus motivos. Começamos por dados obtidos do Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU. Segundo esse relatório, que trás dados de apenas quatro estados brasileiros e é fruto de poucas visitas ocorridas a presídios e centros de internação de menores, as formas de tortura alegadas de forma consistente eram de ameaças, chutes e socos na cabeça e no corpo, golpes com cassetetes e estupros. A tortura é utilizada, principalmente como forma de obter informações e confissão, mas também como punição ou até mesmo por mero sadismo do agente torturador. É perpetrada em locais diversos, sob as mais diversas condições,

7

Relatório do Ministério da Justiça sobre situação carcerária em São Paulo. 2011, p. 1

18 incluindo a casa do suspeito, dentro de viaturas, nas delegacias, em locais ermos e nos presídios.

O SPT recebeu diversas e consistentes alegações dos entrevistados acerca de tortura e de maus-tratos, cometidos, particularmente, pela polícia civil e militar. As alegações incluem ameaças, chutes e socos na cabeça e no corpo, além de golpes com cassetetes. Esses espancamentos aconteceram sob a custódia policial, mas também em ruas, dentro de casas, ou em locais ermos, no momento da prisão. A tortura e os maus-tratos foram descritos como violência gratuita, como forma de punição, para extrair confissões e 8 também como meio de extorsão.

A seguir, listam-se as principais formas de tortura reconhecidamente utilizadas no Brasil: a) Ameaças; b) Asfixia; c) Uso excessivo da força; d) Choques; e) Condições sub-humanas de detenção; f) Incomunicabilidade do preso; g) Confinamento solitário (RDD, no Brasil);

1.2 Os efeitos da tortura

A tortura deixa marcas profundas em suas vítimas, tanto física quanto mentalmente. Ela também deixa sua marca em toda a sociedade e, portanto, causa danos a todos nós. Quando aqueles que são encarregados de garantir o respeito às leis se tornam agentes de violação, o próprio Estado de Direito é corrompido, ficando danificado o contrato entre governo e governados. A ação criminosa do Estado, com a violação dos Direitos 9 Humanos, não pode ser tolerada.

8

Relatório do subcomitê de combate à tortura da ONU. Maria do Rosário Nunes - Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 9

19 A prática da tortura causa efeitos notórios, e muitas vezes permanentes. Além da vítima, os efeitos da tortura se ampliam e atingem gravemente os familiares da vítima, o grupo social ao qual ela pertence e toda a sociedade.

1.2.1 O impacto nas vítimas e familiares

A tortura moderna está programada de maneira inteligente para destruir e desapossar a pessoa da constelação que constitui o seu núcleo de identidade. Em consequência, a experiência da tortura não é uma doença curável em tempos que possamos definir; ela constitui uma ruptura da identidade, em parte definitiva [...] quer seja o seu silêncio sintomático ou suas manifestações patológicas... [...] É por isso que nós não identificamos a tortura como um agente produtor de efeitos mórbidos, mas qualificamo-la de experiência que atua reformulando o destino da pessoa e quebrando 10 para sempre um ser humano na sua subjetividade.

Aqueles que foram torturados continuam sendo torturados.

11

Segundo Tania Kolker12, os danos causados por atos de tortura podem ser classificados em danos diretos e indiretos, imediatos e tardios. Como danos diretos, pode-se incluir as lesões e sofrimentos físicos e psicológicos, bem como os efeitos na subjetividade da vítima. Por danos indiretos, pode-se entender a repercussão das violações e da impunidade na subjetividade dos familiares, da comunidade e da sociedade em geral. Danos imediatos são os relacionados às lesões físicas e ao sofrimento psíquico. Danos tardios, por sua vez, “são as sequelas individuais, coletivas e sociais, potencializadas pela falta de reconhecimento social do dano e pela impunidade, que podem se cronificar e acometer inclusive as gerações seguintes (danos transgeracionais)”.13

10

M. Viñar - Exil et Torture. Paris: Denöel, 1989 Jean Améry – Psiquiatra francês. 12 Membro do Grupo Multidisciplinar de Peritos Independentes para a Prevenção da Tortura e da Violência Institucional da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. 13 I Seminário sobre Tortura e Violência no Sistema Prisional e no Sistema de Cumprimento de Medidas Sócio-educativas, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – painel de Tania Kolker. 11

20 As seqüelas psicológicas que ficam após qualquer ato de violência e de tortura são descritas na literatura especializada como uma experiência traumática com conseqüências que alteram o estado psicológico, emocional, portanto, a saúde mental muito tempo depois da agressão. O trauma tem vida própria e emerge de várias formas como estados emocionais alterados, estados de confusão, angústia, depressões profundas, isolamento, agressividade, autopunição, desestruturação do indivíduo, estados alterados da consciência, entre outros. A literatura está repleta de exemplos das seqüelas da violência e da tortura. Basicamente, os aspectos mais claramente definidos são os estados de ansiedade traumática e reações emocionais alteradas. O aparecimento de quadros depressivos profundos é freqüente, com idéias suicidas. Em outros casos aparecem estados de confusão mental, tristeza, angústia, apatia, extrema fragilidade, perda da afetividade, autopunição, irritabilidade, sentimentos de culpa. As reações defensivas manifestam-se em várias formas de agressividade, ira, raiva, nojo, irritabilidade, ambivalência emocional, etc. Muitas dessas reações têm a ver com os métodos empregados, a idade da vítima, seu nível de amadurecimento emocional e outras variáveis. A desestruturação da personalidade com comprometimento da identidade da pessoa e prejuízo de sua auto-estima são seqüelas importantes. Cientificamente, hoje, na literatura especializada existem centenas de trabalhos evidenciando as seqüelas físicas e mentais da tortura. A seqüela mental está presente em qualquer tipo de tortura. A tortura mental por excelência acarreta danos permanentes na vítima de tortura. Mesmo depois de saradas as feridas, pessoas que foram torturadas sofrem ainda com freqüência conseqüências psicológicas por anos a fio. Estudiosos da Alemanha recentemente descobriram que as experiências traumáticas deixam rastro no cérebro. Quer dizer, há danos cerebrais decorrentes de danos mentais. Através dos exames com o MEG, magnetoencefalograma, cientistas alemães de Constança descobriram que determinadas partes do cérebro das vítimas de tortura apresentavam anomalias em seu funcionamento: “É a região cerebral do lobo temporal médio e em ligação com outras estruturas cerebrais, como o hipocampo, responsável pela codificação das vivências pessoais em associação espacial e temporal”. Foi constatada a diminuição do hipocampo, o que se acredita ser responsável pelo fato de as vítimas de tortura não considerarem o contexto espacial e temporal, durante suas recordações dos momentos de tortura. Isto é, “[...] no momento em que as recordações vêm à tona, as vítimas as sentem como uma novidade real, 14 mesmo que já tenham acontecido há anos”.

14

Artigo: A tortura no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). Guanaíra Rodrigues do Amaral Médica psiquiatra, Membro da Equipe Multidisplinar da ACAT-Brasil e representante FI-ACAT (Federação Internacional das Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura) para América Latina Fonte: Observatório das Violências Policiais (www.ovp-sp.org).

21 Estudos realizados no âmbito da medicina e da psicologia revelam efeitos assombrosos para as vítimas de tortura. Entre os principais efeitos somáticos 15, pode-se destacar: a) Danos cefálicos; b) Perda do conhecimento; c) Infecções com compromisso cefálico; d) Cefaleias, neuralgias e mialgias; e) Debilidade orgânica geral, com emagrecimento e anorexia; f) Cardialgias, dores estomacais e diarreias; g) Dores generalizadas no corpo.

Já as sequelas psicológicas16 mais frequentes são: a) Problemas identitários; b) Processos dissociativos graves; c) Comportamentos regressivos; d) Angústia crônica, ansiedade e depressão; e) Insônia persistente e pesadelos; f) Repetição e transtornos neuróticos ou psicóticos; g) Sentimentos de perseguição e de dano permanente h) Incapacidade de trabalho e perda profissional; i) Isolamento; j) Transtornos da memória, da percepção e da atenção (estado de alerta permanente); k) Dificuldades relacionais com o parceiro, a família, etc.

Quando o corpo humano, individualizado, é violentado, na verdade, é o corpo social que se desestrutura. O corpo individual como significante social. O dano é social e vem do imaginário social, trata-se de uma alteração da estrutura social, da vida cotidiana de um grupo humano.

15

Dres. Ricardo Loewe Reis, Javier Sam e Alejandro Cerde García, equipe de Salud Mental de ACAT (Acción de Cristianos por la Abolición de la Tortura-Sección México), Reporte de Investigación de los Sobrevivientes de la Tortura de la Región de los Loxichas, Oaxaca, in La Tortura y otras Violaciones, op.cit. 16 Artigo de Alfredo Guillermo Martín - As Seqüelas Psicológicas da Tortura – em PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, págs. 437 e 438.

22 1.3 O uso da tortura através da história 1.3.1 No Brasil

A tortura já era prática corrente nas delegacias de roubos e furtos muito antes de o regime militar ser iniciado em 1964. Tal fato reforça a tese de que a tortura está intrinsecamente vinculada à história de desigualdade social, patrimonialismo e controle social violento dos excluídos ou cidadãos 17 de segunda categoria.

Um dos objetivos deste estudo é desfazer o mito de que a tortura no Brasil se iniciou e ficou restrita ao período de regime totalitário de 1964 a 1985. Em toda a história do Brasil, desde a chegada dos portugueses em 1500, a tortura está presente. No século passado, a tortura era amplamente utilizada em delegacias para obtenção de confissões e informações de presos comuns. Na ditadura de 64-85, a tortura foi utilizada principalmente contra presos políticos. Hoje, após a volta da democracia ao país, a tortura ainda é amplamente utilizada por policiais militares, policiais civis e agentes penitenciários, contra suspeitos de crimes comuns.

17

CHIARI, Vanessa. A tortura como violência instituída e instrumento para a simulação do réu confesso, p. 14

23 2 RAÍZES DA TORTURA NA CULTURA BRASILEIRA Neste capítulo, buscou-se resgatar e compreender as causas da permanência deste crime tão funesto nas entranhas de nossa sociedade. Ao longo deste trabalho, verificou-se que o uso da tortura está arraigado em nossas instituições de repressão à “delinquência”. Porém, desde o final do século XIX a tortura é considerada crime no Brasil. Há, portanto, a existência de um verdadeiro paradoxo no âmago de nossa sociedade, posto que estas instituições têm como principal atribuição, a manutenção da ordem social, através da fiscalização da mais estrita legalidade. Algumas linhas se destacaram e nortearam as próximas seções. Por exemplo, verificou-se que a tortura faz parte da história do Brasil desde a colonização, sendo utilizada, principalmente, na repressão aos escravos negros.

[...] a prática da tortura é uma indicação dos valores herdados que influenciam uma sociedade ou nação. O que aconteceu no Brasil precisa ser visto à luz da sua longa história, desde 1500 quando os primeiros colonizadores chegaram. O tratamento dos índios, a cruel instituição da escravidão que somente foi abolida em 1888, e a forma violenta como o Brasil foi explorado através dos séculos, tudo isso deixou suas marcas na 18 mentalidade do povo e especialmente nas classes dominantes.

Outra linha de análise é a própria origem do Estado ocidental, onde se identificou a figura do homo sacer no direito romano arcaico. Nos dias atuais, no Brasil, verifica-se uma semelhança que “salta aos olhos”, entre a figura do homo sacer e a figura do bandido. Importante, também, destacar o uso da tortura durante a ditadura militar, que o Brasil padeceu por 21 anos. Neste período, o uso da tortura foi “refinado”, através de novas técnicas, importadas, principalmente, dos Estados Unidos. “De abuso cometido pelos interrogadores sobre o preso, a tortura no Brasil passou, com o regime militar, à condição de método científico.” 19

18 19

Philip Potter, in Brasil Nunca Mais, p. 18 Ibidem, p. 32

24 Pode-se afirmar que a cultura de violência, que sempre esteve presente nos órgãos de segurança pública brasileiros, restou fortalecida e a repressão à população pobre recrudesceu após o advento da ditadura militar de 64-85.

2.1 Sociedade totalitária e cultura de violência

Em um regime democrático não se encontra legitimação para a tortura em nenhum lugar. Nem um esforço ideológico ardiloso consegue encontrar uma justificativa “razoável” que legitime o uso da tortura. Somente uma cultura de violência, um profundo desprezo pelo sofrimento do outro; somente a banalização da vida pode justificar a tortura.

2.1.1 A escravidão negra no Brasil

Nesta seção, buscou-se revelar um enorme paralelismo entre o regime escravocrata de outrora e o regime democrático brasileiro atual. As relações entre senhores, feitores e órgãos de repressão, e os negros (escravos e não escravos), presentes no Brasil desde a colonização até a abolição oficial da escravidão em 1888 foram substituídas, com um grau de semelhança surpreendente, pelas relações entre polícia e os jovens negros ou pardos de periferia. No sistema escravagista brasileiro, apesar das leis e regulações que impunham limites aos castigos aplicados aos escravos, a violência empregada superava em muito esses limites.

25 [...] a prática do sistema tendeu sempre, pela sua própria natureza, a infringir as leis e a torná-lo mais rígido do que o previsto, pois a coerção era necessária à manutenção do regime escravocrata e assim, exercia-se 20 dentro de padrões que supunham a violência como um traço normal.

Assim como mencionado por Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, em relação à prática do suplício na Europa, também aqui no Brasil, havia os açoites públicos de negros – certamente com o objetivo de fazer uma demonstração pública do destino reservado aos escravos faltosos.

A violência, mesmo contida nos limites da lei era um espetáculo diário que a sociedade aceitava tranquilamente e que sempre motivava comentários dos estrangeiros acostumados à vida em sociedades livres, como Debret que assim se refere ao Rio de Janeiro: [...] Todos os dias, entre nove e dez horas da manhã, pode-se ver a fila de negros a serem punidos; vão eles presos pelo braço, de dois em dois e conduzidos sob escolta da polícia até o local designado para o castigo, pois existem em todas as praças mais frequentadas da cidade, pelourinhos erguidos com o intuito de exibir os castigados que são em seguida devolvidos à prisão. Aí o carrasco recebe o direito de pataca por cem chibatadas, aplicadas. De regresso à prisão, a vítima é submetida a uma segunda prova, não menos dolorosa: a lavagem das chagas com vinagre e pimenta, operação sanitária destinada a evitar a infecção do ferimento. Se o negro é muito nervoso, é preciso sangrá-lo 21 imediatamente, precaução que se toma sempre em relação às negras.

Com o passar do tempo, os açoites públicos desaparecem, sendo as punições efetuadas em lugares mais encobertos.

Com o correr do tempo houve a preocupação, não de abrandar as penas, mas de disfarçar o espetáculo da violência, praticando-se as punições em lugares afastados, a horas mortas, passando-se posteriormente a fazê-lo 22 nas próprias prisões.

Os senhores de escravos da zona rural criavam estatutos próprios para suas propriedades, à semelhança dos feudos medievais.

20

QUEIROZ, Suely R. R. de. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. São Paulo, p. 83 21 Ibidem, p. 98 22 Ibidem, p. 98

26 O Estatuto [...], de um fazendeiro tido por brando e justo, determina no artigo 2º, que “nem um escravo será castigado com mais de cinqüenta açoites em um dia, podendo ser em mais dias quando o crime assim o 23 exigir.” Era nas propriedades rurais contudo que se manifestava toda a violência do regime. O senhor poderia punir o escravo como bem entendesse, nas pequenas e grandes faltas desde que estas não chegassem ao domínio público. O rigor das penas ficava à sua inteira discrição. Isolados no campo, longe da proteção do Estado, apenas um número para a Coletoria local, sob leis que pouca força tinham e talvez fossem desconhecidas até mesmo dos senhores, estavam os escravos inteiramente à mercê daqueles. O castigo por uma falta, verdadeira ou imaginária, os maus tratos resultantes de 24 capricho ou crueldade, poucos limites encontrariam.

Nos dias atuais, a periferia das grandes cidades é assolada por um verdadeiro estado de exceção, onde as garantias fundamentais não têm valor ou aplicação. Além das facções criminosas que controlam essas regiões, as policias exercem uma verdadeira micro-soberania sobre a população local, impondo regras próprias de conduta e decidindo sobre a aplicação ou não do Direito.

2.1.2 Órgãos de repressão

Esses agentes [capitães-do-mato] não constituíram propriamente uma corporação, mas exerciam função pública, na qual eram investidos por meio de provisões e patentes. Embora não vencessem soldo algum, teriam direito a emolumentos, pagos pelos senhores. Em casos difíceis, os interessados pagavam mais do que o convencionalmente estipulado, além de se 25 obrigarem ao fornecimento de alimentação.

Para controle, repressão e captura dos escravos, o sistema escravagista se utilizava dos serviços do capitão-do-mato, que, via de regra, era um negro liberto, ex-escravo, que deveria comprovar “bons antecedentes” antes de assumir o ofício 26.

23

QUEIROZ, Suely R. R. de. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. São Paulo, p. 105 24 Ibidem, p. 98 25 Ibidem, p. 50 26 Artigo “Entre escravos e senhores: a ambiguidade social dos capitães do mato”, de Nielson Rosa Bezerra em (http://www.espacoacademico.com.br/039/39ebezerra.htm).

27 Um dos agentes da repressão era o capitão-do-mato, elemento que se portava com grande crueldade, “prevalecendo muitas vezes a ferocidade sobre o amor do ganho, pois maior era o prêmio pago por negro vivo que 27 morto”.

Apesar de ser mais lucrativa a captura que a morte do escravo fugitivo, frequentemente se excediam no uso da força, a ponto de matarem sua “presa”, satisfazendo, assim, sua crueldade em detrimento de sua ganância.

Não só o capitão-do-mato, mas ainda outras forças colaboravam em São Paulo na manutenção de um sistema repressivo, como a Guarda Policial da Província, regulamentada a 18 de agosto de 1872 e integrada por indivíduos que, por falta de renda, não pertenciam à Guarda Nacional – a diária por eles vencida poderia ser dobrada e mesmo triplicada, “quando o serviço fosse atacar quilombos, salteadores ou qualquer outro em que houvesse 28 perigo de vida”.

Em 1872, é criada a Guarda Policial da Província de São Paulo com o propósito de reforçar o sistema de repressão aos negros; daí se originou, cerca de um século mais tarde, a Polícia Militar do estado de São Paulo. Em janeiro de 2014, o Governador de São Paulo Geraldo Alckmin apresentou um programa de bonificação a policiais que consigam cumprir as metas de diminuição de determinados crimes em sua área de atuação. Segundo o secretário de segurança pública, Fernando Grella, presente na solenidade, “o bônus vem para premiar aqueles que vão além do cumprimento do dever”. Resta entender o que significa esse ir “além do cumprimento do dever”.

27

QUEIROZ, Suely R. R. de. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. São Paulo, p. 50 (citando José Honório Rodrigues, “A rebeldia negra e a Abolição”, p. 72) 28 Ibidem, p. 51 (citando Alfredo Gomes “Contribuição para a cronologia administrativa da Província de São Paulo no período de 1835 a 1872”, in RIHGSP, Vol. 62, p. 430)

28 2.1.3 O direito de vida e morte Garantidores dos direitos que o regime escravista proporcionava aos senhores, dispunham da regalia de matar, sem responsabilidade alguma, os escravos resistentes. A sociedade aceitava-os tão naturalmente que era corrente figurarem nos jornais os anúncios de seus préstimos, bem como 29 requisitarem-nos as autoridades para outros encargos.

Os capitães-do-mato não tinham como atribuição ou tarefa matar os escravos fugitivos, mas sim capturá-los. Todavia, tinham carta branca para, se necessário fosse, usarem da força, ainda que resultasse na morte do escravo. Cerca de cem anos depois, não há mais capitães-do-mato, não há mais escravidão; há um Estado de Direito, baseado em uma das mais avançadas constituições do mundo. Porém, na suposta “defesa” deste Estado de Direito, os agentes de policia cometem vários crimes, desde extorsões, furtos, roubos, sequestros, cárcere privado, lesões corporais, tortura, até a morte dos cidadãos (quase na totalidade negros e pardos, moradores das periferias). Assim como os capitães-do-mato tinham carta branca para matar os escravos rebeldes, os policiais de hoje têm carta branca30 para matar os bandidos. Não há, porém, uma definição clara do que seja um bandido. Todavia, analisando os discursos dos jornais, emissoras de TV, revistas, etc conseguimos fazer um esboço do que é, para o brasileiro, um bandido. Em primeiro lugar, diferentemente do que uma análise apressada poderia nos apresentar, bandido não é qualquer cidadão que comete crimes. Falta algo. Quando vemos notícias de crimes cometidos por cidadãos de classe média, ou com profissão reconhecidamente valorizada, como médicos, advogados, engenheiros, etc

29

QUEIROZ, Suely R. R. de. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. São Paulo, p. 51 30 Diferentemente da legitimação da morte dos escravos durante o regime escravocrata, hoje há uma legitimação da morte dos bandidos baseada em brechas legais que permitem que os policiais facilmente maquiem seus abusos e crimes. Reforçando significativamente essas brechas, há os discursos, repetidos quase diariamente pelos veículos de comunicação de massa, legitimadores da violência policial contra bandidos, em especial os reverberados em programas policiais. Fechando o ciclo da impunidade contra a tortura e morte de bandidos, estão as “vistas grossas” das autoridades (delegados, promotores, juízes, parlamentares, etc) contra os abusos cometidos por policiais em nome da “segurança pública”

29 jamais veremos associado ao agente do crime, o adjetivo bandido. São apenas cidadãos que cometeram crimes. Porém, quando o delito é cometido por um cidadão de periferia, em especial crimes patrimoniais e relacionados às drogas ilícitas, a situação muda radicalmente. Não se trata mais de um cidadão que cometeu um delito. Trata-se de um bandido que cometeu “mais um” delito. Assim como o homo sacer do Direito Romano era uma pessoa que perdia a proteção do Estado e podia ser morto impunemente, o bandido brasileiro tem sua cidadania e garantias constitucionais suprimidas e relativizadas pelos agentes de segurança pública (em alguns casos, pela própria legislação31), a ponto de poderem ser mortos sem qualquer sanção legal32 ou reprovação social33.

O governo faz tudo para fortalecer o trabalho da polícia. O denunciante receberá a recompensa através de uma informação que leve a elucidação de um crime ou que leve a prisão de um criminoso. A parceria entre a população e a polícia é a marca e o DNA do povo paulista.34

Em maio de 2014 é lançado em São Paulo o programa de recompensas para captura de criminosos. Qualquer “cidadão de bem” que ajudar a policia a capturar criminosos poderá ser recompensado financeiramente por isso.

31

Na legislação brasileira, o preso não tem direito a votar nas eleições. Apesar da legislação penal brasileira não permitir a morte de nenhum cidadão de forma “direta”, isso é facilmente contornável pela alegação de legítima defesa e pelos autos de resistência seguida de morte. Dessa forma, os agentes policiais matam deliberadamente, sob o manto da “legalidade” 33 Considerável parcela da população considera que os bandidos não devem ser sujeitos de direitos. Dessa forma, sempre que há homicídios cometidos por policiais, essas pessoas bradam em defesa dos assassinos porque suas vítimas eram “apenas bandidos” 34 Discurso do Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em 06/05/14, ao lançar programa de recompensas para captura de criminosos 32

30 2.1.4 Estado de exceção permanente

Proibiam-se ainda jogos para evitar ajuntamentos ou fraudes em relação 35 aos senhores Toda e qualquer atividade ou ação, portanto, que mesmo remotamente pudesse originar tumultos ou prejuízos ao sistema era reprimida cuidadosamente, não só na legislação de âmbito mais geral como na local. 36

Durante o sistema escravista, os negros (escravos ou libertos) eram controlados em seu dia a dia, de forma preventiva. Mesmo sem cometer qualquer delito, os negros eram frequentemente tolhidos da liberdade de fazer as coisas mais corriqueiras, como jogos, festas, andar pelas ruas à noite, etc. Qualquer ajuntamento gerava a suspeita de insurreição por parte dos senhores. O medo era tamanho que surgiram até dispositivos legais para premiar a quem denunciasse previamente a realização de uma revolta organizada. Os delatores de insurreições eram premiados, até mesmo com sua alforria: Em sessão de 9 de maio de 1854 a Assembléia Legislativa de São Paulo determinava que se recompensasse com quantia equivalente ao preço de sua alforria o escravo que denunciara um plano de insurreição em Taubaté. [...] Além portanto da repressão de jure e de facto, lançava-se mão de todos os meios para a defesa do sistema, inclusive o de estimular a libertação de 37 um escravo para a manutenção de muitos outros no cativeiro.

Atualmente, a legislação penal brasileira possui a figura da delação 38

premiada.

A repressão era tamanha que, a legislação previa “a impossibilidade de adquirirem armas de fogo, a de negociar, de reunir-se em tavernas, de vagar pelas 35

QUEIROZ, Suely R. R. de. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. São Paulo, p. 51 (Bando de Rodrigo Cesar de Meneses a 4 de fevereiro de 1722, condenando a duzentos açoites da primeira vez e a maior castigo em caso de reincidência, “todos os negros que se acharem jogando em qualquer parte que seja...” in RAMSP, Vol. 12, p. 96) 36 Ibidem, p. 51 e 52 37 Ibidem, nota 35, p. 112 38 Cf. Lei nº 9.807/1999

31 ruas sem bilhetes do senhor após o toque de recolher, de alugar quartos ou casas”.39 A Constituição do Império, em seu artigo 179, § 19, previa que “desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis”.40 Todavia, essa vedação constitucional não se aplicava aos escravos, visto que não eram tratados como seres humanos, mas como res, equiparados aos semoventes. “[...] menos de dois anos antes da Lei Áurea é que se revogaria a pena de açoites e ainda nesse período dava-se caça aos escravos fugidos empregando a cavalaria e a infantaria [...]”.41

[...] a própria legislação, sendo altamente repressiva já caracterizava a violência de um sistema que na prática se mostraria ainda mais atuante. Outro indício dessa afirmação era o constante estado de alerta em que viviam os senhores: conscientes da repressão que exerciam sobre a massa escrava temiam a reação da mesma. A documentação a esse respeito é vasta e mostra a tensão existente nas zonas escravistas. Desde que se instala a grande lavoura de cana e depois a do café, ou seja, em todo o decorrer do século XIX, avultam as referências sobre a necessidade dos 42 proprietários rurais se defenderem dos negros.

A 23 de fevereiro de 1863 ponderava uma autoridade: Alguns espíritos nesta cidade estão bastante impressionados com alguns boatos que se tem descoberto de insurreição de escravos [...] julgo contudo de urgente 43 necessidade que este destacamento seja aumentado [...].

Os senhores de engenhos, quando se viam ameaçados com a possibilidade de insurreições, requisitavam às autoridades aumento do efetivo das forças de segurança pública. “As solicitações de auxílio eram em geral prontamente atendidas pelos poderes mais altos [...] Quando não o conseguiam, associavam-se os senhores para prover particularmente às necessidades do sistema”.44 Atualmente, o mesmo discurso de aumento de efetivo policial é revivido periodicamente, sempre que ocorrem episódios de violência que tenham grande 39

QUEIROZ, Suely R. R. de. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. São Paulo, p. 52 40 Ibidem, p. 55 41 Ibidem, p. 56 42 Ibidem, p. 57 43 Ibidem, p. 58 44 Ibidem, p. 59

32 destaque na mídia. Durante os períodos pré-eleitorais, em especial nas eleições para Governador dos estados, é recorrente o uso, por parte de alguns candidatos, desse discurso de aumento de efetivo das forças de segurança.

2.1.5 Os regimes e seus inimigos

O primeiro passo para o abuso contra o outro é considerá-lo inferior. Quando o “inferior” se rebela, se recusa a ser humilhado, pisado, surge o inimigo. Na história do Brasil, o primeiro inimigo foi o índio. O índio que não aceitava se submeter ao colonizador, que não aceitava ser escravizado. Com o avanço da exploração econômica da colônia, inicia-se o tráfico de negros para trabalhar nas lavouras de cana e açúcar. Com as primeiras insurreições de escravos negros surge o primeiro inimigo reconhecido pelo Estado: o negro rebelde. [...] em fazendas isoladas, no meio de muitos escravos, os fazendeiros sentiam a insegurança de sua situação. Muitos declaravam abertamente que – o escravo é nosso inimigo irreconciliável. – E esse inimigo tinha que ser subjugado e obrigado a trabalhar no horário pelo temor ao castigo, pela vigilância e a disciplina; forçado a dormir em senzalas fechadas; proibido de comunicar-se com escravos de fazendas vizinhas e de usar quaisquer armas. A fiscalização, o completo controle juntamente com os prontos e frequentemente brutais castigos eram considerados de absoluta necessidade.

Com a abolição oficial da escravidão, o inimigo deixa de ser o escravo para ser o delinquente comum, o marginal. Desde então, já na República, surge em 1890 um Código Penal rigoroso que visa, principalmente, a proteção do patrimônio privado. Avançando na história, depois de muita instabilidade política no país (golpes, contragolpes e curtos períodos democráticos), ocorre o golpe de 1964 e se inicia um dos períodos mais sombrios de nossa política: o regime militar, baseado na doutrina da segurança nacional.

33

[...] ameaçada a “segurança”, está justificado o sacrifício do Bem-Estar que, por extensão, é o sacrifício também da liberdade, das garantias constitucionais, dos direitos da pessoa humana. E Goering se referia aos povos ameaçados por um inimigo externo, enquanto para Golbery o inimigo 45 era interno, devendo ser procurado entre o povo brasileiro.

Golbery do Couto e Silva, um dos principais teóricos do regime militar e do golpe de 1964, era um admirador do oficial nazista Goering. Não é à toa que, durante o regime, o “bem estar social” foi constantemente suprimido em nome da segurança nacional. “A anti-História que se delineou no mundo através da política que eclodiu na realidade do nazismo atuante, de certo modo, e bem comparado, vai se traçando também na política nacional brasileira”.46

Com o fim da segunda guerra mundial, os oficiais da Força expedicionária brasileira, que tinham servido na Europa sob o comando dos Estados Unidos, passaram a freqüentar cursos militares norte americanos [...]. Quando esses oficiais começam a retornar ao Brasil, já estão profundamente influenciados por uma nova concepção a respeito de como entender a “defesa nacional”. Nas escolas norte americanas, tinham aprendido que não se tratava mais de fortalecer o “Poder Nacional” contra eventuais ataques externos, mas contra um “inimigo interno”, que procurará 47 “solapar as instituições”.

Certamente que, desviado o foco dos “delinquentes” comuns para comunistas e “subversivos”, durante o regime, o inimigo interno foi provisoriamente trocado. Com a redemocratização política em 1985, o inimigo interno voltou a ser o de sempre. Com a doutrina da segurança nacional, implantada com o golpe de 1964, os órgãos de segurança se hipertrofiaram e se proliferaram, a ponto de, no princípio da década de 70, se falar na existência de um Estado dentro do Estado.48

45

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil Nunca Mais. São Paulo, 1985, p. 70 Dom Cândido Padim et al, “A Doutrina da Segurança Nacional à Luz da Doutrina da Igreja, 1968”. 47 ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil Nunca Mais. São Paulo, 1985, p. 69 e 70 48 Ibidem, p. 72 46

34 O manto dos Atos Institucionais e a autoridade absoluta dos mandatários militares serviriam como proteção e salvaguarda do trabalho das forças 49 repressivas, fossem quais fossem os métodos utilizados.

Se durante a ditadura a tortura foi praticada sob os auspícios da doutrina da segurança nacional, hoje, é praticada sob a égide da segurança pública ou manutenção da ordem. Tanto em um período, quanto em outro, o “dogma” da vez não passa de um “álibi” para legitimar a perversão do uso da tortura, da instrumentalização do ser humano, da institucionalização da barbárie. Nos dias atuais, ainda permanece um “acobertamento oficial” das ações ilegais cometidas pelos agentes públicos de repressão. Os atos de tortura e muitos outros crimes, praticados principalmente por policiais militares e civis, são, via de regra, do conhecimento de seus superiores. Enquanto infrações administrativas são punidas com bastante frequência, os crimes cometidos contra a população, em nome da segurança e da ordem, raramente são investigados e punidos. No Brasil, historicamente, existe uma dicotomia entre as normas positivadas e a sua efetiva aplicação pelos próprios agentes públicos, que, segundo a Constituição Federal, somente deveriam agir na total legalidade. Mesmo durante a ditadura, a legislação em vigor, por mais nefasta e perversa que fosse, era frequentemente menos desumana e mais branda que o que era realizado de fato pelos agentes da repressão. “[...] os órgãos de segurança, apesar de todo o arsenal de leis arbitrárias à sua disposição, ainda se esmeravam em descumpri-las, para agravar ainda mais seu arbítrio sobre os detidos”.50 Esse padrão de não submissão às normas legais permanece bem vivo nos dias atuais. Não há mais um Estado totalitário. Não há mais leis que violem a dignidade humana e os tratados internacionais sobre Direitos Humanos (salvo raríssimas exceções, como a “lei do abate”

49

51

). Há, todavia, uma cultura de violência,

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil Nunca Mais. São Paulo, 1985, p. 72 Ibidem, p. 86 51 O art. 4º do decreto 5.144/2004, regulamentando o art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, autoriza que um avião, suspeito de transportar drogas para o território nacional, seja abatido em pleno vôo por aviões militares brasileiros, se seu piloto desobedecer às ordens emanadas pela aeronave oficial brasileira. A norma tem a seguinte redação: “a aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins que não atenda aos procedimentos coercitivos descritos no art. 3º será classificada como aeronave hostil e estará sujeita à medida de destruição” 50

35 uma sociedade totalitária, onde os agentes públicos de segurança desrespeitam deliberadamente quaisquer normas positivadas que visem preservar a integridade física e moral dos cidadãos presos ou suspeitos. Surgido nas entranhas do DOPS paulista, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, o auto denominado “esquadrão da morte”, formado por investigadores e pelo próprio delegado, tinha como objetivo principal o extermínio de criminosos comuns. Ainda hoje, muitos “esquadrões da morte” – naturalmente, agindo na mais absoluta clandestinidade – aterrorizam a população pobre de várias cidades brasileiras, realizando uma “limpeza social”, um verdadeiro extermínio de supostos criminosos comuns. Com o sucessivo inchaço dos poderes da lei de segurança nacional, pode-se dizer que ela chegou até mesmo a prevalecer sobre a Constituição Federal.52Não é de se estranhar que, passadas quase três décadas do fim do regime militar, os direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988 sejam diariamente suprimidos em nome da segurança pública. A lei de segurança nacional, com seus superpoderes, permitia que “a autoridade responsável pelos inquéritos” tivesse “um poder ilimitado sobre os investigados, podendo exercer toda sorte de violências e atos coercitivos”.53

[...] o próprio Regime Militar, na medida em que fechava, com a repressão dos primeiros tempos, os canais de oposição por meios legais, empurrava à clandestinidade e a métodos violentos os setores sociais insatisfeitos com 54 seu modelo político e econômico-social.

Assim como nos Estados totalitários o estado de exceção tende a se confundir com o estado de direito, na Sociedade Totalitária ocorre o mesmo: o desrespeito às leis é sistemático e sua aplicação (em especial, por agentes públicos da ordem, no caso concreto) é decidida soberanamente de acordo com a “conveniência”.

52

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil Nunca Mais. São Paulo, 1985, p. 75 Ibidem, p. 76 54 Ibidem, p. 87 53

36 3 O COMBATE À TORTURA 3.1 Órgãos internacionais de combate à tortura 3.1.1. Comitê Contra a Tortura – ONU

A Organização das Nações Unidas possui um comitê especial contra a tortura (CAT - Committee Against Torture). Composto por dez especialistas, sua missão é monitorar a implementação da “Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, no mundo. Tem como alvo principal, os Estados-membros que já são signatários do pacto, mas que ainda não cumprem integralmente suas diretrizes. Os Estados signatários são obrigados a enviar relatórios anuais ao CAT, informando sobre o progresso da implementação da proteção dos direitos humanos em seu território.

3.1.2. Subcomitê de Prevenção à Tortura - ONU

O SPT (Subcommittee on Prevention of Torture), subordinado ao CAT, possui como atribuição principal, a prevenção à tortura. Trabalha principalmente realizando visitas aos Estados signatários da “Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, em especial a locais públicos de privação coletiva de liberdade, entrevistando presos, autoridades e emitindo relatórios de suas visitas. O SPT teve papel preponderante, no Brasil, para aceleração da aprovação da Lei nº 12.847, que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

37 3.1.3. Anistia Internacional

Formada por cerca de três milhões de doadores, membros e ativistas em cerca de 150 países, a Anistia Internacional é uma organização não governamental que há mais de 50 anos realiza pesquisas, relatórios e campanhas sobre violações de direitos humanos. Seu foco principal é levar a conscientização sobre os direitos presentes na Declaração Universal de Direitos Humanos a todas as nações. Seus relatórios e campanhas têm grande impacto sobre a comunidade internacional e sobre a ONU.

3.2 Órgãos nacionais de combate à tortura 3.2.1 Ordem dos Advogados do Brasil

A Ordem dos Advogados do Brasil, órgão que regula as atividades dos advogados em todo país, realiza constante e combativo trabalho de combate à tortura e a outras violações dos direitos humanos. O trabalho é realizado através de comissões, tanto em âmbito nacional, quanto no âmbito das secções estaduais e subsecções municipais. Vale ressaltar que a comissão de direitos humanos da OAB tem caráter permanente. Entre outras atividades, realiza trabalhos de visita a presídios, ocupações alvo de processo de reintegração de posse, etc. Teve papel preponderante no acompanhamento das investigações da ação criminosa da policia militar paulista no Carandirú, em 1992.

38 3.2.2. Ministério Público

O Ministério Público é o órgão brasileiro titular das ações penais públicas, ou seja, das ações penais relacionadas aos crimes de maior potencial ofensivo. Desta feita, a principal atividade do Ministério Público, na pessoa de seus promotores ou procuradores, é processar pessoas ou empresas55 que supostamente cometeram crimes. O Ministério Público também atua como custos legis (fiscal da lei) em diversas ações onde não seja parte no processo. Note-se, também, que uma das atribuições do Ministério Público é fiscalizar as atividades policiais. Em alguns estados brasileiros, o Ministério Público conta com comitês para prevenção e combate à tortura, que atuam principalmente na realização de trabalhos de conscientização e como espaço de debate com a sociedade civil.

3.2.3. Corregedorias das Policias Militares

As policias militares, que são organizadas por estados, têm um órgão responsável por apurar e processar administrativamente quaisquer desvios de conduta praticados por policiais. Infrações penais, supostamente praticadas por policiais militares também são investigadas pela Corregedoria.

3.2.4. Defensoria Pública

O Brasil conta com um órgão próprio para a defesa em juízo das pessoas de baixa renda, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.

55

Pessoas jurídicas, no ordenamento jurídico brasileiro, podem ser sujeitos ativos de crimes contra o meio ambiente e contra a economia nacional.

39 No Brasil, atualmente, é garantido a todos os cidadãos o acesso à Justiça, por ocasião da ocorrência de lesão ou ameaça aos seus direitos. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXV preceitua que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Apesar da previsão constitucional de acesso amplo à Justiça, esta somente se efetiva, salvo raras exceções, através da postulação realizada por advogado. Desta feita, a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXIV, prevê que o Poder Público preste assistência jurídica aos cidadãos que não puderem contratar um advogado. Esse serviço ao cidadão se efetiva através das Defensorias Públicas dos estados e da União.

Art. 5º. [...] LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; [...] Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

3.2.5. Pastoral Carcerária

Criada em 1986, a Pastoral Carcerária é uma entidade vinculada à CNBB56 e subordinada à Igreja Católica brasileira, que atua nos estabelecimentos prisionais brasileiros, através de cerca de seis mil voluntários. Além de sua missão religiosa, sua principal ação é monitorar esses ambientes com vistas a observar e denunciar possíveis violações aos direitos humanos. Seus relatórios são frequentemente utilizados por pesquisadores e entidades ligadas aos Direitos Humanos, por apresentarem um universo de pesquisa amplo e fiel da realidade carcerária nacional.

56

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – entidade vinculada à Igreja Católica brasileira

40 3.2.6. Conectas

A Conectas é uma ONG criada no Brasil em 2001, com atuação global. Seu foco principal é a defesa dos direitos humanos no hemisfério sul político (África, Ásia

e

América

Latina).

“Desde

janeiro

de

2006,

Conectas

tem status

consultivo junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e, desde maio de 2009, dispõe de status de observador na Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos.”

3.2.7. Grupo Tortura Nunca Mais - RJ

Fundado em 1985, por ex-presos políticos e parentes de presos políticos desaparecidos no período de 1964 a 1985, o Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) é uma ONG radicada no Rio de Janeiro, que tem como missão denunciar os crimes contra a humanidade, em especial a tortura, ocorridos durante o regime militar e nos dias atuais. Dentre as muitas conquistas obtidas durante sua existência, destaca-se: afastamento de ex-torturadores de cargos públicos, cassação de registros de médicos que, durante o regime, emitiram laudos falsos para acobertar os crimes etc. Atua principalmente denunciando crimes de tortura através de notas na mídia, entrevistas, atos públicos, seminários e outras atividades. Promove anualmente a entrega da medalha Chico Mendes de Resistência, para pessoas e entidades que se destacam na luta por direitos humanos. O GTNM promove encontros semanais em sua sede e possui cerca de cem membros.

41 3.3 O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT)

Temos que admitir tristemente que a tortura não ficou restrita ao período da ditadura militar. Ela permanece ocorrendo como prática dentro das delegacias, dos presídios, das estruturas do Estado. O sistema é uma nova possibilidade de o Brasil ter um mecanismo real para chegar nas instituições e verificar, ter peritos com autonomia para dizer o que acontece com o corpo das pessoas, como ele está marcado pela tortura, ou as próprias 57 condições em que as pessoas vivem.

Em 02 de agosto de 2013, a presidenta da República Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.847, que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O sistema tem como objetivo o fortalecimento da prevenção e do combate à tortura, “por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas.”58 O sistema será composto por: a) Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – CNPCT; b) Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – MNPCT; c) Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP; d) Órgão do Ministério da Justiça responsável pelo sistema penitenciário nacional.

O Comitê será composto por 23 (vinte e três) membros, escolhidos e designados pela Presidenta da República, sendo 11 (onze) representantes de órgãos do Poder Executivo federal e 12 (doze) de conselhos de classes profissionais e de organizações da sociedade civil. O MNCPT, composto por 11 (onze) peritos, escolhidos pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, “poderá realizar visitas, sem aviso prévio, a qualquer espaço público de privação da liberdade, como presídios, 57 58

Ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República Artigo 1º da Lei nº 12.847/2013

42 penitenciárias, delegacias, casas de custódia, instituições sócio-educativas, hospitais psiquiátricos e asilos, a fim de apurar violações. Quando constatadas violações, os peritos irão elaborar relatórios com recomendações aos diretores dessas instituições, que terão um prazo determinado para adotar as devidas providências”.59 O sistema “será integrado por órgãos e entidades públicas e privadas com atribuições legais ou estatutárias de realizar o monitoramento, a supervisão e o controle de estabelecimentos e unidades onde se encontrem pessoas privadas de liberdade, ou de promover a defesa dos direitos e interesses dessas pessoas.” 60 Poderão fazer parte da estrutura do sistema as seguintes instituições:

a) Comitês e mecanismos estaduais e distrital de prevenção e combate à tortura; b) Órgãos do Poder Judiciário com atuação nas áreas de infância, de juventude, militar e de execução penal; c) Comissões de direitos humanos dos poderes legislativos federal, estaduais, distrital e municipais; d) Órgãos do Ministério Público com atuação no controle externo da atividade policial, pelas promotorias e procuradorias militares, da infância e da juventude e de proteção ao cidadão ou pelos vinculados à execução penal; e) Defensorias públicas; f) Conselhos da comunidade e conselhos penitenciários estaduais e distrital; g) Corregedorias e ouvidorias de polícia, dos sistemas penitenciários federal, estaduais e distrital e demais ouvidorias com atuação relacionada à prevenção e combate à tortura, incluídas as agrárias; h) Conselhos estaduais, municipais e distrital de direitos humanos; i) Conselhos tutelares e conselhos de direitos de crianças e adolescentes; e 59

Notícia publicada na página da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/agosto/presidenta-dilma-sanciona-sistema-nacional-deprevencao-e-combate-a-tortura 60 Artigo 2º, caput, da Lei nº 12.847/2013

43 j) Organizações não governamentais que reconhecidamente atuem no combate à tortura. 3.4 Programas de proteção a testemunhas e denunciantes 3.4.1 Provita

O Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Provita), criado no estado de São Paulo em 1999 é, atualmente, o maior programa do gênero em todo o Brasil. Segundo dados da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, do governo de São Paulo, o Provita já protegeu cerca de 2 mil pessoas, entre vítimas e testemunhas. Segundo dados oficiais, nenhuma das pessoas protegidas pelo programa foi vítima de represália ou homicídio, desde sua implantação. A missão do Provita é proteger pessoas ameaçadas por colaborar em inquéritos policias ou em processos criminais. A pessoa participante do programa, terá proteção por um período que varia de 6 meses a 2 anos. Se necessário, esse período pode ser prorrogado. A pessoa sob proteção, além de receber auxílio psicológico e jurídico, pode receber ajuda de custo mensal do Estado. O Provita realiza as seguintes ações com vistas à efetiva proteção das pessoas participantes do programa: transferência de residência ou acomodação provisória, mudança de nome e documentos pessoais, suspensão das atividades laborais sem prejuízo dos vencimentos (no caso de servidores públicos) etc.

44 CONCLUSÃO

Decorridos 66 anos da elaboração e publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU e aproximadamente 26 anos da promulgação da atual Constituição Federal brasileira, a sociedade e o Estado brasileiros ainda têm um desafio: extirpar definitivamente o uso da tortura como instrumento de coação e de punição, por seus agentes públicos. Amplamente utilizada nos períodos sombrios da história humana, desde a “santa” inquisição, na idade média, passando pelos governos totalitários europeus e asiáticos de Hitler, Mussolini, Stalin, Franco e outros e finalmente nas ditaduras militares da América do Sul, a tortura é um mal ainda presente no Brasil, apesar da abertura democrática em 1985. É de vital importância que conheçamos o que é a tortura, quais seus efeitos na vida das vítimas, seu impacto na sociedade, quais instituições ainda se utilizam da tortura para atingir suas finalidades e quais ferramentas de prevenção, controle e punição estão à disposição da sociedade civil e do Estado. Necessário também, que se acompanhem os resultados oficiais e extraoficiais das denúncias de tortura, dos processos judiciais e condenações. Não basta, porém, a proibição legal e a criação de órgãos de observação e elaboração de relatórios. A tortura está enraizada em algumas instituições brasileiras e é também culturalmente aceita por boa parcela da sociedade civil, ainda que veladamente. O debate sobre a tortura e o combate à sua prática deve ser multidisciplinar e aberto a toda a população. Por isso, deve-se traçar um panorama do uso da tortura por instituições públicas no Estado democrático de Direito brasileiro nos dias atuais, popularizando o debate sobre o problema, trazendo à luz as ações de prevenção, combate e punição, conscientizando e informando sobre os direitos de todos os cidadãos brasileiros de não sofrerem, sob nenhuma hipótese, atos de tortura. Para que a tortura seja desentranhada das instituições públicas brasileiras e da sociedade é necessário que, aliado ao debate e à conscientização, sejam criados mecanismos efetivos de controle das instituições, através da normatização das ações, bem como fiscalização das atividades.

45 Importa ressaltar que a erradicação da tortura depende de uma atuação multidisciplinar e de esforços conjuntos da sociedade civil, do Estado e das instituições. O controle, a fiscalização e a conscientização devem perpassar não só as instituições diretamente ligadas historicamente à prática da tortura, como as instituições policiais e judiciárias. Mas, sobretudo, para que haja efetividade na extirpação desse mal, necessário que as ações de debate e conscientização permeiem as instituições de educação, desde a educação básica até a superior, formando cidadãos éticos que não compactuem com essa prática nefasta que atenta diretamente contra a dignidade do ser humano. Uma possível desmilitarização, não somente formal, mas, sobretudo substancial, das atividades policiais, deverá contribuir para a erradicação da tortura, uma vez que o policial-cidadão é o único capaz de respeitar todos os cidadãos como sujeitos de direitos, não mais como objetos de ação violenta. Quanto à atuação do Poder Judiciário, possíveis normatizações diretamente ligadas à fiscalização das condições do preso, a serem realizadas diretamente pelos juízes, poderiam minimizar ou até mesmo inibir os maus tratos e torturas a que comumente os presos estão ainda sujeitos.

46 REFERÊNCIAS

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