A Tradição contra as Liberdades Individuais

June 23, 2017 | Autor: André Portugal | Categoria: Constitutional Law, Moral and Political Philosophy
Share Embed


Descrição do Produto

A TRADIÇÃO CONTRA AS LIBERDADES INDIVIDUAIS



"Uma lufada (apesar do calor, ventava bastante) estendeu um fino véu negro sobre o sol e o Strand. Os rostos se embaçaram; num átimo os ônibus perderam o resplendor. Pois ainda que as nuvens fossem de uma alvura montanhosa, a ponto de se imaginar que seria possível, com uma machadinha, recortá-las em blocos sólidos, dotadas de amplas encostas douradas, relvados de paradisíacos jardins celestiais nos flancos, e assemelhando-se a moradas permanentes e próprias para concílios dos deuses acima do mundo, havia entre elas uma movimentação contínua. Sinais eram trocados quando, como se houvesse um esquema prévio, ora um pico encolhia, ora todo um bloco piramidal antes imóvel deslocava-se para o centro ou conduzia gravemente o cortejo para novo ancoradouro. Ainda que parecessem fixas em seus postos, sossegadas em perfeita unanimidade, nada podia ser mais fresco, mais livre e de aparência mais sensível que a superfície branca como neve ou lustrada de dourado; mudar, mover, desmantelar a construção solene era algo possível a cada instante; e a despeito da grave fixidez, do acúmulo de robustez e solidez, elas lançavam ora luz, ora sombra sobre a terra."
Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, Ed. Cosac Naify, p. 141.


"Aprendemos a olhar pelo supraterrestre,
A ansiar pela revelação
Que em ponto algum luz com mais belo alento,
Do que no Novo Testamento.
Almejo abrir o básico texto
E verter o sagrado Original,
Com sentimento reverente e honesto,
Em meu amado idioma natal.
Escrito está: 'Era no início o Verbo!'
Começo apenas, e já me exarcebo!
Como hei de ao verbo dar tão alto apreço?
De outra interpretação careço;
Se o espírito me deixa esclarecido,
Escrito está: No início era o Sentido!
Pesa a linha inicial com calma plena,
Não se apressure a tua pena!
É o sentido então, que tudo opera e cria?
Deverá opor! No início era a Energia!
Mas, já, enquanto assim o retifico,
Diz-me algo que tampouco nisso fico.
Do espírito me vale a direção,
E escrevo em paz: Era no início a Ação!"

Goethe, Fausto, primeira parte, Ed. 34, p. 111-112.

Quando tentamos compreender o mundo ao qual fomos jogados, inevitavelmente partimos de algum ponto, espacial e temporalmente. É somente desse lugar no mundo que podemos, a nosso modo, interpretá-lo. Para o bem ou para o mal, não é possível que dele nos retiremos, mesmo momentaneamente, para, despidos de todos os preconceitos decorrentes dessa instigante situação e equipados com as vestes de uma pretensa neutralidade, compreender o mundo em sua forma mais pura ou objetiva. Tais pontos arquimedianos não existem, e esse realismo que marca sobretudo o positivismo científico é fadado ao fracasso. Estamos inseridos numa tradição, de modo que toda compreensão é inevitavelmente histórica: "A lente da subjetividade é um espelho deformante" [1].
Resumido de maneira tosca, esse é um dos sentidos atribuíveis ao termo "tradição". Em grande parte, ele deriva da hermenêutica filosófica, de Hans-Georg Gadamer, mas encontra eco em alguns dos filósofos da ciência mais recentes, a exemplo de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, críticos ferrenhos da objetividade do conhecimento. Trata-se de uma "tradição" no mais das vezes silenciosa e imperceptível, que antecede e, assim, vincula a compreensão. Não há como fugir disso, e reconhecê-lo é uma virtude que poucos parecem estar dispostos a por em prática.
Outro sentido, muito diferente, é aquele geralmente empregado à palavra quando se procura defini-la enquanto vinculação estrita ao passado ou a aspectos dele derivados – seus dogmas, costumes, ações, regras, princípios, conclusões, etc. De algum modo, há também algo nesse sentido na obra de Gadamer, na medida em que as "vozes" do passado seriam importantes para a interpretação de textos, como um dos polos daquilo que ele chamou de fusão de horizontes. Quando essa vinculação passa a ser julgada como, por si só, virtuosa - o que Gadamer não chega a defender -, tem-se boa parte do que comumente se tem intitulado "conservadorismo". Em contraste ao silêncio e ao ofuscamento daquele primeiro sentido, aqui, a tradição costuma aparecer com extravagância e imponência.
Buscando evitar os maniqueísmos que, infelizmente, costumam marcar os debates a respeito desse tema, pode-se afirmar que aquele que se denomina conservador tende a valorar positivamente o caráter tradicional (ou seja, a origem pretérita) de instituições, costumes, etc., reconhecidos ou não na atualidade. No caso de costumes não preservados atualmente, costuma-se defender um retorno a uma nostálgica "era de ouro", quando tudo era melhor, mais puro ou mais belo. Se caminharmos mais um pouco nas investigações sobre as estruturas do pensamento conservador, veremos, se não estou equivocado, a defesa da estabilidade e a aversão à desordem. Muito possivelmente, podemos nos referir a isso também como uma defesa da certeza e, do lado contrário, como uma aversão à dúvida ou à incerteza. Em parte, talvez isso se deva à influência de correntes mais ortodoxas do cristianismo em muitos – não todos – dos conservadores das sociedades ocidentais. De fato, a ideia de uma Verdade única, imutável e revelada, de onde partiria o rol de princípios morais destinados a reger a vida humana terrena, muito contribui para a constituição dessa vertente religiosa do conservadorismo.
Esse segundo sentido de "tradição", portanto, acaba por se apresentar como uma das muitas variáveis frequentemente consideradas quando o assunto é a moralidade ou os princípios da moral. Como logo se percebe, isso tudo vai afetar as concepções de direitos, liberdades e deveres reconhecidas por cada ordem jurídica. Por isso mesmo, quero analisar três casos específicos em que argumentos vinculados à tradição foram utilizados para sustentar determinadas posições quanto a princípios e deveres morais. Meu objetivo é, principalmente, alertar para as prováveis consequências de se sustentar argumentos baseados, quase que exclusivamente, numa pretensa virtude da tradição por ela mesma. Esses casos, como todos logo poderão notar, são causa recorrente de assíduos debates, e os argumentos em defesa de posturas geralmente chamadas conservadoras foram retirados especialmente da obra The Clash Of Orthodoxies ("O Choque de Ortodoxias", numa tradução livre), do professor Robert P. George, da Universidade de Princeton/EUA.
O primeiro caso, inegavelmente polêmico, envolve a legitimidade (ou ilegitimidade) moral do casamento homossexual. Como não poderia ser diferente, Robert George é veemente ao afirmar que o conceito de casamento se restringe a casais heterossexuais. Isto porque, afirma, o "casamento é uma comunhão pessoal de dois-numa-só-carne que se consuma e atualiza por meio de atos que são reprodutivos em espécie, quer eles sejam, quer não, reprodutivos de fato (ou motivados, ao menos em parte, por um desejo de reprodução). A união corporal de cônjuges em atos conjugais é a matriz biológica de seu casamento como uma relação multinível: isto é, como uma relação que une pessoas nos níveis corporal, emocional, de disposição [dispositional] e espiritual de suas existências. O casamento, precisamente como tal relacionamento, é naturalmente orientado para o bem da procriação (e para a nutrição e educação de crianças), assim como para o bem da união conjugal, e esses bens estão estreitamente ligados. A característica união de cônjuges é possível porque humanos (como outros mamíferos) machos e fêmeas, por acasalamento, unem-se organicamente – eles se transformam em um único princípio reprodutor" (numa tradução livre) [2].
Essa seria, segundo o professor George, a essência do casamento. Resumidamente, o ato sexual que unisse homem e mulher em uma-só-carne, tal como anuncia o Evangelho de São Marcos (10:8), seria intrinsecamente bom, diferentemente de outras práticas, que reduziriam os corpos a meros instrumentos de um fim por si não valioso: o prazer ou a satisfação sexual, do que decorreria, de algum modo, a própria desumanização do ser humano, entendido, justamente, enquanto a união entre mente, alma e - o que, aqui, é mais importante - corpo. A conclusão, a partir de todas essas premissas, parece óbvia: como a união biológica de dois-em-um somente ocorreria em relações caracteristicamente reprodutivas, o relacionamento homossexual jamais poderia adquirir este aspecto virtuoso.
O fundamento de que Robert George, como boa parte dos teóricos que se posicionam de forma contrária ao casamento homossexual, fundamenta-se exclusivamente numa tradição vinculada à religião. Como vimos, a própria ideia de uma união de homem e mulher numa só carne remete ao Evangelho de São Mateus. O argumento, de modo resumido, é o seguinte: como o casamento, apesar de há muito ter ocupado a esfera civil de boa parte das ordens jurídicas mundiais, é uma instituição essencialmente religiosa e, portanto, tradicional, há somente uma verdade a seu respeito, que merece ser preservada. Por isso mesmo, a ampliação do conceito, objetivando abranger também os casais homossexuais, teria o efeito de desvirtuar a sua própria essência. Em outras palavras, havendo uma única verdade, cabe às demais instituições preservá-la.
Os argumentos são bastante semelhantes aos utilizados no debate sobre a eventual "corrupção moral" exercida pela pornografia, o segundo caso que pretendo analisar. Na medida em que, ali, a reificação dos corpos seria absoluta, estaria concretizada uma violação à própria dignidade de cada ser humano envolvido. Segundo Robert George, ao se referir às publicações de uma revista pornográfica estadunidense, elas "tendem a corromper e depravar [os leitores], fazendo precisamente aquilo a que são designadas a fazer, nomeadamente, despertando [um] desejo sexual que é completamente desintegrado do bem da procriação e da união que conferem à comunhão sexual de homens e mulheres, como maridos e mulheres, seu valor, seu significado, seu sentido" (a tradução é livre) [3]. Em suma, também aqui haveria uma aparentemente paradoxal desumanização dos seres humanos, uma "redução de pessoas ao status de coisas"; mais ainda, haveria uma invasão agressiva da privacidade da pessoa exposta, no que residiria a própria essência da pornografia.
Em última análise, todos esses argumentos se fundamentam na ideia de uma moralidade pública, também marcada pela influência de princípios do cristianismo, cuja função reside na limitação de escolhas e comportamentos. Daí a ideia religiosa de pecado. A fonte, para ambos os casos, é a mesma: o conceito cristão de ser humano, que engloba alma, mente e corpo, somado à atribuição de um valor intrínseco às relações heterossexuais com finalidade conjugal, em cujo âmbito surgiriam duas figuras, cada qual com um papel rigidamente definido – marido e mulher.
Há outros casos, igualmente polêmicos, abordados na obra de Robert P. George, a exemplo do aborto. Aqui, contudo, há inovações argumentativas importantes. Segundo o professor de Princeton, não somente a tradição religiosa apontaria a imoralidade do aborto, como também a ciência. Isso porque, mesmo em um sentido biológico, seria correto afirmar que a vida humana se inicia já após a fecundação do óvulo, quando da constituição de um novo organismo "cuja unidade, distinção e identidade permanecem intactos enquanto ele se desenvolve sem mudanças substanciais, desde o seu início até os vários estágios de seu desenvolvimento", até chegar à forma adulta. Nessas condições, acrescidas daquelas referentes à abrangência do conceito de ser humano – como a união entre alma, mente e corpo -, o aborto consistiria numa violação ao direito à vida humana, donde seria corroborado o juízo negativo a seu respeito, como se passa na moral cristã.
Descritos de forma muito resumida, estes são os casos e os argumentos apresentados pelo professor George, em defesa da moralidade cristã. Como falei, acredito que poucos dos que se julgam conservadores discordariam deles. Agora, sem chegar a entrar no mérito desses argumentos, quero abordar mais algumas premissas que podem passar despercebidas numa primeira análise dos argumentos e, depois, algumas consequências de tentativas de atribuir à tradição um caráter intrinsicamente virtuoso, como parece se passar com os defensores de posturas ortodoxas do cristianismo.
Como já ressaltei, há bastante coerência entre essas interpretações mais ortodoxas dos Evangelhos e as posturas conservadoras com relação a questões morais. A afirmação de que há uma só Verdade revelável, existente desde sempre e para sempre, de fato, muito contribui para argumentos nesse sentido. Além do mais, há a Palavra escrita, o que pode vir a conferir alguma rigidez à interpretação dessa Verdade. De todo modo, parece ser impossível negar que, aqui, se defende uma vinculação estrita ao passado, até porque, apesar de pretensamente eterna, a fonte escrita de todos esses princípios morais data de aproximadamente dois milênios. Sobre isso, cabe uma observação: possivelmente, alguns me contestarão, afirmando que, em se tratando da Palavra Sagrada, sequer seria possível adotar essa noção de temporalidade; tratar-se-ia de uma ordem imutável. Com relação aos argumentos aqui apresentados, contudo, isso não se sustenta, porque, até onde sabemos, não há um acesso menos mediato ao significado dessa ordenação que não seja a partir dos escritos, o que nos exige sobretudo interpretação. Logo, não há como ignorar, ao menos quando de sua utilização como argumento em um eventual debate, a sua origem pretérita.
Como uma derivação das conclusões do parágrafo anterior, há algo que, então, fica bastante claro: todos os argumentos apresentados nos casos abordados acima partem da ideia de uma unidade discursiva. Em outras palavras, apesar de isso não ser expressamente reconhecido por Robert George, haveria somente uma fonte de onde poderiam partir discursos legítimos sobre a moral, justamente em razão dessa pressuposição de uma única e imutável Verdade, ainda que ela dependesse de interpretação. Uma solitária possibilidade discursiva legítima. Os fundamentos da moral, cujo âmbito de validade abrangeria todos os seres humanos, seriam encontrados unicamente na tradição cristã. Teríamos, para ficar com os termos de Lyotard [4], um metadiscurso inegavelmente abrangente, um discurso sobre os e acima dos outros discursos possíveis, ao qual todos estes estariam necessariamente vinculados. Essa é uma pressuposição de boa parte das teorias ortodoxas, que fica particularmente clara na defesa, por Robert George, de uma vinculação estrita do direito institucionalizado, no que se incluem as interpretações atuais de seus dispositivos, ao direito natural "correto", endossado pelos Founding Fathers e derivado dos princípios morais do cristianismo [5].
Vejamos, por exemplo, o caso da proibição ao casamento homossexual. Ainda que a instituição do casamento tenha uma origem religiosa, poucos discordarão que, há muito, ele transcendeu essa esfera. Dizemos que, hoje, ele se trata de uma instituição também – senão predominantemente – civil. Bastaria, para percebê-lo, apontar alguns de seus efeitos na vida de cada cônjuge. Isso significa que, quanto a esses aspectos, o casamento, enquanto instituição, entra de vez em nossa ordem jurídica, cujas normas não têm o seu âmbito de aplicabilidade restrito àquelas pessoas que compactuam com os princípios do catolicismo ou outra religião cristã. Pelo contrário, o rol de afetados é muito maior. Contudo, como se parte da ideia de uma única possibilidade discursiva – e, consequentemente, de uma única Verdade -, isso realmente não apresentaria maiores problemas para os seus defensores. Afinal de contas, havendo mesmo essa Verdade que vincula e deve vincular a tudo e a todos, inclusive o direito institucionalizado, todos deveriam reconhece-la. Qualquer resultado que se afastasse disso seria, evidentemente, um erro. Por isso mesmo, se a Verdade aponta que o valor intrínseco do casamento se restringe às relações conjugais entre homem e mulher (numa união de dois numa só carne), condenando as demais relações, dentre as quais as homossexuais, por se tratarem da desumanização dos seres humanos pela instrumentalização de seus corpos, é nisso, dizem, que devemos nos apoiar, pouco importando as eventuais dissidências. Há somente essa possibilidade.
A situação é bastante semelhante à da (i)legitimidade moral da pornografia. Uma vez que a Verdade insiste na qualidade intrínseca das relações conjugais entre marido e mulher, bem como nos papeis que lhes são atribuídos pela essência religiosa do casamento, seria nada menos do que uma corrupção dessas virtudes a divulgação de materiais pornográficos. Aqui, o discurso cristão acaba por criar as bases do que se poderia denominar moralidade pública. Mais uma vez, aqueles que se portassem contrariamente aos preceitos dessa moralidade, ainda que não compartilhassem da doutrina cristã, estariam imediatamente em confronto com a Verdade, devendo ser punidos. Coibir os vícios e todas as suas desagradáveis "consequências públicas", às vezes até mesmo criminaliza-los, promover as virtudes – é disso que se trata. Coibir o mal, promover o bem.
No caso do aborto, também salta aos olhos essa pretensão de unidade do discurso. O aborto seria moralmente errado porque estaríamos a lidar com a morte de um ser humano, ainda que em estágio embrionário; ele foi, desde sempre, condenado pela Igreja Católica, e não é difícil perceber que o seu caráter imoral encarna uma concepção essencialmente cristã de "vida humana". É verdade que Robert George fundamenta seu argumento também em conclusões científicas a respeito do início da vida humana, os quais, segundo afirma, colocariam um ponto final em qualquer discussão a respeito desse início, corroborando, assim, os princípios cristãos. Muito possivelmente, todavia, mesmo que os resultados científicos contradissessem tais princípios, estes continuariam a ser considerados. O que parece acontecer, ao menos em se tratando desse caso, é que, paradoxalmente, ele parte da validade absoluta e única do conceito cristão de "vida humana" e, ao mesmo tempo, considera a ciência como um meio complementar privilegiado e definitivo para confirmar as conclusões já antes reveladas pelos princípios morais do cristianismo. Se houver outras concepções de "vida humana", elas são inevitavelmente equivocadas e, por isso, devem ser desconsideradas.
Um dos problemas de tudo isso, contudo, reside justamente nessa confortável ideia de "unidade discursiva", de um único metadiscurso capaz de justificar e vincular todos os demais discursos. Talvez para sociedades não marcadas por relações intersubjetivas complexas, isso seja possível, mas, em se tratando de sociedades progressivamente complexas e plurais, marcadas por discursos os mais variados e conflitantes entre si, isso parece ficar cada vez mais difícil. Em outras palavras, é possível – e aceitável - que, numa sociedade (pós-)moderna, todos ou boa parte dos discursos devam, de alguma forma, se quiserem ser legítimos, se sujeitar a uma gama de princípios morais derivados de uma dada tradição religiosa?
A resposta me parece evidente. Ainda que não devamos cair no caos, necessitando, sempre, de alguma ordenação, a pretensão de estabilidade, de certeza e de homogeneidade que marca muitos desses argumentos deve, se ambicionarmos adaptar nossas instituições à complexidade de nossa sociedade, ser descartada. É verdade que as religiões têm por característica apresentarem discursos sobre o Todo (da existência humana e não só), mas, no momento em que adentramos na esfera pública, não há como negar que há uma variedade de outros discursos, sendo o(s) religioso(s), tão somente, mais um(uns). Ignorar essa variedade pode ser não somente inadequado, como também pernicioso, porque isso tende a refletir intolerância e promover a assimilação forçada de discursos diferentes daquele único tido por verdadeiro.
Uma vez admitida a existência de mais de uma possibilidade discursiva, deparamo-nos, inevitavelmente, com algumas questões interessantes. Em primeiro lugar, cada discurso adota critérios diferentes de legitimação; para cada um deles existe um diferente jogo de linguagem, para utilizar os termos de L. Wittgenstein [6]. Assim é que, se a religião, um dos discursos possíveis, adota uma linguagem essencialmente prescritiva e frequentemente fundada na crença de uma Palavra Divina, o mesmo não se passa com a ciência. Ao menos em se tratando das ciências naturais, o que se vê é a utilização de uma linguagem descritiva, no mais das vezes baseada na pressuposição da existência autônoma – ou seja, independente das percepções humanas - de objetos físicos e do mundo em geral, baseando-se em ideais como a coerência e a objetividade. Em outras palavras, o jogo de linguagem das ciências naturais baseia-se naquilo que John Searle chamou de "fatos brutos" [7], alheios a qualquer construção social. Para acentuar o contraste, quando entramos nos jogos de linguagem das ciências sociais, a exemplo do direito, na maioria das vezes seremos obrigados a nos referir ao que Searle chamou de "fatos institucionais", construídos pela própria linguagem, como a própria instituição do casamento, o dinheiro e as ideias de direitos e, também, segundo me parece, de valores morais.
É claro que, a despeito dessa diversidade de discursos com especificidades e temáticas específicas, é possível que um mesmo problema seja do interesse de dois ou mais deles. Se, nesse caso, defendermos a existência de um único metadiscurso, referente à totalidade, é evidente que, em última análise, este será o ponto de partida e a única possibilidade para respostas ao problema, como vimos. Se, contudo, reconhecermos a pluralidade de possibilidades de discurso enquanto condição para eventuais soluções, não haverá qualquer posição discursiva privilegiada, cabendo a todas elas apresentar seus argumentos e, se possível, chegar a um consenso, ainda que, numa sociedade complexa caracterizada pela diferença, frequentemente o único consenso possível seja o consenso sobre o dissenso – isto é, sobre a impossibilidade do próprio consenso -, caso em que seria necessário garantir liberdade a esses diferentes discursos específicos (racionalidades), para que aprendam uns com os outros, de forma autônoma, sempre coibindo-se as eventuais pretensões totalizantes de algum (ou alguns) deles [8]. Nisso tudo, principalmente, reside a importância da sociedade civil e de uma democracia efetivamente participativa, que garanta à periferia, aos excluídos do discurso oficial institucionalizado, a possibilidade de serem ouvidos.
Os casos acima abordados, então, na medida em que afetariam não somente a tradição religiosa e seu jogo de linguagem específico, mas várias outros ramos do "mundo da vida", devem ser, segundo essa perspectiva, abertos a outras possibilidades discursivas. Não que a utilização de argumentos religiosos deva ser banida da arena pública, como defendem vários defensores do liberalismo político. Afinal, como é sabido, uma parte considerável da tradição ocidental foi herdada, justamente, do cristianismo. O que deve ser evitado é, sobretudo, essa perigosa pretensão de exclusividade discursiva, tão comum a quem se diz detentor de uma Verdade única e absoluta. Evidentemente, isso não é exclusividade da religião. Também a ciência, como nos mostra o caso do aborto, pode atribuir a si mesma o privilégio da detenção de métodos para se chegar à verdade [9]. Naquele caso, Robert George atribuiu o caráter de verdade objetiva às respostas biológicas, que, por acaso, confirmavam os princípios cristãos, à pergunta "quando se inicia a vida humana?". Como sabemos, essa não é a única concepção de "vida humana", bastando, para tanto, analisar a concepção indígena de "living well" (bem viver, numa tradução livre) [10], segundo a qual o "viver" estaria necessariamente atrelado a uma vida harmônica e tranquila. Isso, como demonstra Marcelo Neves, tem implicações sérias em casos polêmicos, a exemplo do chamado "infanticídio indígena" [11]. Resumidamente, a menos que nos autoconcedamos o título de detentores exclusivos do direito de falar sobre o início da vida humana, não podemos, de modo apriorístico, negar dignidade a concepções simplesmente porque elas integram uma forma de vida absolutamente diversa da ocidental ou, o que é muito diferente, da tradição cristã. É claro que há casos em que será possível afirmar que alguns valores são melhores que outros, mas isso não deve ser declarado unilateralmente e às escuras, longe de um debate aberto.
Logo, a simplicidade, a certeza e o determinismo de um discurso único são substituídos pela complexidade, pela incerteza e pela contingência de uma pluralidade discursiva. Como nem poderia ser de outra maneira, isso provoca alguma instabilidade, a principal preocupação de um conservadorismo cujas bases geralmente remontam à defesa incessante da manutenção do "status quo". Felizmente, esse é o preço que se paga para viver num mundo marcado pela diferença.
E, num mundo marcado pela diferença, atribuir ao respeito pela tradição uma virtude inerente parece-me, além de inadequado, perigoso, sobretudo porque isso pode, como a história nos mostra, aniquilar liberdades individuais. No caso do conceito tradicional de casamento, por exemplo, encontra-se embutida uma forte questão de gênero, na medida em que são rigidamente atribuídos papeis sociais ao homem e à mulher, cada qual pré-determinado a se relacionar unicamente com o sexo oposto e a se comportar de acordo com as maneiras que lhes são, respectivamente, estabelecidas. Os casos de crianças que não se identificam com o seu gênero "natural", assim, são, de pronto, vistos como anomalias e tratados de forma absolutamente contrária a qualquer ideal de humanismo, no mais das vezes requerendo a assimilação forçada dos conceitos tradicionais. Não afirmo que tais conceitos sejam errados; apenas alerto para os perigos dessa obsessão pela tradição, em detrimento da própria liberdade individual.
A tradição, naquele segundo sentido do termo, não precisa ser recusada. Mas devemos coloca-la sob constante escrutínio, questioná-la e, se preciso, negá-la. Frequentemente, é necessário o rompimento de tradições iníquas, baseadas em sistemas de opressão e exclusão, o que deve partir das próprias pessoas sujeitas a essas tradições. Daí a importância dos debates que somente uma sociedade efetivamente aberta pode permitir. É evidente que, quando eu critico as tradições que julgo opressoras, parto, já, de uma tradição – no primeiro sentido do termo, o que é muito diferente dos vários dogmas tradicionais tidos por imutáveis. Eu, cidadão da civilização ocidental, com os pré-conceitos que isso implica, tenho para mim que a liberdade individual é um valor mais importante do que a defesa das estruturas estabelecidas, mas não pretendo, com isso, afirmar que meu juízo é absoluta e intemporalmente correto. Reconhecer isso, acredito, é um passo importante no caminho rumo à tolerância e, consequentemente, à disposição ao aprendizado com a diferença.
Como vimos, Robert George foi bastante contundente ao afirmar, nos dois primeiros casos analisados, que todo relacionamento que não se vinculasse às finalidades conjugais, restritas aos casais heterossexuais, implicaria na desumanização do ser humano. Porém, muito possivelmente, uma forma muito pior de desumanização do ser humano é aquela que os transforma em meros autômatos, seguidores passivos de uma tradição sobre a qual não se dão ao trabalho de refletir. Os riscos de acabarem por oprimir a si mesmos e aos demais é iminente. Por isso, devemos, sempre, nos dispor à reflexão, até mesmo – senão principalmente - sobre aquilo que parece estabelecido, imutável. Afinal, como nos lembra o trecho de Virginia Woolf que dá início a este texto, desmantelar ou modificar a construção solene é algo sempre possível, a cada instante.





Notas:
[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 14 ed. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 368.
[2] GEORGE, Robert P. The Clash of Orthodoxies: Law, religion, and morality in crisis. Wilmington, Del.: ISI Books, 2001, p. 77.
[3] Ibidem, p. 115.
[4] LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013, p. 69-ss.
[5] GEORGE, op. cit., p. 181-2.
[6]WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Filosóficas. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 180-ss.
[7] SEARLE, John R. The Construction of Social Reality. Nova Iorque: Free Press, 1995;
[8] Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 40-ss.
[9] Sobre os perigos do "imperialismo" do método científico, ver FEYERABEND, Paul. Adeus à Razão. São Paulo: Unesp, 2010.
[10] CUNNINGHAM, Mirna. "'Living Well': The indigenous latin american perspective". In: Indigenous Affairs 1-2/10: Development and Customary Affairs (2010), p. 52-59. Para uma análise desses conflitos entre formas de vida radicalmente diversas e dos desafios que isso implica ao constitucionalismo, ver o meu paper, intitulado "Do Colonialismo ao Transconstitucionalismo", no seguinte link: https://www.academia.edu/15430257/Do_Colonialismo_ao_Transconstitucionalismo_Reflexões_sobre_os_conflitos_normativos_entre_ordens_estatais_e_extraestatais.
[11] NEVES, op. cit., p. 216-ss.


* Texto concluído em 25/09/2015.



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.