A Tradição e a Tradução Queirosiana em Monumentos de Palavras, de Osmar Pereira Oliva

June 15, 2017 | Autor: Leonardo Palhares | Categoria: Eca de Queiroz, Eça de Queirós, Osmar Pereira Oliva, Monumentos de Palavras
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A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO QUEIROSIANA EM MONUMENTOS DE PALAVRAS, DE OSMAR PEREIRA OLIVA Leonardo Tadeu Nogueira Palhares[1] Ivana Ferrante Rebello e Almeida[2]

1. Introdução

Monumentos de Palavras, de Osmar Pereira Oliva, é uma obra na qual se percebe uma série de aproximações entre dois fatos históricos que marcaram a cultura de Portugal, divididos em duas seções: em uma primeira parte, percebe-se uma revisitação contemporânea à Tormes, cenário do romance A Cidade e as Serras[3], de Eça de Queirós. Na segunda, percebem-se as impressões as quais o eu-lírico faz de diversos monumentos presentes na Ilha da Madeira, território ultramarino português, localizado no Oceano Atlântico. Problematizando a percepção da presença de tal aspecto dialógico com a tradição lusitana, bem como a notar traços de um esforço para "traduzir" tal cultura através da poética, analisaremos, neste ensaio, estas perspectivas de "tradição" e de "tradução" no diálogo de Oliva com Queirós.

2. Nas serras, devastadas e tristes, que nada têm daquela ficção…

Podemos ver que o contemporâneo, de acordo com Giorgio Agamben, recorre a algo similar ao que podemos pensar como “tradicional”: aquele que se baseia em algum momento do passado histórico da humanidade para, em seu presente, compreender a “escuridão” na qual permeia o seu tempo [4]. A “luz”, esta estabelecida como o distante ponto que o pretérito se encontra, é um foco estabelecido como apenas um “ponto de apoio”, para que aquele a respirar contemporaneidade compreenda o quão obscura é a sua realidade temporal. Tal processo pode ser observado, em Monumentos…, como o poema “A Casa do Silvério”: [1]

Acadêmico do curso de Letras/Português da Universidade Estadual de Montes Claros-UNIMONTES. Email: [email protected]. [2] Doutora em Literatura Brasileira pela PUC-MG. Professora do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros-UNIMONTES. Email: [email protected]. [3] Para melhor simplificação da leitura, deste ponto em diante iremos referir a Monumentos de Palavras como “Monumentos…” e A Cidade e as Serras como “A Cidade…”. [4] "contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro" (AGAMBEN, 2009, p. 62).

Instalei-me no mais alto casario de Tormes Sozinho à sombra das eiras: O vinhedo verde de agosto E uma saudade que ninguém entende, A não ser as frias lages de humilde casa. Vultos do Silvestre, do Calisto, do Jacinto, do Zé Fernandes Me tangem a alma e o coração, Nestas serras tão devastadas e tristes Que nada têm daquela ficção.[5]

Pode-se aqui entender que a Tormes retratada nos versos de Oliva remetem ao cenário de mesmo nome presente em A Cidade…. Tal ficcional quinta portuguesa é uma representação de um lugarejo típico campestre das serras lusitanas que, assim como pode ser entendido da narrativa queirosiana, estabelece um contraponto, a partir da metade do romance, com a capital da França, Paris, dito um centro que, como é possível compreender no imaginário queirosiano, é um dos principais pólos inspiradores de civilização da Europa[6]. Podemos ver uma série de processos os quais o eu-lírico descreve como parte de seu processo de saudade, de rememoração: “sozinho à sombra das eiras” é um trecho que pode ser associado a questão do contemporâneo de Agamben. Com a sua “solidão” sob a escuridão, a “sombra”, o ser contempla o que vê em relação a seu tempo. “O vinhedo verde de agosto”, o verso do meio da estrofe, pode nos trazer uma ideia de elo, de união da voz do poema, em seu tempo, com o que é estabelecido como passado: o clima campestre que há na Tormes do romance de Eça de Queirós. Seus pensamentos, em forma de versos, demonstram a decepção que a voz do poema sente (E uma saudade que ninguém entende) que somente o cenário, o ambiente que vivenciou as próprias transformações ao longo do tempo, consegue compreendê-lo (A não ser as frias lages de humilde casa.) Os “Vultos do Silvestre, do Calisto, do Jacinto,/do Zé Fernandes” nos trazem um registro que podem relembrar não somente de dois personagens de A Cidade… — os dois últimos citados — mas também de duas figuras que podem ser associadas à

[5]

(OLIVA, 2010, p. 9) Em “As fronteiras da civilização em Eça de Queirós”, Hélder Garmes comenta a respeito de uma crônica de Queirós datada de 21 de maio de 1878: “Constata-se, portanto, que Eça tem nesse momento uma perspectiva evolucionista de mundo, no qual a civilização européia se encontra acima de qualquer outra, sendo a França seu paradigma.” (GARMES, 2004, p. 6). A Cidade e as Serras seria escrito mais de vinte anos depois, porém, pode-se ver no romance queirosiano o quanto ainda preserva-se este ideal de que os franceses inspiram e simbolizam o processo de civilização. [6]

outros dois personagens existentes em outras narrativas longas portuguesas: Silvestre e Calisto, aparentemente, aludem à personagens de outro autor de folhetins oitocentista: Camilo Castelo Branco, com, respectivamente, Silvestre da Silva de Coração, Cabeça e Estômago e Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda de A Queda Dum Anjo.[7] Pode ser visto, com a rememoração de tais personagens, presentes em narrativas de caráter urbano do século XIX até o seu fim, uma espécie de evocação, naquele cenário campestre devastado, de suas presenças de espírito. Sendo portugueses, são personagens de romances que, na visão de Queirós e de Oliva, representam um modelo do que seria o homem lusitano de seu tempo: aquele que estava para se corromper com o excesso de novidades e de aparente facilidades que o convívio na civilização traz, mas, na verdade, acaba por tornar-se um mal. Isso reflete na personagem Jacinto, que passa por apuros devido a um peixe assado, a ser servido em um jantar com os homens nobres de Paris, o qual entala no elevador do seu apartamento 202: -Meus amigos, há uma desgraça... Dornan pulou na cadeira: -Fogo? -Não, não era fogo. Fora o elevador dos pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de S. Alteza, se desarranjara, e não se movia encalhado! O Grão duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como um esmalte mal posto: -Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E pôr que o não trouxeram à mão, simplesmente? Encalhado... Quero ver! Onde é a copa?[8] (QUEIRÓS, 2004, p. 21)

O caráter vexatório da cena pressupõe a questão do “jogo social” na civilização: para demonstrar que é um sujeito alinhado com as novidades do mundo, mas tem azar com o peixe entalado, e é criticado pelo Grão duque por causa disso. Tal exemplar do caráter falho que a civilização apresenta leva o eu-lírico de Monumentos… — este que venera as serras verdes e confortantes presentes na ficção de Eça — a produzir um lamento, dirigido a essa natureza decomposta, “devastada” (“Me tangem a alma e o coração,/Nestas serras tão devastadas e tristes/Que nada têm daquela ficção”). [7]

Como objetivamos observar a poética de Monumentos de Palavras através de inspirações advindas de A Cidade e as Serras, não daremos continuidade às observações sobre possíveis apontamentos da ficção camiliana na obra de Osmar Pereira Oliva neste estudo para não torná-lo deveras enfadonho. Contudo, é interessante notar que há consonância entre os dois romancistas portugueses oitocentistas aqui detectados entre os seus estilos. De acordo com Lelia Maria Parreira Duarte, Coração, cabeça e estômago e A queda dum anjo são “obras de ironia mais reflexiva, elevada e sutil, que põem em causa problemas morais e literários experimentados pelo autor” (DUARTE, 2008, p. 1). Tal percepção irônica dos entreveros que cercam a moralidade, sobretudo em relação a uma espécie de bem estar e convívio o qual se preza na vida em civilização, pode ser visto no romance queirosiano aqui estudado, bem como argumentamos ao longo deste estudo ao citar trechos da narrativa de Eça de Queirós. [8] (QUEIRÓS, 2004, p. 21)

E como é vista esta civilização tão discutida em A Cidade…, e revista em Monumentos…? Partimos da hipótese de que a pregação pelas utilidades da quinquilharias — como já vimos no caso do peixe e o elevador — e também de certas práticas, ditos como parte do processo integração do homem a um alto nível social, acaba por torná-lo oprimido, impondo certa necessidade de ter que conviver com as “futilidades” que o mundo civilizado oferece. Tal sentimento enfadonho é perceptível neste trecho de A Cidade…: Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me impressionei quando Jacinto me desvendou que era um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as frutas, outro para o queijo. Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos: - um Bordéus rosado em infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de baldes de prata. Todo um aparador porém vergava sob o luxo redundante, quase assustador de águas - águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas fosfatadas, águas esterilizadas, águas de sais, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos.[9]

O refinado estilo de jantar civilizado, com seus inúmeros garfos, específicos para cada parte da refeição, impressiona o personagem-narrador Zé Fernandes, bem como a série de luxos que cercam o ato de servir o vinho — os copos, os baldes, e até mesmo as rotuladas águas que rodeiam o fausto ato de cear na civilização. A aquisição de diversas “quinquilharias” modernas por parte de Jacinto pode implicar um desejo do autor de demonstrar que, na sociedade consumista, é cada vez mais imposto ao civilizado uma necessidade de se estar na moda, de estar alinhado com as novidades tecnológicas produzidas em seu tempo. De acordo com Freud, “Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão”[10]. Percebemos tais descrições exibidas de formas semelhantes na poética de Oliva, como no poema “A Casa do Eça”:

[9]

(QUEIRÓS, 2004, p. 9) (FREUD, 2007, p. 1)

[10]

Tenho pressa de retornar, Porque a civilização está em todo o lugar: O vinho verde industrializado, etiquetado Não borbulha mais na botelha de barro. Assim como as geleias, Compotas rotuladas: E a caixa barulha, registra, soma... Nada em centos, tudo em inteiros, Euros tantos, tantos![11]

Assim como Zé Fernandes descreve e percebe as formas de civilização presentes no ritual do jantar, o eu-lírico de Monumentos… o faz com a Tormes pela qual caminha: a civilização está presente no processo manual de industrialização do vinho e das geléias. O que era natural, dá lugar ao que é embalado mecanicamente. Perde-se todo o natural sabor da fermentação através da botelha de barro para dar-se lugar ao automático processo de fabricação. A intensa, repetitiva e barulhenta ação da caixa registradora, faz parte de um processo que deixa transparecer ao leitor os elementos que aludem à civilização. O cenário português ainda é retomado em outros poemas, como em "O Caminho": Retomo o caminho de pedras, Dou em um pátio de muitas casas, Carros, cães, antenas e tudo mais. _ Perdido estou? Indago ao senhor. _ Em frente! Em frente![12]

A descrição da voz do poema nos apresenta muitas características que tornam ainda mais contundentes o espírito de afronta à civilização a qual apropriou-se da leitura de A Cidade…. O caminho de pedras não é cercado por um cenário campestre, mas sim por moradias no lugar da relva, de veículos a poluírem o ambiente, de vira-latas a perambularem pelas ruas, e as antenas de diversos meios de transmissão espalhadas por todos os lados. Tamanho desconforto com o cenário civilizado é discutido da seguinte forma por Freud: Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão. Sempre tendemos a considerar objetivamente a aflição das pessoas – isto é, nos colocarmos, com nossas próprias necessidades e sensibilidades, nas condições delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos para experimentar felicidade ou infelicidade. [13]

[11]

(OLIVA, 2010, p. 11) (OLIVA, 2010, p. 13) [13] (FREUD, p. 17) [12]

A “infelicidade” pensada por Freud a ocorrer dentro de um cenário civilizatório é perceptível no romance eciano: A Cidade… percebe-se uma denúncia ao entusiasmo com a civilização, nascente no final do século XIX. Jacinto, o morador de Paris, um homem “cheio de Civilização”, como é descrito por Zé Fernandes, acaba, ao longo da narrativa, por fazer um caminho aonde busca se “regenerar” de sua urbanidade, e encontra isso nas serras portuguesas de Tormes. Já o eu-lírico de Monumentos… nos demonstra a questão de “infelicidade” realizando um processo inverso: ele quer encontrar o cenário idealizado do campo, que recompõe a humanidade de Jacinto. No entanto, sua frustração é encontrar tal cenário devastado pelos efeitos da civilização. Na verdade, as mudanças naturais e geográficas representam, simbolicamente, as mudanças inaturais. É a Portugal de Eça de Queirós que a voz do poema busca, mas não encontra.

3. Ainda ouço teimosos assobios de pássaros…

Asseverando sobre o ato de traduzir, Walter Benjamin diz que: Será uma tradução válida para o leitor que não conhece o original? Isto parece suficiente para explicar a diferença de categoria no domínio da arte entre ambos. Além disso, parece ser a única razão possível para voltar a dizer “o mesmo”. [14]

Percebemos que o problema da tradução que a poética de Oliva faz do romance de Queirós não retrata a respeito de uma translação inteira do romance mas que a tentativa do eu-lírico de Monumentos… nos parece ser tentar traduzir o que está na arte, ou seja, no romance A Cidade…, para a realidade, para a Tormes por onde visita. O ato de “traduzir” aqui é visto como tendo a narrativa eciana como guia, um mapa para guiar a voz do poema de Osmar pelo que seriam as serras naturais e campestres da quinta portuguesa. No entanto, pode ser percebido que a voz do poema encontra um problema em seu ato de tentar traduzir o que o romance diz para a sua “realidade” [14]

[15]

. O conflito o

(BENJAMIN, 2009, p. 1) A “realidade” aqui tratada se refere a que percebemos como existente dentro do universo de Monumentos de Palavras, onde existe um lugarejo chamado Tormes e que pode nos apontar tal espaço como inspiração de Eça de Queirós para a criação de A Cidade e as Serras. Podemos ver isto como um jogo ficcional elaborado pelo livro de poemas de Oliva, uma vez que a Quinta de Tormes não existe no [15]

qual podemos ver entre o enunciado poético com o seu espaço pode ser a modernidade a qual se encontra. Em consonância com Octavio Paz, entendemos o moderno como algo que pode ser associado com o avanço da civilização que tanto percebemos em alguns trechos de A Cidade… e em Monumentos…: sobre os poetas modernos do século XIX, Paz observa que o afã destes líricos é a “multidão, a cidade de anúncios luminosos, dos bondes e dos automóveis, que cada noite se transforma num jardim elétrico”16. Contudo, percebemos que o eu-lírico de Monumentos… não se apropria de tais ideias, pois a sua afronta é justamente a todos estes elementos tecnológicos oriundos do processo de civilização. No poema “A Ermida”, pode ser visto o quanto a voz do poema não entende o avanço do progresso em um local descrito como tão natural e belo no romance e “encontrá-lo” em deplorável estado: Três alvas casas, Outra em construção, Uma concreta ponte abaixo, Emoldurada por altos montes, Uma vila ao fundo, distante. Ainda ouço teimosos assobios de pássaros Remanescentes de outrora paisagem. É saudoso, é triste, é melancólico Esse estado de uma aldeia queirosiana…[17]

“Ouvir” os “teimosos assobios de pássaros”, “Remanescentes de outrora paisagem”, pode nos apontar o quanto o passado da tradição queirosiana interfere em um conflito com o processo tradutor do eu-lírico de Oliva: são vozes apenas imaginadas, que apenas sugerem um pretérito que, noutros tempos ali havia. Ao tentar corresponder o que foi produzido de forma ficcional com a realidade, percebemos que os lamentos são mais agravados por causa de uma tentativa de enxergar, em meio aos campestres restos “de uma aldeia queirosiana”, algo que relembre a sua completude, o que era em seu passado. Se pensarmos que o processo de “tradução” do romance de Queirós neste poema objetiva em realizar uma leitura literal da narrativa, podemos ver que tal tentativa é falha, pois em A Cidade… o que temos é um final, de certa forma, considerado satisfatório: abafado pela civilização, Jacinto, ao longo da história, vai se adaptando ao plano da nossa Realidade. De acordo com o site da fundação Eça de Queirós, o local que serviu de inspiração para o cenário do romance queirosiano seria a Quinta de Vila Nova, distando a 400 km da capital, Lisboa. Para maiores informações, ver http://www.feq.pt/casa-de-campo.html [16] (PAZ, 2003, p. 44) [17] (OLIVA, 2010, p. 15)

clima campestre de Tormes e, enfim, se renova enquanto homem graças a sua reabilitação no ambiente natural. Mas em Monumentos… vemos que Tormes é um lugar onde a civilização está avançando, e as serras estão sendo devastadas. Contudo, percebe-se que um ideal a afrontar o que é considerado como “civilizado” em favor de uma defesa do homem que vive mais próximo da natureza, longe das obrigações e do fastidioso processo de vida em sociedade no mundo urbano é comum nas duas obras. Logo, as claras pistas que vemos de uma leitura do romance de Queirós na poética de Oliva implicam que houve, com certo esmero, uma tradução dos ideais presentes na história de Jacinto nos versos declamados pelo eu-lírico de Monumentos…. Com isso, pode-se depreender que há quase uma tradução poética do romance eciano que pode ser considerada verdadeira, em consonância com o pensamento de Benjamin: “a verdadeira tradução é transparente, ela não oculta o original, não lhe rouba a luz, faz com que, inversamente, a língua pura, reforçada através do seu próprio “medium”, incida com maior plenitude sobre o original.”[18] Ao exercer uma leitura de A Cidade… propondo seis poemas a servirem de registro turístico sobre a sua passagem em Tormes, o enunciado de Monumentos… realiza alguns atos os quais apresentam fidelidade ao romance lusitano. Um deles é o ato de exercer uma função crítica da civilização, porém nada contra ela, em forma física, o faz. De acordo com Freud, A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.19

A atitude de Jacinto no romance implica algo parecido: o avanço da civilização parisiense não pode ser contido. A sua solução é o fugere urbem: a ida para Tormes. Mas para o eu-lírico de Monumentos… não há mais lugar para onde fugir. Portanto, se não lhe cabe a fuga, ou até mesmo ansiar pela agressão — o que pode apontar que a voz do poema de Oliva seja um ser dotado de certos dogmas civilizados — nos mais diversos âmbitos (principalmente o físico), resta-lhe a agressão, apesar de comedida, através das palavras. Os seus versos, desesperançosos, nos são um exemplo de que a civilização inibe o combate do homem para o limite de si. Logo, a sua “tradução” de Eça no cenário das serras de Tormes é caracterizada pela “confusão” que faz em querer [18] [19]

(BENJAMIN, 2009, p. 10) (FREUD, p. 36)

enxergar alguns aspectos remanescentes dos ideais campestres presentes na obra queirosiana no local, porém alguns deles são frutos de seus devaneios. Percebe-se também a questão do medo pela civilização em avançar para as serras. Quase ao final do romance, Zé Fernandes comenta a respeito de um “equilíbrio” que Jacinto conquistara em ser um sujeito meio natural, meio civilizado: Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro dum mês temos a pobre Joana a apertar o vestido pôr meio duma máquina! Pois não! o Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele fora o Príncipe sem Principado.20

Tal apontamento pode pressupor algo o que seria dito como inevitável: a civilização, de algum modo, iria chegar às serras. Logo, a tradução executada pela voz do poema de Monumentos… implica em uma concordância com os perigos que o progresso pode fazer aos ambientes naturais: se no romance está implicado através de uma prenúncio de Zé Fernandes, vemos nas poesias de Oliva as lamentações, pois em nada a Tormes romantizada relembra a civilizada por onde passeia, a qual rende, na tirada final, a síntese de um “Último” lamentar sobre o deplorável e civilizado estado da quinta, onde, acima da estação de trens da Ermida, percebemos os restos de natureza em meio do avançado processo de progresso em meio as serras e, abaixo, a certeza de que o que há de natural, infelizmente, não há mais: Da Ermida para cima, Tudo é pedaço de saudade, Da Ermida para baixo, Tudo é certeza de passado.[21].

4. Considerações finais

Promover a tradição e a tradução nos parece, com a comparada leitura de A Cidade… de Eça de Queirós, e de Monumentos… de Osmar Pereira Oliva, dois processos que atuam de forma semelhante, empenhados em promover ideais que apontem os prejuízos causados pela civilização no homem (isto percebido romance), [20] [21]

(QUEIRÓS, 2004, p. 73) (OLIVA, 2010, p. 19)

bem como renovar e revitalizar tais ideias em um tempo contemporâneo (sugestão a qual os poemas nos podem trazer.). O eu-lírico dos poemas do poeta brasileiro pode nos trazer o pensamento de fidelidade em relação à proposta de favorecimento do campo pensada pelo romancista português, embora adote a linha de retratar o descaso com a preservação das serras, a demonstrar os sinais de seu tempo, ante ao clima campestre do final do século XIX perceptível na narrativa de Queirós. Se o pensamento proposto na história de Eça denota um anseio de reconquistar uma tradição estabelecida na escrita do autor lusitano, podemos ver, no livro de Oliva, uma retomada à tradição narrativa de Eça, espécie de tradução dos lugares dos valores que constroem esses cenários. No entanto, a civilização atua como desestruturadora desse lugar de tradição. Os “cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival”[22] dão lugar aos “euros tantos, tantos”, que barulham, somam, registram, e compõem a contemporânea sinfonia do processo civilizatório pelas serras. E, através desse processo sinestésico, de sentir, de cheirar, de ver e de tocar as serras civilizadas, é que o enunciado de Monumentos… versa, em consonância com as suas memórias de leitura, a sua decepção pelo devastado cenário. Se isto leva a conclusão de que a sua tradução é falha por não relembrar o espírito otimista que encerra A Cidade…, acaba, no entanto, em atualizar os ideais queirosianos com o nosso pífio otimismo contemporâneo: a natureza é a opção do homem para se revitalizar diante do caos social que o oprime. Mas até quando?

[22]

(QUEIRÓS, 2004, p. 1)

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo. Chapecó, SC: Angos, 2009 BENJAMIN, Walter. "A tarefa do tradutor". Disponível em: http://goo.gl/eOK27p. Acesso: 08-05-2014 21h12min DUARTE, Lelia Maria Parreira. “A reversibilidade irônica de Camilo em A queda dum anjo” Disponível em: http://goo.gl/y1eQ89. Acesso: 08-05-2014 08h15min FREUD, Sigmund. "O Mal-Estar na Civilização". Disponível em: http://zip.net/blnj0z. Acesso: 08-05-2014 21h13min GARMES, Hélder. "As fronteiras da civilização em Eça de Queirós". Disponível em: http://zip.net/bjnkqK. Acesso: 08-05-2014 21h14min OLIVA, Osmar Pereira. Monumentos de Palavras. Montes Claros: Ed. Unimontes, 2010 PAZ, Octavio. A outra voz. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: ed. Siciliano, 2003 QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. Disponível em: http://zip.net/btnkHH. Acesso: 08-05-2014 21h15min

RESUMO: Amparados pelos conceitos de civilização de Freud, bem como as visões de modernidade de Octavio Paz e de contemporaneidade de Giorgio Agamben, apresentamos uma leitura da obra Monumentos de Palavras, de Osmar Pereira Oliva. A influência do romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, na poética de Oliva, possibilita uma leitura comparativa em que tradição e modernidade se confrontam. Traço este que aponta uma continuidade do legado queirosiano nos poemas do autor brasileiro, e também um traslado do ideário campestre proposto pelo romancista português nos fins de século XIX.

PALAVRAS-CHAVE: A Cidade e as Serras. Monumentos de Palavras. Tradição. Tradução.

ABSTRACT: Supported by Freud's concepts of civilization, as well as visions of modernity by Octavio Paz and contemporary by Giorgio Agamben, we present a reading of the work of Monumentos de Palavras (Monuments of Words, literal meaning), by Osmar Pereira Oliva. The influence of the novel A Cidade e as Serras (The City and the Mountains), by Eça de Queiroz in the poetics of Oliva, enables a comparative reading where tradition and modernity clash. Trace this pointing a continuation of the legacy queirosian in the poems of Brazilian author, and also a shuttle from the ideas proposed by Portuguese novelist country in late nineteenth century.

KEYWORDS: A Cidade e as Serras. Monumentos de Palavras. Tradition. Translation.

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