A Tradição na Escola do Bandolim Brasileiro (2010)

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V Simpósio Nacional de História Cultural – Brasília - 2010

A TRADIÇÃO NA ESCOLA DO BANDOLIM BRASILEIRO1 Jorge Antonio Cardoso Moura (Universidade de Brasília - PPG/MUS – Mestrando [email protected])

RESUMO

Contextualizada na cidade do Rio de Janeiro, a partir de 1870, com o nascimento do choro como gênero musical popular, a presente pesquisa trata dos aspectos histórico-sociais, técnicos e estéticos que influenciaram a formação e consolidação de uma dita escola “Escola do Bandolim Brasileiro”. Centrada sobre os conceitos de tradição e inovação, a análise parte de conjunto documental reunido a partir de fontes impressas, sonoras e audiovisuais, assim como relatos de músicos bandolinistas. Discute-se o papel da tradição oral no aprendizado musical, os modos e práticas musicais desta atividade, a relevância da prática musical de instrumentistas como Jacob do Bandolim, entre outros aspectos. A pesquisa, motivada pela atividade profissional do autor enquanto compositor e instrumentista, busca conhecer as atividades que permitiram a estruturação desta prática musical assim como as relações sociais, históricas e musicais que a terão sustentado enquanto prática na cultura. Palavras-chave: Bandolim. Tradição. Choro.

1 Este texto é a síntese do primeiro capítulo de nossa dissertação de mestrado, “A tradição na escola do bandolim brasileiro”, Orientadora: Prof ª Drª Beatriz Duarte P. de Magalhães Castro, PPG-MUS / UNB, 2010.

1. INTRODUÇÃO Com o surgimento das primeiras atividades musicais profissionais no Brasil, gradativamente, o bandolim ampliou sua representatividade em diversas regiões do país. A cidade do Rio de Janeiro foi o principal pólo disseminador dos principais acontecimentos culturais brasileiros. Simultaneamente, houve o crescimento da produção musical com gêneros variados, entre eles, a polca, o samba, a habanera, o maxixe, o choro2, a valsa, o schotisch, a bossa nova, o baião (BARBOZA, 2004). No entanto, há pouco conhecimento a respeito das formas de como o aprendizado do bandolim aconteceu no Brasil. Nesse sentido, torna-se necessária uma investigação sobre: 1. As formas de ensino do bandolim; 2. A incorporação de uma metodologia de seu ensino concebida de modo a adequar-se às diversas realidades sociais e culturais brasileiras; 3. A contextualização histórica das escolas informais existentes no Brasil, onde existiram e existem atualmente; 4. A legitimação dos conceitos de tradição e inovação na presente escola; 5. A construção da formação da carreira musical e profissionalização do bandolinista brasileiro.

2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO BANDOLIM

Os estudos históricos sobre a origem do bandolim o indicam como descendente de uma família de instrumentos encontrados em vários países a milhões de anos atrás. Em tumbas e manuscritos egípcios, na Grécia antiga, na antiguidade oriental, e em vestígios da cultura hebraica, encontramos exemplos de fontes para uma pesquisa organológica de seus modos e práticas na humanidade3. Em cada localidade, o mencionado instrumento assumiu um 2 Nosso objetivo visa demonstrar a relação do choro com a tradição e modernidade na escola do bandolim brasileiro. 3 (SEVERINI, em Il Fronimo, Nº 62, janeiro de 1988), (MEER, revista Liuteria, Nª33, dezembro de 1991, ano XI), (COATES, Early Music, janeiro de 1977, p. 75-87) e (TYLER, Early Music, outubro de 1981, p. 438-446) artigos selecionados da Revista Plectrum indicada pelo prof. Ugo Orlandi no curso de bandolim clássico do Conservatório Giuseppe Verdi de Milão, 2008.

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nome, forma e usos diversos. Assim, diversas tradições foram consolidadas em contextos sócio-culturais diversos. Instrumento derivado da família do alaúde, o bandolim (MEER, 1991) foi importado para a Europa, aproximadamente no século X. Sobre o nome de qopuz, tal instrumento era construído de uma peça maciça de madeira rígida, com caixa em formato piriforme (forma de pêra). A cabeça do instrumento era curvada e, desde a segunda metade do século XV, as fontes de pesquisa, dentre elas a iconográfica, apontam o uso de palheta na execução do alaúde. A palheta é a peça utilizada para a execução do bandolim até os dias atuais. Até o século XVIII, constatamos mudanças na história do instrumento, sua nomenclatura e a adoção das características do alaúde com migrações parciais de um tipo ao outro. Assim como o termo lyra, na idade média, foi adotado para instrumentos de arco; o nome do instrumento grego kithára deu origem a vários instrumentos de cordas executadas com a palheta, dentre eles o zither, chitarra, chitarrone, qitarre, citole, cistre e a cetera. Até o ano de 1550 aproximadamente, o bandolim foi classificado por denominações derivadas da kithára: gittern, guiterne, guiterna, ghiterna, ghiterne, guiterra, guiterre (MEER apud WRIGHT, 1991). No tratado De usu et inventione musicae, escrito em 1484 por Johannes Tinctoris foi indicado um instrumento inventado pelos catalões, chamado ghiterra ou ghiterna de origem a partir da lyra. Este instrumento foi retratado como um pequeno alaúde, com forma de tartaruga e mesma forma de execução musical. A guiterna tinha a forma de caixa do alaúde e não tinha relação com o violão, que possui sua caixa reta. Tal instrumento se tratava do qopuz, anteriormente citado. Com sua popularização em quase toda a Europa, o bandolim assumiu outras formas e práticas em cada país. Ao ser introduzido na Espanha pelos italianos, o bandolim transformou-se na atual bandurria, com diferenças no número de cordas e afinação (SÁ, 1999 apud TYLER, 1992). Com base na observação de imagens de época e fotografias do início do século XX, foram introduzidos no Brasil, pela imigração portuguesa e italiana, os modelos de bandolim napolitano e de fundo chato. O modelo português, com sua forma de caixa, era, desde o início, diferente do modelo do bandolim napolitano, de formato abaulado utilizado na Europa até hoje. 3

A escassez de registros históricos das práticas do bandolim no período do Brasil colônia nos leva a estabelecer hipóteses sobre a proveniência do bandolim no Brasil. A primeira se configura na influência católica na corte portuguesa, que era consumidora da música italiana. Em 1714, o compositor napolitano Domenico Scarlatti tornou-se maestro da capela do embaixador português da época. Em 1720, Scarlatti foi nomeado maestro da capela da corte de Lisboa4. Desse modo, é provável a hipótese de que a vinda do bandolim ao Brasil teria sido por meio de músicos italianos a serviço da corte portuguesa. Em uma segunda hipótese, em 1808, o incremento da aquisição de instrumentos importados da Europa5, após a vinda da família real portuguesa ao Brasil, teria influenciado a prática musical no Rio de Janeiro desde então. Esse fato se configura pela influência de um repertório específico e da assimilação de uma cultura absorvida pela aristocracia da sociedade carioca6.

3. CONSOLIDAÇÃO DE TRADIÇÕES Com a consolidação do Choro como um gênero musical e das tradições musicais urbanas do Rio de Janeiro foram identificados os principais nomes do bandolim no Brasil. O início da indústria fonográfica proporcionou a gravação, produção e divulgação em discos, como forma de registro histórico dos bandolinistas brasileiros. Com este processo, ficou perpetuado uma forma inicial

de

interpretação

do

referido

instrumento

e

seus

principais

4 Em Lisboa, Scarlatti compôs Capricci per Cembalo, dedicados ao Imperador D. João V, publicados em 1738. 5 A partir de 1844, no “Almanack Laemmert”, publicação onde constavam todos os estabelecimentos comerciais e serviços oferecidos à sociedade carioca da época, contatou-se a presença de várias lojas de instrumentos musicais, com depósitos de pianos de fabricação estrangeira, em sua maioria inglesa. 6 Segundo Schapochnik, em 1811, na cidade do Rio de Janeiro, haviam 207 estabelecimentos comerciais portugueses e 75 ingleses. Nelson Schapochnik, em “Uma Biblioteca desaparecida: The Rio de Janeiro British Subscription Library”, disponível em:

4

representantes. Os conceitos estéticos foram desenvolvidos e inseridos predominantemente na escola brasileira de bandolim a partir do repertório do choro, originado da fusão dos gêneros europeus e urbanos cariocas no final do século XIX. A consolidação da tradição oral como forma de aprendizado musical relaciona-se com o aprendizado formal (ministrado pelas instituições de ensino oficiais) e o tido como informal (adquirido pela prática do instrumento em seu contexto cultural). Constatamos que as duas formas de aprendizado musical foram incorporadas aos modos e práticas do choro, cenário dos bandolinistas brasileiros. Desse modo, a contribuição do autor, pela teoria êmica7 será inserida na pesquisa por meio de sua experiência nas duas vertentes mencionadas8. A forma com a qual o popular era visto pela sociedade carioca o enquadrava como exótico e, nessa condição, foi incorporado como diversão nos salões e nas solenidades oficiais. Era necessária a criação de uma tradição onde a elite social expusesse sua imagem como um reflexo da Europa. Desse modo, foi formatada uma linguagem moderna para a música popular, com fusões originais, com a poética afirmação do cotidiano e com o conceito de uma nova nacionalidade. A tradição mulata, ancestral e moderna9 foi adicionada à mistura de gêneros e formas musicais no contexto carioca, palco de uma modernidade musical. A influência africana justificava a ancestralidade como símbolo de uma tradição americana de escravidão. A modernidade se justificou pela tecnologia utilizada pelo disco, com o registro dos modismos musicais e do encontro propiciado pelos espaços urbanos. Para que a elite moderna tivesse relação direta com a cultura popular urbana, a boemia foi o local escolhido para este encontro. Por outro lado, existiu também 7

BORGES (2008) citou a teoria êmica, engendrada a partir do pensamento teórico que se apreende da comunidade dos chorões e demais músicos populares brasileiros. É possível encontrar em trabalhos etnomusicológicos de língua inglesa as seguintes terminologias emic, etno-theory, native-informed theory, insider-informed theory. 8

Em 2008, o autor obteve diplomação em Bandolim Clássico junto ao Conservatório Giuseppe Verdi de Milão - Itália. Em sua trajetória musical no Brasil, desenvolveu atividades como músico, compositor e professor de bandolim.

9

GARDEL, André. O encontro entre Bandeira e Sinhô. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultua, 1996 (Col.Biblioteca Carioca, v. 42).

5

a absorção de elementos da cultura de elite branca, suas formas poéticas e musicais. Neste processo, interagiam tradições diversas e formas de expressão entre a cultura popular urbana e a elite moderna.

5. A ESCOLA DO CHORO

O aprendizado popular fundamentado na tradição oral e no acadêmico em instituições de ensino coexistiram em uma mesma realidade contextual. Ao primeiro, o denominaremos como aprendizado “informal” e, ao segundo, de “formal”. Sobre a tradição oral no choro, torna-se necessário uma definição de como se deu sua prática musical. Desde sua concepção, o choro reuniu elementos rítmicos do barroco com um contraponto livre realizado de uma forma específica. Seu fraseado musical mistura elementos da polca com a síncopa africana. Assim, o músico de choro, denominado “chorão” manipulou uma espécie de código musical apreendido nas “rodas de choro”, que eram feitas nas ruas. Esta manifestação musical possui características e repertório onde o virtuosismo do intérprete combina suas habilidades com a demonstração da criatividade improvisativa. Até os dias atuais, o músico que não corresponder a esse perfil, não atenderá aos requisitos deste gênero. Esta manifestação musical uniu músicos desde seu nascimento e sofreu a interferência da trajetória musical dos principais músicos do gênero. Os comportamentos provenientes das práticas musicais do choro aliados à sua linguagem musical transformaram o choro em uma “escola” informal. Esta denominação refere-se à forma de tocar. Os músicos de choro buscaram a escola formal nos primórdios de sua existência como gênero musical. O fato do Império ter proporcionado bolsas de estudo na Europa contribuiu para o desenvolvimento qualitativo do músico carioca. A migração de músicos para a Europa, a intensa atividade cultural de companhias musicais do exterior e a vinda de artistas estrangeiros deu uma grande contribuição para o desenvolvimento deste gênero. Em 1848, foi fundada a única escola pública de música no país. O flautista Callado, considerado o “pai do choro” nasceu neste ano (DINIZ, 2007). Após as reivindicações dos músicos liderados pelo maestro Francisco Manuel da Silva, o imperador D. Pedro II criou o Conservatório de Música. Com vagas gratuitas 6

para homens e mulheres, muitos dos principais nomes da música popular brasileira do século XIX estudaram nesta instituição. Trinta anos depois, Callado foi professor nesta instituição que, atualmente, é incorporada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com sua sede no bairro da Lapa.

6. OS BANDOLINISTAS NO BRASIL O “Oito Batutas” foi o primeiro grupo brasileiro a se apresentar na França. Paris tinha sido a cidade modelo, da qual o Rio de Janeiro havia assimilado o modismo. O estímulo da elite carioca havia implementado este processo de “civilização” como mencionamos anteriormente. Nascido em um novo momento na trajetória dos conjuntos de choro, no início do século XX, foi denominado inicialmente de “Grupo Caxangá”(TABORDA, 2008). Sob a influência do nacionalismo e no intuito de divulgação da produção e identidade brasileira, os choros eram apresentados como variedades com temática regional. Nesse sentido, o grupo possuía inspiração nordestina, na indumentária, mas seu repertório e seus integrantes adotaram codinomes sertanejos. Em 1916, João Pernambuco organizou apresentações em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, especialmente nos carnavais dos anos 1917 a 1919. Posteriormente, a maioria dos integrantes do “Grupo Caxangá” foi requisitada por Pixinguinha para a formação do conjunto “Os oito batutas”. O novo grupo foi integrado inicialmente por Alfredo da Rocha Viana Junior (Pixinguinha), flauta; Ernesto dos Santos (Donga), violão; Jacó Palmieri, pandeiro; José Alves de Lima, bandolim; Luiz Pinto da Silva (bandola e reco reco); Nelson dos Santos Alves, cavaquinho; Otávio da Rocha Viana (China), violão e voz. Com esta informação, constata-se uma das mais importantes participações da música popular brasileira no exterior com a presença de bandolinistas. A pesquisa realizada por Alexandre Dias (2010)10 sobre a discografia das obras de Ernesto Nazareth forneceu dados sobre bandolinistas nos primórdios das gravações mecânicas no Brasil. Inicialmente, aproximadamente 10

DIAS, Alexandre Ferreira de Souza. 2010. Discografia das obras de Ernesto Nazareth (não

publicada).

7

entre 1908 e 1910, foi gravado “Bambino” de Ernesto Nazareth pelo Grupo de “Bahianinho”, em solo de bandolim e conjunto. A gravação original em 78-RPM, pela gravadora Columbia Records, referencia 12.095 foi relançada no LP/CD "Portuguese String Music 1908-1931" pela Heritage Records (Inglaterra), fabricado na França em 1989. O “Grupo dos Sustenidos” também realizou gravação de solo de bandolim da mesma música em 1912 (Odeon Record, referência 120.144). No mesmo período, foi gravado o “Brejeiro” de E.Nazareth pelo Grupo de “Bahianinho”, em solo de bandolim e conjunto (78-RPM, pela gravadora Columbia Records, referência B-200). No primeiro livro escrito sobre o choro, o carteiro Alexandre Gonçalves Pinto (1936) fez referência aos bandolinistas de sua época, entre 1870 e 1940 (SÁ, 1999). Estima-se que esta informação sobre a maioria dos músicos descritos se limite aproximadamente até a década de 1920. Este livro registrou as primeiras informações sobre os músicos de choro no Brasil em forma de reminiscências do autor, que também era músico do gênero em questão. Registramos, no referido trabalho, informações sobre o bandolinista João Soares (1870 – 1930) que fazia parte do conjunto do flautista Benedicto Bahia. Dentre suas citações de bandolinistas, destacamos: Nadinho do bandolim, Ernesto Cardoso, Nelson Alves (bandolim e cavaquinho), Chico Netto, também funcionário dos Correios, João Martins e Luperce Miranda (1904-1977). Por meio de visita ao acervo do pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, na cidade de Fortaleza-CE, obtivemos as primeiras informações sobre o trabalho do bandolinista João Martins acima citado. Segundo Nirez, o mesmo teria iniciado suas gravações por volta de 1929 pela gravadora Victor. Sá (1999) em sua pesquisa fornece informações importantes sobre a atividade dos bandolinistas no Brasil. Foi constatado que estes músicos freqüentavam dois tipos de salão: do mais modesto ao chamado aristocrático, desde o século XIX. Dessa forma, o bandolim foi tocado nestes dois ambientes distintos e de maneiras diferenciadas. Para a análise da questão, ele desenvolveu um estudo comparativo entre as formas de execução das polcas por bandolinistas italianos e brasileiros. Sua abordagem teve foco no choro e o 8

bandolim como participante em sua concepção e desenvolvimento. Segundo ele, a existência de repertório produzido em fases diferentes caracteriza a música e seu tempo. Não existiria uma diferenciação qualitativa entre o repertório do início do choro e o da atualidade. A tendência em classificar o choro, seja como forma de tocar ou como repertório do tipo “moderno” ou “antiquado”, conduziu, algumas vezes, a restrições na veiculação de uma tradição musical popular. Ao longo da história do choro, no intuito de atender a interesses comerciais particulares, foram adotados tanto a exclusão como a incorporação de tradições. A “invenção” de tradição muitas vezes atende a requisitos comerciais ou individuais. Por exemplo: uma polca de Callado não seria superior nem inferior a um choro de Pixinguinha, e sim produtos de seu tempo e patrimônio da cultura popular brasileira. Sobre as definições do termo tradição, COUTINHO (1999)11 em sua tese de doutoramento Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola, fez a seguinte referência: “Essa distinção pode ser melhor formulada mediante a análise etimológica do termo "tradição" que, por explicitar um sentido simultaneamente substancial e processual, lança luz sobre o problema metodológico do duplo fundamento objetivo e subjetivo - da cultura. A palavra “tradição” deriva do latim: traditio. Do verbo tradere, que significa a ação de transmitir, entregar. Proveniente do direito romano, a expressão denotava originalmente a idéia de transmissão material como, por exemplo, na frase: "per manus traditae glaebae" ("glebas passadas de mãos em mãos") ou a transmissão de um poder ou um direito a outrem, como em “imperium navium legato populi Romani ademisti, Syracusano tradidisti" ("você tirou um legado do povo romano, o comando dos navios, e o entregou a um siracusano"). Mas além da acepção jurídica, o vocábulo traditio sigificava, já na Antigüidade, a transmissão de idéias, ensinamentos, práticas, normas e valores, podendo designar tanto a ação de transmitir, como na frase "pugnae memoriam posteris tradere" ("transmitir à posteridade a lembrança de um combate"), quanto o conteúdo transmitido: "ita nobis majores nostri tradiderunt" ("tal é a tradição que vem dos nossos ancestrais").”

A nomenclatura utilizada para os gêneros musicais cariocas, em especial o choro apresentou, desde seu surgimento, problemas quanto a diversidade de significados. Este fato aconteceu conjuntamente com a crítica social, que divulgava os gêneros e modismos da elite econômica da época. O choro foi apresentado com outras denominações dentre as quais “tango 11

COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Tese de doutoramento ECO/UFRJ. Rio de Janeiro, 1999.

9

brasileiro” ou “polca”. Desde o início do choro, o músico especializado neste gênero, algumas vezes, parece não aceitar a origem e essência do próprio trabalho musical. VERZONI

(2000)

menciona

o

pianista

Ernesto

Nazareth,

que

considerava suas composições como “menores”, ao apresentar-se diante de Artur Rubstein. Nazareth preferiu inicialmente executar composições da música erudita em vez de suas próprias composições. Um exemplo atual foi narrado na Revista Roda de Choro (1998) pelo violonista Maurício Carrilho. Ele relatou sobre uma produtora, a qual não optou pela divulgação do violonista Raphael Rabello como um chorista ou tocador de choros. A partir de então, como solução para esta imposição, Rabello mudou a denominação do gênero e continuou tocando o mesmo repertório. Na mesma revista, Luciana Rabello, cavaquinista e irmã de Raphael, mencionou o caso de um compositor de choro que, ao apresentar sua obra, timidamente se envergonhara por ter produzido algo “convencional”. Este músico concebia sua música como “menor”, no momento presente, assim como Nazareth, no momento passado dando continuidade ao preconceito. Sobre o caso, a musicista expõe seu ponto de vista e afirma como solução à mencionada problemática, que sejam compostos choros, de forma livre e expontânea. A quantidade de músicas seria um fato decisivo para a manutenção e preservação do choro. Em 1964, foi composto o primeiro concerto para bandolim, conjunto regional e orquestra12, de autoria do maestro Radamés Gnattali13 (27.01.1906 – Porto Alegre-RS e 13.02.1988 – Rio de Janeiro). Esta obra, em forma de Suíte foi dedicada a Jacob do Bandolim e gravada pelo mesmo na década de 60. Tendo sido o bandolinista que influenciou toda uma geração de instrumentistas, seu trabalho artístico representou um marco na construção e transmissão de uma cultura que é feita pela oralidade e absorção da cultura popular. Segundo SÁ (1999), é próprio desta cultura a conservação da tradição.

12 Suíte Retratos, composta para bandolim, conjunto regional e Orquestra de cordas dedicada a Jacob do bandolim. 13 O pai de Radamés, Alessandro Gnattali, de ascendência italiana, admirava tanto a música de Verdi, que deu o nome de Radamés e Aída a seus filhos, ambos pianistas ( nomes dos personagens da ópera Aída de Giuseppe Verdi).

10

Fig. 1 - Jacob do bandolim – RJ ( 1918- 1969). Com o advento da rádio, na década de 20, a música popular brasileira teve grande divulgação nacional por meio da indústria fonográfica. Neste período, dentre os demais bandolinistas, destacou-se Luperce Bezerra Pessoa de Miranda, (1904-1977) o Luperce Miranda. Era pernambucano e membro de uma família de músicos de choro formada por Romualdo Miranda, violão, Nelson Miranda, cavaquinho e João Miranda, também bandolinista. Luperce aprendeu bandolim com seu pai, na cidade de Recife-PE e desenvolveu um repertório de composições de sua autoria, de autores da música nordestina e do choro. Miranda migrou de Recife ao Rio de Janeiro em 1927, tendo feito parte do grupo musical “Turunas da Mauricéia”, formado em 1926, em RecifePE. Sobre Miranda, o professor de bandolim clássico, Ugo Orlandi, do Conservatório Giuseppe Verdi de Milão, afirmou que sua técnica era mais enquadrada no conceito de escola do bandolim italiano, que o da dita “escola brasileira”. Por sua vez, Miranda também foi professor de bandolim, além de intérprete e compositor, tendo criado uma Academia de Música, quando residiu no Rio de Janeiro. Vários bandolinistas de renome foram seus alunos, dentre os quais citamos Déo Rian e Evandro do bandolim.

11

Fig. 2: Luperce Miranda – PE ( 1904 - 1977). 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a consolidação do choro e das tradições musicais urbanas do Rio de Janeiro foram identificados os principais nomes do bandolim no Brasil. O início da indústria fonográfica proporcionou a gravação, produção e divulgação dos discos, com o registro histórico dos bandolinistas brasileiros. Com este processo, ficou perpetuado uma forma inicial de interpretação do referido instrumento e seus principais representantes. Os conceitos estéticos foram desenvolvidos e inseridos predominantemente na escola brasileira de bandolim a partir do repertório do choro, originado da fusão dos gêneros europeus e urbanos cariocas no final do século XIX. A compreensão do fato presente depende da análise das relações sociais, históricas e musicais enquanto prática na cultura. Nesse sentido, o sentido auditivo e o pensamento poderão constituir ferramentas para o entendimento do contexto musical. É necessária a identificação das formas nas quais o homem estabelece suas relações e legitima sua contribuição no tempo. O estudo e conhecimento do papel da tradição oral no aprendizado musical, os modos e práticas musicais desta atividade, servirá para promover o desenvolvimento da atividade profissional onde se insere o bandolim. Em face 12

à crescente demanda por publicações e por registros da forma de tocá-lo no Brasil, torna-se eficaz o conhecimento da referida escola instrumental. Do ponto de vista cultural, espera-se que esse estudo contribua com a pesquisa e análise

do

bandolim,

seus

representantes,

sua

história,

perspectivas

metodológicas de seu ensino e que possa servir de base ao desenvolvimento de novas pesquisas úteis à prática profissional.

13

REFERÊNCIAS DIAS, Alexandre Ferreira de Souza. Discografia das obras de Ernesto Nazareth (não publicada). Brasília: 2010. BARBOZA, Marília T. Luperce Miranda: O Paganini do Bandolim. Rio de Janeiro: Da Fonseca, 2004. BARBOZA, Marília T. & Oliveira Filho, Arthur L. Filho de Ogum Bexiguento. Rio de Janeiro: Ed. Mec/Funarte, 1979, 209 p. BORGES, Luís Fabiano Farias. Trajetória estilística do choro: o idiomatismo do violão de sete cordas, da consolidação a Raphael Rabello. Dissertação de mestrado Universidade de Brasília. Brasília: 2008. CÔRTES, Almir. O estilo interpretativo de Jacob do Bandolim. Dissertação de mestrado, UNICAMP: 2006. COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Tese de doutoramento ECO/UFRJ. Rio de Janeiro, 1999. DINIZ, André. Joaquim Callado: o Pai dos Chorões. Rio de Janeiro: Artefato Produto Cultural, 2002, 112 pp. ________________. O Rio Musical de Anacleto de Medeiros – A vida, a obra e o tempo de um mestre do choro. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar , 2007, 143pp. GARDEL, André. O encontro entre Bandeira e Sinhô. Secretaria Municipal de Cultura – Coleção Biblioteca Carioca, v. 42. Rio de Janeiro: 1996. LAVILLE, Christian & Dionne, Jean (1999). A construção do saber. Manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Editora UFMG/Artmed, 1999. LIVINGSTON-Isenhour, Tamara E.; GARCIA, Thomas G. C. Choro. A Social History of a Brazilian Popular Music. Indianapolis: Indiana University Press, 2005, 254 pp. NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. ________________. História e Música – História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. ORLANDI,

Ugo.

Apostila

do

curso

superior

Conservatório Giuseppe Verdi de Milão, 2008. 14

de

bandolim.

Itália:

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