A tradução como trabalho poético

June 1, 2017 | Autor: Alicia Ivanissevich | Categoria: Tradução E Literatura, Tradução literária
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Entrevista Paulo Bezerra

foto MARCIO NUNES/Divulgação

Repetições de palavras, falas ásperas e até deselegantes podem parecer gafes de interpretação aos leitores mais desavisados. Grave engano. Sobretudo quando se trata das obras do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Para o tradutor e crítico literário brasileiro Paulo Bezerra, suprimir palavras ou amaneirar o texto é sinal profundo de desrespeito com o autor. “Estilizá-lo e torná-lo palatável às chamadas regras do bem escrever significa trair uma peculiaridade essencial de seu estilo”, assegura. Aos 76 anos e com mais de 50 obras traduzidas diretamente do russo para o português, Bezerra acaba de concluir O adolescente , o último dos cinco grandes romances da maturidade de Dostoiévski, publicado pela editora 34. Aposentado da universidade, dedica-se agora integralmente à tradução. No momento, encara a Teoria do romance , de Miklhail Bakhtin, que sairá em três volumes – o primeiro já está impresso –, e uma nova tradução da Estética da criação verbal. Ler Dostoiévski conduzido por esse exímio mediador é mergulhar no universo narrativo do autor sem rodeios, sabendo que se respeitam com franca honestidade o estilo literário e as peculiaridades das personagens. Nesta entrevista ao SobreCultura , Bezerra conta um pouco da sua trajetória, destaca a tradução como trabalho poético e fala da ética que deve nortear o tradutor e dos reveses da profissão. Entrevista concedida a Alicia Ivanissevich |sobreCultura | RJ |

Gostaria que nos contasse, de forma breve, como surgiu seu interesse pela língua e literatura russas, e quais as circunstâncias pessoais, históricas e políticas que o levaram a viver e estudar na então União Soviética. Em 1963, eu morava em São Paulo e militava no PCB [Partido Comunista Brasileiro]. O Partido me propôs um curso de formação política de seis meses na escola de formação de quadros do PCUS [Partido Comunista da União Soviética] em Moscou. Era a realização de um sonho. Eu cursava desenho mecânico na Escola Semog e, no dia 16 de agosto desse ano, houve a festa de colação de grau. Recebi o diploma e, no dia 19, viajei para Moscou. Uma vez em Moscou e em contato com a língua russa, percebi que tinha facilidade para entendê-la e daí veio a intenção de estudá-la pra valer. Meses depois, fomos surpreendidos pelo golpe civil-militar de 1964 e, como ficamos sem condições de retornar ao Brasil, o curso que deveria durar seis meses foi estendido para dois anos. Terminado esse período, ingressei no curso de tradução da Universidade Lomonóssov em 1965. Em 1966, comecei a trabalhar na Rádio Paz e Progresso, um segmento da Rádio Moscou dedicado quase exclusivamente a questões políticas. Aí fui tradutor, locutor, autor, entrevistei Gregório Bezerra, Marco Antônio Coelho e Luís Carlos Prestes. A tradução de artigos jornalísticos, combinada com o estudo da língua e da literatura russas, foi uma experiência essencial para minha formação de tradutor. Outra questão fundamental foi o convívio exclusivo com a língua russa falada no dia a dia. Tão logo comecei a trabalhar na rádio, passei a alugar quartos em casas de famílias russas, mesmo tendo meu quarto no alojamento da universidade. O convívio com os russos e com a língua em seu estado natural foi determinante para a aquisição da ple-

na fluência na língua e a assimilação da linguagem coloquial, quesitos de primeira essência sem os quais nenhum tradutor consegue dar conta da tradução das falas das personagens literárias e da oralidade da narrativa. Além disso, esse convívio foi fundamental para conhecer melhor a reali-

O tradutor de texto original é um mediador entre o autor e o leitor de sua tradução, e esta é uma interação entre duas línguas, dois sistemas de códigos linguísticos, duas culturas e – acho

dade soviética, escamoteada tanto nas descrições do Partidão quanto na propaganda soviética. Por meio dos meus senhorios, conheci outras famílias russas, e todas, sem exceção, tinham parentes próximos ou distantes que haviam sido vítimas do stalinismo.

E como foi sua trajetória até chegar a traduzir historiadores e filósofos russos? Qual foi sua primeira obra traduzida diretamente do russo? Na Lomonóssov, estudei língua russa, teoria e prática da tradução técnico-científica e literária, além de literatura russa e disciplinas correlatas. Também assisti a aulas e palestras, na Lomonóssov e no Instituto Gorki, de importantes pensadores russos, como o crítico e historiador da literatura russa Dmitri Likhatchóv, a filósofa Polina Gaidenko, o grande crítico e especialista em Tolstói e Dostoiévski Borís Búrtsov (autor do extraordinário livro A personalidade de Dostoiévski) e de vários outros intelectuais importantes. Em função disso, minha primeira tradução do russo para o português foi um livro de filosofia: Fundamentos lógicos da ciência, do filósofo ucraniano Pável V. Kopnin, publicado no Brasil pela editora Civilização Brasileira, em 1972.

Quando começou a traduzir Dostoiévski? Em que circunstâncias? Bem, comecei a traduzir Dostoiévski quando já havia traduzido cerca de 40 obras para o português, mais de 10 das quais obras de ficção. O primeiro livro de Dostoiévski que traduzi, Crime e castigo, foi também o primeiro que li.

que não exagero –, duas

Quais os problemas, a seu ver, das traduções indiretas?

subjetividades criadoras

O tradutor de texto original é um mediador entre o autor e o leitor de sua tradução, e esta é uma interação entre duas línguas,

A tradução como trabalho poético

dois sistemas de códigos linguísticos, duas culturas e – acho que não exagero –, duas subjetividades criadoras. Na tradução indireta, a mediação se dá entre dois tradutores, o autor é deslocado para a condição de fonte e o leitor só chega a ele pela mediação de um terceiro. Parafraseando Platão, o tradutor de texto indireto é um imitador de terceiro grau. Ao contrário da relação dual entre original e tradução no processo direto, na tradução indireta temos a interação entre três línguas, três sistemas de códigos linguísticos, três culturas. Só esse fato já dá a ideia da diferença que pode haver entre o original e sua tradução indireta e das perdas que inevitavelmente acarreta a versão desse original em uma terceira língua. Estou falando de ficção, e é desta que tomo exemplos. Dostoiévski é o maior artífice das crises do homem. Quando suas personagens entram em crise, esta se manifesta imediatamente na linguagem. Personagens como o epiléptico príncipe Míchkin de O idiota falam não só conforme seu nível de escolaridade, sua cultura, mas igualmente segundo seu estado de saúde mental, e é este que determina a qualidade de sua fala, a qual pode embaralhar-se, ter o ritmo alterado, a sintaxe sinuosa, descontínua, desestruturada. O mesmo ocor­re com a mulher do capitão Sneguirióv de Os irmãos Karamázov, uma doente mental cuja linguagem embaralhada, descontínua e desestruturada traduz o tumulto e a deses­ truturação de sua mente. Encontramos o exemplo mais radical dessa linguagem desestruturada no senhor Golyádkin, doente mental e personagem central de O duplo, cujos ritmo e sinuosidade do discurso traduzem o modo de funcionamento de seu sistema nervoso desestruturado. Em uma perfeita homologia entre o ser e o modo de representá-lo, Dostoiévski nivela personagens e linguagem, revestindo suas obras de uma contundente e nada convencional verossimilhança só possível em realistas peculiares como ele. Pois bem, nas traduções tanto do francês quanto do inglês desaparecem as peculiaridades das falas das personagens dostoievskianas, ou seja, esfumaçam-se as próprias personagens como unidades caracterológicas, e temos um discurso linear, claro e elegante, bem ao gosto daquilo que o grande teórico da tradução Henri Meschonnic chama de “mito francês da clareza”, coisa totalmente oposta a Dostoiévski. Demais, em sua obra são frequentes repetições da mesma palavra pelo narrador e até mesmo por personagens, e eu, por uma questão de respeito ético pela palavra do outro, que considero inviolável, mantenho todas as repetições porque fazem parte de seu estilo.

Muito já se disse sobre o jeito rude e direto da escrita de Dostoiévski. Em vez de embelezar autores clássicos,

O primeiro compromisso do tradutor é o comprometimento ético com a palavra do outro, que é inviolável em quaisquer que sejam as circunstâncias como fizeram outros, o senhor buscou respeitar esse estilo duro e, por vezes, dissonante, ao traduzi-lo diretamente para o português. Gostaria que nos falasse sobre essa escolha estilística. Alguém já disse, acho que um teórico da literatura, que o estilo é o homem. Como especialista em teoria da literatura e sobretudo como tradutor, eu afirmo: o estilo, o ritmo das falas e a forma de sua articulação são o modus vivendi das personagens, sua identidade caracterológica, seu jeito de estar no mundo, até a prova de sua sanidade ou insanidade mental. Dostoiévski apresenta suas personagens em uma espécie de díade individual-social, falando conforme sua pertença a um meio social definido, segundo seu nível de escolaridade, sua individualidade. Ele não doura a pílula de ninguém; uns são brandos, outros duros, outros refinados, outros rudes, dotados de uma linguagem tosca, como de alguém que brotou da terra. Dostoiévski não estiliza, por isso suas personagens falam como são em vida: a dureza ou suavidade de suas falas diz muito de suas reais personalidades.

Sua paixão por Dostoiévski o levou a conhecer São Petersburgo com Crime e castigo em mãos. Como foi essa experiência? Como lhe pareceu a cidade que conhecia até então apenas pela literatura? De fato, minha penúltima visita a Leningrado (hoje São Petersburgo, onde estive pela última vez em 2013) se deu sob o efeito da leitura de Crime e castigo, O duplo e O adolescente, todos ambientados nessa cidade. Percorri as principais ruas que serviram como espaço da ação: Praça Siennáya e adjacências, espaço de parte da ação de Crime e castigo, Rua Gorókhovaya, citada nas três obras, assim como o Konogvardêiskii Bulvar, por onde passaram todos esses heróis

dostoievskianos. Foi uma emoção indescri­ tível: era como se eu estivesse acompanhando as personagens ou sendo acompanhado por elas.

Que tipo de ética deve reger a obra do tradutor? E o que não pode faltar em uma boa tradução? O primeiro compromisso do tradutor é o comprometimento ético com a palavra do outro, que é inviolável em quaisquer que sejam as circunstâncias. Por essa razão, procuro traduzir o discurso do autor tal qual ele é. O tradutor que suprime palavras de uma obra ou amaneira o estilo do autor comete a presunção de se achar superior a ele a ponto de poder “corrigi-lo”. Dosto­ iévski é rude, áspero, deselegante quando a forma o requer; logo, estilizá-lo e torná-lo palatável às chamadas regras do bem escrever significa trair uma peculiaridade essencial de seu estilo.

Como o senhor vê hoje a profissão de tradutor? É mais valorizada do que quando começou, ou não? O que pode ser feito nesse sentido? Durante muitos anos a tradução no Brasil foi considerada ‘bico’. Mas as coisas vêm mudando, sobretudo, depois da lei de 1999, promulgada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que dá ao tradutor de obras de domínio público os mesmos direitos autorais que antes pertenciam ao autor. Isso vem estimulando o surgimento de novos tradutores bem qualificados e o surgimento de traduções de grande qualidade, especialmente de clássicos. Se temos editores que respeitam e valorizam os tradutores, também temos uma grande legião de picaretas do livro, que apenas exploram tradutores e não se preocupam com a qualidade da tradução. Mas já temos cursos de tradução em níveis de graduação e pós-graduação em diversas universidades, o que contribui para valorizar a tradução como atividade criadora. Apesar disso, ainda há muito por fazer.

O senhor conseguiu conciliar suas atividades de docente em três universidades (Uerj, USP e UFF) com as de tradutor por muitos anos. Agora, que está aposentado das aulas e pode se dedicar mais intensamente à tradução, acaba de concluir O adolescente, o último dos cinco grandes romances da maturidade de Dostoiévski publicado pela editora 34. Com mais de 40 obras traduzidas em seu currículo, há algo que ainda gostaria de fazer? Na realidade, são mais de 50 obras traduzidas. Neste momento, estou traduzindo a Teoria do romance, de Miklhail Bakhtin, que sairá em três livros (já saiu Teoria do romance I. A estilística), e retraduzindo a Estética da criação verbal, que sairá em quatro livros, todos pela Editora 34, de São Paulo. Talvez ainda traduza Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévski, naturalmente com outro título.

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