A tradução da memória em Funes, o memorioso de Borges

June 1, 2017 | Autor: Stella Avelino | Categoria: Jorge Luis Borges, Tradução, Memoria
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A TRADUÇÃO DA MEMÓRIA EM FUNES O MEMORIOSO, DE BORGES. Paulo Roberto Barbosa Junior1 Stella Tavares Braga Avelino2

Resumo O presente artigo busca pensar a tradução não como uma simples adaptação, mas como expressão da relação mais íntima da exteriorização da memória - sua transcrição -, usando como base o texto Funes o memorioso de Jorge Luis Borges. No conto, o narrador traduz sua memória para escrita de forma que esta possa ser acessada por outros, tal como o tradutor que adapta o texto de uma língua para outra. No entanto, a tradução do narrador implica traição ao selecionar o material da memória a ser transcrito, limitando a realidade àquilo que julga ser importante. O partilhamento da memória para torná-la pública e a impossibilidade de transcrição dos detalhes caracterizam o conto de Borges onde nem o personagem Funes seria capaz de traduzir integralmente uma memória. Palavras-chave: Tradução; memória; Borges; traduttore traditore; transcrição.

Abstract In this article we propose to think the translation not as a simple adaptation, but as the expression of the closest relationship of memory’s manifestation – your transcription -, based in the text Funes el memorioso by Jorge Luis Borges. In this tale, the narrator translates his memory to the writing, so the memory can be accessed by others, as the translator who adapts the text in a different language. However, the translation of the narrator implies a betrayal when he select the material of the memory to be translated, restricting the reality to what he thinks to be important. The sharing of memory to everyone and the impossibility of the transcription of the details shapes the tale of Borges where even the character Funes wouldn’t be able to translate a complete memory. Key-words: Translation; memory; Borges; traduttore traditore; transcription.

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Estudante de graduação em Letras Tradução Inglês do 4º semestre na Universidade de Brasília – UnB. Estudante de graduação em Letras Português Licenciatura do 5º semestre na Universidade de Brasília – UnB. 2

Ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum (Gaius Plinius Secundus)

O ato de traduzir não é limitado à ação entre línguas, pode também ser dado de forma um tanto mais abstrata. Transcrever uma memória, adaptar lembranças para a escrita, transformar em palavras as imagens do pensamento, também pode significar tradução. O ato de moldar memórias no papel assemelha-se ao ato de adaptar um texto de uma língua para outra, e por isso teorias direcionadas às traduções intra e interlingual, podem também ser aplicadas à tradução da memória. Benjamin e Locke falam sobre a impossibilidade de uma língua perfeita e expõem a complexidade de encontrar equivalentes ao que se quer dizer em línguas distintas. A memória excede a linguagem, como também excede a totalidade do que nos cerca, delimitando apenas àquilo que julga importante, tornando-a sempre objeto da individualidade e da pessoalidade. As duas problemáticas da tradução da memória - incompletude da língua e incompletude da memória - estão presentes no conto de Borges, ora de maneira conjunta, ora separadas em narrador e personagem; onde certas vezes o narrador se depara com a limitação de sua memória, o personagem com a limitação da língua e vice-versa.

1. Tradução da memória Transcrever um pensamento, uma ideia, implica pensar em como se dá essa transcrição, como traduzimos o que está na mente para o papel. Nessa perspectiva, a tradução transcende a finalidade que Walter Benjamin (2008) propôs; não é mais uma relação íntima entre as línguas, e sim a relação íntima da exteriorização da memória. O tradutor então deve encontrar, na língua, a intenção onde se desperta o eco da memória, equivalendo-se ao que Benjamin afirma ser a tarefa do tradutor "Esta consiste em encontrar, na língua para a qual se traduz, aquela intenção da qual é nela despertado o eco do original" (BENJAMIN, 2008, p. 59). No conto Funes, el memorioso de Jorge Luis Borges, o narrador se propõe a contar suas lembranças de Funes, o homem que se lembrava de tudo, para que seja editado um livro com relatos de todos aqueles que conheceram o enigmático personagem, assim afirma "mi testimonio será acaso el más breve y sin duda el más

pobre, pero no el menos imparcial del volumen que editarán ustedes” (BORGES, 1986, p. 51). A primeira definição de Funes apresentada ao leitor caracteriza o personagem como o único homem da terra possuidor do direito de pronunciar o verbo ‘recordar’, ao lembrá-lo “con una oscura pasionaria en la mano, viéndola como nadie la ha visto, aunque la mirara desde el crepúsculo del día hasta el de la noche, toda una vida entera” (BORGES, 1986, p. 51) evidencia a singular capacidade do personagem de enxergar detalhes imperceptíveis devido sua memória excepcional. O narrador se impressiona com o personagem no momento em que o vê pela primeira vez, ao se dar conta de que Funes sequer consulta o relógio ou o céu para informar-lhe a hora; contudo é na segunda vez em que volta a vê-lo que descobre sobre sua peculiar memória. Funes, que até os dezenove anos havia vivido “como quien sueña: miraba sin ver, oía sin oír, se olvidaba de todo, de casi todo” (BORGES, 1986, p. 53-54), se dá conta do quase intolerável presente que o cercava e das memórias mais antigas e triviais, fartas de detalhes, presentes em sua mente após sofrer um simples acidente. No conto, a tradução se dá a partir de duas perspectivas, a tradução da memória do Funes e a da memória do narrador. Segundo Benjamin, “Resgatar em sua própria língua essa língua pura, ligada à língua estrangeira, liberar pela transcriação essa língua pura cativa na obra, é a tarefa do tradutor.” (BENJAMIN, 2008, p. 63). Adaptando essa definição ao que afirmamos aqui como a tradução da memória, a tarefa do narrador é libertar na escrita a língua pura que está presa na memória, para que esta se torne compreensível ao outro. No entanto, Funes traduzia de maneira distinta sua memória. Por se lembrar de tudo “os agoras de Funes eram construídos de ontens” (LUCENA, 2011, p. 91); vivia imerso no passado vinculado à suas próprias memórias, pondo em dúvida até sua capacidade de pensar. Segundo o narrador: “Sospecho, sin embargo, que no era muy capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi inmediatos” (BORGES, 1986, p. 55). Incapaz de pensar, Funes era debilitado duplamente, pois além de sua condição de paralítico, também sofria o eterno lembrar-se, o não esquecimento; tudo que preenchia sua mente não passavam de memórias que o impediam de ir além do próprio passado; como Funes mesmo afirmou: “Más recuerdos tengo yo solo que los que habrán tenido todos los hombres desde que el mundo es mundo”, “Mis sueños son como la vigilia de ustedes” e ainda “Mi memoria, señor, es como vaciadero de basuras”

(BORGES, 1986, p. 54). Como um depósito de lixo, a memória de Funes armazena mesmo os detalhes mais fúteis; os sonhos do personagem equivalem-se à insônia, a vigília da percepção das coisas, onde o descanso só é atingido quando se imagina anulado pela corrente da água. A língua usual não é suficiente para expressar toda a memória do personagem, todos os detalhes, tonalidades, posições e formas presentes em sua memória. Surge a necessidade de uma língua perfeita, onde existiriam palavras suficientes para abarcar todas as peculiaridades. “No sólo le costaba comprender que el símbolo genérico perro abarcara tantos individuos dispares de diversos tamaños y diversa forma; le molestaba que el perro de las tres y catorce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las tres y cuarto (visto de frente). Su propia cara em el espejo, sus propias manos, lo sorprendían cada vez” (BORGES, 1986, p. 55). Locke, citado por Borges no conto analisado, afirma: “A maioria das palavras são termos gerais” (LOCKE, 1999, p. 151). Todas as coisas que existem, por serem particulares, deveriam ter também palavras particulares, conformadas às coisas quanto ao seu significado. No entanto, a maioria das palavras que constituem todas as linguagens são termos gerais, o que não significa descuido por conta do falante, mas a razão e necessidade de associar tais termos a objetos particulares. Ainda segundo Locke, “É impossível que cada coisa particular tenha um nome distinto peculiar [...] é necessário, na aplicação dos nomes às coisas, que a mente tenha ideias distintas das coisas e conserve também o nome particular que pertence a cada uma, com sua peculiar apropriação desta ideia. Encontra-se, porém, além do poder da capacidade humana formar e manter ideias distintas de todas as coisas particulares com as quais nos deparamos [...] se isso fosse possível, ainda assim seria inútil porque não serviria ao principal objetivo da linguagem. Em vão os homens acumulariam nomes das coisas particulares que não lhes serviriam para comunicar seus pensamentos” (LOCKE, 1999, p. 151). Funes, para tentar encontrar equivalentes do pensamento no campo verbal, projeta um idioma análogo ao pensado por Locke - e também por Benjamin, que o denomina “língua pura” - mas o descartou por parecer demasiado geral, excessivamente ambíguo. Porém, “do mesmo modo que os cacos tornam-se reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, assim também original [memória] e traduções [transcrições] tornam-se reconhecíveis como fragmentos de uma linguagem maior”

(BENJAMIN, 2008, p. 61-62). Em toda transcrição de memória permanecerá o incomunicável, a memória que não pôde ser descrita no papel. O que Funes busca é exatamente esse devir da memória para sua exteriorização; similar ao que o narrador também busca como tradutor, recuperar a “língua pura” configurada no movimento da escrita, desvinculá-la da prisão do pensamento, da memória, que nada mais exprime além da privada expressão e criatividade.

2. Traduttore, traditore A complexidade existente na tradução da memória, tanto do narrador quanto de Funes, representada pela generalidade dos termos presente no campo verbal, evidencia a expressão traduttore, traditore. Pensar que o autor da memória é também o traidor do seu próprio pensamento, da sua transcrição, por causa da impossibilidade de encontrar na língua verbal aquilo presente no campo não verbal, implica pensar que mesmo nós, a todo tempo, somos traidores de nós mesmos. Funes pretendia, ao adaptar para palavras suas memórias, uma tradução equivalente à tradução literal – palavra por palavra –; buscava traduzir tudo em seus mais complexos detalhes, mesmo que essa tradução lhe custasse um dia inteiro, como algumas vezes a havia feito: “Dos o tres vezes había reconstruido um día entero [...] pero cada reconstruccíon había requerido um día enterro” (BORGES, 1986, p. 54). “Sabía las formas de las nubes australes del amanhecer del treinta de abril de mil ochocientos ochenta y dos y podia compararlas em el recuerdo com las vetas de um libro em pasta española que sólo habían mirado uma vez y com las líneas de la espuma que um remo levanto em el Río Negro la víspera de la acción del quebracho. Esos recuerdos no eran simples; cada imagem visual estaba ligada a sensaciones musculares térmicas, etc. Podia reconstruir todos los sueños, todos los entresueños” (BORGES, 1986, p. 54). Possuidor de tantas memórias repletas de detalhes inimagináveis, contudo, possuidor também da incapacidade de expressar essas memórias, Funes vive constantemente em conflito consigo mesmo. Apesar dos sistemas que tenta criar, como o de original numeração, onde um signo corresponde verbalmente a apenas uma palavra, e o inútil catálogo mental de todas as imagens de sua lembrança; descobre-se falho em suas tentativas. Falho como é também o narrador que se perde em suas próprias memórias. Falho como nós que jamais nos recordaremos de um fato por

completo. Falho como a língua que é incapaz de expressar com fidelidade a completude de nossas memórias. A traição vem com a impossibilidade da escritura, com a aporia de uma linguagem possível para expressar o impossível contido na memória, com o devir de uma linguagem de lacunas, com a diferença de uma mesma memória quando em contato com o outro – a différance de Derrida –, com a intraduzibilidade da memória. Segundo Benjamin (2008, p. 64-54), a tradução mostra-se intraduzível não por causa do seu peso ou sentido, mas, inversamente, devido à excessiva leveza com a qual o sentido a toca de maneira extremamente fugida. Similar à memória que se torna intraduzível por causa do sentido nela expresso, do significado que aquela específica seleção de fatos guardados representa para seu autor; da inexplicabilidade de, ao contar certa memória, tentar justificar o porquê da singular seleção de acontecimentos a serem guardados. De acordo com Paul Ricoeur (2007, p. 107), a memória parece ser inicialmente particular, não se pode transferir as lembranças de um para a memória do outro; enquanto minha, a memória é um modelo de minhadade, de possessão privada, para todas as experiências vividas por mim. Transcrever uma memória, torná-la acessível ao outro, implica desfazer-se da possessão de algo até então privado. A memória deixa então de ser própria do individual do próprio autor, para ser individual daquele outro que a assume. Aqui já construímos então a tradução de nossas memórias. Tentar transcrever as diversas leituras e releituras guardadas em nosso pensamento ao longo da elaboração desse trabalho nos possibilitou tratar o tema de forma prática. Lidamos com toda a complexidade de tentar encontrar no emaranhado da mente as palavras precisas para preencher cada lacuna dada pela língua. Cada espaço vazio da memória busca a completude inalcançável da linguagem, da grafia emendada à exteriorização daquilo guardado de modo tão pessoal e abstrato que nos parece ser quase impossível dar-se no papel. O tradutor da memória é no fundo o transcritor de si mesmo, da sua individualidade evidenciada em cada memória, em cada fato inexplicavelmente selecionado para ser arquivado em si. Exteriorizar essa individualidade requer abdicar da própria minhadade da memória para que ela se torne posse do outro. O narrador em Funes el memorioso encontra seu primeiro embate ao usar a palavra “recordo”. Ousar pronunciar “recordar” quando se possui memória falha e enquanto descreve um homem que de tudo lembrava, e não encontrar palavra que seja capaz de expressar esse sentimento de incompletude, reflete uma situação

desconfortável para o narrador. Por outro lado, Funes cercado pelo eterno embate consigo mesmo ao possuir todas as mais ricas memórias, sobre tudo aquilo onde algum dia pousou seus olhos, e ser impedido pela linguagem de exteriorizar todas essas memórias agrupadas a inúmeros sentimentos e sentidos. Tanto narrador quanto personagem sofrem a incapacidade de colocar suas memórias em páginas, apesar da existência incontáveis palavras. Tudo, aqui, não é suficiente para completude da memória; e nem mesmo a memória é suficiente para a completude dos momentos ao nosso redor.

Referências BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Tradução de Karlheinz Barck et al. Revisão de Johannes Kretschmer. In: CASTELLO BRANCO, Lucia. (Org.).Cadernos Viva Voz, estudos sobre tradução. Belo Horizonte: UFMG/Laboratório de edição, 2008. Disponível em: . BORGES, Jorge Luis. Ficciones: El aleph, el informe de brodie. Barcelona: Biblioteca Ayacucho, 1986. LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. São Paulo: Editora nova cultural, 1999. LUCENA, Sarah Catão. Funes, o arquivista da memória: Reflexões sobre memória e esquecimento na contemporaneidade. Baleia na rede: Estudos em arte e sociedade. São Paulo, v.1, n. 8, p. 90-96, 2011. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

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