A Tragédia enquanto superação da Epopeia na arte poética de Aristóteles

June 14, 2017 | Autor: Alexandre Silva | Categoria: Philosophy, Poetics
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A TRAGÉDIA ENQUANTO SUPERAÇÃO DA EPOPEIA NA ARTE POÉTICA DE ARISTÓTELES Davi Galhardo Oliveira Filho 1 Alexandre Wellington dos Santos Silva 2 RESUMO: Detentor de uma obra vastíssima que ainda carece de tradução em sua totalidade (ou o que sobrou desta) para a língua portuguesa em pleno Séc. XXI, Aristóteles é considerado juntamente com Platão um dos maiores expoentes da Grécia Antiga. É tido também, em meio a diversos assuntos, como precursor da Historiografia Filosófica, assim como do que hoje se concebe como Crítica Literária. Sobre a primeira questão encontramos subsídios em sua Metafísica, e sobre a última em sua Poética. Em verdade, em Peri Poietikés encontramos XXVI[I] capítulos, que embora se propusessem a analisar a totalidade da Poiesis, se caracterizam de fato como uma Teoria da Tragédia, mesmo que incompleta. O último capítulo de tal obra converge análises acerca da Epopeia e da Tragédia, e afirma que a última supera a primeira. Pretende-se nesta curta análise, salientar na perspectiva do Estagirita, em que sentido tais afirmações se fazem válidas. Palavras-chave: 1. Estética 2. Crítica Literária 3. Poética RESUME: Holder of a vast work that still needs translation in its entirety (or what's left of it) into Portuguese in full century XXI, Aristotle is considered along with Plato one of the greatest exponents of ancient Greece. It had also, in the midst of various subjects, as a precursor of Philosophical Historiography, as well as of what is now conceived as Literary Criticism. On the first issue we encountered subsidies in his Metaphysics, and the last in his Poetics. Truly, Peri Poietikés find XXVI [I] chapters that although conspired to analyze the entire Poiesis are characterized indeed as a Tragedy Theory, even if incomplete. The last chapter of this work analyzes converge on the Epic and Tragedy, and claims that the latter outweighs the former. It is intended in this short analysis, point out the prospect of Stagirite, in what sense such statements are made valid. Keywords: 1. Aesthetics 2. Literary Criticism 3. Poetic

1Graduando em Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID. [email protected] 2 Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí. [email protected]

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INTRODUÇÃO Com Aristóteles aprendemos o quão importante é o conhecimento sobre os mais diversos campos do saber. Nascido em 384 a. C, na cidade de Estagira — que lhe renderia o pseudônimo sob o qual foi e continua a ser citado por muitos: O Estagirita —, aos dezoito anos ingressou na Academia de Platão, de onde só saiu após a morte do mestre, para posteriormente fundar sua própria escola, com seus próprios ensinamentos e métodos. Embora não nos ocupemos aqui de fornecer uma biografia completa de Aristóteles antes de passarmos a análise de sua obra — visto que tantos manuais já se ocuparam desta tarefa —, cabe em todo caso, ao leitor menos familiarizado com o pensador grego aqui em foco, a sugestão de algumas obras. SOUSA (1966) menciona-o como suficientemente maduro aos dezoito anos de idade ao escolher a Academia filosófica de Platão ao invés da Escola Retórica de Isócrates3 por ter objetivos intelectuais já bastante definidos, GAZONI (2006) por sua vez nos permite pensar que o pensamento de Aristóteles encadeiase numa estrutura Una, ou seja, aquilo que está dito na Ética a Nicômaco deverá valer também para a Poética, por exemplo. Em contrapartida CORBISIER (1984) subverte o quadro com sua análise de matriz Hegeliana, ao afirmar que as partes do sistema filosófico proposto pelo Estagirita não se relacionam pelo fato da sua lógica não ser dialética. Salvo as diferenças, o fato é que os citados autores dispõem de valorosas contribuições para um panorama geral do pensador grego em questão, cada um à sua maneira. Sabemos que Aristóteles é tido como o primeiro historiador da filosofia, pois considerava de fundamental importância o conhecimento daqueles que o antecederam. De acordo com a tradição, escreveu cerca de 150 obras, contendo diversos tomos, sobre os mais diversos assuntos, como: Lógica, Metafísica, Física, Biologia, Psicologia, Política, Ética, Economia, Retórica e Poética. 3Supostamente

outro discípulo de Sócrates que fundou uma escola, e que teria vivido entre 436 a.C. - 338 a.C. ou 336 a.C. Cf. O trabalho de Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio Isócrates, Retor Socrático (2008).

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Justamente sobre o último campo desta vasta obra anteriormente citado (Poética), é que queremos tratar neste artigo. Enquanto seu Mestre Platão pouco crédito deu a tal arte, o Estagirita preocupou-se em estudá-la e comentá-la seriamente, disso resultou a obra: Peri Poietikés, ou seja, Arte Poética. Nas poucas linhas que se seguem encontra-se um breve estudo acerca da Tragédia em confronto com a Epopeia na perspectiva de Aristóteles. Para tanto, dividiu-se a estrutura do texto, visando uma perspectiva panorâmica sobre a discussão, nos seguintes pontos: história do texto, resumo geral do texto, que é tragédia e epopeia? Por que a tragédia supera a epopeia? e algumas rápidas considerações finais. Os quais passaram a apresentar daqui por diante. 2 - História do Texto O ano e motivos que teriam levado Aristóteles a redigir a Poética são incertos. No entanto, provavelmente tal obra fora concebida após Problemas Homéricos, Vitórias Dionisíacas, Didascálias e Sobre os Poetas, por volta de 335 e 323 a. C, ou seja, no final de sua vida, na cidade de Atenas.4 Em verdade, a Poética passou quase que despercebida por toda a Idade Média Ocidental, que estava submersa na Lógica e na Metafísica, preocupadas ambas em objetos clássicos do período: o destino da alma, natureza de Deus, mundo etc., isto de Santo Agostinho (354–430) à São Tomás de Aquino (1225–1274). Mas, ao que tudo indica fora minimamente estudada entre os Árabes, pois Avicenca (980–1037) 5 e Averróis (1126–1198)6 parafrasearam algumas passagens do texto 4CARDOSO,

Zélia de Almeida. Prefácio. In: ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993. págs. 07-14. 5A obra de Avicenca destacou-se na filosofia e sobretudo na Medicina, este é sem dúvidas um dos autores que mereceriam um estudo bem mais aprofundado, tendo em vista sua complexidade e originalidade. Destaca-se entre os Filósofos Árabes, a quem a Escolástica é devedora. Cf. os trabalhso do professor Jamil Ibrahim Eskandar. 6A parte central da doutrina do Averroísmo que fora extraída do pensamento de Aristóteles consiste em uma doutrina da dupla verdade, ou seja, uma verdade da racionalidade e uma verdade de fé: que poderiam se opor sem se anular, o que não geraria nenhum problema para a filosofia e/ou teologia.

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formando um compêndio, conforme consta numa versão árabe que ainda se conserva na Biblioteca Nacional de Paris.7 Dos manuscritos que sobreviveram até os nossos dias com o título de Arte Poética, ao que tudo indica há uma incompletude, muitos estudiosos afirmam que estes são apenas uma parte de uma publicação maior, que para alguns foi destruída ainda na Antiguidade Tardia/Idade Média, e para outros jamais fora escrita, dando margem para extensas discussões no âmbito acadêmico e literário. Para considerarmos um exemplo, no filme O Nome da Rosa, adaptado para o cinema por Jean-Jacques Annaud em 1986 a partir do livro de Umberto Eco (Il nome della rosa), o mistério sobre o livro de Aristóteles aparece como fio condutor da trama. O conteúdo? Uma segunda parte onde o Estagirita teria aprofundado suas análises a respeito da Comédia, dos Cantos, do Ditirambo e provavelmente da música instrumental. Mas, o que nos interessará por hora é a análise do material do qual dispomos de fato. Segundo Eudoro de Souza (1966), a história do texto impresso e de suas versões traduzidas para o latim e idiomas modernos, tem como referência três fontes de manuscritos, a saber: Parisinus, Riccardinus e a Versão Árabe8, esta última fora frequentemente ignorada, e só reutilizada na aurora do Séc. XX. Com estas rápidas considerações acerca do percurso histórico pelo qual passou o livro do Estagirita, estamos aptos ao mergulho nas suas linhas propriamente ditas. À maneira de Aristóteles: começaremos com as coisas primeiras. 3 – Resumo Geral do Texto Para situarmos nossa discussão, apresentaremos em linhas gerais 7Cf.

SOUSA, Eudoro de. Introdução. In: ARISTÓTELES. Poética. Biblioteca dos Séculos. Porto Alegre: Editora Globo, 1966. págs. 01-52. 8As considerações de Eudoro de Sousa são esclarecedoras para compreendermos as diferenças entre tais versões, vejamos: “O Parisinus é o códice mais completo e menos corrupto; o Riccardinus, se bem que mutilado (…) representa, todavia um ramo que se insere na tradição em data, pelo menos três séculos anteriores à redação do Parisinus, e (…) corrige-o e completa-o em muitos lugares.” (SOUSA, 1966. p. 03). A descoberta da versão árabe enfim, reabilitou em muitos pontos o Riccardinus, e nesse sentido é considerável o seu valor de crítica textual. Há quem tenha tentado atingir a versão utilizada no Liceu a partir desta versão, tal como fizera David Samuel Margoliouth (1858 – 1940).

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uma síntese da obra que aqui se pretende analisar, ou seja, A Poética de Aristóteles, que a saber, inicia-se com os seguintes dizeres: Hablemos de la poética en sí y de sus especies, de la potencia propia de cada una, y de cómo es preciso construir las fábulas si se quiere que la composición poética resulte bien, y asimismo del número y naturaleza de sus partes, e igualmente de las demás cosas pertenecientes a la misma investigación, comenzando primero, como es natural, por las primeras.(ARISTÓTELES, 1974, p. 126) No sentido até aqui exposto, a continuidade do capítulo I e o percurso que se estenderá até o capitulo V tratará da essência da Poesia/Poética, de seus gêneros, de suas origens psicológicas e ainda de sua aurora. Nesse sentido, cabe ressaltar que o que Aristóteles entendia como essência da Poesia subordinava todos os demais pontos da construção da Tragédia, ou seja, a partir do mito, da fábula, da peripécia – dependo da tradução – é que se construíam as narrativas poéticas. A lição principal da poética deve ser compreendida da seguinte forma: Aristóteles afirma com notável insistência, a subordinação dêstes (sic) elementos ao mito, quer dizer, à autêntica realidade imitada pelo poeta digno dêste (sic) nome, que “há de ser mais efabulador que versificador” (50 b), e não de alguns homens que dêste (sic) e doutro modo exprimem o próprio pensamento e o próprio caráter. No texto grego da Poética figura um só vocábulo para designar a ação a imitar e a ação imitativa: é a palavra μύθος (…). (SOUSA, 1966. p. 57) Nos capítulos VI ao XXII verificamos na Poética uma verdadeira teoria da tragédia – embora incompleta; A seguir, nos capítulos XXIII e XXIV, o Estagirita apresenta-nos fragmentos de uma teoria da epopeia;

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outros assuntos diversos aparecem no capítulos XXV, e algumas refutações às críticas que a tradição apresentou à poesia também são feitas pelo Filósofo, talvez uma possível resposta à Platão, que procurou ao longo de toda A República demonstrar os perigos que a poesia oferecia, indo aos extremos no livro X da obra, onde chega a banir a mesma da sua cidade ideal. Como podemos observar na seguinte passagem: Por consiguiente, las censuras se reducen a cinco especies; pues o se imputam cosas imposibles, o irracionales, o dañinas, o contradictorias, o contrarias a la corrección del arte. Las soluciones han de buscarse de acuerdo con la enumeración citada. Y son doce. (ARISTÓTELES, 1974, p. 235) No último momento, ao capítulo XXVI, o assunto do qual tratou Aristóteles, foi procurar confrontar a Tragédia e Epopeia, confronto do qual a primeira sai vitoriosa sobre a última. Assim, visando compreender em que sentido tais afirmações se justificam, vejamos agora em que consistem as observações do Estagirita a respeito de ambas as formas literárias, sob um ponto de vista minimamente detalhado. 4 – Que é Tragédia e Epopeia? A imitação é segundo Aristóteles natural aos seres humanos. O nascimento da poesia9 tem, portanto a mesma origem: a imitação, e ainda, tem por intuito comprazer os mesmos. Ora, mas quem imita, necessariamente imita algo, portanto, a arte poética realizada por seres humanos, imita os próprios seres humanos, não em suas particularidades, mas as ações humanas. A poesia trágica imita homens superiores, e com isso devemos entender: homens que atingiram um grau de humanização mais elevado do que os demais, realizaram grandes feitos, envolveram-se em grandes honrarias e/ou desgraças, 9A

origem da poesia trágica despertou o interesse de diversos intelectuais posteriores, do calibre, por exemplo, de Friedrich Nietzsche. Cf. O nascimento da Tragédia (1871)

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enquanto a comédia imita homens inferiores, em suma: menos destacados. Como podemos observar na passagem que se segue: Es, pues, la tragedia imitación de una acción esforzada y completa, de cierta amplitud, en lenguaje sazonado, separada cada una de las especies [de aderezos] en las distintas partes, actuando los personajes y no mediante relato, y que mediante compasión y temos llevan a cabo la purgación, de tales afecciones. Entiendo por ´´lenguaje sazonado´´ el que tiene ritmo, armonía y canto, y por con ´´con las especies [de aderezos] separadamente´´, el hecho de que algunas partes se realizan sólo mediante versos, y otras, en cambio, mediante el canto. (ARISTÓTELES, 1974, p. 145) Segundo Aristóteles, as partes constitutivas da Tragédia são seis, a saber: o mito (fábula), os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo e o canto (melopeia). Vejamos em que consiste cada uma destas. A fábula é a pedra-de-toque da tragédia, sua alma, e consiste numa ação, ou melhor, na imitação desta, num mito. Tal afirmação é imanente ao longo da exposição feita na Poética. Por carácter devemos entender aquilo que nos permite determinar aqueles que praticam uma ação, pois, na medida em que a personagem pratica uma ação X, podemos determinar o seu carácter. Vejamos: “Y los personagens son tales o cuales según el carácter; pero, según las acciones, felices o lo contrario. Así, pues, no actúan para imitar los caracteres, sino que revisten los caracteres a causa de las acciones.” (Idem, p. 148). O pensamento é aquilo que por intermédio das palavras, faz a exposição da vontade. “'(...) pensamento, a todo aquello em que, al hablar, manifestam algo o bien declaran su parecer.” (Ibidem. p. 147). A elocução é, por conseguinte, o conjunto justaposto em versos, mediante a escolha dos termos.

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A respeito do espetáculo, o Estagirita oferece-nos considerações curiosas, que transcreveremos na íntegra, para evitar possíveis equívocos na interpretação de seu pensamento: (…) el espetáculo, em cambio, es cosa seductora, pero muy ajena al arte y la menos própria de la poética, pues la fuerza de la tragedia existe tambien sin representación y sin actores. Además, para el montaje de los espetáculos es más valioso el arte que fabrica los trastos que el de los poetas. (Ibidem, p. 151) Por fim e não menos importante temos a melopeia (canto), que é a expressão musical da poesia, que Aristóteles considerou inclusive como o principal ornamento. No que diz respeito a tragédia, podemos dividi-la ainda em sua composição, da seguinte maneira: prólogo, episódio, êxodo (saída) e canto de coro. Os quais não nos deteremos detalhadamente nesta ocasião. Dito isto, a partir destas considerações até aqui realizadas, damos por citados os principais pontos que Aristóteles considerou a respeito da poesia trágica em sua Arte Poética. Passaremos agora a considerar, mesmo que de maneira bastante panorâmica, a Poesia Épica, que Aristóteles considerava regida pelas mesmas leis da Poesia Trágica. Ou seja, a poesia épica e a poesia trágica se assemelham – de saída – em muitos pontos. A Epopeia apresenta longa estrutura, uma ação inteira e completa, com: inicio, meio e fim. Mas, não deve confundir-se com a História. Justamente por respeitar tal noção básica é que a poesia de Homero se destaca dentre todos os poetas, como observamos nas seguintes palavras do discípulo de Platão: (...) por eso, como ya hemos dicho, también en esto puede considerarse divino a Homero comparado com los otros [poetas], porque tampoco intentó narrar en sua poema la guerra entera, aunque ésta tenía principio y fin; pues la fábula habría sido

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demasiado grande y no fácilmente visible en conjunto, o bien, guardando mesua en la extensión, la habría complicado por la variedad excessiva. Tomó, pues, sólo una parte, y usó muchas otras como episodios, por ejemplo el Catálogo de las Naves y otros episodio que intercala en su poema. (Ibidem, p. 216-217) Os demais poetas, ao realizarem suas obras, analisaram uma pessoa, época ou longa ação. Disso resulta que da Illíada e Odisséia só se podem extrair uma ou duas tragédias de cada uma, enquanto das demais Epopeias de outros Poetas este número alarga-se consideravelmente. Frente às considerações realizadas, cabe observar ainda que a fundamental diferença entre a epopeia e a tragédia se da inicialmente na sua extensão e na métrica. Por exemplo: o verso heroico é o mais adequado à poesia épica, enquanto a tragédia obedece a uma lógica estrutural diferente, mais compacta, gerando a catarse mais rapidamente. Ainda assim, Homero é tido como digno de louvor na perspectiva do autor da Poética, a saber, o próprio Aristóteles. Vejamos agora alguns exemplos práticos. Homero (928 – 898 a.C) e Hesíodo (750 – 650 a.C.) estavam vinculados a uma outra tradição de transmissão de saberes: a oralidade. Odisséia por exemplo é um poema que fora construído para ser cantado pelo Rapsodo – que conforme a tradição eram os poetas/cantores que iam de cidade em cidade antes do advento da escrita, difundir as epopeias e consequentemente educar os povos. Vinte e quatro cantos10 compõem a obra que narra a dramática tragetória de Odisseu para retornar a sua cidade Ítaca após o fim da guerra Tróia – que haviam durado dez longos anos, conforme a descrição na Íliada –, e sua renúncia aos deuses do monte olimpo, dez anos depois. Façamos as contas: dez anos na guerra em Tróia somados a mais dez anos de viagem contabilizam obviamente vinte anos longe de casa, para Odisseu. Este quadro justifica o fato do reconhecimento 10Note-se

a assertiva no termo que as traduções para a língua portuguesa utilizam, justamente: cantos.

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de Odisseu por seus familiares se dar apenas no canto XXIII, enquanto em Édipo Rei por exemplo, é possível um reconhecimento mais imediato: Ulisses, o valor que, da alva e nobre Helena a pró, nove anos despregaste, Varões tantos rendendo em graves prélios, Ílion por teus conselhos derrocada: Como! nas tuas possessões recusas A insolentes punir! Ânimo, filho; O Alcimides verás como te é grato.” E a fim de comprovar o esforço dele E do excelso Telêmaco, a vitória Inda balança, e em resplendente poste, A revoar, qual andorinha, pousa (…) Em rede caem de estendidas asas, Triste poleiro e cama; assim, por ordem Elas em laços, curto esperneando. Cessam de palpitar estranguladas. Ao vestíbulo e átrio, a sevo bronze, Ventas e orelhas a Melântio cortam, Lançam-lhe os genitais a cães famintos, Pés decepam-lhe e mãos. — Completa a obra, Vão-se purificados ao Laércio, Que determina: “Salutar enxofre Traze e fogo, Euricléia; defumada Seja a casa. Ao depois a vir exortes A rainha e as escravas.” — Mas a velha: “Otimamente, filho meu, discorres; Outras vestes porém dar-te-ei primeiro: Decoroso não é que em teu palácio Forres de andrajos os robustos membros.” Insta o senhor: “O fogo é já preciso.” Fogo e enxofre sem réplica ela trouxe. Com que Ulisses defuma a sala e o pátio. Sobe a ama de novo e intima as ordens: As servas em tropel sustendo fachos, Ledas em torno, abraçam-no e saúdam, Beijando-lhe a cabeça e as mãos e espáduas; E ele, que n’alma as reconhece, um doce Desejo tem de choro e de suspiros. (HOMERO, 2009. p. 244) (Grifos nossos). Percebemos como na epopeia existe uma gama de detalhes que a

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enriquecem, mas em contrapartida tornam a mesma bem mais extensa, o ponto de vista de Aristóteles sobre isto é conhecido: ele valoriza a justa medida, conforme observamos em suas reflexões sobre a Ética, por exemplo. A tragédia aos seus olhos parece, portanto, melhor se aproximar do seu ideal de Belo, a seguinte passagem ilustra o cerne da discussão que estamos tentando traçar. Vou-me embora, sim [dizia Tirésias]; mas antes quero dizer o que me trouxeaqui, sem temer tua cólera, porque não me podes fazer mal. Afirmo-te, pois: o homem que procuras há tanto tempo [ó Édipo] por meio de ameaçadoras proclamações, sobre a morte de Laio, ESTA AQUI! Passa por estrangeiro domiciliado, mas logo se verá que é tebano de nascimento, e ele não se alegrará com essa descoberta. Ele vê, mas tomar-se-á cego; é rico, e acabará mendigando; seus passos o levarão à terra do exílio, onde tateará o solo com seu bordão. Ver-se-á, também, que ele é, ao mesmo tempo, irmão e pai de seus filhos, e filho e esposo da mulher que lhe deu a vida; e que profanou o leito de seu pai, a quem matara. Vai, Édipo! Pensa sobre tudo isso em teu palácio; se me convenceres de que minto, podes, então, declarar que não tenho nenhuma inspiração profética. (SÓFOCLES, 2013. p. 28) Em um único, objetivo e simples parágrafo todos os personagens da Tragédia tem suas vidas modificadas. Há enfim o esperado reconhecimento. É neste momento que ocorre o que Aristóteles chamou de kátharsis, ou seja, o impacto causado pelo mundo real encarado em si mesmo, gerando um esvaziamento dos sujeitos, uma espécie de purificação das almas do público. 5 - Por que a Tragédia supera a Epopeia?

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Diante da argumentação traçada por Aristóteles até o capítulo XXVI podemos fazer a seguinte questão: entre a poesia épica e a poesia trágica, qual se apresenta como superior? Os inúmeros elogios feitos a Homero pelo Estagirita – que o concebe em muitos pontos como próximo da perfeição em suas obras – poderão levar o leitor mais apressado a uma resposta equivocada sobre a questão. De acordo com Aristóteles a poesia (imitação) que mais agrada é aquela que é menos vulgar; Ora, então aquela que imita a tudo não se dirige aos melhores espectadores, pois estes não se interessam por homens e ações inferiores (vulgares), mas sim, por homens e ações superiores. Neste ponto devemos levar em consideração o momento histórico de onde Aristóteles ecoa: uma sociedade escravista. Observemos a questão um pouco mais detalhadamente: no período de Aristóteles o vulgo considerava que a Epopeia destinava-se ao público mais elevado e digno da mesma, enquanto a Tragédia destinava-se as almas mais simplórias, e, portanto a poesia trágica era tida como inferior, o que supostamente se justificava pela má encenação dos atores da época nas tragédias. Disso resulta: 1) A tentativa de eclipsar a Tragédia em favor da Epopeia é inválida, posto que a arte do poeta não se confunda com a do ator. 2) Também as Rapsódias são passíveis do exagero na gesticulação ou da falta deste (que por sua vez comprometeria a apresentação da mesma). 3) A existência da gesticulação não caracteriza a reprovação da encenação, se assim o fosse, o que seria da dança? Diante deste quadro, Aristóteles observa que a poesia trágica pode perfeitamente alcançar sua finalidade ´´(...) mediante compasión y temor llevan a cabo la purgación [catarse]11 de tales afecciones´´ (ARISTÓTELES, 1974. p. 145), tal como a Epopeia, mesmo sem recorrer a movimentos, pois a poesia trágica, pelo simples fato de ser lida, pode engendrar no público todas as suas qualidades. Como nota-se a tragédia é mais elevada do que a epopeia do ponto 11A

discussão sobre o(s) conceito(s) de Catarse em Aristóteles é complexa. Cf. GAZONI, Fernando Maciel. Introdução. In: A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2006. págs. 10-29.

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de vista de Aristóteles por que além de conter todos os elementos desta, ainda dispõe também da melopeia e do espetáculo cênico. Para além dos motivos já mencionados, a tragédia é mais unitária do que a epopeia, visto que desta última podemos extrair tragédias, enquanto das tragédias não se pode tirar nem por um novo elemento. Vale citar ainda, o quão prolixo seria a tentativa de estender uma tragédia aos parâmetros de Epopeia. Homero é louvado por Aristóteles pela composição da Ilíada e da Odisseia, que são constituídas de ações múltiplas, todas elas bastante extensas, e do ponto de vista do autor: quase perfeitas. Mas, ainda assim a Tragédia supera a Epopeia pelas vantagens diversas – que já expomos – e pelo fato de que consegue arrancar dos espectadores o fim último a que se propõe, em menor tempo. Ou seja: a poesia trágica (a tragédia) tem tudo o que a poesia épica (e ainda mais), sua objetividade permanece a mesma, tanto ao ser representada, quanto ao ser lida, e com menor extensão atinge o fim último, ou seja: a catarse, leia-se: purificação, evacuação, purgação da alma etc., permitindo maior deleite de forma mais certeira, ou seja, em um espaço de tempo menor e com a mesma intensidade que a Epopeia. Considerações Finais Com esta pequena ode à Poética de Aristóteles esperamos satisfazer a preocupação inicial: demonstrar em que sentido a Poesia Épica e a Poesia Trágica podem ser justapostas, e qual dentre ambas é digna de ser considerada como superior a outra segundo Aristóteles, em que medida, e em que condições. A conclusiva que chegamos é que o esforço que Aristóteles realiza para dar um grau de cientificidade às reflexões sobre a arte representa uma iniciativa revolucionária para a história do pensamento. A arte contemporânea, que se destituiu dos conceitos, sobretudo daquele de Belo nos dias atuais, ainda assim deve o seu fazer em grande parte às análises do filósofo de Estagira. Lamentamos a possibilidade - ou quase certeza? - acerca do segundo livro da Poética de Aristóteles, contendo a Comédia, que ao que tudo indica se perdeu. E que inviabiliza nossas reflexões acerca desta forma de expressão artística tão carente de arcabouço teórico.

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Espera-se ainda, que os apontamentos aqui realizados sejam satisfatórios no que diz respeito à discussão, que obviamente não deve encerrar-se nestas poucas linhas, mas sim transbordar para tantas outras. Pela densidade de sua vasta obra, Aristóteles é um autor que precisa ser frequentemente revisitado. O convite a esta aventura fica aqui em aberto. REFERÊNCIAS CONSULTADAS ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. São Paulo: Ars Poética, 1993. ______. Poética de Aristóteles. Trad. Valentín García Yebra. Edición Trilíngue. Biblioteca Románica Hispánica. Madrid: Editorial Gredos, 1974. CARDOSO, Zélia de Almeida. Prefácio. In: ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. São Paulo: Ars Poética, 1993. págs. 07-14. CORBISIER, Roland. Introdução à Filosofia. Tomo II. Parte Primeira. Filosofia Grega. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. DESTRÉE, Pierre. A Comédia de Aristóteles. Revista Organon. N. 49. JULDEZ. Porto Alegre: 2010. págs. 69-94. HOMERO. Odisséia. Trad. Manoel Odorico Mendes. Disponível em < http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/odisseiap.pdf > Acesso em 13 JUL 2015. GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2006. PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. SOUSA, Eudoro de. Comentário. In: ARISTÓTELES. Poética. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. págs. 473-502. ______. Introdução. In: ARISTÓTELES. Poética. Biblioteca dos Séculos. Porto Alegre: Editora Globo, 1966. págs. 01-52. SÓFOCLES. Édipo Rei. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2013.

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