A transferência da corte e os impactos na misericórdia do rio de Janeiro (1808-1822)

July 12, 2017 | Autor: Renato Franco | Categoria: History, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
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Descrição do Produto

CONGRESSO INTERNACIONAL

500 ANOS DE HISTÓRIA DAS MISERICÓRDIAS

Atas Coordenação

Bernardo reis

Braga  .  2014



Título



Autor

congresso internacional 500 anos de história das misericórdias  .  ATAS Vários

Coordenação Bernardo reis Edição Santa Casa da Misericórdia de Braga Fotografias Sérgio Freitas



Tiragem



Data de saída

500 exemplares Setembro 2014

Capa Arranjo gráfico com tema do cartaz do Congresso Internacional 500 Anos de História das Misericórdias (des. Alexandra Esteves)

Preparação gráfica

Ulisses_200

Impressão e acabamento Graficamares, Lda. R. Parque Industrial Monte Rabadas, 10 4720-608 Prozelo - Amares

Depósito legal



ISBN

380121/14 978-972-96038-3-9

9 789729 603839

O conteúdo dos artigos e a norma ortográfica usada são da responsabilidade dos autores.

A transferência da Corte e os impactos na Misericórdia do Rio de Janeiro (1808-1822) The transfer of the Court and the impacts on the Misericórdia of Rio de Janeiro (1808-1822)

Renato Franco* Universidade Federal Fluminense – Brasil [email protected]

Resumo Ao longo do século XVIII, a Misericórdia do Rio de Janeiro era uma instituição em expansão, favorecida pelo dinamismo econômico do centro-sul da América portuguesa. No início do século XIX, a vinda da Família Real sedimentou o processo de importância da cidade e, por consequência, de sua Misericórdia. Rapidamente a instituição capitalizou os benefícios de estar em uma Corte, fazendo valer o tradicional papel desses estabelecimentos. Às vésperas da independência, a Santa Casa era, seguramente, a mais pujante instituição hospitalar da América portuguesa. Palavras-chave: América Portuguesa, Família Real, Rio de Janeiro, Santa Casa da Misericórdia, século XIX Abstract Throughout the 18th century, the Misericórdia of Rio de Janeiro was an expanding institution, helped by the economic dynamism of the South-central Portuguese America. In the early 19th century, the arrival of the Royal Family cemented the process of importance in the city and therefore his Misericórdia. The institution quickly capitalized the benefits of being in a Court, enforcing the traditional role of these establishments. On the independence's eve, the Santa Casa do Rio de Janeiro was surely the most thriving hospital in the Portuguese America. Keywords: 19th century, Portuguese America, Rio de Janeiro, Royal Family, Santa Casa da Misericórdia * Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador da Companhia das Índias (CNPq/UFF). Agradeço o convite feito pelo Sr. Provedor Dr. Bernardo Reis e pela Prof.ª Doutora Maria Marta Lobo de Araújo para participar no Congresso Internacional 500 Anos de História das Misericórdias. Congresso Internacional 500 Anos de História das Misericórdias. Actas

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Fundada no século XVI, a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro pode ser considerada um exemplo precoce das congêneres que se espalharam na América a partir do modelo lisboeta1. De uma função assistencial importante, mas modesta ao longo de boa parte do século XVII, a Misericórdia do Rio iria desempenhar um papel fundamental na assistência da cidade a partir de fins daquele século, carreada pelo importância dada à cidade: em 1680, sob o governo do Rio, foi fundada a Colônia de Sacramento e, em fins do XVII, foram descobertas minas nos sertões da América portuguesa. À medida que a cidade adquiria a primazia em termos econômicos e políticos, a irmandade beneficiou-se do eufórico desenvolvimento da região, angariando novos espaços e aumentando o escopo da assistência prestada aos súditos do além-mar. Um dos exemplos objetivos dessa virada institucional podia ser observado no suporte dado à milícia, no contrato com a Fazenda Real, estabelecido, pela primeira vez, em 1694 e que durou, com idas e vindas, toda a primeira metade do século XVIII. Tal como acontecera com a cidade, por volta de 1750, a Misericórdia do Rio pouco lembrava a modesta confraria da década de 1680. Naqueles 70 anos, a Santa Casa passara a curar os soldados do rei (1694); estava incumbida, tal como a rica Misericórdia de Salvador, do enterro dos escravos (1696); havia criado uma roda de enjeitados (1738); um recolhimento de órfãs (1739-

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Em 1963, a Misericórdia do Rio de Janeiro publicou um opúsculo intitulado Fundação da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, em que procurava provar que a irmandade é anterior à iniciativa de Anchieta. Na verdade, os argumentos já haviam sido usados pelo historiador oficial da instituição, Felix Ferreira, no fim do século XIX. De fato, segundo a petição do início do século XVII, a irmandade do Rio teria 60 anos de atividade, o que faria com que a sua criação remontasse à década de 1540, ou seja, anterior à própria fundação da cidade. O documento é controverso, pois não há original da petição, apenas do alvará régio de 1605, que não faz referência ao ano de criação da irmandade. No arquivo da Misericórdia, a petição é também uma cópia, que vai aqui transcrita: “Dizem o provedor e irmãos da Misericórdia da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, partes do Brasil, que há sessenta anos se tem feito casa com seu hospital para enfermos, sacristia e parlatório, e é uma das boas da costa e alguma faz vantagem notável com sempre ter sua irmandade, guardando o compromisso, fazendo muitas esmolas, casando órfãs e dando ordinárias todos os sábados, conforme a possibilidade da terra. E, porquanto, até agora não tem provisão para ser Misericórdia, pede a Vossa Majestade lhe mande passar provisão para todos os privilégios e graças, honras e liberdades que tem e gozam as casas desta cidade de Lisboa, as da vila de Setubal e as mais deste Reino.” Ver: Fundação da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Tipografia Romão de Mattos Duarte, 1963, p. 7; Ferreira, Félix – A Santa Casa da Misericórdia Fluminense fundada no século XVI – notícia histórica, Rio de Janeiro, 1894-1898, pp. 87-88.

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-1743); a partir da década de 1740 havia ampliado seu prédio e o hospital geral; recebia uma verba para assistência dos presos pobres (1754). Em meados do século XVIII, embora tivesse rescindido com a Fazenda Real o estratégico contrato para atendimento da milícia –  tal como acontecera com a Santa Casa de Salvador –, a Misericórdia do Rio permaneceu em expansão, cumprindo uma vasta gama de serviços à população e exortando a imagem paradigmática do que se entendia por caridade institucional no império português2. Contudo, é difícil saber qual a reputação que a Misericórdia conservava junto à população local. O espanhol Juan Francisco de Aguirre (1756-1811), em passagem pela cidade do Rio de Janeiro, na década de 1780, deixou um interessante relato sobre a Misericórdia, em que salientou uma imagem controversa sobre a administração dos bens da irmandade: Além das igrejas já mencionadas, há no Rio de Janeiro a sé velha que ainda não tem destino certo, o colégio dos jesuítas, que serve de hospital para a tropa, e a Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, que mantém um hospital e a casa dos expostos. A irmandade formada pelos paroquianos da Misericórdia contribui como copiosas somas para essas instituições. Isso permite que se mantenham cem leitos no hospital e que se sustentem as crianças expostas de ambos os sexos até que elas possam abraçar uma profissão. É verdade que a piedade dos habitantes locais também muito contribui para o sucesso dessas obras pias. A  irmandade, sob administração de dois de seus membros mais destacados, pede esmolas e cobra propinas. No hospital, são tratados os marinheiros dos navios mercantes do país. Esses navios, a propósito, pagam por cada entrada no porto, uma pataca para o hospital. Cabe assinalar ainda que não eram poucos os que teciam comentários não muito elogiosos acerca da administração dos fundos dessa instituição.3

Nesse sentido pode ser compreendido o esforço feito na longa provedoria do Conde de Rezende (1793-1802) para a melhor administração do patrimônio da Santa Casa. Em 1797, um ofício dirigido à mesa alertava sobre o descalabro financeiro “mais por falta de administração que de bens sólidos e permanentes”, resultado direto dos “atrevidos despotismos de alguns que à

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Ver Franco, Renato – “Uma Misericórdia em ascensão: o exemplo do Rio de Janeiro (c. 1700-c. 1822)”. In: Franco, Renato – Pobreza e caridade leiga – as Santas Casas de Misericórdia na América portuguesa. Tese de doutoramento, USP, 2011, pp. 110-176.  3 Juan Francisco de Aguirre, in França, Jean Marcel Carvalho – Visões do Rio de Janeiro colonial. Antologia de textos (1531-1800), Rio de Janeiro, José Olympio, 2008, p. 209.

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custa dos pobres faziam grandezas”. No mesmo ofício, recomendou a expulsão do cirurgião dos expostos, incapaz de atender ao grande número de crianças: Digo também que o cirurgião denominado dos expostos seja expulso pois, ainda que este sujeito fosse tão hábil quanto caritativo, seria impossível cumprir com os seus deveres, ignorando a imensidade de expostos dispersos pela cidade e tratados tão mal que ainda quando se verificasse alguma visita do dito cirurgião viria a transtornar-se a sua utilidade naqueles danos que infalivelmente eram causados aos miseráveis inocentes, os maus-tratos das pessoas a quem se confiam cujos inconvenientes durarão enquanto se não aclararem os juízos sobre as utilidades de agregar a corporação dos expostos a um só lugar.4

Apesar dos rumores crônicos sobre a malversação do patrimônio, a Santa Casa do Rio de Janeiro, na virada do século XVIII para o XIX, pode ser considerada a mais importante instituição assistencial do centro-sul da América portuguesa. Segundo relatórios da década de 1790, no ano de 1791, o hospital geral da Misericórdia havia atendido 1697 pessoas e a roda dos enjeitados havia recebido 148 expostos. Até àquela altura, o número total de crianças acolhidas, desde a fundação da Casa dos Expostos, era de 4583 enjeitados. Dois anos mais tarde, em 1793, uma descrição mais precisa indicava que a Misericórdia mantinha contrato para o socorro dos marinheiros, que, naquele ano, havia resultado no atendimento de 402 pessoas; ademais, o hospital geral recebeu 875 doentes; no cemitério, entre “escravos e pobres” foram inumados 643 corpos 5. Internamente, um dos aspectos mais notáveis foi a substancial incorporação de comerciantes em postos de mando em uma das irmandades mais prestigiadas da cidade. O século XVIII foi, portanto, testemunha do desenvolvimento estrutural da confraria, bem como da mudança de suas elites dirigentes. Em boa medida, a Santa Casa espelhou a importância dos novos segmentos econômicos que se firmaram, garantindo-lhes respaldo local. Sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII, os homens de negócio

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Citado em Ferreira, Félix – A Santa Casa da Misericórdia Fluminense..., ed. cit., pp. 232-234.  Almanaque da cidade do Rio de Janeiro (1792, 1794). In Anais da Biblioteca Nacional, LIX, 1937, pp. 287; 351-352. É preciso esclarecer que há uma inconsistência no total de enjeitados do Almanaque de 1799, quando foram estimadas 3638 crianças atendidas de 1738 até o fim de 1798, ou seja, uma cifra inferior à calculada para 1794. De acordo com outro relatório, elaborado para a exposição de 1908, até 1799, a Casa dos expostos tinha atendido 5650 crianças. Ver: Exposição Nacional de 1908 – Notícias dos diversos estabelecimentos mantidos pela Santa Casa da Misericórdia, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1908.

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tinham presença certa nas funções diretivas da Misericórdia tornando-se assim protagonistas da caridade institucional na cidade 6. A virada do século XVIII para o XIX No início do século XIX, a importância do Rio de Janeiro era um dado inconteste: em 1763, havia se tornado a sede administrativa da colônia; era, desde o início do século XVIII, o principal porto de entrada e saída de mercadorias do centro-sul da América portuguesa, firmando-se, ao longo da centúria, como uma das mais dinâmicas praças comerciais do império português 7. Em 1799, sua população era calculada em 43 730 habitantes; em 1808, contava 60 163 almas e, em 1821, 112.695 habitantes 8. A chegada da família real, em 1808, coroou um processo de expansão, realçando tendências já anunciadas anteriormente, como era o caso do afluxo de portugueses. Tal como acontecera com os comerciantes, a Misericórdia absorveu bem o grande número de portugueses que chegaram à cidade a partir do início do século XIX; assim como boa parte das elites coloniais, a Santa Casa do Rio estava aberta aos homens de talento que conseguiram angariar fortuna. Esse aspecto, bastante acentuado no caso fluminense, pode ser percebido ainda pelo controle, por parte dos homens de negócio, das funções da mesa 9. Do ponto de vista político, o Rio de Janeiro assumiu o inusitado lugar de cabeça do império, o que, por extensão, resultou em uma verdadeira transformação da cidade, conferindo algum luzimento e a adoção de novos padrões de sociabilidade. Foram criados o Banco do Brasil, a Imprensa Régia, o Horto Real e a Biblioteca Real. Em 1808, foi criada também a Intendência Geral de  6

Ver Franco, Renato – “O privilégio da caridade: comerciantes na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (1750-1822)”. In Ferreira, Luiz Otávio et al. (orgs.) – Filantropos da nação: sociedade, saúde e assistência no Brasil e em Portugal, Rio de Janeiro, FGV (no prelo).  7 Ver, sobretudo Fragoso, João Luís Ribeiro – Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.  8 Dados retirados de Cavalcanti, Nireu – O Rio de Janeiro setecentista – a vida e a construção da cidade, da invasão francesa até a chegada da corte, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004, p. 255; Marcílio, Maria Luíza – “Mortalidade e morbidade da cidade do Rio de Janeiro imperial”. Revista de História, 127-128, pp. 53-68, São Paulo, ago-dez/92 a jan-jul/93, pp. 53-68.  9 Franco, Renato – “Os portugueses na Misericórdia do Rio de Janeiro, 1808-182”. In Araújo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra; Coelho, José Abílio; Franco, Renato – Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência, Braga / Rio de Janeiro, CITCEM / FGV, 2013, pp.109-118.

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Polícia da Corte e Estado do Brasil à semelhança da que havia em Lisboa. Ficaram sob a batuta da Intendência de Polícia funções como o arruamento da cidade, o aterramento de áreas pantanosas, a abertura de estradas, a fiscalização de obras públicas e particulares, a conservação do jardim do Passeio Público 10. Assim, à cooptação das elites locais somaram-se as modificações demográficas e urbanas. Em expansão, abrigando órgãos da administração régia superior, outrora só existentes em Lisboa, o Rio transformou-se também num cenário em que a glória da monarquia e a submissão dos vassalos eram teatralizados. A Misericórdia do Rio de Janeiro Nesse contexto de expansão econômica e demográfica da cidade do Rio de Janeiro, a Misericórdia soube logo capitalizar a sua importância como fundamental elemento de identidade lusa. Além de receber um grande número de portugueses, tanto entre os irmãos maiores, quanto entre os menores, logo em seguida solicitou todos os privilégios financeiros que outrora apenas Lisboa gozava: logo em 1810, o príncipe regente havia isentado o pagamento dos selos nos legados da Misericórdia 11; em 1811, à semelhança de Lisboa, a Misericórdia do Rio passou a ter um juiz privativo 12. Naquele mesmo ano, a Misericórdia conseguiu derrogar a decisão régia de tomar compulsoriamente algumas casas para utilização da Corte que se instalara recentemente na cidade 13. Assim, a Santa Casa foi sedimentando sua importância local, ancorada na demanda de privilégios da Corte: aumentou seus rendimentos a partir das muitas regalias das Misericórdias, defendeu suas precedências frente a possíveis usurpações, beneficiou-se de uma conjuntura de crescimento. 10

Carvalho, Marieta Pinheiro de – Uma ideia ilustrada de cidade: as transformações urbanas no Rio de Janeiro de d. João VI (1808-1821), Rio de Janeiro, Odisseia, 2008. 11 Citado em Ferreira, Félix – A Santa Casa da Misericórdia Fluminense..., ed. cit., p. 260. 12 Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ), Actas e termos, 1810-1820, p. 13. 13 “Sendo presente ao Príncipe Regente Nosso Senhor, diz o aviso de 29 de janeiro de 1811 a informação de Vossa Mercê de que 25 do corrente mês sobre a representação do Provedor da Santa Casa de Misericórdia desta Corte, em que se queixa de se haver tomado por aposentadoria umas casas na Rua do Ouvidor pertencente à mesma Santa Casa para habitação de José Félix Machado, cônego da Real Capela, contra os privilégios que lhe foram concedidos, manda recomendar a Vossa Mercê a observância do privilégio de se não tomar por aposentadoria as casas que é a Santa Casa proprietária e ordena que por esse motivo fique sem efeito a aposentadoria posta na referida casa, em cumprimento do aviso de 21 de agosto de 1810, devendo-se tomar outras para acomodação do dito cônego, em que não havia inconveniente. Conde de Aguiar.” Citado em Ferreira, Félix – A Santa Casa da Misericórdia Fluminense..., ed. cit., p. 263.

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Somado a isso, a instituição assumiu novas atribuições, como foi o caso das aulas de medicina prática estabelecidas na Misericórdia do Rio, em 181214. Ainda em 1811, a mesa, ao deliberar sobre o vencimento a ser pago ao juiz privativo, reafirmava com euforia: “o dito ordenado de 400 mil réis por ano não desfalcava as rendas da Santa Casa, que anualmente andam de 40 a 60 contos de réis e vão a crescer mais” 15. Um dos efeitos imediatos da transferência da Corte foi o maior número de pedidos de aumento dos ordenados dos funcionários, em virtude do crescimento da população local e, por consequência, dos atendimentos. Em 1812, o sacristão-mor pediu acréscimo do salário porque “cada vez se ia aumentando mais a população tanto de corpos que se sepultam no cemitério, bem como o batismo de expostos”16. É interessante quando se observa o volume do abandono de recém-nascidos na Casa da Roda que, de uma relativa taxa média, aumenta consideravelmente a partir do início do século XIX. Volume dos enjeitados na casa dos expostos 1738 - 1822 350 Números absolutos

300 250 200 150 Meninos

100

Meninas

50

Total 1738 1742-1743 1747-1748 1752-1753 1757-1758 1762-1763 1767-1768 1772-1773 1777-1778 1782-1783 1787-1788 1792-1793 1797-1798 1802-1803 1807-1808 1812-1813 1817-1818 1822-1823

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Fonte: Exposição de 1908 – Notícias dos diversos estabelecimentos mantidos pela Santa Casa de Misericórdia da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, organizadas pelo provedor dr. Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho, Rio de Janeiro, Typographia do Jornal do Commercio, 1908, pp. 125-128.

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SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, pp. 40-41. SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, p. 13. 16 SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, p. 27. 15

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Esse crescimento generalizado, tanto de atendíveis, quanto de rendas, favoreceu a construção de mais uma enfermaria no início da segunda década do século XIX: em maio de 1813, a mesa deliberou afirmando que “a população do povo nesta Corte cada vez mais ia em aumento depois da chegada da mesma, as pessoas reais e que por cuja causa a pobreza ia em acréscimo” 17. Ao longo das duas primeiras décadas do século XIX, a Misericórdia do Rio de Janeiro, mais que criar novos serviços, tratou de estruturar melhor a instituição conferindo-lhe uma inquestionável primazia. Essa memória de grandeza pode ser percebida, por exemplo, na produção de retratos, cada vez mais recorrente a partir de então, bem como na decisão tomada em 1814 de sufragar as almas dos benfeitores com dois ofícios solenes, um no dia do nascimento e outro no dia da morte18. Na sexta-feira da Paixão de 1818, a pedido do provedor da Misericórdia, tal como se praticava em Lisboa, o rei reviu as condenações, “perdoando ou aliviando [...] as penas aos desgraçados delinquentes”. “Hei por bem perdoar a pena última aos réus que por suas culpas nelas estão incursos e os que se acham presos na cadeia, contando mais de cinco anos de prisão para que sejam julgados nos imediatos como direito for”19. Naquele mesmo ano de 1818, a Misericórdia não parecia tão entusiasmada quanto nos primeiros anos da década: em acórdão da mesa, “atendendo às circunstâncias em que se achava esta Santa Casa relativamente ao seu empenho”, decidiu suspender o auxílio conferido a alguns pobres envergonhados20. Ainda em 1818, a mesa deliberou a reedificação da capela-mor, dependendo da ajuda de benfeitores dispostos a dividir os custos com a irmandade21. Tal como é possível observar no gráfico acima, no início do século XIX, a questão do financiamento dos expostos era um problema premente: mesmo nos momentos mais eufóricos, a Misericórdia reclamava das avultadas quantias despendidas com a Roda. Em 1815, a mesa sentenciava que as despesas da Casa dos Expostos tinham “excedido e muito mais da sua renda”22. Em 1821, porque estava na Corte, a Misericórdia do Rio ganhou o direito de explorar uma loteria para ajudar a financiar os expostos 23. 17

SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, p. 27. SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, pp. 71-72. 19 Citado em Ferreira, Félix – A Santa Casa da Misericórdia Fluminense..., ed. cit., pp. 277-278. 20 SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, p. 137. 21 SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, pp. 139-140. 22 SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, p. 93. 23 SCMRJ, Actas e termos, 1820-1830, p. 14. 18

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A Misericórdia numa sociedade escravista Em termos estatutários e de funcionamento, a Misericórdia tornava-se cada vez mais próxima de Lisboa não fosse pela fundamental questão de o Rio de Janeiro ser um dos mais importantes portos de importação de africanos escravizados da época. Naturalmente, essa característica garantia muitas especificidades: a Misericórdia, tal como as demais instituições coloniais, tinha escravos e senzalas, além de se beneficiar de escravos condenados pela justiça, por exemplo. A partir de 1811, quando passou a ter um juiz privativo, a Misericórdia do Rio também começou a se utilizar dos serviços de cativos detidos. Vários cativos condenados tiveram por pena servir a Misericórdia: Justiça que o Príncipe Regente manda fazer à ré, Marta crioula, escrava de Antônio da Silva Guilherme pela culpa de dar uma bofetada em Laura Francisca, filha de Felix Luiz, na Igreja de São Jorge, que vá servir no hospital da Misericórdia por dois anos, findo cujo tempo será vendida em praça e do seu produto se aplicará metade para senhor e a outra metade para a Relação, pagando, além disso, as custas dos autos.24

Outra implicação notória no exercício da caridade em sociedades escravistas foram as significativas nuances que o conceito de pobreza tendeu a assumir: em 1814, a Misericórdia deliberou que todos os donos pobres de, no máximo, dois escravos, estariam isentos do tratamento dos seus cativos, porque, segundo a instituição, muitas vezes o tratamento de um escravo acabava por empenhar o outro, endividando os donos25. Esse aspecto parece-me fundamental para a melhor compreensão do que se entendia por pobreza no mundo colonial, ou seja, para a Misericórdia do Rio de Janeiro escravos representavam, do ponto de vista institucional, uma espécie de infra-pobreza não merecedora de auxílio quando observada individualmente. A referência para a legitimidade do auxílio era o senhor. Um ponto constantemente ressaltado por viajantes no início do século XIX era o caráter universalizante do hospital da Misericórdia. Em 1818, o francês Louis de Freycinet (1779-1842), de passagem pelo Rio, afirmou que o hospital “é aberto aos doentes de todas as raças e ambos os sexos, bem como

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Citado em Ferreira, Félix – A Santa Casa da Misericórdia Fluminense..., ed. cit., pp. 269-270. SCMRJ, Actas e termos, 1810-1820, p. 75.

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às mulheres em idade avançada” 26. Trata-se de uma imagem paradigmática – mas simplificada – de universalização da caridade, ou seja, era, de fato, uma espécie de igualdade em meio às diferentes realidades nas enfermarias do hospital. Dentro das enfermarias estavam os considerados pobres, atendidos “pelo amor de Deus”, escravos de “pobres”, escravos e livres que pagavam pelo atendimento, marinheiros que também pagavam pelo atendimento... Por ocasião da independência política, em 1822, a Misericórdia do Rio, em cerca de 15 anos, havia ganhado em envergadura, tornando-se a mais importante Misericórdia do Brasil. Do ponto de vista religioso, a Santa Casa era compreendida como um paradigma de compaixão porque representava o auge das pretensões de universalismo das irmandades leigas: acolhia escravos em seu hospital, recebia enjeitados mestiços, teve um cemitério franqueado a todos. Na segunda década do século XIX, tinha uma importância inegável entre as principais instituições da cidade; funcionou como um estabelecimento representativo dos contínuos impulsos de dinamização que a cidade passou; valeu-se de sua importância estratégica, dentro de uma cidade igualmente estratégica, tornando-se uma instituição em contínuo desenvolvimento ao longo do setecentos e início do oitocentos. Bibliografia Carvalho, Marieta Pinheiro de – Uma ideia ilustrada de cidade: as transformações urbanas no Rio de Janeiro de D. João VI (1808-1821), Rio de Janeiro, Odisseia, 2008. Cavalcanti, Nireu – O Rio de Janeiro setecentista – a vida e a construção da cidade, da invasão francesa até a chegada da corte, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004. Exposição Nacional de 1908 –  Notícias dos diversos estabelecimentos mantidos pela Santa Casa de Misericórdia da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, organizadas pelo provedor dr. Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho, Rio de Janeiro, Typographia do Jornal do Commercio, 1908. Fundação da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Tipografia Romão de Mattos Duarte, 1963. Ferreira, Félix – A Santa Casa da Misericórdia Fluminense fundada no século XVI – notícia histórica. Rio de Janeiro, 1894-1898. França, Jean Marcel Carvalho – Visões do Rio de Janeiro colonial. Antologia de textos (1531-1800), Rio de Janeiro, José Olympio, 2008.

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Louis de Freycinet, in França, Jean Marcel Carvalho – Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino. Antologia de textos (1809-1818), Rio de Janeiro, José Olympio, 2013, pp. 150-151.

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França, Jean Marcel Carvalho – Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino. Antologia de textos (1809-1818), Rio de Janeiro, José Olympio, 2013. Franco, Renato – Pobreza e caridade leiga – as Santas Casas de Misericórdia na América portuguesa. Tese de doutoramento, USP, 2011. Franco, Renato – “O privilégio da caridade: comerciantes na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (1750-1822)”. In Ferreira, Luiz Otávio et al. (orgs.) – Filantropos da nação: sociedade, saúde e assistência no Brasil e em Portugal, Rio de Janeiro, FGV (no prelo). Franco, Renato – “Os portugueses na Misericórdia do Rio de Janeiro, 1808-182”. In Araújo, Maria Marta Lobo de; Esteves, Alexandra; Coelho, José Abílio; Franco, Renato – Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência, Braga / Rio de Janeiro, CITCEM / FGV, 2013, pp.109-118. Fragoso, João Luís Ribeiro – Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, 1790-1830, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. Marcílio, Maria Luíza – “Mortalidade e morbidade da cidade do Rio de Janeiro imperial”. Revista de História, 127-128, pp. 53-68, São Paulo, ago-dez/92 a jan-jul/93.

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