A transitividade da transição: da ditadura à democracia Lei & Ordem

July 22, 2017 | Autor: Renato Lemos | Categoria: Democracia, Transição Política, Democracia e repressão
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A transitividade da transição: da ditadura à democracia Lei & Ordem

Renato Luís do Couto Neto e Lemos As recentes ofensivas dos governos Dilma Rousseff e Pezão (RJ) contra movimentos de oposição à sua política e aos seus projetos econômicos mantêm na pauta de discussões os liames entre o atual regime de dominação classista e a ditadura empresarial-militar vigente no Brasil de 1964 a 1988. Com o objetivo de contribuir para as discussões sobre o assunto, apresento uma versão modificada do texto básico da palestra que, com variações, fiz, em abril passado, em algumas ocasiões descomemorativas do cinquentenário do golpe de 1964.

Uma boa maneira de compreender o significado histórico do golpe e da ditadura, bem como suas conexões com o presente, é seguir o velho conselho da historiografia e interrogá-los à luz dos processos contemporâneos. Eles constituem seus desdobramentos e iluminam profundos significados que possam ter. Neste sentido, o cenário político nacional delimitado pelas “jornadas de junho” de 2013 e a realização da Copa do Mundo de Futebol FIFA, neste mês, podem ser tomados como rico campo de discussão. Muitas análises sistemáticas, assim como opiniões manifestadas em redes sociais, têm enfocado a violência com que os dirigentes do Estado, em suas várias instâncias, vêm tratando as mobilizações populares durante este ano. Pensa-se em como foram reprimidos, particularmente, movimentos urbanos que apresentam graus diversificados de organização e politização, nucleadas em torno de reivindicações relativas ao direito a transporte público, moradia e garantia de vida. As explicações

dessa situação política tendem a apontar para a insuficiência da redemocratização após a ditadura, que seria responsável pelo mascaramento das suas permanências na forma de um Estado de direito fake. Talvez a mais importante observação que se possa fazer sobre esse tipo de explicação é a de que os direitos das classes subalternas da nossa sociedade vêm sendo, na prática, suprimidos pela mesma contrarrevolução que conduziu ao golpe de 1964 e presidiu o regime ditatorial até 1988, não se interrompeu com a promulgação de uma nova Carta constitucional e permanece o elemento central de definição do quadro político em que vivemos. A transição do regime ditatorial para o democrático foi sobredeterminada pela contrarrevolução liberal. Estabeleceu-se, como é notório, forte ofensiva contra os direitos dos trabalhadores: precarização do trabalho, privatização da previdência etc. A franca redução dos investimentos públicos em áreas sociais conduziu ao agravamento das condições de vida da população pobre em geral, com o consequente ascenso de manifestações rurais e urbanas. Para sustentar a ofensiva dos grupos dirigentes do Estado contra os direitos, tem sido necessária a mobilização dos instrumentos de força, o que impôs certas continuidades no plano das estruturas estatais. Nestas condições, o aparato repressivo – jurídico e policial-militar ‒ vem assumindo importância progressivamente maior. A questão – essencial para a definição de uma estratégia de combate político aos interesses do capital ‒ é saber se isso constitui uma evidência de que a transição da ditadura para a democracia está incompleta ou se estamos diante da complexidade de um novo regime. A verdade é que vários componentes do Estado ditatorial foram mantidos na etapa de reconstitucionalização do país, isto é, de redefinição do regime de dominação classista. É preciso não esquecer que o regime ditatorial promoveu reformas no Estado que obedeceram não só a objetivos dos grupos dirigentes do regime, mas, também, a necessidades históricas gerais da reprodução capitalista. Muitas delas foram realizadas também em outros países, muitas vezes por caminhos democráticos. Principalmente, entre elas, a militarização do Estado: criação de repartições e estruturas legais em torno da noção de segurança nacional. Esta referência tornou-se a marca de modificações na organização estatal que, mesmo quando em ambiente democrático, traduziram o conflito capitalismo x comunismo, conhecido por Guerra Fria, que marcou o mundo do pós-guerra. Por exemplo: 1947 → EUA: Ato de Segurança Nacional, que criou a Comissão Nacional de Segurança e a Central Intelligence Agency (CIA). 1947 → Inglaterra: Ato sobre conduta e disciplina de funcionários públicos. 1948 → Chile: Lei de Defesa da Democracia. 1949 → Portugal: Conselho de Segurança Pública. 1950 → Bolívia, Austrália, África do Sul, Canadá: leis anticomunistas. 1950 → EUA: Lei McCarran de Segurança Interna, que autorizou o presidente da República a ordenar a prisão, sem julgamento, de acusados de atividades subversivas.

Vê-se que a preocupação com a ordem e o combate ao comunismo estabeleceram áreas de identidade entre regimes políticos diferentes ‒ da democracia estadunidense à ditadura salazarista ‒, mas representativos de uma mesma base social burguesa. Em uma mesma conjuntura histórica, o Estado capitalista foi “modernizado”, de maneira a adequar-se à nova correlação de forças estabelecida no pós-guerra. Produto da inserção do país nessa conjuntura, as suas duas primeiras leis do Brasil consideradas de segurança nacional apresentam em comum o fato de terem sido, ambas, elaboradas sob regime democrático. Mas, regimes democráticos que refletiam situações políticas muito distintas. A Lei nº 38, de 4 de abril de 1935, deslocou os “crimes contra a segurança do Estado” do Código Penal para uma legislação especial, determinando o tratamento dos crimes políticos pela Justiça Militar. A sua elaboração traduziu o ascenso de duas organizações de massas ‒ a Ação Integralista Brasileira (AIB) e a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Por isso mesmo, passou por duas modificações fundamentais: após os levantes ANL de novembro de1935, houve o agravamento das penas previstas e, após o putsch integralista em maio de 1938, o restabelecimento da pena de morte. Trata-se, como as duas datas sugerem, de um período marcado pela forma bonapartista de regime político e de Estado,[1] preparada em 1935, instituída pelo golpe de 1937 e consolidada em 1938. Mas, não tem como matriz ‒ como pode fazer que se suponha a sua classificação como “lei de segurança nacional” ‒ uma “doutrina de segurança nacional”, ainda não existente no mundo. Já a Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, reduziu penas, extinguiu a de morte e restabeleceu o foro comum para os crimes políticos. Assim como a de 1935, a sua classificação como “lei de segurança nacional” não pode ser entendida por associação com a Doutrina de Segurança Nacional. Até porque o aparelho estatal que elaboraria a doutrina no Brasil ‒ a Escola Superior de Guerra, criada em 1949 ‒ ainda dava seus primeiros passos. A lei traduz o regime democrático de tipo populista encabeçado por Getúlio Vargas, presidente da República (1951-1954), eleito pelo voto direto, como expressão de uma política de colaboração de classes entre trabalhadores e setores da burguesia. Considerando que essas modificações em aparatos do Estado visam dar conta de problemas colocados pela dominação de classe, tais informações nos confirmam que os regimes políticos não existem in abstracto, no teto da caverna de Platão. Eles são constituídos conforme a natureza da luta de classes em cada conjuntura histórica, inclusive e especialmente, a sua tradução no plano das ideias. Avança-se pouco na análise da luta política, quando se trabalha com um conceito de regime quimicamente puro. Assim, dificilmente se poderão considerar iguais regimes democráticos anteriores e posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial, estes últimos podendo ser chamados de “democracias da Guerra Fria”. Portanto, quando refletimos sobre a possibilidade de haver continuidades do regime ditatorial na atual democracia, precisamos fazer uma distinção básica. Um problema são eventuais permanências do regime ditatorial, tratadas atualmente como “o que resta da ditadura”, “legado”, “entulho autoritário” ou “aquilo que a sociedade brasileira não consegue encarar” ‒ a impunidade de torturadores, a desinformação sobre desparecidos políticos, a militarização das polícias militares etc. Outro problema é a persistência de estruturas estatais, que podem transcender regimes políticos. A estrutura do Estado brasileiro é a de um Estado capitalista, que é, eventualmente, modificada por

regimes políticos de natureza distinta, mas sem se descaracterizar em sua natureza social. Era um Estado capitalista sob o regime democrático de 1946 e sob o regime ditatorial de 1964, e assim permanece sob o regime democrático de 1988. Dada a natureza capitalista da organização social brasileira, é natural que o privilegiamento dos grandes grupos econômicos – tanto pelas políticas ditas públicas quanto pela abertura de portas para empresários atuarem diretamente junto aos centros de poder ‒ seja uma das mais evidentes constantes a unirem regimes políticos diferentes, como a ditadura pós-64 e a democracia pós-88. Desta perspectiva, o regime político que temos hoje pode ser entendido como resultado da combinação, operada pelo processo transicional a partir de 1974, de efetivas modificações em relação ao regime anterior, principalmente no plano dos direitos individuais, com permanências estruturais, em particular no plano dos aparelhos de Estado. Estão em pleno vigor muitas instituições estatais introduzidas no país pelo regime ditatorial pós-64, como: o Banco Central; grande parte da obra da reforma administrativa de 1967; os fundos financeiros (FGTS, PIS, PASEP etc.); a regulamentação do mercado de capitais; a lei de segurança nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983) e diplomas legais relativos a crimes militares (decretos-leis n. 1001, 1002 e 1003, de outubro de 1969). Vê-se, portanto, que muitas reformas do Estado executadas durante o regime ditatorial pós-64 sobreviveram a ele. O regime ditatorial foi, sob muitos aspectos, uma via, determinada pelas alternativas colocadas pela conjuntura histórico-política, para a modernização do capitalismo brasileiro. Como “sobrevivência” promovida pelos constituintes em 1987-1988, costuma ser muito destacada a preservação de prerrogativas das Forças Armadas, como, por exemplo, a “imexibilidade” ‒ como diria o inefável Antônio Rogério Magri, ministro do Trabalho durante o governo de Fernando Collor (1990-1992) ‒ da Lei da Anistia e certas zonas de controle militar. Costuma-se explicá-las, em geral, pela capacidade de articulação dos militares enquanto lobby, combinada com o comportamento amadorístico dos civis na matéria durante a Constituinte. Entretanto, como demonstram pesquisas acadêmicas[2] e jornalísticas, as vitórias mais importantes nesses tópicos resultaram da ação coordenada de militares e civis, unidos por uma perspectiva ideológica comum: a da segurança nacional. Devem, portanto, ser entendidas como decisões estratégicas do novo campo político conservador construído pela transição iniciada em 1974. No momento de redefinir formalmente o regime político, militares e civis de todos os matizes partidários fizeram frente única em torno das estruturas estatais voltadas para a sustentação da ordem. A ideia de “ordem” foi destacada por Lênin como a categoria central da concepção de Marx sobre o Estado enquanto órgão de classe. Diz o líder bolchevique em seu resumo: “Segundo Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação da ‘ordem’ que legaliza e afiança esta opressão (…)”.[3] Neste sentido, a perspectiva de dominação classista está embutida na noção de ordem como sinônimo de harmonia no interior de uma sociedade heterogênea e hierarquizada. Foi sempre para defender a ordem, preventiva ou reativamente, que a contrarrevolução se impôs em 1964 e não cessou com a democracia pós-1988. A contrarrevolução apenas deixou de ser predominantemente violenta para ser predominantemente democrática.

Mas, esta forma de garantia da ordem classista foi estabelecida, como já observado, na era das contrarreformas neoliberais, que acirraram progressivamente as condições de exploração dos trabalhadores e de miséria dos pobres em geral. E delimitaram os horizontes da democracia que as classes dominantes se dispõem a praticar. Horizontes que precisam se ajustar às necessidades do processo de acumulação de capital em escala mundial. David Harvey [4] chama a atenção para a posição cada vez mais central que as cidades assumem como área de investimento dos grandes capitais na atual fase do capitalismo. A era dos megaeventos que vivemos, em geral, urbanos, é apenas um capítulo dessa novela. A área de infraestrutura sempre foi especialmente importante para soldar os interesses dos grandes grupos econômicos e dos dirigentes do Estado capitalista. Vide alguns dos maiores empreendimentos da era ditatorial: pontes, rodovias, hidrelétricas etc. Na atual dinâmica da sociedade de classes, a ordem aparece periclitante em muitas grandes cidades. Exatamente onde o capital tem encontrado importantes caminhos de reprodução, com as oportunidades abertas pelos megaeventos e projetos de infraestrutura. Não à toa, os investimentos em infraestrutura ‒ leia-se: o jardim dos prazeres das grandes empreiteiras ‒ foram apontados como prioridade máxima do recém-criado banco dos BRICS.[5] É, portanto, antes e mais do que tudo, o interesse dos grandes grupos empresariais capitalistas que está sob a ameaça da desordem das ruas. Foi para dar conta de ameaças desse tipo que o processo de transição de 1974-1988 preservou vários componentes repressivos do Estado ditatorial. Entretanto, merece destaque, para compreensão do cenário político atual, a atualização de uma estrutura estratégica do Estado que perpassa vários regimes políticos: o serviço de espionagem política. Suas origens remontam a 1956, com a criação do Serviço Federal de Informação e Contrainformação (SFICI), substituído em 1964 pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), que foi sucedido, em 1992, pela Subsecretaria de Inteligência (SSI), extinta em 1995, quando da criação do Departamento de Inteligência (DI), ficando alocadas as atividades, a partir de 1999, na Agência Brasileira de Informação (ABIN). O amálgama da perspectiva de garantia da ordem com a preservação de mecanismos democráticos resulta no fenômeno político que vários analistas buscam sintetizar em adjetivações do termo democracia: algemada, blindada, disciplinar, restringida, totalitária etc. De outra perspectiva, classifica-se essa situação de “Estado de exceção permanente”. Todavia, talvez seja mais eficaz analisar a democracia que temos a partir de uma das suas características que mais vem sobressaindo: a sua face policial-militar, que está associada à doutrina GLO – Garantia de Lei e Ordem. Vou me deter um pouco neste tema, utilizando informações obtidas em artigo de Andre Luís Woloszyn, intitulado “Doutrina de GLO do Exército Brasileiro é adotada pelo US Army”.[6] O autor informa que a doutrina que prevê o emprego da tropa terrestre em ações tipicamente de polícia vem sendo seguida já algum tempo pelas Forças Armadas brasileiras. Os militares brasileiros, quando assumiram a liderança da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), tiveram a oportunidade de praticá-la em um país considerado em “estado de beligerância”, onde se registravam elevados índices de violência e criminalidade. E concluíram que, naquele teatro urbano de operações, para frear a violência era necessário mais do que ações de

patrulha periféricas e esporádicas. Assim, se estabeleceram no interior das “zonas conflagradas”, para garantir e manter “um estado de segurança permanente para a população”, desestimulando a prática daquilo que consideravam ações delituosas. Mas, pelo que o autor expõe, a Doutrina GLO deita suas raízes em tempos bem anteriores. O exército dos Estados Unidos publicou, em janeiro de 1945, um manual destinado a orientar as forças de policiamento nas cidades ocupadas ao fim da Segunda Guerra Mundial, em especial na Alemanha, Japão e Itália. Este manual foi atualizado várias vezes. Em março de 2011, surgiu uma edição com o título Army Tactics, Techniques, and Procedures ATTP 3-39.10 (FM 19-10) Law and Order Operations.[7] Com a denominação de “operações de espectro total” (Full Spectrum Operations), sua atualização se deu, especialmente, pelas experiências obtidas no Iraque e no Afeganistão. Isso, porque lá foi constatado que, para obter êxito em grandes operações bélicas, além do combate tradicional, tornavam-se necessárias ações simultâneas para criar “ambientes seguros, especialmente para as populações”, com o objetivo de “manter a estabilidade do local e garantir o retorno às atividades do cotidiano”. O manual se assemelha, em linhas gerais, aos conceitos empregados pelas Forças Armadas Brasileiras.[8] Em 2010, a doutrina GLO foi aplicada na Operação Arcanjo, que resultou, por meio de ações de polícia, na ocupação de importantes “regiões conflagradas” do Rio de Janeiro, como as do complexo do Alemão e da Penha, obtendo-se resultados considerados “excelentes”. Há duas importantes operações de GLO em andamento. Desde 2012, a intervenção militar na Usina Hidrelétrica Belo Monte, na região de Altamira (PA), marcada por greves, ocupações de trabalhadores, mobilizações de moradores atingidos pelas obras da barragem e índios reivindicando direitos. E a Operação Ilhéus, executada pelo Comando da 6ª Região Militar (6ª RM) desde o dia 14 de fevereiro de 2014, no sul da Bahia, em “ações de garantia da lei e da ordem, para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio na área”, [9] onde se dão graves disputas por terras entre indígenas e fazendeiros, cujos efeitos se estendem aos núcleos urbanos. Em grandes centros urbanos, a doutrina GLO tem sido aplicada na repressão a todas as manifestações de protesto e mobilizações coletivas por direitos, sejam econômicos ou civis. O seu ápice, até agora, foi a recente prisão preventiva de ativistas sociais, na véspera do jogo final da Copa do Mundo. A doutrina GLO não é, portanto, uma remanescência da ditadura. É mais a condensação de experiências militares contrarrevolucionárias internacionais feitas em ambiente urbano. Neste sentido, apresenta uma identidade genética com a doutrina de combate à guerre révolutionaire elaborada pelos oficiais franceses que, nas décadas de 1950 e 1960, lutaram contra os insurgentes na Indochina e na Argélia. O clássico filme A batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, mostra a importância das batalhas urbanas, casa a casa. Estes oficiais deram treinamento a militares brasileiros nos anos 1970 e foram responsáveis, em grande parte, pela transformação da tortura em instrumento repressivo de Estado durante a ditadura. Recentemente, seus sucessores no combate a insurgentes urbanos reeditaram essa missão francesa e vieram ao Brasil dar treinamento ao BOPE do Rio de Janeiro e à Polícia Militar de São Paulo. Em outras palavras, a geração filha daquela que matou os pobres vietnamitas e argelinos veio aprimorar os métodos de matar os pobres brasileiros. Mas, apesar dos evidentes parentescos com traços de situações políticas brutais, a doutrina GLO não parece a antessala de um novo regime ditatorial. O fundamento legal da GLO é dado pelo artigo n.

142 da Constituição de 1988 e pela Lei Complementar nº 97, de 1999, que o regulamentou. Obedece, portanto, a procedimentos democráticos consagrados internacionalmente. Pouco se avança na compreensão da realidade política atual, quando se compara o regime em que vivemos com um modelo de democracia ‒ a liberal ‒ que, na prática, não existe mais em qualquer canto do mundo. As democracias realmente existentes, cada vez mais, sustentam a ordem capitalista por meio da construção de maiorias parlamentares conservadoras. Outro dos seus pilares, especialmente em países com grande massa de pobreza, tem sido o voto oferecido por segmentos sociais enfraquecidos pela miséria e baixa consciência de classe. É preciso considerar a hipótese de que boa parte dos atingidos pelas recentes políticas de espoliação econômica e de direitos de corte neoliberal fornecerá uma expressiva parcela dos votos com que o atual bloco no poder deverá manter suas posições a partir das eleições de outubro deste ano. As políticas de transferência de renda praticadas pelo governo federal, ainda que modestíssimas em face do passivo social brasileiro, deverão garantir esse resultado. A violência material se combinará, neste caso, com a violência simbólica. A Democracia GLO parece, portanto, adequada ‒ talvez, mais do que isso, necessária ‒ a um regime de tipo democrático-parlamentar erigido sobre condicionantes produzidos pela contrarrevolução neoliberal e que se vale das dificuldades que os movimentos classistas e sociais em geral encontram para ampliar sua capacidade de mobilização e intervenção independente. Não configura, portanto, um resquício do velho regime nem prefigura um novo regime. Como um elemento que vai crescendo de importância na forma de dominação classista em vigor, é difícil, ainda, prever os rumos que irá tomar. Parece, contudo, bem clara a sua conexão com o processo de transição política iniciado na década de 1970 e consolidado em 1988. Afinal, não houve solução de continuidade na composição essencial do bloco no poder desde então, que é o responsável pela ação repressiva do Estado em todos os níveis.

[1] Sobre o assunto, ver DEMIER, Felipe. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964). Um ensaio de interpretação histórica. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. [2] Ver, a propósito, MONTEIRO, Tiago Francisco. A Nova República e os debates relativos ao papel político das Forças Armadas pós-ditadura: homens, partidos e ideias (1985-1990). Dissertação de mestrado (História). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. [3] LENIN, V. I. El Estado y la revolución. Moscou: Editorial Progreso. 1986, p. 7. Grifos no original. [4] HARVEY, David. Das democracias totalitárias ao pós-capitalismo: entrevista a André Antunes. Outras Palavras. 14 mar. 2014. Disponível emhttp://bit.ly/1nZUXb8. Acesso em 22 de julho de 2014. [5] Ver NOBREGA, Camila. Sociedade civil faz alerta sobre Banco dos BRICS. Brasil de Fato, 18 jul. 2014. Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/29201. Acesso em 22 de julho de 2014. [6] WOLOSZYN, Andre. Doutrina de GLO do exército brasileiro é adotada pelo US Army. DefesaNET, 23 nov. 2012. Disponível em

http://www.defesanet.com.br/mout/noticia/8738/Doutrina-de-GLO-do-Exercito-Brasileiro-e–Adotada– pelo-US-ARMY–/. Acesso em 16/7/2014. [7] HEADQUARTERS, DEPARTMENT OF THE ARMY. Law and Order Operations. Army Tactics, Techniques, and Procedures, n. 3-39.10 (FM 19-10). Disponível em: http://bit.ly/Usnb7r. Acesso em 17 de julho de 2014. [8] Idem. [9] COMANDO MILITAR DO NORDESTE. Operação Ilhéus. 12 fev. 2014. Disponível em: http://www.cmne.eb.mil.br/ilheus_1.php. Acesso em 22 de julho de 2014.

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