A Transmutação na Escrita Instrumental e Vocal

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BRUNO YUKIO MEIRELES ISHISAKI

A TRANSMUTAÇÃO NA ESCRITA INSTRUMENTAL E VOCAL

CAMPINAS 2014 i

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Artes

BRUNO YUKIO MEIRELES ISHISAKI

A TRANSMUTAÇÃO NA ESCRITA INSTRUMENTAL E VOCAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para a obtenção do título de Mestre, na Área de Concentração: Processos Criativos.

Orientadora: Profª Drª Denise Hortência Lopes Garcia

Este exemplar corresponde à versão final de Tese defendida pelo aluno Bruno Yukio Meireles Ishisaki e orientada pela Profa Dr. Denise Hortência Lopes Garcia

PROFA. DRA. DENISE HORTÊNCIA LOPES GARCIA

CAMPINAS 2014 iii

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Eliane do Nascimento Chagas Mateus - CRB 8/1350

Is3t

Ishisaki, Bruno Yukio Meireles, 1983IshA transmutação na escrita instrumental e vocal / Bruno Yukio Meireles Ishisaki. – Campinas, SP : [s.n.], 2014. IshOrientador: Denise Hortência Lopes Garcia. IshDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Ish1. Composição (Música) - Século XX. 2. Transmutação (Música). I. Garcia, Denise Hortência Lopes,1955-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Transmutation in instrumental and vocal writing Palavras-chave em inglês: Composition (Music) - Twentieth century Transmutation - (Music) Área de concentração: Processos criativos Titulação: Mestre em Música Banca examinadora: Denise Hortência Lopes Garcia [Orientador] Jônatas Manzolli Celso Antonio Mojola Data de defesa: 01-08-2014 Programa de Pós-Graduação: Música

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RESUMO Neste trabalho apresentamos a ideia da transmutação aplicada à composição musical. Técnicas oriundas da música eletroacústica como o morphing (tanto em âmbito melódico como timbrístico), interpolação, crossfading e a manipulação progressiva de elementos são estudados a partir de um olhar tecnomórfico e são utilizados de forma integrada como ferramentas composicionais para a realização de transmutações entre estruturas musicais. O primeiro capítulo trata da transmutação nas questões terminológica e conceitual. O segundo capítulo apresenta as técnicas citadas anteriormente com exemplos retirados do repertório do século XX. O terceiro capítulo versa sobre a aplicação composicional das técnicas expostas no capítulo anterior. No quarto capítulo obras compostas pelo autor são descritas para demonstrar o uso das ferramentas composicionais estudadas nesta dissertação.

ABSTRACT In this work, we present the idea of transmutation applied to musical composition. Techniques originated from electroacoustic music like morphing (both melodic and timbral), interpolation, crossfading and progressive manipulation of elements are studied from a tecnomorphic point of view and are used together as compositional tools for performing transmutations between musical structures. The first chapter deals with the transmutation in the terminological and conceptual issues. The second chapter presents the techniques mentioned above with examples drawn from the repertoire of the twentieth century. The third chapter deals with the application of compositional techniques explained in the previous chapter. In the fourth chapter, works composed by the author are described in order to demonstrate the usage of the compositional tools studied in this dissertation.

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Sumário

Introdução …................................................................................................................................ 1 Capítulo 1: Sobre a transmutação entre estruturas musicais …................................................... 6 1.1 Poética da transmutação ............................................................................................... 6 1.2 Método para extração de ferramentas .......................................................................... 8 1.3 Transformações contínuas e graduais .......................................................................... 9 Capítulo 2: Extração de ferramentas composicionais ................................................................. 14 2.1 Manipulação progressiva de elementos em estruturas musicais .................................. 14 2.1.1 Inserção de elementos …................................................................................. 14 2.1.2 Exclusão .......................................................................................................... 20 2.1.3 Adição .............................................................................................................. 25 2.1.4 Subtração ......................................................................................................... 31 2.1.5 Permutações ..................................................................................................... 34 2.1.6 Substituição ..................................................................................................... 40 2.2 Transmutação timbrística ............................................................................................. 43 2.2.1 Morphing ......................................................................................................... 44 2.2.2 Crossfading ...................................................................................................... 52 2.3 Interpolações ................................................................................................................ 60 2.3.1 Interpolações de alturas: Glissandi .................................................................. 63 2.3.2 Interpolações de durações: Accelerandi e ritardandi escritos ......................... 73 Capítulo 3: Aplicações combinadas das ferramentas .................................................................. 80 3.1 Estratégias de transmutação ......................................................................................... 80 3.1.1 Morphing de melodias ..................................................................................... 80 3.1.2 Estratégias de transmutação entre propriedades .............................................. 93 3.1.3 Combinação de eixos ....................................................................................... 98 3.1.4 Múltiplas camadas de transformação .............................................................. 99 Capítulo 4: Relato de produção composicional …....................................................................... 103 4.1 Anicca ................................................................................................................ 103 4.2 Areia e Espuma ................................................................................................... 107 4.3 Paracelso ............................................................................................................. 113 ix

3.2.4 O Interior Manifesto ........................................................................................ 119 3.2.5 Uso circunstancial de transmutações em outros projetos composicionais.......................................................................................................... 125 Considerações finais.................................................................................................................... 134 Referências ….............................................................................................................................. 138 Anexo 1: Anicca …...................................................................................................................... 143 Anexo 2: Areia e Espuma …........................................................................................................ 144 Anexo 3: O Interior Manifesto …................................................................................................ 145 Anexo 4: Paracelso ….................................................................................................................. 146 Anexo 5: Texto “O Manifesto Interior” …................................................................................... 147

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Agradecimentos: À minha orientadora, Profª Drª Denise Hortência Lopes Garcia. Não só pelos conselhos, conversas, paciência, sugestões e orientações, mas também por acreditar nesta pesquisa, pelos estímulos constantes e por todo apoio e amizade a mim concedidos ao longo do mestrado. Ao Prof. L.D. Jônatas Manzolli, pela generosidade, ensinamentos e pelo modo como me acolheu entre seus alunos no NICS. Ao Prof. Dr. Celso Mojola, responsável por abrir para mim muitas perspectivas musicais dentro da composição musical sem preconceitos e elitismos, praticando a docência de maneira espetacular. À CAPES pelo apoio financeiro para a realização deste trabalho. Ao Centro de Documentação de Música Contemporânea (CDMC) pelo acesso a seu incrível acervo de partituras. Ao NICS, que me permitiu realizar estudos interdisciplinares essenciais. À minha esposa, Ana Maria dos Santos Latgé. Sem seu apoio constante, esta dissertação não teria sido escrita. Aos meus pais, sempre manifestando orgulho e entusiasmo por minhas produções artísticas e acadêmicas. Aos meus amigos do grupo Tempo-Câmara, que me ajudaram a estrear um número considerável de obras nos últimos anos. São eles: Marco Antônio Machado, Dino Beghetto, Guilherme Crispim e Cristiano Vieira. À minha amiga Laiana Oliveira, pelo companheirismo durante o curso de mestrado, congressos, discussões e inúmeros momentos divertidos. Aos meus colegas de curso, cuja convivência sem dúvidas foi crucial para o amadurecimento de muitas das ideias contidas neste texto. Aos professores Stéphan Schaub, Adolfo Maia e Silvio Ferraz, pela atenção, ajuda e contribuições, as quais me ajudaram a dar um direcionamento mais objetivo para esta pesquisa. E finalmente, a todos os outros que estiveram junto comigo desde o início desta maravilhosa jornada; aos leitores, entusiastas e críticos do meu trabalho. Agradeço a todos.

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Introdução

O termo “transmutação” designa o ato ou efeito de transformar uma substância em outra. É um conceito fundamental da alquimia, presente em inúmeros tratados do período medieval e posteriormente extrapolado para outras áreas do conhecimento, tais como a biologia (KERVRAN, 2011) e psicologia (JUNG, 1991). Os alquimistas divergiam a respeito do que era a prática real da alquimia. Segundo Jung, alguns a compreendiam em seu sentido literal; ou seja, o de transmutar metais (preferencialmente metais de pouco valor em ouro ou prata) enquanto outros viam no simbolismo alquímico diretrizes esotérias relativas a atividades psíquicas.

Para muitos alquimistas, o aspecto alegórico se achava de tal modo em primeiro plano, que estavam totalmente convencidos de tratar-se apenas de corpos químicos. Outros, entretanto, consideravam o trabalho de laboratório relacionado com o símbolo e seu efeito psíquico. Tal como demonstram os textos, esses alquimistas tinham a consciência do efeito psíquico, a ponto de condenarem os ingênuos fazedores de ouro como mentirosos, trapaceiros ou extraviados. Proclamavam seu ponto de vista através de frases como esta: "aurum nostrum non est aurum vulgi" (nosso ouro não é o ouro vulgar). Seu trabalho com a matéria constituía um sério esforço de penetrar na natureza das transformações químicas. No entanto, ao mesmo tempo era - e às vezes de modo predominante - a reprodução de um processo psíquico paralelo; este podia ser mais facilmente projetado na química desconhecida da matéria, uma vez que ele constituía um fenômeno inconsciente da natureza, tal como a transformação misteriosa da matéria. (JUNG, 1991, p. 44-45)

No campo da música, a ideia de uma estrutura que, conforme a alquimia, transmuta-se para outra por meio de operações e processos está presente em maior ou menor grau no processo criativo de vários compositores do século XX. A natureza dessas operações, bem como as obras nas quais tais operações são empregadas constituem objetos de estudo aos quais dedicamos o segundo capítulo desta dissertação. Nestes casos, podemos falar de uma poética da transmutação; tal poética caracteriza-se pela presença, em determinada obra, de processos de transmutação entre estruturas musicais. Nestes processos, uma estrutura A transforma-se progressivamente em uma estrutura B. A transformação acontece morfologicamente, é integrada à escrita da obra, sendo um processo claramente perceptível no nível da escuta. Definimos “estrutura musical” como uma configuração específica de

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elementos musicais. As diferentes parametrizações possíveis para cada elemento constituinte, bem como a relação dos elementos entre si define a particularidade de uma estrutura e sua identificação enquanto enunciado. Propomos que a transmutação seja entendida como um caso particular de transformação, na qual um enunciado se transforma em outro progressivamente por meio de transições. Isto implica em um tipo específico de escrita, na qual os elementos componentes de cada enunciado são manipulados progressivamente no tempo. As diferentes formas de manipular os elementos de uma estrutura com o fim de transmutála compõem o escopo do segundo capítulo desta dissertação. Deste modo, as transmutações pertencem ao conjunto de transformações passíveis de serem realizadas em estruturas musicais; por isso, em alguns momentos desta dissertação, utilizamos o termo “transformar” ao nos referir a alguma manipulação do material musical, sem que isso invalide o significado do termo “transmutar” - este último termo, quando utilizado, adiciona um teor poético ao contexto. O compositor que deseja efetuar transmutações entre estruturas musicais deve compreender as propriedades dos elementos dessas estruturas em nível relacional; além disso, também necessita de ferramentas apropriadas para operar sobre tais elementos. O escopo desta dissertação reside nessas duas necessidades composicionais voltadas para o contexto da linguagem instrumental e vocal: portanto, comentaremos algumas propriedades de certos tipos de estruturas musicas e extrairemos procedimentos do repertório do século XX que nos servirão de ferramentas composicionais para a transmutação em âmbito musical. Possivelmente, em muitos dos exemplos que comentaremos, não houve por parte do compositor em questão nenhum pensamento ou diretriz relativos à um conhecimento prévio de alquimia, ou uma associação metafórica em relação à transmutação. Mas há nesses exemplos uma intenção visível de transformar uma estrutura com uma configuração específica em outra estrutura com uma configuração diferente da primeira. Além disso, não há menção ou alusão por parte dos compositores estudados no segundo capítulo deste trabalho em relação a processos alquímicos. Edgar Varèse, dentre os compositores citados ao longo desta dissertação, é a única exceção a esta afirmação: 2

Da ciência, então, Varèse se apropriaria de vários conceitos que ele metamorfosearia em conceitos musicais a posterior: através da alquimia de Paracelse, ele adquiriria a dimensão da transmutação de elementos; de Helmholtz, a concepção da fusão timbrística (através da ideia da sobreposição de harmônicos); da física retiraria a imagem de atração e repulsão das massas físicas, que ele sublimaria para as passas e planos sonoros etc. (CATANZARO, 2003, p. 27)

Varèse chegou a valer-se do termo “transmutação” para descrever tipos de eventos que ocorriam em suas peças:

Quando novos instrumentos me permitirem escrever música do modo como eu a concebo, o movimento de massas sonoras, de planos cambiantes, serão claramente percebidos em meu trabalho, tomando o lugar do contraponto linear. Quando essas massas sonoras colidirem, o fenômeno de penetração ou repulsão ocorrerá. Certas transmutações acontecerão em certos planos que parecerão ser projetados em outros planos, movendo-se em diferentes velocidades e em diferentes ângulos. (VARÈSE, apud ANDERSON, 1991, p. 35, tradução nossa)1

O uso do termo “transmutação” por Varèse parecia ser recorrente. Em um texto de Chon Wen-Chung – ex-aluno e responsável pela revisão de algumas partituras do compositor francês – nota-se novamente o emprego do termo:

Próximo à sua busca por um novo meio e um novo sistema notacional para liberar o som de toda e qualquer limitação mecânica, o crescimento e interação de massas sonoras no espaço por meio de um contínuo processo de expansão, projeção, interação, penetração e transmutação representam a parte mais significativa de seu pensamento, igualmente aplicável ao Poème Electronique, Déserts, Intégrales, Ionisation ou Density 21.5. (WENCHUNG, 1966, p. 3, tradução nossa)2

No artigo Varèse: A Sketch Of The Man And His Music (1966), Wen-Chung busca trabalhar definições para a terminologia utilizada por Varèse. No texto em 1

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When new instruments will allow me to write music as I conceive it, the movement of sound-masses, of shifting planes, will be clearly perceived in my work, taking the place of the linear conterpoint. When these sound-masses collide, the phenomena of penetration or repulsion will seem to occur. Certain transmutations taking place on certain places will seem to be projected onto other planes, moving at different speeds and at different angles. (VARÈSE apud ANDERSON, 1991, p. 35 Next to his quest for a new medium and a new notational system to liberate sound from any and all mechanical limitations, the growth and interaction of sound-masses in space through a continual process of expansion, projection, interaction, penetration and transmutation represent the most significant part of his thinking, equally applicable to Poème Electronique, Déserts, Intégrales, Ionisation or Density 21.5. (WEN-CHUNG, 1966, p. 3)

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questão, Wen-Chung define a transmutação como uma transformação que ocorre após a colisão de massas sonoras. Apesar da tentativa de trabalhar a definição por meio de amostras e exemplos extraídos da música de Varèse, o conceito não é claramente delineado. Varèse utilizava a terminologia, em muitos casos, de forma metafórica.:

Varèse referia-se a várias fontes específicas de influência científica, mas muitos autores subsequentes que investigaram essas fontes concluíram que a terminologia pseudo-científica de Varèse é uma elaborada metáfora de ideias nebulosas, que não estão bem traduzidas pela música. (ANDERSON, 1991, p. 31, tradução nossa)3

Desejamos com este trabalho investigar as possibilidades advindas da transposição do conceito de transmutação para o âmbito da composição musical em um contexto instrumental ou vocal (portanto, não eletroacústico). No primeiro capítulo descreveremos as intencionalidades de nossa “poética da transmutação” e exporemos a metodologia utilizada neste estudo.No segundo capítulo, comentaremos as ferramentas de transformação que formam o escopo deste capítulo. Estas ferramentas foram obtidas por meio de análise extrativa de obras de György Ligeti, Tristan Murail, Philip Glass, Steve Reich, Gérard Grisey, Edgar Varèse, Denise Garcia, Iannis Xenakis, Silvio Ferraz, Luciano Berio e Toru Takemitsu. A seção 2.1 trata das operações empregadas para realizar transformações progressivas (principalmente no campo das alturas e durações); a seção 2.2 apresenta conceitos relacionados à transformação em âmbito timbrístico e a seção 2.3 expõe procedimentos extraídos da técnica de interpolação aplicada à alturas e durações. No terceiro capítulo veremos diversos modos de integrar estas ferramentas. Nos referiremos a estes modos de integração como “estratégias de transmutação”. Estas estratégias são demonstradas na prática por meio de relatos composicionais de obras criadas pelo autor deste texto. Nesses relatos, expomos claramente tanto o uso das ferramentas composicionais como as diferentes combinações entre elas (estratégias de transmutação) e comentamos os resultados sonoros obtidos. O quarto capítulo tratará da produção composicional realizada em paralelo à 3

Varèse himself referred to several specific sources of scientific influence, but many subsequent writers who investigated these sources concluded that Varèse's pseudo-scientific terminology is a fanciful metaphor of hazy ideas, not translated well by the actual music. (ANDERSON, 1991, p. 31)

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pesquisa, descrevendo a aplicação dos procedimentos estudados nos capítulos anteriores.

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Capítulo 1: Sobre a transmutação entre estruturas musicais

1.1 Poética da transmutação

Processos composicionais podem ser dirigidos segundo duas diretrizes dicotômicas entre si. Estas diretrizes são 1) a variedade a partir da unidade e 2) a unidade a partir da variedade. A primeira diretriz diz respeito ao pensamento composicional sobre o qual toda variação deve surgir de um tema. Este tema constitui o fator de unidade de uma obra; toda variedade desenvolvida ao longo desta obra apresenta uma relação de semelhança com o tema. É nesta esfera que está inserido parte do pensamento composicional clássico-romântico

que

desembocará

no

serialismo,

no

qual

emblemáticos

representantes (tais como Beethoven, Brahms e posteriormente Schoenberg, Boulez e Stockhausen) compõem obras dentro de uma tradição que vai do desenvolvimentismo da forma sonata ao serialismo integral. É também este o contexto sobre o qual os compositores representantes do serialismo integral irão explorar em suas obras a variedade a partir da unidade em seu grau máximo. A segunda diretriz parte do pressuposto de que a obra constrói seu senso de unidade por meio da justaposição de diferentes elementos. Neste caso, a obra adquire um caráter rapsódico, no qual seções justapostas apresentam sempre algum grau de novidade, sem haver um comprometimento com a relação temática entre estas seções. Compositores como Gesualdo, Vivaldi, Ives, Villa-Lobos, Stravinsky e Cage apresentam características rapsódicas nas idiossincrasias de suas escritas. Pode-se pensar que nos procedimentos randômicos de Cage este pensamento é levado ao limite – já que em tais procedimentos um elemento poderia ser sucedido aleatoriamente por qualquer outro elemento, sendo a unidade constituída pela estrutura resultante de um número específico de sucessões sorteadas. Durante a década de 50, os dois procedimentos têm em Pierre Boulez e John Cage seus mais célebres representantes. Em 1949, uma improvável amizade surge entre esses dois compositores. Tal amizade não durará muito tempo, dadas as enormes diferenças nos projetos estéticos defendidos por cada um deles. Entretanto, um jovem 6

György Ligeti aponta, num dado período entre 1958 e 1960, a grande semelhança no resultado sonoro dos procedimentos de Boulez e Cage, nesta época levados ambos ao extremo de suas possibilidades estruturais:

A ironia do rompimento da amizade entre Cage e Boulez foi que certas peças aleatórias de Cage acabaram soando estranhamente semelhantes às peças serialistas integrais de Boulez. O jovem compositor húngaro György Ligeti apontou a semelhança em dois afiados artigos analíticos de 1958 e 1960, concluindo que Boulez e os outros compositores serialistas não eram totalmente responsáveis pelo resultado de seus trabalhos. (ROSS, 2009, p. 391)

Ironicamente, a convergência de resultados sonoros entre os experimentos de Cage e as obras de Boulez representam um ponto de contato entre as duas diretrizes dicotômicas. Este ponto de contato é, para ambos os pontos de vista, resultado da exploração máxima dos recursos propostos. Representa também a entropia e o esgotamento desses pensamentos composicionais, traduzidos na incapacidade, enquanto sistemas, de renovarem-se em si. Se há um ponto de contato, há uma possibilidade de trânsito. Significa que o que é dicotômico também pode ser polar, pode estar conectado ao seu oposto através de um eixo. A partir desse ponto de vista, os dois pensamentos composicionais poderiam assim ser integrados; poderiam também gerar obras cujas diretrizes são híbridas: ora a partir da unidade pela variedade, ora a partir da variedade pela unidade. A transmutação entre estruturas musicais permite, enquanto técnica, que se trabalhe com estruturas musicais sem relação temática entre si havendo entre elas, ao mesmo tempo, uma relação de vínculo. Constrói-se transições entre essas estruturas, transições estas que contém as transformações de uma estrutura em outra organizadas de forma progressiva. Assim, as transições funcionam como pontos de contato, como modos de se criar relações entre materiais diferentes. Desta maneira, trabalha-se não com um tematismo, e sim com uma direcionalidade de um conteúdo a outro. Cria-se um vínculo, um estado de familiaridade, de conciliação progressiva das diferenças. A obra passa a ser um objeto sobre o qual o jogo entre variedade e unidade acontece nos estados transicionais entre uma estrutura e outra. É um pensamento semelhante ao exposto nos comentários de Vitale (2013, p. 216-217) a respeito da estética de György 7

Ligeti:

A própria estética do compositor é edificada em zonas de conflito, de transição, de união ou síntese entre opostos. Neste caso, a dialética existente entre precisão e imprecisão se resolve numa espécie de síntese impossível. Ligeti tenta fazer dos dois aspectos, aparentemente opostos, um aspecto só. Daí a importância da gradação no pensamento composicional de Ligeti, pois sua música caminha de um ponto para outro mas não se estabelece em nenhum dos dois. A música fica num entre constante, numa ponte, numa gradação que conecta pontos opostos ou simplesmente distantes. (VITALE, 2013, p. 216-217)

As possibilidades de aplicação da técnica são amplas: desde construir obras inteiras sobre poéticas da transmutação até a resolução de problemas composicionais de conexão entre seções diferentes. Pode-se utilizar a técnica de maneira circunstancial ou integrada ao projeto composicional de uma obra. A questão que colocamos neste ponto é: como desenvolver esta técnica? Para isto, é necessário o estabelecimento de uma metodologia. Na próxima seção exporemos o método sobre o qual trabalharemos para extrair as ferramentas necessárias para a obtenção da técnica de transmutação entre estruturas musicais.

1.2 Método para extração de ferramentas

O objetivo principal deste trabalho é obter ferramentas para a execução de transmutações entre estruturas na composição de música instrumental e vocal. Optamos por extrair essas ferramentas de exemplos musicais existentes no repertório do século XX. Realizamos portanto análises extrativas sobre peças ou fragmentos de peças que apresentem algum grau de transmutação entre suas estruturas constitutivas; a partir dessas análises, classificamos e categorizamos os procedimentos. Houve uma grande preocupação em conceitualizar os procedimentos da forma mais objetiva o possível. Isto para garantir que a extração e o emprego de cada uma das ferramentas composicionais seja demonstrável de forma apropriada. O segundo capítulo apresenta a definição e aplicação das seguintes ferramentas, todas acompanhadas de comentários e exposição retirada de obras do século XX: adição, inserção, subtração, exclusão, permutação e substituição progressiva de 8

elementos, transmutação timbrística via morphing e via crossfading e interpolações de alturas e durações. No caso do morphing, do crossfading e das interpolações, as ferramentas foram extraídas de exemplos retirados de obras eletroacústicas, ocasionando em práticas assumidamente tecnomórficas.

Tecnomorfismo, de acordo com a acepção de Peter Niklas Wilson (1989), refere-se à utilização metafórica de um processo tecnológico aplicado em um meio diverso ao qual este foi concebido; no caso, à música composta para instrumentos tradicionais. Ou seja, a abstração de uma ideia tecnológica (como a manipulação de uma fita magnética, a análise de um espectro sonoro via computador, etc.) aplicada à música tradicional instrumental ou vocal. (CATANZARO, 2003, p. 12)

Neste trabalho, as operações progressivas de adição, inserção, subtração, exclusão, permutação e substituição são trabalhadas no âmbito das alturas e durações. O uso dessas ferramentas permite que se efetue transmutações de forma gradual. Já a transmutação timbrística e as interpolações podem ser trabalhadas como transmutações tanto contínuas como graduais. Tratamos transformações contínuas e graduais como processos distintos. Na próxima seção, estabeleceremos a diferença entre estes dois tipos de transformação que acontecerão por meio das ferramentas que estudaremos.

1.3 Transformações contínuas e graduais

Propomos a definição da transmutação de estruturas musicais como o ato de transformar progressivamente (em um contexto composicional instrumental e/ou vocal) um conteúdo musical em outro, o que implica em um tipo de transformação direcional, no sentido em que uma estrutura A é deliberadamente modificada para metamorfosearse em B. As transmutações podem ocorrer dentro de qualquer parâmetro ou propriedade: em estruturas melódicas, harmônicas, timbrísticas, rítmicas, dinâmicas, etc. Segundo Dennis Smalley, “uma transformação pode ser encarada como um processo unindo duas identidades4” (SMALLEY, 1993, p. 286). Em sua terminologia, a estrutura inicial de um processo de transformação é chamada de identidade base e a estrutura final de identidade consequente. Smalley estabelece dois tipos básicos de 4

“A transformation can be looked upon as a process linking two identities.” (SMALLEY, 1993, p. 286)

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transformação: transformações contínuas e unitárias.

Na transformação contínua a identidade base move-se em direção à consequente (ou distancia-se da base) em uma taxa contínua e graduada. Esta taxa pode ser linear, exponencial, flutuante, e assim por diante. A transformação contínua é um processo contíguo. Em transformações unitárias a identidade base (e portanto qualquer consequente) é uma unidade ou objeto separado. O consequente pode ou não estar localizado contiguamente no tempo em relação à identidade base. Repetições contíguas permitem que sutis mudanças em sucessivas versões do mesmo objeto sejam acompanhadas pelo ouvido, e é particularmente útil em transformações espectromorfológicas, onde as identidades podem ser mais abstratas. (SMALLEY, 1993, p. 286, tradução nossa)5

O artigo de Smalley situa-se em um contexto analítico cujo objeto de estudo são os paradigmas de transformação na música eletroacustica. Entretanto, seus conceitos são aplicáveis à escrita instrumental e vocal, especialmente se estamos buscando a criação de uma música na qual os processos de transmutação estão presentes. Apontamos também a relação entre seu conceito de transformação unitária e o que entendemos

por

transformações

graduais:

aquelas

onde

as

alteridades

são

incrementalmente inseridas seguindo uma escala de graus. No contexto deste trabalho, consideramos transformações unitárias e transformações graduais como termos para designar o mesmo tipo de processo. Suponhamos que queiramos empregar os dois tipos de transformação no campo das alturas dentro das possibilidades de um efetivo vocal ou instrumental. No caso, desejamos transmutar a altura Dó na altura La. Na transformação contínua isto seria feito por meio de um glissando entre as duas alturas. Musicalmente, transformações contínuas podem ser realizadas cumprindo-se uma trajetória contínua entre dois pontos definidos em um dado parâmetro. Por exemplo, no campo das dinâmicas pode-se ir de p a f continuamente, sem interrupções; ritmicamente, pode-se realizar um accelerando ou ritardando; ou então, no campo das alturas, pode-se realizar 5

“In continuous transformation the base moves towards the consequent (or away from the base) at a continuous, graduated rate. This rate could be linear, exponential, fluctuating, and so on. Continuous transformation is a contiguous process. In unitary transformation the base identity, and therefore any consequent, is a separate unit or object. The consequent may be located either contiguously or noncontiguously in time to the base identity. Contiguous repetition allows subtle changes in sucessive versions of the same object to be followed by the ear, and is particularly useful in spectromorphological transformation, where identities may be more abstract(ed).” (SMALLEY, 1993, p. 286)

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um glissando, conforme demonstrado na figura 1. Já na transformação gradual (unitária em Smalley), o evento é repetido e a cada repetição uma mudança é inserida; no caso, a elevação de um semitom a cada repetição até atingir a altura La. De Dó a La temos nove passos na escala cromática; assim, temos nove graus e consequentemente nove etapas de gradação cromática.

Fig. 1: diferenças entre a transformação contínua e gradual da altura Dó para a altura La.

Transformações contínuas tendem a ser percebidas como um único objeto submetido a um processo de transformação initerrupto, enquanto transformações graduais são percebidas como repetições de um objeto nas quais pequenas alterações são inseridas passo a passo, promovendo uma transformação gradual da identidade base em direção à identidade consequente. Neste trabalho, as transformações contínuas sempre estarão (obviamente) associadas à processos de transformação contínuos; as transformações graduais corresponderão à processos gradativos; ou seja, processos que envolvem um número de graus de alteridade, repetições da identidade base acompanhadas de alterações e o estabelecimento de graus de transformação entre identidade base e identidade consequente. 11

Nota-se a importância que Smalley dá à questão da contiguidade quando diferencia os dois tipos de transformação. Em um trecho posterior do texto, Smalley (1993, p. 286) comenta que “transformações não contíguas precisam de uma identidade base forte o suficiente de modo que seja retida na memória, para que qualquer consequente seja identificado como derivado da base”6. Neste comentário encaixa-se uma parte do repertório ocidental cujas diretrizes se baseiam em princípios desenvolvimentistas, nos quais a variedade é gerada a partir da unidade – e onde a ideia do desenvolvimento de um tema mantém-se como importante pilar estético. Transformações não contíguas podem ser associadas a processos de manipulação motívica, podendo por exemplo ser observadas em obras que fazem uso da forma sonata ou do tema com variações, nas quais os desenvolvimentos das identidades base ocorrem sem que a disposição dos mesmos seja claramente direcional. Consideramos a ideia da transformação que acontece contiguamente fortemente apegada à metáfora da transmutação; portanto, transformações não contíguas não se encaixam na definição de transmutação de estruturas musicais proposta nesta dissertação. Sobre a direção do processo de transformação, Smalley expõe três tendências direcionais possíveis: direção específica, implícita e livre.

Uma direção específica ocorre quando uma identidade consequente claramente definida é estabelecida. Direção implícita ocorre quando atributos do estado consequente sugerem uma ou mais associações novas de fontescausa ou identidades: ouvintes diferentes podem identificar diferentes consequentes. Direção livre ocorre quando um estado ou consequente diferente é alcançado e não pode ser facilmente definido em termos de fontecausa: nossos ouvidos podem ser atraídos mais pelos atributos espectromorfológicos do que por ligações mais explícitas de fontes-causa. (SMALLEY, 1993, p. 286, tradução nossa)7

O termo fonte-causa (source cause) é empregado pelo autor para designar fontes sonoras reconhecíveis pela percepção em um processo de escuta de uma obra 6 7

“Noncontiguous transformation needs a base identity strong enough to be retained in the memory so that any consequent will be identified as deriving from the base.” (SMALLEY, 1993, p. 286) “There are three possible directional tendencies. A specific direction occurs where a clearly defined consequent identity is established. Implied direction occurs where attributes of the consequent state suggest one or more new source-cause associations or identities: different listeners may identify different consequents. Freed direction occurs where a different consequent or state is achieved which we cannot easily define in source-cause terms: our ears may be drawn more to spectromorphological attributes than to more explicit source-cause bondings.” (SMALLEY, 1993, p. 286)

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eletroacústica (por exemplo: um ouvinte pode “reconhecer” o som de sinos em uma obra eletroacústica. Os sinos passariam a ser, segundo a percepção deste ouvinte, uma fonte-causa). Porém, o compositor ao trabalhar com música vocal e/ou instrumental pode não estar preocupado com a percepção de fontes-causa ou atributos espectromorfológicos. Além disso, os conceitos sobre direção de Smalley podem ser extrapolados para além do campo da música eletroacústica. Portanto, adaptaremos os conceitos de direção específica e direção livre para a escrita instrumental e vocal definindo-os da seguinte forma: na direção específica a transformação ocorre quando uma identidade consequente é estabelecida – ou seja, há um planejamento de quais serão as estruturas transmutadas entre si. Na direção livre, os processos empregados no material da identidade base podem guiar o direcionamento, formando assim inesperadas identidades consequentes circunstanciais, que não estão necessariamente dentro de um planejamento. Não exploraremos a noção de direção implícita, pois tal noção parece se relacionar mais com o modo como a transformação é percebida pelo ouvinte do que com processos composicionais específicos. Dentro da classificação proposta por Smalley, o conceito de transmutação conforme propomos neste texto consiste nos processos de transformação graduais e contínuos que promovem, por meio da contiguidade, a transformação de uma identidade base em uma ou mais identidades consequentes, planejadas ou não, por meio de direcionamento específico (base → consequente pré-estabelecido), ou livre (base → consequente a ser definido durante o processo). Em alguns exemplos das seções seguintes, denominaremos a identidade base como estrutura A e a identidade consequente como estrutura B.

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Capítulo 2: Extração de ferramentas composicionais

2.1 Manipulação progressiva de elementos em estruturas musicais

No contexto deste trabalho, operações são definidas como ações sobre elementos de uma estrutura musical com o intuito de produzir um resultado ou efeito. Nesta seção são abordadas as definições das operações de inserção, exclusão, adição, subtração, permutação e substituição, bem como o efeito composicional por elas produzido. Por processo entende-se um conjunto de operações organizado a fim de se obter transformações ou alterações progressivas de uma estrutura musical. Nesta dissertação, o termo “processo” também pode ser entendido como uma série de operações concatenadas. Assim, quando se fala em processos de adição, deve-se entender que há uma série de operações de adição encadeadas para promover alterações progressivas de uma dada estrutura. Embora as operações descritas nesta seção sejam em sua maioria exemplificadas dentro do âmbito melódico, suas aplicações também podem ser transpostas e efetuadas em outros parâmetros.

2.1.1 Inserção de elementos

A inserção é a operação na qual um novo elemento é inserido em uma estrutura musical com o intuito de transformá-la. O novo elemento pode ser introduzido em qualquer parte da estrutura, o que pode ocasionar mudança de algum contorno paramétrico (figura 2).

Fig. 2: a inserção de um novo elemento em uma estrutura melódica altera seu contorno intervalar

14

No artigo intitulado The Pattern-Meccanico Compositions of György Ligeti Jane Piper Clendinning comenta o uso da operação nas obras do compositor György Ligeti:

As práticas harmônicas de Ligeti ilustradas nestas composições (e o grupo microcanônico do mesmo período) é bastante interessante. As harmonias adjascentes não se conectam em progressões - não há hierarquia de progressão estabelecida, nem um senso de tensão/resolução dirigindo uma “pilha” harmônica para a próxima. O processo básico é aditivo – alturas são adicionadas àquelas que já estão soando para aumentar a tessitura estendida ou para aumentar o preenchimento interno de uma extensão já estabelecida. Estas adições de alturas tipicamente formam blocos de construção harmônica similares em estrutura intervalar àqueles que já estão soando combinando alturas pŕe-existentes para construir componentes adicionais com o mesmo design. Há dois métodos sobre os quais Ligeti completa este processo harmônico: o procedimento aditivo é revertido removendo-se alturas para diminuir a tessitura ou diluir a textura (frequentemente revelando componentes harmônicos que estavam escondidos dentro da estrutura) ou o processo de expansão de tessitura ou preenchimento de uma extensão pode ser levado ao extremo, e então cortado abruptamente. (CLENDINNING, 1993, p. 205 – 206, tradução nossa)8

Em seu texto, Clendinning emprega o termo “adição” para descrever as operações de inserção em Ligeti. Entretanto, nesta dissertação há uma diferenciação entre operações de inserção e de adição; neste caso, a adição é uma operação mais específica, relacionada aos processos encontrados na técnica composicional dos compositores minimalistas – principalmente Philip Glass e Steve Reich. Portanto, apesar do emprego do termo, no contexto desta dissertação as operações descritas no texto de Clendinning coadunam com a definição de inserção proposta anteriormente.

As mudanças de alturas na condução interna de vozes de linhas melódicas 8 “Ligeti's harmonic practice as illustrated in these compositions (and the microcanonic group from the same time period) is quite interesting. The adjacent harmonies do not connect progressionally-there is no established progressional hierarchy, nor a sense of tension/resolution driving one harmonic "stack"to the next. The basic process is additive - pitches are added to those already sounding to increase the range spanned or to increase the internal filling of an alreadyestablished span. These added pitches typically form harmonic building blocks similar in intervallic structure to those already sounding by combining with pre-existing pitches to make additional components with the same design. There are two method by which Ligeti completes this harmonic process: either the additive procedure is reversed by removing pitches to close range or thin the texture (often revealing harmonic components that were hidden within) or the process of expansion of range or filling of a span may be carried to an extreme, then cut off abruptly.”

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podem ser descritas mais facilmente reduzindo-se os padrões de repetição à suas harmonias implícitas. As mudanças nos padrões são de vários tipos: (1) adição ou remoção de uma altura, (2) mudança na altura do padrão, normalmente abaixo ou acima por semitom, e (3) renomeação enharmônica (a qual, obviamente, não resulta em mudanças reais de altura). (CLENDINNING, 1993, p. 199, tradução nossa)9

Na obra de György Ligeti pode-se observar, segundo Clendinning, casos de inserção no campo das alturas em:

1)

Continuum (1968): no início da obra para cravo solo, as alturas

Sib e Sol são alternadas rapidamente por ambas as mãos, formando uma estrutura intervalar estável. Posteriormente, a altura Fá é inserida nesta estrutura, sendo tocada pela mão direita; após a inserção de Fá, ocorre a inserção de Láb na mão esquerda. Segue-se a inserção de Lá na mão direita, Dób na mão esquerda, Fá# e Dób na mão direita. O trecho exemplifica um modelo no qual parte-se de uma estrutura intervalar simples rumo ao acúmulo progressivo do nível de saturação cromática da harmonia (fig. 3).

9 “The changes of pitch in the internal voice leading of the melodic lines can be described most easily by reducing the repeated patterns to their underlying harmonies. The changes in patterns are of several types: (1) the addition or deletion of a pitch, (2) change in a pitch of the pattern, usually up or down by a [1], and (3) enharmonic respelling (which, of course, results in no change in the pitch content).”

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Fig. 3: inserção progressiva de elementos no início de Continuum de György Ligeti Fonte: LIGETI, 1969a, p. 4 2)

Oitavo movimento das Dez Peças Para Quinteto de Sopros

(1968): no trecho em questão (figura 4), flauta, clarinete e fagote tocam alternadamente as alturas Ré e Fá. Primeiramente, ocorre a inserção da altura Mi na linha da flauta; logo a mesma altura é inserida na linha do clarinete. Após a inserção do clarinete, a altura Dó# é inserida na linha de flauta.

Fig. 4: inserção de elementos no início do 8º movimento das Dez Peças Para Quinteto de Sopros de György Ligeti Fonte: LIGETI, 1969b, p. 28

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3)

Allegro con delicadeza, quinto movimento do Quarteto de Cordas

nº 2: as alturas Fá# e Ré# são tocadas alternadamente nos violinos, viola e cello. A altura Mi é inserida na linha do primeiro violino, acontecendo o mesmo em seguida com o segundo violino, viola e cello. Depois, a altura Fá é inserida na linha do cello, ocorrendo em seguida o mesmo tipo de inserção na linha do primeiro violino, segundo violino e viola. Por questão de facilidade de leitura, após a inserção de Fá Ligeti passa a escrever Solb no lugar de Fá# (figura 5).

Fig. 5: inserção progressiva de elementos no início do 5º movimento do Quarteto de Cordas nº 2 de György Ligeti Fonte: LIGETI, 1971, p. 24

Ocorrências de inserção também podem ser observadas na obra do compositor Tristan Murail. Em Tellur (1977), obra para violão solo, a operação constitui uma das técnicas empregadas pelo compositor para obter sonoridades em constante transformação. No exemplo da figura 6, a estrutura constituída por três notas (Sol, Sol e La) sofre a inserção de mais uma nota Sol (constituindo a estrutura Sol, Sol, Sol, La); 18

depois, mais duas notas são inseridas (Sol, Sol, Sol, Sol, Sol, La); finalmente, mais duas notas são inseridas as já acumuladas (totalizando sete notas Sol e uma La), culminando em um gesto de rasgueado sobre a nota Sol. Neste exemplo, o uso de inserções promove um aumento na densidade do enunciado musical trabalho.

Fig. 6: inserção progressiva de elementos em Tellur de Tristan Murail Fonte: MURAIL, 1978, p. 2

Em C'est Un Jardin Secret, Ma Sœur, Ma Fiancée, Une Fontaine Close, Une Source Scellée (1976), obra para viola solo, também pode-se observar a ocorrência progressiva da inserção de alturas: inicialmente, a obra inicia com a exposição da altura Si. Após a terceira repetição desta altura, a altura Lá é inserida, formando a estrutura intervalar de sétima menor que deve ser repetida no máximo até duas vezes. Depois, ocorre a inserção da altura Fá, que deve ser repetida de uma a quatro vezes, de acordo com a fruição do intérprete; após este ciclo de repetições, a altura Fá# é inserida (figura 7).

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Fig. 7: inserção progressiva de alturas em C'est Un Jardin... de Tristan Murail Fonte: MURAIL, 1977, p. 1

A inserção levada ao limite promove, enquanto procedimento, a transformação gradativa de uma estrutura rumo à saturação da propriedade trabalhada. Se elegemos, por exemplo, o campo das alturas para trabalhar transformações utilizando a operação de inserção, ao fim do processo a estrutura estará cromaticamente saturada, conforme o exemplo demonstrado na figura 8. Segundo Clendinning, “Ligeti compara esse procedimento harmônico à formação de cristais em soluções supersaturadas”. (CLENDINNING, 1996, p. 206)10

Fig. 8: saturação cromática ao fim do emprego progressivo de inserções no campo das alturas (exemplo nosso).

2.1.2 Exclusão

A exclusão consiste no ato de remover elementos de uma dada estrutura. A exclusão pode ser efetuada sobre qualquer elemento da estrutura – o que pode acarretar em mudança de seu contorno paramétrico (figura 9). 10“Ligeti compares this harmonic process to crystal formation in a supersaturated solution.”

20

Fig. 9: exclusão de elementos acarretando a corrupção do perfil intervalar

A exclusão pode ser vista como um processo de filtragem dos elementos; o que leva a uma analogia com as práticas tecnomórficas tributárias da música eletroacústica. Em sua dissertação de mestrado, Catanzaro comenta que

No estúdio eletrônico, os filtros de impulso, como o próprio nome diz, selecionavam faixas de frequência do espectro de um impulso, reduzindo seu espectro total. Na composição musical instrumental, esse conceito foi abstraído tecnomorficamente pela utilização de um acorde mais ou menos complexo tocado rapidamente (correspondente ao espectro total) cujos parciais (as alturas) são imediatamente ou quase imediatamente suprimidos. (CATANZARO, 2002, p. 107-108)

Nesta dissertação estende-se a aplicação de processos de filtragem via exclusão de elementos não só para acordes complexos (entendidos no contexto da dissertação de Cantanzaro como clusters) como para qualquer estrutura musical, complexa ou não. György Ligeti emprega exclusão de elementos dentro de um contexto poético bastante interessante, sobre o qual Claudio Horacio Vitale faz a seguinte analogia:

Para gerar transformações harmônicas, Ligeti parte de um pensamento composicional que pode ser comparado com a atitude de um escultor que elimina partes de uma matéria para chegar, depois de um certo processo, à forma final desejada. Como o escultor, Ligeti opera por subtração de partes de uma totalidade, neste caso representada pelo cluster cromático. (VITALE, 2013, p. 182)

Em sua tese de doutorado, Vitale realiza uma análise minuciosa de várias 21

obras de Ligeti; dentre elas, Atmosphères (1961), onde identifica inúmeros processos de filtragem de alturas – e, por conseguinte, de exclusão de elementos. Segundo Vitale, pode-se observar operações de exclusão de elementos em outros momentos da obra de Ligeti, tais como:

1)

Lux Aeterna (1966): no trecho de Lux Aeterna exposto na figura 10,

temos no primeiro compasso as alturas Fá, Sol, Lá e Sib. A exclusão começa após a última execução da altura Fá cantada pela quarta contralto – depois deste trecho esta altura não é mais executada. O mesmo acontece com a altura Sib (também executada pela quarta contralto) e com a altura Sol (executada pela última vez pela quarta soprano). Após estas operações, resta apenas a altura Lá.

Fig. 10: exclusão progressiva de elementos em Lux Aeterna de György Ligeti Fonte: LIGETI, 1968, p. 7

2)

Continuum: no trecho de Continuum exposto na figura 11, temos

as alturas Lá, Sol# e Fá# tocadas pela mão direita e Fá#, Sol, Láb, Lá e Si tocadas pela mão esquerda. A primeira exclusão ocorre na altura Si; segue-se a 22

exclusão da altura Sol, também na mão esquerda; após isto, a exclusão de Lá na mão direita e finalmente Lá na mão esquerda. A estrutura resultante deste processo é uma alternância entre Fá# e Sol# tocada por ambas as mãos.

Fig. 11: exclusão progressiva de elementos em Continuum de György Ligeti Fonte: LIGETI, 1969, p. 5

Percebe-se igualmente a presença da operação de exclusão nas já citadas obras de Tristan Murail:

1) Tellur: nesta obra para violão solo a estrutura A é composta de um ostinato tocado com harmônicos (La e Ré) e cachos de sons percussivos sem altura definida. O compositor emprega exclusão de elementos para diminuir a densidade dos cachos. Na figura 12, as notas marcadas com retângulos serão excluídas na próxima etapa da transformação. Na estrutura A, as notas a serem excluídas na 1ª etapa estão marcadas; na 1ª etapa, as notas marcadas na estrutura A são excluídas e as notas a serem eliminadas na 2ª etapa são marcadas; na 2ª etapa, as duas notas marcadas na 1ª etapa são excluídas e as notas a serem eliminadas na próxima etapa são marcadas; eliminando estas últimas notas, obtém-se a estrutura B.

23

Fig. 12: exclusão progressiva de elementos em Tellur, obra para violão solo de Tristan Murail Fonte: MURAIL, 1978, p. 3

2) C'est Un Jardin: as notas presentes nos acordes são progressivamente eliminadas, trazendo para um primeiro plano o motivo Si-Sol tocado em harmônicos (figura 13).

Fig. 13: exclusão progressiva de elementos em C'est Un Jardin... de Tristan Murail Fonte: MURAIL, 1977, p. 3

Empregada ao limite, a operação de exclusão leva ao decaimento total da estrutura, conforme demonstrado na figura 14. Nos exemplos musicais, seu emprego contrabalanceia o uso da inserção (e vice-versa). São operações complementares utilizadas por Ligeti e Murail com o intuito de promover e controlar transformações progressivas de seus materiais musicais.

Fig. 14: decaimento total da estrutura conduzido por operações de exclusões sucessivas (exemplo nosso).

24

2.1.3 Adição

Nesta dissertação, difere-se o uso dos termos adição e inserção; os termos não descrevem exatamente os mesmos processos. Admite-se que os processos aditivos formam um subconjunto do conjunto dos processos de inserção (nem sempre o contrário é válido); todavia, o repertório no qual os processos aditivos são extraídos e sobre o qual são teorizados neste trabalho é outro; assim, também são outras as diretrizes estéticas e pensamentos composicionais. Além disso, os processos aditivos produzem resultados típicos, cabendo então uma classificação à parte. Os processos aditivos podem ser associados à produção de Philip Glass, Steve Reich e Terry Riley. Segundo Dimitri Cervo,

Philip Glass, em suas primeiras obras minimalistas, realizadas no final dos anos 60, estava preocupado em desenvolver outra técnica composicional que se tornou característica do Minimalismo: a técnica de processo aditivo/subtrativo linear (linear additive process). Como o próprio compositor relata, a idéia da técnica de processo aditivo linear lhe ocorreu depois de fazer algumas transcrições de música indiana para a notação ocidental, em um trabalho junto a Ravi Shankar em Paris, no ano de 1965. Glass trabalhou algum tempo com Ravi Shankar e seu tablista Alla Rakha, tendo a missão de transcrever para a notação ocidental a música a ser executada em uma sessão de gravação. Gradualmente, Glass percebeu que a rítmica da música hindu era estruturada de forma diferente da ocidental. Ele percebeu que na música ocidental o ritmo é dividido, enquanto que na música hindu parte-se de pequenas unidades rítmicas que, colocadas em seqüência, formam ciclos ou unidades maiores (ritmo aditivo). (CERVO, 2005, p. 52)

Em seu artigo intitulado A Working Terminology for Minimal Music, Dan Warburton propõe terminologias para especificar os processos de adição encontrados na obra dos compositores minimalistas. O primeiro processo descrito nesta seção é o da adição linear: Enquanto Reich estava explorando as possibilidades do phasing puro e ao vivo, os primeiros trabalhos minimalistas de Philip Glass se preocupavam com outra técnica que virou uma característica padrão do minimalismo, aquela do processo de adição linear. (WARBURTON, 1988, p. 5, tradução nossa)11

11 “While Reich was exploring the possibilities of both pure and live phasing, Philip Glass's first minimalist works were preoccupied with another technique that became a standard feature of minimalism, that of linear additive process.”

25

Segundo Cervo, A técnica de processo aditivo linear articula processos de repetição baseados em adição de figuras a partir de um padrão base. Por exemplo, se temos um padrão 1-2, após um certo número de repetições adiciona-se mais um elemento 1-2-3, gerando assim um processo gradativo de adição linear. Esse processo pode ser regular com a adição de um número regular de unidades durante o processo de repetição (ex. 1, 1-2, 1-2-3), ou ainda irregular com a adição de um número irregular de unidades (ex. 1, 1-2-3, 1-2-3-4, 1-2-3-4-56) durante o processo de repetição. (CERVO, 2005, p. 52)

A definição proposta por Cervo inclui a necessidade de haver um padrão base para efetuar as adições. Significa que este padrão se mantém intacto – e é neste ponto que apontamos a distinção entre as operações de inserção e de adição (figura 15). A inserção pode ser realizada em qualquer parte da estrutura, não havendo a necessidade de manter o contorno desta figura intacto, enquanto a adição preserva esta estrutura, adicionado a ela novos elementos sem que estes corrompam as relações já existentes.

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Fig. 15: diferença entre operações de adição e inserção.

Certamente a operação de adição também é uma operação de inserção; entretanto, nem toda inserção pode ser classificada como uma operação de adição. As operações de adição saturam em termos de conteúdo, mas não alteram os contornos rítmicos e melódicos prévios da estrutura. Exemplos de ocorrência da operação de adição linear podem ser observados em Two Pages (1969) de Philip Glass. A figura 16 apresenta o início da obra. A primeira frase composta por cinco notas (Sol, Dó, Ré, Mib, Fa) é repetida 34 vezes. Após as repetições, um subconjunto composto pelos elementos da frase(Sol, Dó, Ré, Mib) é adicionado contiguamente à primeira estrutura, sem que haja corrupção do perfil desta. Esta segunda estrutura é repetida 18 vezes. Do mesmo modo, na próxima etapa, um novo subconjunto (Sol, Dó, Ré) é adicionado à estrutura anterior, sem que esta sofra qualquer alteração em seu perfil intervalar prévio. Esta terceira estrutura é repetida 14 vezes. Em seguida, é adicionada a esta estrutura mais um subconjunto (Sol, Dó). Esta 27

quarta estrutura é repetida 15 vezes. Nota-se que os subconjuntos que são adicionados às estruturas prévias são cada vez menores. Porém, dado o processo de acumulação que é obtido por meio de seguidas operações de adição, o enunciado prolonga-se cada vez mais.

Fig. 16: ocorrência de adição linear em Two Pages de Philip Glass

O próximo processo de adição abordado por Warburton é o de processos aditivos por grupos12.

Processos aditivos por grupos (aos quais Reich refere-se como "substituir pausas por ritmos") consiste na montagem gradual de uma unidade dentro de uma estrutura temporal imutável e pré-determinada (WARBURTON, 1988, p. 6, tradução nossa ) 13

O processo aditivo por grupos consiste em inserções de elementos em espaços vazios. Diferentemente da operação de inserção, neste caso o elemento não é colocado entre duas notas pré-existentes, e sim inserido na posição ocupada por alguma pausa.

12 Tradução proposta por Cervo do termo block additive process criado por Warburden. Segundo o autor, “preferimos o termo“grupo”, ao invés de “bloco”, pois bloco em português pode ser facilmente relacionado e confundido com textura”. 13 “... block additive process (which Reich refers to as "replacing rests by beats") consists of the gradual assembly of a unit within a predetermined and unchanging time frame.”

28

Fig. 17: exemplo de processo de adição por grupos

Na prática, este tipo de processo aditivo equivale à um tipo específico de operação de substituição de elementos – no caso em questão (figura 17), a substituição gradual de elementos de uma estrutura composta por pausas pelos elementos de outra estrutura composta por notas musicais. As operações de substituição serão descritas em detalhes na seção 2.1.6. Do ponto de vista dos processos de adição, as pausas são consideradas espaços em branco a serem preenchidos. Cervo descreve outra operação identificada por Warburton: o processo de adição textural:

Essa técnica consiste em nada mais do que adicionar vozes, uma a uma, até o ponto em que toda a textura se completa. [...] A idéia de uma textura que se incrementa (ou se extingue) gradualmente tem muitos antecedentes na música ocidental, mas a maneira pontual como os compositores minimalistas a utilizaram, subjugando a técnica a um processo gradual, e sempre em combinação com outras técnicas de variação gradual, criou efeitos tímbricos de grande variedade, riqueza e sofisticação, como, por exemplo, na obra Music for Eighteen Musicians (1974-6) de Reich. Assim, o timbre ganha uma importância estrutural de relevância na música minimalista, já que ele é um elemento que pode variar de forma bastante rica e complexa, enquanto os outros elementos de um processo de repetição permanecem estáticos. (CERVO, 2005, p. 55-56)

A figura 18 apresenta a primeira página de Music for Eighteen Musicians (1974-6) de Steve Reich. Pode-se observar a adição progressiva de camadas ocasionando em uma manipulação textural cada vez mais densa. Os processos aditivos descritos até este ponto, apesar de seguirem uma classificação (processos aditivos lineares, por grupos, texturais), podem todos ser generalizados sob o princípio de somarem conteúdo à uma estrutura pré-existente, sem alterar a organização interna desta estrutura.

29

Fig. 18: adição textural em Music for 18 Musicians de Steve Reich Fonte: REICH, 1999, p. 1

30

2.1.4 Subtração

A operação de subtração consiste na contraparte dos processos aditivos; assim, ela está para a exclusão assim como a operação de adição está para a inserção. Na subtração de elementos, a estrutura decai, mas sem alterar os contornos paramétricos de seu conteúdo. Todos os processos aditivos contém suas contrapartes subtrativas. O processo subtrativo linear consiste na remoção gradual de elementos de modo que não haja nenhuma nova alteração do contorno pré-existente da estrutura. Esta decai gradativamente, perdendo aos poucos o seu conteúdo (figura 19).

Fig. 19: exemplo de processo subtrativo linear: o contorno intervalar da melodia não sofre novas alterações, apenas decaimento no número de elementos de sua estrutura.

No processo subtrativo por grupos, os conteúdos da estrutura são progressivamente substituídos por espaços vazios ou pausas, como se a música se subtraísse em camadas. Atente-se para a diferença entre este processo e o processo de exclusão, no qual a remoção de elementos cria novos contornos paramétricos entre elementos consecutivos. Assim como sua contraparte aditiva, este processo pode ser visto também como um conjunto de operações de substituição (comentadas na seção 2.1.6), onde elementos de uma estrutura composta por notas musicais são trocados por 31

outros cuja estrutura é composta por pausas (figura 20).

Fig. 20: exemplo de processo subtrativo por grupos comparado com operação de exclusão: as alterações no perfil intervalar da melodia evidenciam o aspecto corruptivo do emprego de processos de exclusão em comparação com os de subtração.

No processo subtrativo textural, as camadas que determinam uma textura são progressivamente removidas. Este processo promove o decaimento gradativo da malha textural. Este tipo de procedimento pode ser observado na obra Branco (2007), de Denise Garcia (figura 21).

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Fig. 21: Exemplo de processo subtrativo textural em Branco (2007) de Denise Garcia Fonte: GARCIA, 2007, p. 21

Assim como as operações de inserção e exclusão são complementares, o mesmo acontece com as de adição e subtração. Todas são empregadas com o intuito de exercer controle dentro de um plano no qual um material musical se transforma progressivamente em outro; são enfim ferramentas úteis para promover transmutações entre estruturas musicais de modo que as etapas das transformações estejam presentes na escrita musical e na escuta. As inúmeras configurações de operação possíveis de serem efetuadas sobre uma estrutura faz com que, apenas com o emprego das quatro operações até aqui descritas, haja uma quantidade muito grande de possibilidades ou 33

caminhos para se transmutar uma estrutura em outra. A figura 22 apresenta um exemplo nosso de como as operações podem ser combinadas para efetuar transmutações.

Fig. 22: Transmutações com emprego de operações de inserção, exclusão, adição e subtração.

2.1.5 Permutações

A permutação é uma operação na qual ocorre troca de posição entre elementos. No contexto desta dissertação, a permutação será exemplificada em dois contextos distintos: 1) permutação entre elementos dentro de uma mesma estrutura e 2) permutação entre elementos de duas estruturas distintas. Na permutação de elementos de uma mesma estrutura, a função desta operação é a de gerar variedade a partir da recombinação dos mesmos elementos. Uma linha melódica, ao sofrer permutações, pode revelar novos contornos paramétricos – sem que haja a inserção ou exclusão de alturas; ou seja, obtém-se múltiplas relações a partir dos mesmos elementos constituintes da estrutura (figura 23).

34

Fig. 23: exemplos de aplicação da operação de permutação sobre uma melodia, gerando inúmeras configurações intervalares.

Pode-se observar a ocorrência de processos de permutação no trecho inicial de Prologue (1976), obra para viola solo e eletrônica opcional de Gérard Grisey, que constitui o primeiro movimento de Les Espaces Acoustiques (figura 24). No exemplo em questão, também é possível perceber alguns processos de inserção e exclusão de elementos. A estrutura A é composta por seis termos: a1, a2, a3, a4, a5 e a6. Na primeira etapa, os elementos a2 e a3 são permutados e o elemento a6 é subtraído. Na segunda etapa, os elementos a2 e a3 são novamente permutados, localizando-se em suas posições originais (ver estrutura A). Nesta etapa o elemento a4 é excluído e os elementos a6 e a7 são adicionados à estrutura. Na terceira etapa, os elementos a1, a2 e a3 são permutados, a4 é adicionado e a6 é subtraído. Na quarta etapa, a1, a2 e a3 são permutados, a4 e a5 excluídos e a7 e a8 adicionados; na quinta etapa, a1, a2 e a3 são novamente permutados (voltando à ordenação inicial da estrutura A), a7 é excluído e a6, a8 e a9 inseridos na estrutura.

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Fig. 24: exemplos de permutação em Prologue de Gérard Grisey Fonte: GRISEY, 1978, p. 1

A operação de permutação de elementos é um recurso bastante útil quando se deseja realizar transformações em algum contorno paramétrico utilizando os mesmos elementos de uma estrutura (figura 25):

Fig. 25: exemplo de transformação no contorno a partir de processos de permutação

36

Na permutação entre elementos de estruturas distintas, ocorre uma troca de conteúdo, a partir da qual os elementos permutados assumem o comportamento de elementos inseridos (figura 26); ou seja, as duas estruturas sofrem, simultaneamente, operações de exclusão (elemento removido da estrutura A que será inserido em B) e de inserção (elemento advindo de B que será inserido em A).

Fig. 26: exemplo de permutação entre elementos de estruturas distintas

Em Ionisation (1931), Edgar Varèse emprega permutações entre elementos de duas estruturas opostas (figura 27). A divisão de quintinas (a1) e o motivo rítmico ornamentado com apojaturas (a2)

integram a matriz de materiais utilizados para

construir a seção 1 (compassos 1 a 8). Do mesmo modo, o agrupamento de fusas (b3) e os motivos com combinações de semicolcheias e colcheias (b1, b2, b4 e b5) integram a matriz de materiais utilizados para construir a seção 2 (compassos 9 a 12). Os materiais citados na seção 1 são reexpostos na seção 3 (compassos 13 a 17). Nesta seção, a figuração de quintinas e o motivo ornamentado desaparecem, dando lugar aos materiais da seção 2; da mesma forma, na seção 4 (compassos 18 a 20), os materiais da seção 2 surgem recombinados com as quintinas e recortes do motivo rítmico ornamentado da seção 1.

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Fig. 27: matrizes de materiais rítmicos utilizados nas seções 1 a 4 de Ionisation de Varèse.

A operação de permutação promove inicialmente uma espécie de mistura das duas estruturas; entretanto, se for levada ao limite por meio de um número elevado de operações sucessivas, os resultados finais possíveis de serem obtidos são: 1) a reconstrução das duas estruturas em posições invertidas; ou 2) a reconfiguração integral das duas estruturas, ocasionando o surgimento de novas relações. Tudo dependerá das decisões do compositor no modo de permutar e posicionar os elementos: ele pode efetuar as permutações mantendo a posição relativa do elemento na outra estrutura (ou 38

seja, permutando o primeiro elemento de A com o primeiro de B, o segundo de A com o segundo de B, etc) - o que acarretará na reconstrução integral das duas estruturas em posições trocadas, ou poderá permutar os elementos livremente (o primeiro elemento de A permutado com o terceiro de B, o segundo de A com o quinto de de B, etc) – ocasionando não uma reconstrução, mas uma nova configuração das duas estruturas, com novos contornos paramétricos (figura 28).

Fig. 28: os processos de permutação, levados ao limite, podem resultar em dois tipos diferentes de organização: reconstrução ou reconfiguração das estruturas.

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2.1.6 Substituição

A operação de substituição pode ser vista como uma operação de permutação onde um dos elementos permutados é excluído. Nesta operação, substitui-se o elemento de uma estrutura A pelo de uma estrutura B, com o intuito de transmutar A em B; o elemento substituído de A é prontamente descartado. No exemplo da figura 29 retirado da obra Tellur de Tristan Murail, a estrutura A sofre a adição de uma nota La na primeira etapa de transformação; na segunda etapa, a nota Mi é substituída pela nota Ré; do mesmo modo, na terceira etapa a nota Sol é substituída pela nota Mib.

Fig. 29: exemplo de operação de substituição em Tellur de Tristan Murail Fonte: MURAIL, 1978, p. 2

Operações de substituição também podem ser observadas na obra Pièce Électronique nº 3 (1957-1958) György Ligeti. Na partitura de realização desta peça, o compositor utiliza um tipo de notação na qual os processos de substituição são claramente evidenciados:

O eixo vertical representa as alturas (os números referentes às frequências estão colocados no sentido vertical, do lado esquerdo da página). Nesta parte da obra, cada voz é constituída apenas de sons senoidais. Na pista 1 (a decima), por exemplo, é possível seguir separadamente cada um dos 16 sons senoidais. O eixo horizontal representa o tempo. A duração do som é indicada através do comprimento da linha horizontal e está em relação com o comprimento da fita colocado na parte de cima da partitura em centímetros (0, 20, 40, 60, etc.).

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[…] Os espectros sofrem uma metamorfose permanente que é guiada por um processo de construção e desmontagem. Dessa maneira, um espectro se transforma gradualmente em outro. A ideia central da peça consiste em manter uma flutuação harmônica constante, e isto faz com que o jogo composicional aconteça principalmente nos diferentes graus de transformação do material (VITALE, 2013, 135-138).

Na notação empregada por Ligeti em Pièce Électronique, as operações de substituição assumem a forma de gráficos de “escada”. Neste modelo, a altura situada num dos extremos do registro de uma estrutura harmônica é substituída por outra situada no outro extremo do registro. No caso da figura 30, a nota mais aguda da estrutura é substituída por uma que ocupa a posição mais grave. Isto é realizado novamente com a próxima altura (que após a primeira substituição passa a ser a mais aguda do registro); esta será substituída por uma altura mais grave que a da substituição anterior. Repetindo-se as operações, tem-se ao final a completa transmutação de uma estrutura espectral em outra:

Fig. 30: modelo de “escada” encontrado na partitura de realização de Pièce Électronique de György Ligeti

Exemplos dessa escrita para formação orquestral são encontrados especialmente nas seções E e F de Atmosphéres (1961) na figura 31.

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Fig. 31: divisi de violas nos compassos 31-33 de Atmosphéres. No gráfico, esquemas de substituição dos elementos em cada instrumento do divisi. Fonte: LIGETI, 1961, p. 7

Levada ao limite, a operação de substituição promove a transformação total de uma estrutura em outra. Na fig. 32, a estrutura A é progressivamente aniquilada; em seu lugar, a estrutura B é progressivamente construída.

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Fig. 32: operações de substituição levadas ao limite. A estrutura A é progressivamente aniquilada e dá lugar à estrutura B.

2.2 Transmutação timbrística

Para que seja viável em contexto vocal ou instrumental, a transmutação de timbres depende da existência de um continuum entre os timbres a serem transmutados. Só é possível transformar progressivamente o timbre A no timbre B se houver acesso a timbres intermediários entre os dois. Por exemplo: em uma música para violino solo, pode-se transmutar facilmente o timbre de ordinario a sul ponticello, pois existe naturalmente um continuum de timbres na distância entre as duas posições; entretanto, o mesmo não pode ser dito de um timbre de arco indo para pizzicato: o continuum que virtualmente poderia existir entre estas duas configurações timbrísticas não está acessível dentro das possibilidades técnicas do instrumento14. Mas a invenção não se restringe a estas limitações. Em algum momento, o compositor interessado em trabalhar com transformações progressivas do material vai desejar efetuar transmutações “impossíveis”. Há casos no repertório de soluções encontradas por compositores para, de algum modo, efetuar estas transformações. Estas soluções serão comentadas na seção 2.2.2. 14 Este tipo de transmutação, conforme comentaremos adiante, só é possível por meio de técnicas de síntese sonora dentro do campo da Música Eletroacústica e da Computação Musical.

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Assim, a transmutação timbrística, em contexto instrumental e vocal, dividese em dois procedimentos possíveis, ambos advindos da música eletroacústica – e que serão discutidos aqui dentro de suas possibilidades tecnomórficas. Estes procedimentos são designados como morphing e crossfading.

2.2.1 Morphing

O morphing é a migração de um timbre A em direção a um timbre B. O termo foi inicialmente empregado para descrever a transformação de uma imagem em outra; posteriormente, a ideia foi transposta para materiais de áudio.

Em vídeo, o morphing é o processo de gerar uma variedade de imagens que suavemente movem-se de uma para outra. Em um bom morph, todas as imagens intermediárias mostram um objeto mudando suavemente sua forma e textura até que ele se torna um outro objeto. Nós gostaríamos que a mesma coisa acontecesse em um morph de áudio. Um som que é percebido como um objeto deveria se transformar suavemente em outro som, mantendo as propriedades compartilhadas do som inicial e do som final e suavemente mudar os outros parâmetros. (SLANEY, COVELL, LASSITER, 1996, p. 1, tradução nossa)15

Normalmente o morphing é aplicado sobre amostras de áudio. A técnica mais básica consiste em analisar o espectro de duas amostras para separar os componentes espectrais em dois tipos: 1) componentes que são invariantes nas duas amostras e 2) componentes responsáveis por diferenciar perceptualmente as duas amostras. O primeiro grupo de componentes é mantido, enquanto os parâmetros do segundo grupo são interpolados entre si (figura 33).

O morphing de sons tem sido usado em composições musicais, sintetizadores, e até mesmo em experimentos psicoacústicos, notadamente para estudar espaços timbrísticos. Quando morfamos sons de instrumentos musicais, nós normalmente queremos obter sons híbridos que são perceptualmente intermediários através de dimensões timbrísticas, tais que os sons intermediários corresponderiam à instrumentos híbridos entre o objeto de 15 In video, morphing is a process of generating a range of images that smoothly move from one image to another. In a good morph, the in-between images all show one object smoothly changing its shape and texture until it turns into another object. We would like the same thing to happen in an audio morph. A sound that is perceived as one object should change smoothly into another sound, maintaining the shared properties of the staring and ending sounds and smoothling changing other parameters. (SLANEY, COVELL, LASSITER; 1996, p. 1)

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origem e o objeto alvo. (CAETANO, RODET; 2011, p. 161, tradução nossa)16

Fig. 33: esquema básico para efetuar morphing entre amostras de áudio Fonte: CAETANO, RODET; 2011, p. 161.

Existe uma vasta literatura sobre o tema englobando diferentes técnicas e abordagens para o morphing de sons, todas envolvendo amostras de áudio processadas por computador (Para um panorama das pesquisas no campo do morphing de sons, ver GREY, 1977; SCHINDLER, 1984; SLANEY, COVELL & LASSITER, 1995; HIKICHI, OSAKA, 2001; REGUEIRO, 2010.).Nesta dissertação, exploraremos a ideia do morphing adaptado à escrita instrumental e vocal em um contexto tecnomórfico; portanto, nossa preocupação consiste em como fazer ou emular o morphing na escrita sem utilizar processamento de amostras de áudio. Assim, apesar da importantíssima contribuição de tal corpo de artigos (especialmente no campo da música computacional e eletroacústica), nossa exposição trabalhará mais com a adaptação de certas ideias encontradas nesta literatura para a esfera da escrita instrumental e vocal. A técnica de morphing foi bastante explorada composicionalmente a partir do final da década de 70. O aprimoramento tecnológico dos computadores, junto com o estabelecimento de importantes centros de pesquisa aliados à mentalidade interdisciplinar de compositores e pesquisadores favoreceu o fomento de importantes obras no campo da música eletroacústica. John Chowning, conhecido por ser o precursor no uso da síntese FM, compõs em 1972 a obra Turenas. O início desta peça é caracterizado por transformações progressivas em um fluxo de rápidos objetos que são inicialmente percebidos como 16 Sound morphing has been used in music compositions, in synthetizers, and even in psychoacoustic experiments, notably to study timbre spaces. When morphing musical instruments sounds, we usually want to obtain hybrid sounds that are perceptually intermediate across timbre dimensions, such that the intermediate sounds would correspond to hybrid instruments between source and target. (CAETANO, RODET; 2011, p. 161)

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contornos melódicos e se transmutam em um objeto contínuo, no qual não se distingue mais as diferenças de altura e contornos da exposição inicial ( CHOWNING, 2011). Em Dreamsong (1978) Michael McNabb buscou integrar coleções de amostras de sons sintéticos (obtidos por sítese aditiva e FM) e sons naturais gravados (sons vocais). Na obra, o compositor explora transições entre as duas coleções utilizando computadores do Laboratório de Inteligência Artificial de Standford (MCNABB, 1981). Mortuos Plango, Vivos Voco (1980) de Jonathan Harvey apresenta morphing entre sons sintetizados a partir do espectro de um sino e amostras de voz de uma criança (seu filho, na época um corista da Catedral de Winchester) (HARVEY, 1981). As manipulações das amostras vocais foram realizadas com o programa Chant, desenvolvido no IRCAM por Gerald Bennet e Xavier Rodet.17 Em 1983, Jean Baptiste Barrière compõs a obra eletroacústica Creode 1. Nesta obra, o compositor trabalha com a transição entre timbres de quatro categorias distintas: sons vocais, instrumentais, acústicos e sintetizados. A polarização se dá sempre em torno dos timbres vocais, que são desviados para as outras categorias. Apesar da categorização, todos os sons são sintéticos e foram criados e manipulados utilizando o programa Chant. Em Jardin Secret (1985), Kaija Saariaho trabalha o gestual do morphing não só na esfera timbrística; a compositora estende os processos de interpolação para parâmetros de altura e duração. As interpolações são defasadas entre si, produzindo uma sonoridade em constante transformação (SARIAAHO, 1987, p. 125-129). Em Sud (1985) de Jean Claude Risset ocorre o que Smalley chama de “transformações revelatórias”, nos quais o morphing acontece entre sons sintéticos cuja fonte não é reconhecida de imediato e que vão progressivamente se transformando em sons de piano:

Aos 4'31” do primeiro movimento, alturas graves e agrupamentos erráticos mal definidos começam e eventualmente se revelam como derivados de um piano, mas não em um processo direto e linear. Embora escutemos um possível piano no canal direito em 4'47” e um piano definitivo em 4'55” nos 17 Uma implementação deste programa em Open Music encontra-se http://support.ircam.fr/docs/om-libraries/om-chant/co/OM-Chant.html

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disponível

em

alertando da existência do piano, seus registros agudos não nos conectam automaticamente à textura mais grave. É apenas perto de 5'02” quando ambos os canais (direito e esquerdo) assumem a textura grave e sustentada que o piano definitivo é revelado (perto de 5'10”, no canal direito) e ele continua até 5'18”. (SMALLEY, 1993, p. 290, tradução nossa)18

Em Riverrun (1986), Barry Truax realiza morphing manipulando progressivamente o nível de densidade de objetos de curta duração e pouco ataque. Ao variar a quantidade destes objetos no tempo obtém-se uma grande variedade de timbres transicionais, resultado do agrupamento contínuo de pequenos “grãos” de som. Este processo é conhecido como síntese granular, e esta obra é referenciada como a primeira peça inteiramente construída com este tipo de síntese (TRUAX, 1988). Trevor Wishart é uma importante referência na implementação do morphing na composição de música eletroacústica. Em sua obra Vox-5 (1986) há impressionantes transmutações de sons vocais que são “morfados” em sons de outras fontes: sons emitidos por animais, sons mecânicos, de batidas de portas, etc (WISHART, 1988). Musicalmente, o morphing é uma transformação contínua de um timbre a outro. Para encontrarmos processos equivalentes na escrita instrumental e vocal, é preciso trabalhar com timbres que estejam situados dentro de um continuum. Em C'est Un Jardin... (1976) para viola solo, Tristan Murail explora sonoridades transicionais que podem ser encaradas como processos de morphing na música instrumental. No exemplo da figura 34, o compositor indica ao intérprete um deslocamento progressivo na posição do arco de sul ponticello para ordinario. O ataque em sul ponticello funciona como um filtro, no qual a energia distribuída no espectro fica concentrada nas parciais mais agudas. A mudança progressiva e contínua de posição para ordinario (onde o espectro deixa de sofrer as filtragens) promove um tipo de transformação timbrística análogo ao morphing das obras eletroacústicas.

18 At 4'31 of the first movement ill-defined, muffled low pitches and erratic groupings commence and eventually reveal themselves as piano-derived, but not in a straightforward, linear process. Although we hear a possible piano on the right at 4'47", and a definite piano at 4'55" alerting us to the piano's existence, its higher register and the pitch-style do not automatically link it to the lower texture. It is only from about 5'02" where both left and right channels take over the lower, sustained texture that the definitive piano is revealed (by 5'10" on the right), and it continues until 5' 18". (SMALLEY, 1993, p. 290)

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Fig. 34: morphing no deslocamento das arcadas em C'est Un Jardin... de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1977, p. 1

Este tipo de transformação também é aplicado em estruturas timbrísticas de naipe, como no exemplo da figura 35 retirado de Désintégrations (1982):

Fig. 35: morphing em Désintégrations de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1990, p. 42

A transformação de harmônicos em fundamentais constitui outro procedimento de morphing na escrita instrumental aplicado por Murail em C'est Un Jardin (figura 36). Neste processo, o intérprete executa harmônicos naturais e pressiona progressivamente as notas, transformando-as em fundamentais (notas “apertadas”).

Fig. 36: Transformação de harmônicos em fundamentais em C'est Un Jardin... de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1977, p. 1

O morphing obtido em instrumentos de corda que é caracterizado por 48

deslocamentos na região de ataque e na mudança de pressão ao apertar as cordas também é aplicado pelo compositor em sua escrita para violão. Pode-se observar a incidência das duas técnicas nos exemplos extraído de Tellur (figura 37):

Fig. 37: transmutações timbrísticas em Tellur de Tristan Murail Fonte: MURAIL, 1978, p. 2

Em Désintégrations Murail trabalha um outro tipo de transformação trimbrística em instrumentos de corda que consiste em uma indicação na partitura para que o intérprete pressione o arco contra as cordas produzindo um som ruidoso que deve soar aproximadamente uma oitava abaixo da altura indicada. Na figura 38 temos os símbolos usados pelo compositor na bula da partitura:

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Fig. 38: tradução das indicações de mudança de pressão do arco na bula de Désintégrations de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1990.

Na figura 39 podemos observar dois trechos de Désintégrations em que ocorre este tipo de transformação timbrística:

Fig. 39: transformações timbrísticas em instrumentos de cordas causada por mudança progressiva na pressão do arco em Désintégrations de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1990, p. 43-45

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Em Aventures (1962), György Ligeti utiliza a voz para relizar morphing entre fonemas. Esta é uma forma bastante efetiva de efetuar transformações timbrísticas, considerando que cada fonema tem seu próprio perfil espectral; assim, a transição suave e progressiva de um fonema a outro representa também a transição de um perfil espectral a outro – correspondendo também à transição de um timbre a outro (figura 40).

Fig. 40: morphing de fonemas na linha de contralto, compasso 10 em Aventures de György Ligeti. Fonte: LIGETI, 1964, p. 3

Em Voice (1971) para flauta solo, Toru Takemitsu emprega um tipo de transformação timbrística onde o intérprete deve tocar uma nota, cantar ao mesmo tempo um fonema e realizar um morphing para outro fonema enquanto mantém a duração da nota tocada. O efeito resultante deste procedimento é um objeto sonoro timbristicamente semelhante aos obtidos na música eletroacústica por meio de síntese FM (figura 41).

Fig. 41: morphing obtido com o emprego de fonemas em Voice de Toru Takemitsu. Fonte: TAKEMITSU, 1971, p. 1

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A partir dos exemplos expostos nesta seção, podemos concluir que o morphing é viável na escrita instrumental e vocal sempre que houver um eixo composto por dois timbres distintos e a viabilidade técnica de percorrer continuamente este eixo na formação instrumental ou vocal escolhida. Assim, os exemplos contidos nesta seção não constituem as únicas possibilidades de realização de morphing na escrita instrumental ou vocal: tais exemplos, assim como outros utilizados nesta dissertação, servem principalmente para ilustrar o conceito em obras do repertório do século XX.

2.2.2 Crossfading

O crossfading é uma técnica de transmutação timbrística oriunda da música eletroacústica que consiste em mixar duas fontes sonoras, de modo que a primeira fonte perde proeminência e decai continuamente enquanto a segunda surge em primeiro plano. Deste modo, a partir da intersecção entre dois sons, obtém-se uma transição do primeiro som para o segundo (figura 42). Propomos nesta dissertação que o crossfading pode ser entendido como a sobreposição de duas estruturas com envelopes dinâmicos distintos.

Um tipo de progressão de especial interesse para o músico computacional ocorre em sons crossfaded. Aqui, muitos parâmetros mudam tanto que o som final tem pouca semelhança com o inicial: o som muda ou modifica sua identidade. (BELKIN, 1988, p. 49, tradução nossa)19

19 One type of progression of special interest to the computer musician occurs in crossfaded sounds. Here so many parameters change so much that the end of the sound has little resemblance to the beginning: the sound mutates or changes its identity. (BELKIN, 1988, p. 49)

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Fig. 42: crossfading entre duas amostras de áudio

Quanto mais semelhantes são as duas amostras, mais suave será o tipo de transição. Assim, se executarmos um crossfading entre uma amostra gravada de um motor de carro e de um sino, haverá um resultado perceptivo em um nível diferente (no que tange à questão de como a transição é percebida) do realizado entre uma flauta e um violino, com ambos tocando a mesma altura. No primeiro caso, a transição será percebida de forma mais bruta do que no segundo caso. Desejamos empregar a técnica justamente para obter transições entre materiais timbrísticos distintos. Convém então buscar um meio-termo: os materiais devem ser distintos entre si, porém flexíveis o suficiente para permitir a manipulação de alguns de seus parâmetros, a fim de se obter algum tipo de continuidade entre eles. Tal continuidade pode ser conseguida de vários modos. Um som pode gradualmente metamorfosear-se em outro. O compositor pode buscar elementos comuns entre sons sucessivos (separados), por exemplo altura, espaçamento, registro, envelope, etc., mantendo-os intactos enquanto outros parâmetros são modificados. Outra técnica de continuidade é a sobreposição contrapontual: um som continua enquanto outro começa. (BELKIN, 1988, p. 51-51, tradução nossa)20 20 Such continuity can be achieved in various ways. One sound can gradually metamorphose into another . The composer can seek common elements between successive (separate) sounds, for example pitch, spacing, register, envelope, etc., keeping them the same while other parameters are changed. Yet another technique of continuity is contrapuntal overlap: one sound continues while

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Outra preocupação reside na disposição temporal dos pontos timbrísticos característicos dos materiais aos quais se aplica o crossfading:

O uso efetivo de sons crossfaded depende da colocação temporal de seus pontos altos e no modo como a atenção do ouvinte é direcionada a eles. Considerando que eles apresentam muita informação, estes pontos altos devem estar no primeiro plano, mesmo que apenas momentaneamente, para que surtam efeito. Por exemplo, se é musicalmente significativo aplicar o crossfading partindo de um trumpete para um violino, precisa-se no mínimo ouvir o suficiente do ataque do trumpete ao menos para identificá-lo - o bastante para perceber que algo novo está emergindo - e finalmente, o suficiente do violino para reconhecê-lo em seguida. Qualquer evento musical simultâneo precisaria ser arranjado de forma a não distrair a atenção do ouvinte destes pontos altos. (BELKIN, 1988, p. 49, tradução nossa)21

Na escrita instrumental e vocal podemos realizar crossfading entre duas estruturas musicais manipulando seus envelopes dinâmicos, de modo que a primeira fonte sonora decaia enquanto a segunda toma o primeiro plano da percepção. O procedimento é especialmente bem sucedido em termos timbrísticos se as duas fontes estiverem na mesma altura e se, das duas fontes, a que tiver mais ataque ocupar a posição de identidade base, deixando a fonte com menos ataque cumprindo o papel de consequente (figura 43).

Fig. 43: exemplo de transformação timbrística via crossfading entre oboé e flauta na escrita instrumental.

O início de Ecuatorial (1934) de Edgar Varèse é caracterizado pelo uso do crossfading em um contexto de escrita instrumental. Após o ataque na nota Si do piano, another begins. (BELKIN, 1988, p. 51-51) 21 The effective use of crossfaded sounds depends on the temporal placement of their highlights and the way which the listener's attention is directed to them. Since they present much information, these highlights must be in the foreground, even if only momentarily, to have their effect. For example, if crossfadind from a trumpet into a violin is to be musically significant, one would need to hear at least enough of the trumpet's attack to identify it, enough of the evolution to realize that something new was emerging, and, finally, enough of the violin to recognize it in turn. Any other simultaneous musical events would have to be arranged so as not to distract the listener's attention at these highpoints. (BELKIN, 1988, p. 49)

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o terceiro trumpete executa a mesma altura com envelope dinâmico próprio, caracterizando um prolongamento do gesto que o transforma timbristicamente (figura 44).

Fig. 44: crossfading nos primeiros compassos de Ecuatorial de Edgar Varèse. A nota Si tocada pelo piano é prolongada pelo terceiro trumpete. Fonte: VARÈSE, 1961, p. 1

A sonoridade resultante deste procedimento consiste na ressonância por parte de uma determinada fonte timbrística de um ataque realizado por outra fonte. O'King (1968) de Luciano Berio também ilustra esta ideia aplicando-a a grupos de instrumentos; o trecho em questão (figura 45) apresenta o ataque acentuado na nota Fa pelo piano e flauta (grupo 1) em ff (cujo perfil decresce em dinâmica) sobreposto à mesma altura executada pela voz, violino, violoncelo e clarinete (grupo 2) em pppp. À medida que os sons do grupo 1 decaem, os do grupo 2 ganham proeminência, caracterizando o crossfading. Esta proeminência é confirmada pelo papel secundário dos próximos ataques do grupo 1, todos em pppp.

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Fig. 45: crossfading em O'King de Luciano Berio Fonte: BERIO, 1970, p. 1

A figura 46 apresenta o trecho inicial da seção F de O'King, onde há a transformação timbrística partindo da nota Sol sustentada pela voz (identidade base) que é misturada com a entrada de sucessivas ressonâncias em uníssono iniciadas pelo violoncelo e seguidas pelo violino, clarinete, piano e flauta. Estas ressonâncias constituem o elemento final de linhas melódicas que compõem uma textura anterior à transformação timbrística da voz. Durante o crossfading, as ressonâncias apresentam tempos de decaimento distintos entre si, o que produz diferentes configurações timbrísticas nos cruzamentos de valores dinâmicos. O clarinete resulta como identidade consequente, como timbre final deste processo.

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Fig. 46: transformação timbrística via crossfading de voz em clarinete em O'King de Luciano Berio. Fonte: BERIO, 1970, p. 9

O uso da técnica de crossfading permite que o compositor estabeleça redes texturais de relações timbrísticas, nas quais uma multiplicidade de configurações

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espectrais é explorada dentro de um continuum formado pelos pólos “identidade base x identidade consequente”. É possível então provocar uma gama de pertubações e alteridades a partir de um eixo formado pelo timbre inicial e o final, sendo este timbre final o ponto de partida para um possível novo ciclo do processo em direção a outro timbre. No início de Dona Letícia ou a Parede da Última Casa (Ritornelo II) (2007) de Silvio Ferraz, as ressonâncias são empregadas de modo a sugerir uma linha melódica executada pela clarineta que se movimenta sobre um continuum de timbres (figura 47). À medida em que esta linha se desenvolve ela se bifurca em ressonâncias e prolongamentos pontuados por crossfadings entre o piano e notas longas nos outros instrumentos.

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Fig. 47: esquema de ressonâncias em Dona Letícia de Silvio Ferraz Fonte: FERRAZ, 2007, p. 1

Na figura 47, as notas circuladas representam as identidades base e as linhas com setas as identidades consequentes. O ataque da nota Fa# no piano em ff no primeiro compasso é mixado à mesma altura no clarinete em pp, que por sua vez é mixado à mesma altura pela flauta, também em pp. Depois que o clarinete é mixado à flauta, ocorre a bifurcação no terceiro compasso, onde o clarinete desenvolve uma linha melódica a partir do ataque da nota dó# , mixada ao ataque em uníssono do piano em mp junto ao primeiro violino pp em sordina. Os prolongamentos da flauta e do primeiro violino ainda estão soando quando o ataque staccatissimo na nota Dó do clarinete é prolongado pelo segundo

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violino. Neste trecho, o piano ataca sincrônicamente não a nota Dó, e sim Ré. A sonoridade de ressonância em uníssono neste trecho estaria presente na relação entre clarinete e segundo violino, considerando ser o Ré tocado pelo piano (em parenteses na figura) um novo evento causal na malha timbrística, não fazendo parte da rede de continuidade prévia (assim como acontece com a nota Sol tocada pelo piano no compasso 5). Finalmente, a nota Fa# tocada em dobra de oitavas em pizzicato pelo violoncelo e viola ressoam a mesma altura tocada pelo clarinete e flauta em uníssono.

2.3 Interpolações

A interpolação é um método para construir uma função entre dois ou mais pontos já estabelecidos. Assim, é também um método para definir novos valores dentro do âmbito criado pelos pontos que são interpolados.

A interpolação, em geral, é a técnica de estimar valores transicionais apropriados entre dois pontos dados. Exemplificando: desenhar uma linha reta entre dos pontos é uma abordagem chamada de interpolação linear, e aplicar um modelo de linha curva é outro, chamado de interpolação nãolinear, polinomial ou spline. Se visualizarmos os dados musicais como uma coleção de parâmetros numéricos, é possível aplicar técnicas de interpolação entre estes valores. (WOOLLER, BROWN; 2005, tradução nossa)22

Matematicamente, a interpolação é um tópico enormemente denso – especialmente para o contexto desta dissertação. Não desejamos ser levianos em relação ao peso da terminologia; nos concentraremos portanto nas aplicações da interpolação estudadas dentro do contexto dos processos criativos em música. Na esfera musical o termo foi extensivamente utilizado para descrever a inserção de novos valores componentes dentro de uma trajetória traçada entre dois pontos numa dada dimensão musical. Portanto, nos referiremos à interpolação como um modo de construir trajetórias que conectem dois pontos distintos em uma dimensão musical, não nos atendo às 22 Interpolation, generally, is the technique of estimating appropriate transitional values between known points. For example, drawing a straight line between them is one approach, called linear interpolation, and applying a curved line model is another, called non-linear, polynomial or spline interpolation. If we view the musical data as a collection of numeric parameters, it is possible to apply interpolation techniques between them. (WOOLLER, BROWN; 2005)

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implicações matemáticas de tais trajetórias. Isto será feito tendo em vista duas razões: 1) desejamos que a aplicação composicional das técnicas descritas nesta seção seja facilmente assimilável e aplicável no momento da criação sem que haja uma quebra do fluxo criativo em detrimento de uma possível necessidade de se realizar cálculos para preservar o rigor matemático e 2) esta dissertação discorre principalmente sobre processos composicionais; deste modo, o que nos interessa em relação à interpolação é no que sua noção contribui conceitualmente para a pesquisa, e de que como este conceito pode ser aplicado composicionalmente. Podemos realizar interpolações em qualquer dimensão musical. No contexto deste trabalho, exploraremos interpolações em função do tempo (figura 48); portanto, os dois pontos estabelecidos para a realização das interpolações corresponderão sempre à uma identidade base (ponto A) e à uma identidade consequente (ponto B).

Fig. 48: interpolação ocorrendo em função do tempo. O ponto A é a identidade base e o ponto B a identidade consequente.

Neste tópico, nos concentraremos na aplicação de interpolações nos parâmetros das alturas e das durações. A figura 49 apresenta interpolações nestes dois parâmetros e seus efeitos musicais correspondentes. Percebe-se que a interpolação aplicada às alturas gera sonoridades glissandi. O mesmo processo aplicado às durações pode gerar accelerandi ou ritardandi.

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Fig. 49: interpolações nas alturas e durações

Nota-se no exemplo acima que as interpolações promovem transformações contínuas do material musical. Entretanto, pode-se aproveitar a trajetória construída pela interpolação para extrair dados discretos. Assim, é possível realizar transformações unitárias a partir de um desenho contínuo oriundo da interpolação entre dois pontos. A transformação unitária realizada sobre uma trajetória contínua constitue em uma espécie de redução da transformação contínua que origina tal trajetória (figura 50).

Fig. 50: adaptação de transformação contínua para transformação unitária nas alturas

A figura 51 apresenta uma trajetória traçada pela interpolação dos pontos A, B, C e D nas alturas e suas consequências na esfera musical, tanto no campo da transformação contínua como da unitária:

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Fig. 51: Trajetória de interpolação e efeito musical correspondente nas alturas em nível contínuo e unitário

Nas próximas sessões, veremos casos de dois tipos específicos de transformação por manipulação paramétrica via interpolação no repertório do século XX: os glissandi e os accelerandi e ritardandi escritos.

2.3.1 Interpolação de alturas: Glissandi

O glissando pode ocorrer na escrita instrumental e vocal como transformação contínua ou unitária – ou seja, ele pode acontecer como resultado de uma interpolação ou como uma adaptação e discriminação de pontos discretos da trajetória de uma interpolação no parâmetro das alturas. O tipo de transformação sobre o qual o glissando poderá ser realizado relaciona-se ao efetivo instrumental para o qual o efeito será destinado. Instrumentos não temperados são capazes de realizar transformações contínuas com glissandi. É o caso por exemplo dos instrumentos da família de cordas friccionadas, metais e voz. Instrumentos com afinação temperada promovem transformações unitárias com glissandi. É o caso de instrumentos de teclado em geral, harpa, guitarra, e percussões de teclado como xilofone, marimba e vibrafone. Vitale (2013, p. 121) afirma que

A procura por novos materiais e procedimentos levou os compositores da primeira metade do século XX a incorporar o glissando como meio

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expressivo nas suas obras. Esta subversão das hierarquias estava no espírito das pesquisas dos músicos que tentavam renovar sua linguagem a partir do desenvolvimento de elementos que até então tinham sido entendidos como elementos secundários. Como antecedentes históricos, em relação ao uso do glissando, podemos citar os seguintes compositores: Edgar Varèse (18831965), pela incorporação das sirenes nas suas obras, Iannis Xenakis (19222001), pelo uso extensivo e sistemático do glissando em texturas complexas e Karel Goeyvaerts (1923-1993) pela utilização do glissando como material exclusivo da obra. (VITALE, 2013, p. 121)

O compositor Edgar Varèse foi um dos pioneiros a conceber o glissando como elemento não ornamental ao empregá-lo como tal na escrita instrumental e no uso de sirenes em Amériques (1918-21), conforme demonstrado na figura 52. Até então a sonoridade era trabalhada meramente como articulação ou ornamento. Pode-se pensar em Amériques como marco inicial na exploração de um tipo de sonoridade que seria ampliada posteriormente na obra de Iannis Xenakis, György Ligeti e Kaija Saariaho. Varèse buscava conscientemente este som contínuo, interpolável. Em 1922 ele afirmou seu desejo por “um instrumento que nos dará um som contínuo em qualquer altura23” (VARÈSE apud WEN-CHUNG, 1966, p. 1).

Assim como o pintor pode obter diferentes intensidades e gradações de cor, músicos podem obter diferentes vibrações de som, não precisando necessariamente estar de acordo com a divisão tradicional em tons e semitons, e sim variando, por fim, de vibração para vibração. (WENCHUNG, 1966, p. 1, tradução nossa)24

Fig. 52: uso de sirenes na página 11 da partitura de Amériques de Edgar Varèse. A sonoridade de glissando da sirene constitui em si um objeto independente – ou seja, não ornamental - portanto, estrutural. Fonte: VARÈSE, 1973, p. 12

A figura 53 apresenta um trecho de Amériques onde há o emprego extensivo de glissandi nas cordas e harpas, evidenciando o papel estrutural do gesto na obra. Apontamos aqui a distinção dos glissandi de cordas como processos de transformação contínua enquanto os glissandi de harpa enquadram-se em processos de transformação 23 What we want is an instrument that will give us a continuous sound at any pitch. (VARÈSE apud WEN-CHUNG, 1966, p. 1) 24 Just as the painter can obtain different intensity and graduation of colour, musicians can obtain different vibrations of sound, not necessarily conforming to the tradicional half-tone and full tone, but varying, ultimately, from vibration to vibration. (WEN-CHUNG, 1966, p. 1)

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unitária, dado o elemento discreto constituído pela divisão em alturas definidas intrísecas ao instrumento e consequente gradação dessas alturas no gesto.

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Fig. 53: glissandi na partitura de Amériques de Edgar Varèse Fonte: VARÈSE, 1973, p. 8

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A busca de Varèse por sons contínuos e interpoláveis não se resumiu à implementação de glissandi como elemento estrutural e ao uso de sirenes em Amériques:

Sua necessidade de uma “curva de fluxo contínuo” o levou ao uso de sirenes, teremins e ondas martinots (por exemplo, Amériques, Ionisation, Ecuatorial) para produzir “trajetórias de som” no formato de parábola, hipérbole ou espiral. Tais trajetórias são também frequentemente sugeridas por instrumentos convencionais (por exemplo, Intégrales, números 3-5). (WENCHUNG, 1966, p. 4, tradução nossa)25

A obra Metastaseis (1953-54) de Iannis Xenakis também faz uso notável de glissandi como elemento estrutural, especialmente em sua primeira seção. Mihu Iliescu (2005, p. 49) comenta que “a equivalência postulada por Xenakis entre glissando e linha mostra claramente a unidade entre música, arquitetura e matemática26”. A primeira seção da obra parte de um uníssono massivo que se desloca continuamente em diferentes trajetórias para outras alturas por meio de glissandi executados em divisi, construindo uma sonoridade textural progressivamente mais densa (figura 55).

25 His need for a “continuous flowing curve” led him to the use of sirens, theremins and martinots (e.g., Amériques, Ionisation, Ecuatorial) to produce “trajectories of sound” in the shape of a parabola, hyperbola or a spiral. Such trajectories are often suggested by conventional instruments as well (e.g., Intégrales, Nos. 3-5). (WEN-CHUNG, 1966, p. 4) 26 The equivalency postulated by Xenakis between glissando and line clearly shows the unity between music, architecture and mathematics. (ILIESCU, 2005, p. 49)

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Fig. 55: Metastaseis de Iannis Xenakis Fonte: XENAKIS, 1967, p. 1

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Sobre os glissandi de Metastaseis, Mihu Iliescu (2005, p. 53) afirma:

Os glissandi de Metastaseis marcam um momento decisivo na história musical recente, no qual a música se desligou de várias noções e ideias às quais foi associada durante os últimos séculos: linguagem, retórica, representação de sentimentos humanos, emoções ou afetos, a busca pela beleza. Por sua vez, ela incluiu conceitos como aqueles de morfologias arquetípicas envolvendo espaços abstratos, ou conceitos de som puro – aos quais a música na verdade a música tende a se identificar mais e mais. (ILIESCU, 2005, p. 53, tradução nossa)27

O uso de glissandi de Xenakis apresenta grandes correspondências com a ideia de interpolações traçadas entre pontos no tempo:

Com o auxílio de gráficos formados por um eixo do tempo (em segundos) e outro das alturas (em semitons temperados), ele estabelece uma equivalência entre o glissando, entendido como a rapidez de deslize do dedo sobre a corda, e a imagem geométrica de uma linha traçada entre estes eixos. (FICAGNA, 2012, p. 183)

A obra Syrmos (1959) constitui um estudo de glissandi realizado por Xenakis composta inteiramente a partir de gráficos.

Xenakis frequentemente compunha com gráficos, pelo menos até o final dos anos 1970. Muitas das sonoridades as quais ele foi o primeiro a experimentar e que fizeram sua música ser tão original foram concebidas graças aos gráficos. Pode-se pensar nos glissandi, uma assinatura típica de Xenakis. Nas teorias de Xenakis, o glissando é o caso geral de sons com altura definida. Mas é importante notar que o que permitiu a ele inventar glissandi massivos foi a possibilidade de desenhar linhas retas transversais em um gráfico onde as duas coordenadas representam altura e tempo. Syrmos (1959), uma peça que é uma espécie de estudo de glissandi, foi inteiramente composta com gráficos. Estes gráficos revelam a imaginação visual de Xenakis (e assim, sua imaginação sonora!), que define diferentes categorias de glissandi (ascendentes, descendentes, cruzados, convergentes, divergentes, em superfícies oblíquas). Nos anos 1970, foi também graças aos gráficos que Xenakis inventou um novo tipo de glissandi, os “movimentos brownianos”, que são caracterizados pela não-linearidade. (SOLOMOS, 2001, tradução nossa).28 27 The glissandi of Metastaseis mark a turning-point in the recent musical history, when music detached itself from several notions and ideas to which it was associated during the last centuries: language, rhetoric, the representation of human feelings, emotions or affects, the search for the beauty. In turn, it joined concepts like that of archetypical morphologies evolving in an abstract space, or that of pure sound – to which music actually more and more tends to identify itself. (ILIESCU, 2005, p. 53) 28 Xenakis often composed with graphs, at least until the end of the 1970s. Many of the sonorities, with which he was the first to experiment and which make his music so original, have been conceived thanks to graphs. One may think of glissandi, a typical Xenakis signature. In Xenakis’ theories, a

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Na figura 55 retirada de Solomos (2001) podemos observar as interpolações traçadas por Xenakis correspondentes aos compassos 255-259 de Syrmos.

Fig. 55: interpolações em Syrmos de Iannis Xenakis.

Um ano após Xenakis compor Metastaseis, o compositor belga Karel Goeyvaerts produz Komposition nº 7 met convergerende en divergerende niveaus (1955). Esta obra para tape tem o glissando como único material composicional de toda glissando is the general case of sounds with defined pitch. But it is important to notice that what allowed him to invent massive glissandi is the possibility to draw straight transversal lines in a graph where the two coordinates represent pitch and time. Syrmos (1959), a piece that is a kind of glissandi étude, was entirely composed with graphs. These graphs reveal the visual imagination of Xenakis (and thus, his sonic imagination!), who defines different categories of glissandi (ascending, descending, crossed, convergent, divergent, in skewed surfaces). In the 1970s, it is also thanks to graphs that Xenakis invented a new kind of glissandi, the “Brownian movements”, which are characterized by non-linearity. (SOLOMOS, 2001)

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a peça, e nela “Goeyvaerts tenta pela primeira vez criar movimentos contínuos entre pontos fixos, realizando um novo tipo de contraponto flutuante29” (BOHEMER apud VITALE, 2013). Dois anos após Komposition nº 7, György Ligeti compõe Glissandi (1957), obra na qual o principal material composicional também é o glissando. Dahlhaus (1996, p. 175) sugere que as intenções em Ligeti já se projetam para outros parâmetros além da mera transformação contínua de alturas:

Em seu estudo Glissandi, de 1957, Ligeti faz do quid pro quo de timbre e acorde, que até então tinha constituído um verdadeiro dilema, o ponto de partida de seu trabalho composicional: ele tentou compor sons que se situassem no limite entre acordes, que são analisáveis pelo ouvido, e timbres, que não o são. Essa peça eletrônica de Ligeti acabou por consistir num estudo prévio para suas obras orquestrais Apparitions (1958-59) e Atmosphères (1961), nas quais nos deparamos igualmente – mais agora com os meios instrumentais – com o estado intermediário entre acorde e timbre, (DAHLHAUS, 1996, p. 175)

Vers le Blanc (1982) de Kaija Saariaho é também uma obra eletrônica que tem o glissando como material de base principal. Entretanto, diferentemente dos exemplos anteriores, a obra não apresenta segmentos maiores compostos por unidades menores formadas por glissando; neste caso, a própria obra é um grande glissando de 15 minutos, que interpola três alturas transmutando um acorde em outro (figura 56).

Minha primeira composição realizada com computador, Vers le Blanc (1982), é um exemplo extremo do uso de lentidão. Nesta obra eu tentei produzir um todo fortemente unido relacionando forma e conteúdo de uma maneira radical. A ideia fundamental desta peça é a transição muito lenta de um acorde para outro através de glissandi, que são tão lentos que as mudanças na altura se tornam imperceptíveis para o ouvido. O computador me inspirou com esta ideia, e foi apenas por meio dele que eu pude realizá-la. Os glissandi duram tanto quando a obra. (SAARIAHO, 1987, p. 104-105, tradução nossa)30

29 Goeyvaerts tries for the first time to create continuous movements between fixed points, realising a new type of fluctuating counterpoint. (BOHEMER apud VITALE, 2013) 30 My first composition realized with a computer, Vers le Blanc (1982), is an extreme example of the use of slowness. In this work I tried to make a tightly-knit whole by relating form and content in a radical manner. The fundamental idea of this piece is the very slow transition from one chord to another through glissandi, which are so slow that changes in pitch become imperceptible to the ear. The computer had inspired me with this idea, and it was only by this means that I could realize it. The glissandi last as long as the work itself (15c). (SAARIAHO, 1987, p. 104-105)

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Fig. 56: plano harmônico de Vers le Blanc de Kaija Saariaho

A obra para quarteto de cordas Litania (2011) de Silvio Ferraz é construída sobre a ideia da linha. Relacionamos esta ideia com o conceito de interpolação desenvolvido nesta seção, no sentido em que Ferraz propõe, em um texto sobre a peça, que a linha seja imaginada como “algo que vai de um ponto a outro ou que passa por diversos pontos” (FERRAZ, 2011). Segundo o compositor, “Litania, para quarteto de cordas, é uma linha, ou melhor, um feixe compondo uma linha” (FERRAZ, 2011). Podemos encontrar na obra numerosas passagens onde é possível projetar a metáfora das linhas que conectam pontos – no caso específico que nos interessa, os pontos correspoderiam às alturas e as linhas aos glissandi (figura 57).

Fig. 57: glissandi em Litania de Silvio Ferraz Fonte: FERRAZ, 2011, p. 1

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2.3.2 Interpolação de durações: Accelerandi e Ritardandi escritos

A interpolação entre dois valores rítmicos distintos é constituída de transformações unitárias, considerando-se a necessidade de repetir o evento inserindo pequenas mudanças na identidade base (no caso, mudanças na duração desta identidade) até que esta se torne a identidade consequente (figura 58). Assim, o procedimento de interpolação aplicada às durações extrai pontos de uma trajetória interpolada que constituirão as posições onde os graus de transformação serão definidos (ver figura 49, p. 61 deste trabalho).

Fig. 58: interpolação entre durações

Em termos sonoros, a interpolação de valores rítmicos soa como accelerandi e ritardanti, sem que haja uma real alteração no andamento. Nesta seção nos referiremos a tais procedimentos como accelerandi e ritardanti escritos. Em termos notacionais, este tipo de interpolação pode ser representado simbolicamente de dois modos distintos. Na segunda peça da série Musica Ricercata (1951-53), György Ligeti emprega um accelerando escrito, no qual uma figura de breve é interpolada até uma quintina de semínima para, subitamente, dar lugar a um tremolo (figura 59). Ligeti opta por escrever cada uma das gradações rítmicas - cujos pontos em um gráfico de durações

compassos formam a trajetória interpolatória de breve à

quintina de semínima - sem empregar mudanças de andamento no trecho.

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Fig. 59: accelerando escrito na segunda peça de Musica Ricercata de György Ligeti Fonte: LIGETI, 1995, p. 8.

O tipo de escrita demonstrado na figura 60 é bastante comum nas obras de Ligeti. A figura 60 mostra um trecho do 3º movimento do Quarteto de Cordas nº 2, onde Ligeti emprega um cânone cujo ritmo forma um jogo de accelerandi e ritardandi escritos e defasados entre cada voz, com consequências no nível de adensamento da textura31. 31 Para um aprofundamento nas implicações texturais deste procedimento na obra, ver VITALE, 2013,

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Fig. 60: primeira página do 3º movimento do Quarteto de Cordas nº 2 de György Ligeti. Fonte: LIGETI, 1971, p. 17

Em Metastaseis de Iannis Xenakis, também podemos encontrar o emprego do procedimento de accelerandi escritos. A partir do compasso 67 (figura 61), o primeiro trombone realiza o accelerando escrito entre a figura de colcheia em stacatto para uma semínima executada com tremolo. p. 264-273.

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Fig. 61: accelerando escrito no primeiro trombone em Metastaseis de Iannis Xenakis Fonte: XENAKIS, 1967, p. 3

O outro procedimento que demonstraremos recorre a uma possibilidade notacional distinta. Ao invés de escrever com exatidão a subdivisão das gradações rítmicas correspondentes a pontos determinados em uma trajetória de interpolação, pode-se optar por uma escrita menos determinístitica na qual as gradações não são notadas com precisão. Neste tipo de escrita, o desenho da trajetória (reta ou linha, se pensarmos na poética de Xenakis ou de Ferraz) fica em última instância a critério do executante. Sabemos que há uma interpolação, mas seu desenho não está discretamente definido, como se o intérprete fosse responsável por “ligar os pontos” em um continuum imaginário (figura 62).

Fig. 62: outra possibilidade notacional de interpolação entre durações

O emprego deste tipo de notação é observado com frequência na obra de Tristan Murail. Na figura 63 podemos observá-la em três ocorrências de accelerandi 76

seguidas de um agrupamento accelerando-ritardando em C'est Un Jardin.

Fig. 63: accelerandi e ritardandi escritos em C'est un Jardin de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1977, p. 2

A figura 64 apresenta um exemplo de ritardando, desta vez retirado de Tellur:

Fig. 64: ritardando escrito em Tellur de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1978, p. 5.

Este tipo de escrita pode ser implementada sem grandes conflitos em conjunto com a notação tradicional. Vampyr! (1984), obra para guitarra solo de Murail, exemplifica esta prática (figura 65).

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Fig. 65: accelerandi e ritardandi escritos empregados no contexto da notação tradicional em Vampyr! de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1987, p. 9

Sobre Vampyr! é válido comentar que a peça faz parte do ciclo Random Access Memory e é tida como uma das obras de Murail que não possuem qualquer relação com a música espectral na produção do compositor. Uma breve análise da partitura já nos revela o uso de operações de exclusão e inserção (ver seção 2.1), presentes na escrita de peças anteriores – particularidades que nos fazem questionar certas tendências redutivas de rotular a produção do compositor, como se seu processo criativo se resumisse a uma cartilha de métodos e processos para compor suas obras a partir do espectro de algum som. Em um texto sobre a obra extraído do programa do Festival Automne de Varsovie, Anthony Fiumara (2003) comenta que

“Vampyr! não tem relação com a música espectral em termos de estrutura tonal, embora outros parâmetros, tais como o desenvolvimento do registro, têm uma ligação com o pensamento de Murail” (FIUMARA, 2003, tradução nossa)32.

O uso da notação de accelerandi e ritardandi de Murail encontra-se relativamente consolidado, podendo ser encontrado em livros de notação e teoria musical. Em Music Notation in the Twentieth Century, Stone (1980, p. 124), este tipo de escrita é classificado como Beamed Accelerando and Ritardando (figura 66).

32 “Vampyr! n’a aucun rapport avec la musique spectrale pour ce qui est de la structure tonale bien que d’autres paramètres, comme le développement de l’étendue, ont un lien avec la pensée de Murail” (FIUMARA, 2003). Disponível em , acesso em 30 de Janeiro de 2014.

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Fig. 66: accelerando e ritardando escritos em STONE, 1980, p. 124

Em língua portuguesa, esta notação é encontrada em MED, 1996, p. 391, conforme podemos observar na figura 67:

Fig. 67: accelerando e ritardando escritos em MED, 1996, p. 391

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Capítulo 3: Aplicações combinadas das ferramentas

3.1 Estratégias de transmutação

A função dos tópicos anteriores foi a de expor e comentar operações, processos, técnicas e métodos extraídos em sua maioria do repertório do século XX, empregados com o intuito de realizar transformações contínuas ou graduais de uma estrutura musical em outra. São ferramentas muito úteis para a realização de transmutações musicais. Porém, pode-se combinar estas ferramentas entre si, obtendo-se assim, uma grande variedade de resultados sonoros na construção das transições entre identidade base e consequente. Falaremos em termos mais gerais de alguns tipos de combinações possíveis neste tópico. Nesta dissertação, combinações de ferramentas que visam a transformação contínua ou gradual de uma estrutura em outra são denominadas estratégias de transmutação.

3.1.1 Morphing de melodias

A ideia básica do morphing em seu contexto musical primordial é a migração de um timbre a outro. Como vimos, uma das formas de se realizar o morphing entre timbres envolve a interpolação dos componentes espectrais da primeira estrutura timbrística para a segunda. É possível transpor este método para estruturas melódicas, nas quais a interpolação pode ser realizada simultaneamente entre dados dos parâmetros das alturas e durações. Para realizarmos o morphing de melodias, devemos estabelecer algum tipo de gradação entre os parâmetros. No caso das alturas, a escala cromática nos serve como um tipo de divisão constituída por distâncias mínimas de semitom que estabelece um determinado número de graus entre uma altura A e uma altura B; entretanto, pode-se escolher qualquer método de divisão para se estabelecer gradações nas alturas dentro de uma escala, como por exemplo intervalos de quarto de tom, tom, terças, quartas, entre outros (figura 68).

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Fig. 68: diversos tipos de gradações em interpolações entre as alturas Dó e Lá bemol.

O mesmo pode ser feito no parâmetro das durações. Pode-se optar por diferentes tipos de subdivisões rítmicas para estabelecer gradações entre dois valores rítmicos distintos. A figura 69 exemplifica algumas possibilidades de gradação entre a figura de colcheia e a semibreve:

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Fig. 69: diversos tipos de gradações em interpolações entre colcheias e semibreves.

A partir dos graus de uma interpolação, pode-se traçar as trajetórias a serem percorridas por um dado elemento, bem como o número de etapas a serem utilizadas para a transformação. Na figura 70, temos interpolações no parâmetro das alturas entre elementos da melodia A e da melodia B em uma gradação de semitom. O elemento a1 se transforma em b1, a2 em b2, e assim por diante.

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Fig. 70: gradação nos parâmetros das alturas e durações entre elementos da melodia A e da melodia B

A partir da gradação das interpolações, podemos definir diversas trajetórias possíveis pelos graus existentes entre os elementos de A e de B. A figura 71 mostra uma possibilidade de trajetória para cada elemento a ser realizada em quatro etapas de transformação. Nesta possibilidade, não utilizamos todas as notas existentes na escala cromática entre os elementos de A e B; em vez disso, selecionamos quatro notas para a trajetória de cada elemento.

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Fig. 71: possibilidade de trajetória conectando alturas de A a B em quatro etapas de transformação

O mesmo é feito com as durações. Neste caso estabelecemos apenas um perfil intermediário entre as figuras rítmicas de A e de B, utilizando uma gradação baseada na subdivisão tradicional dos valores rítmicos (mínima ←→ semínima ←→ colcheia ←→ semicolcheia). Definimos a trajetória das interpolações rítmicas de modo mais simples: o perfil rítmico de A se repetirá na primeira etapa de transformação; o perfil rítmico intermediário corresponderá à segunda e terceira etapas; por fim, o perfil rítmico de B ocorrerá na quarta etapa (figura 72).

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Fig. 72: possibilidade de trajetória dos perfis rítmicos em quatro etapas de transformação entre melodia A e melodia B.

Com as trajetórias definidas, construímos a transição que transmuta, por meio de interpolações nas alturas e durações, a melodia A na melodia B (figura 73):

Fig. 73: morphing melódico entre melodia A e melodia B

“A duração da seção com morphing é significativa, já que quanto mais longo for um período com morphing, mais suave ele tende a ser33” (WOOLLER, BROWN; 2005). Ou seja: quanto mais etapas empregarmos, mais suave será a percepção das transformações entre estruturas contíguas e maior será o nível de gradação; da mesma forma, quanto menos etapas, mais abrupta será a sensação de alteração entre estas mesmas estruturas e menor será o nível de gradação. Uma das condições básicas para a realização de interpolação entre melodias é a necessidade de ambas as estruturas conterem o mesmo número de elementos. Neste 33 The length of the morphing section is significant, in that the longer a morph period is, the smoother it tends to be. (WOOLLER, BROWN; 2005)

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caso, as operações de adição, subtração, inserção e exclusão podem ser utilizadas para este tipo de ajuste. Suponhamos que queira-se realizar o morphing entre um trecho melódico extraído da parte de piano de Pierrot Lunaire de Arnold Schoenberg e o início do conhecido tema de Eine Kleine Nachtmusik de Wolfgang Amadeus Mozart. O trecho de Pierrot Lunaire – identidade base neste processo) possui oito elementos; a melodia de Eine Kleine Nachtmusik (identidade consequente) apresenta onze elementos. Antes de realizar qualquer interpolação, devemos subtrair elementos de Eine Kleine para que haja um número igual de elementos entre as duas identidades (figura 74).

Fig. 74: subtração de elementos em Eine Kleine Nachtmusik de Mozart

Nota-se que ambos os trechos possuem pausas: na identidade base, a pausa é o elemento a1; na identidade consequente, b5; portanto, podemos utilizar aqui a operação de permutação para ajustar temporalmente as duas pausas. Optamos por permutar b4 e b5 (figura 75). A permutação de elementos é outro recurso que pode ser combinado às interpolações paramétricas entre melodias. Com esta ferramenta, podemos recombinar os elementos de uma melodia base de modo que seu perfil fique mais próximo ao da melodia consequente, otimizando assim o número de etapas a serem efetuadas no processo de interpolação.

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Fig. 75: permutação de elementos em Eine Kleine Nachtmusik de Mozart

Após realizar estas operações, interpolamos as alturas (figura 76) e durações (figura 77):

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Fig. 76: interpolação entre alturas de trechos de Pierrot Lunaire de Schoenberg e Eine Kleine Nachtmusik de Mozart

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Fig. 77: interpolação entre durações de trechos de Pierrot Lunaire de Schoenberg e Eine Kleine Nachtmusik de Mozart

A partir das interpolações entre os elementos dos dois trechos melódicos, estabelecemos um número de etapas de transformação, bem como as trajetórias percorridas por cada elemento nos graus estabelecidos pelas interpolações. No exemplo em questão, estabeleceremos quatro etapas de transformação entre identidade base e consequente (figura 78).

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Fig. 78: estabelecimento de trajetórias a partir de graus obtidos por interpolação entre elementos de Pierrot Lunaire de Schoenberg e Eine Kleine Nachtmusik de Mozart

Finalmente obtemos, a partir do morphing melódico – (produto dos processos de subtração, permutação e interpolação), a transição entre as duas melodias. Nota-se que os processos de subtração e permutação são revertidos à medida em que a identidade consequente vai se estabelecendo (figura 79):

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Fig. 79: morphing entre Pierrot Lunaire de Schoenberg e Eine Kleine Nachtmusik de Mozart

A beleza deste método está no fato de que há, entre materiais melódicos extraídos de dois compositores diferentes (duas épocas, dois sistemas harmônicos, duas poéticas distintas) uma quantidade enorme de possibilidades musicais; há, poeticamente falando, inúmeras músicas entre duas melodias, das quais a figura 79 ilustra apenas uma possibilidade entre muitas. Não estamos tratando simplesmente de desterritorializar dois fragmentos melódicos, mas também de construir uma “ponte” entre estes fragmentos – sendo a dimensão desta “ponte” equivalente ao número de etapas a serem adotadas para efetuar a transformação de uma estrutura em outra. É possível que, ao aplicar as interpolações, haja uma interrupção no fluxo criativo. Existem algumas soluções para que os cálculos sejam efetuados rapidamente. O programa editor de partituras Finale possui uma ferramenta de morphing melódico; infelizmente, o programa só efetua o cálculo no âmbito das alturas34. Uma solução mais satisfatória pode ser encontrada no ambiente Open Music. A biblioteca profile desenvolvida por Mikhail Malt possui patches que realizam o cálculo das interpolações, e tais patches podem ser conectados a outros que processam 34 Para utilizar a ferramenta no Finale, basta seguir os seguintes passos no menu do programa: Plug-In → Scoring and Arranging → Composer's Assistant → Melodic Morphing

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dados não só sobre alturas, mas também sobre durações e outros parâmetros. A figura 80 apresenta uma versão rudimentar de um patch construído sobre esta biblioteca; este patch realiza o cálculo das interpolações de alturas e durações e pode, a partir da figura, ser reproduzido e utilizado no ambiente Open Music pelo leitor.

Fig. 80: patch de Open Music que realiza cálculos de interpolação no âmbito das alturas e durações

O morphing de melodias também pode ser efetuado somente com as operações descritas nas seções 2.1.1 – 2.1.6. Neste caso, não há interpolações entre os elementos de A e B; somente operações de adição, subtração, inserção, exclusão, permutação e substituição (ver figura 22, p. 34). Métodos mais intricados de morphing de melodias podem ser encontrados em POLANSKY & MCKINNEY, 1991; OPPENHEIM, 1995; WOOLLER, 2007 e HAMANAKA, HIRATA & TOJO, 2008. Estes estudos consistem em estratégias de transmutação que fazem uso de outros modelos além dos descritos nesta seção, os quais exigem que uma quantidade considerável de cálculo seja planejada e realizada dentro do processo criativo – motivo pelo qual não exporemos estes métodos nesta 92

dissertação, cujo enfoque é na aplicação de ferramentas, se não intuitiva, ao menos sem a necessidade de interrupção do fluxo criativo durante o processo composicional – o que não subtrai, de modo algum, a enorme relevância e mérito destes estudos.

3.1.2 Estratégias de transmutação entre propriedades

Em Quatro Critérios da Música Eletrônica (STOCKHAUSEN, 2009, p. 7993), Karlheinz Stockhausen expõe seu conceito de estruturação unificada do tempo, no qual altura, duração e timbre estão conectados através de um continuum. De tal forma, diferentes propriedades do som (neste caso, diferentes modos de perceber o som) podem ser acessadas dentro deste continuum; do mesmo modo, passa a ser possível realizar transições entre as propriedades.

Registrei pulsos individuais de um gerador de impulso e emendei-os em um determinado ritmo. Então, fiz um loop desse ritmo em fita, digamos que é um tac-tac, tac, um ritmo muito simples – e então acelerei-o, tarac-tac, tarac-tac, tarac-tac, tarac-tac, e assim por diante. Depois de um tempo o ritmo se torna contínuo, e quando acelereo-o ainda mais, começa-se a ouvir um som grave subindo em altura. Isso significa que esse pequeno período tarac-tac, taractac, que durava cerca de um segundo, agora dura menos que 1/16 de um segundo, porque uma frequência de cerca de 16 ciclos por segundo é o limite mais baixo da percepção da altura, e um som vibrando a 16 ciclos por segundo corresponde a uma altura fundamental muito baixa no órgão. O timbre desse é também um efeito do ritmo original sendo tarac-tac ao invés de, digamos, tacato-tarot, tacato-tarot, que daria uma cor tonal diferente. Você não ouve mais realmente o ritmo, apenas um timbre específico, um espectro, que é determinado pela constituição de seus componentes. Agora imagine acelerar mil vezes o ritmo original de um segundo, de modo que cada ciclo agora dure um milésimo de segundo: isso lhe dará um som na região média da audibilidade, de uma altura constante cerca de duas oitavas acima do dó central no piano. Uma frequência de mil ciclos por segundo e um timbre específico. Fiz várias experimentos com ritmos diferentes para ver o que dariam como diferenças em timbre. O que percebemos como ritmo de uma certa perspectiva é percebido em um tempo mais rápido de percepção como altura, com suas implicações melódicas. Você pode construir melodias mudando a periodicidade básica, fazendo-a mais rápida ou lenta para o som subir ou descer em altura, respectivamente. Dentro do período básico que determina a altura fundamental, há o que chamo de parciais, que são subdivisões da periodicidade básica, e são representadas aqui pelas divisões interiores que produzem o ritmo original. Essas são percebidas como timbre. (STOCKHAUSEN, 2009, p. 81)

Na exposição de Stockhausen, sons percebidos como ritmo e sons

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percebidos como altura situam-se em polos opostos de um mesmo eixo, no qual os extremos são acessíveis por meio de variação na velocidade dos pulsos. A noção de um eixo entre polos opostos nos permite traçar certas estratégias de transmutação que engedram transformações nas propriedades de uma estrutura musical. Neste caso, adaptaremos a ideia do continuum de Stockhausen para a escrita instrumental e vocal, considerando a impossibilidade de realizar as transições entre propriedades sem o uso de aparatos próprios da música eletroacústica. Falaremos de dois eixos, e de como as ferramentas previamente apresentadas contribuem na simulação de um continuum e na construção de transições entre propriedades. Sons diacrônicos são aqueles que ocorrem consecutivamente, enquanto sons sincrônicos são aqueles que ocorrem de forma simultânea. A transformação de uma estrutura diacrônica em uma estrutura sincrônica equivale, em termos composicionais estritos, a transmutar estruturas melódicas em estruturas harmônicas. Isto pode ser feito de duas maneiras distintas: 1) a sobreposição progressiva de elementos em uma mesma posição temporal e 2) o prolongamento na duração de um elemento “invadindo” a posição temporal de outro. Na figura 81, temos um exemplo do primeiro caso em C'est Un Jardin de Tristan Murail. A estrutura inicial consiste em três eventos diacrônicos (a1, a2, a3) e um sincrônico (a4/a5). Na primeira etapa do processo, a1 e a2 passam a ocupar a mesma posição temporal, transformando-se em um evento sincrônico. Após uma repetição da estrutura, o elemento a2 é substituído por a3, formando uma nova estrutura sincrônica. Ao final do processo, o perfil de três eventos diacrônicos + um sincrônico é transmutado em dois eventos sincrônicos.

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Fig. 81: transmutações por sobreposição progressiva na mesma posição temporal em C'est Un Jardin de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1977, p. 2

O exemplo da figura 82 também é extraído de C'est Un Jardin... de Tristan Murail. Neste exemplo, podemos observar um caso de prolongamento temporal em duas exposições consecutivas de uma estrutura melódica. Na segunda exposição, o elemento a4 é subtraído e o elemento a3 tem sua duração estendida, “invadindo” a posição temporal de a5 e constituindo um evento sincrônico.

Fig. 82: transmutação diacrônico/sincrônica por prolongamento temporal do elemento a3 em C'est Un Jardin... de Tristan Murail. Fonte: MURAIL, 1977, p. 1

No eixo harmônico/inarmônico, o termo “harmônico” corresponde a sons harmônicos do ponto de vistra espectral, enquanto o “inarmônico” corresponde a sons complexos. A utilização deste eixo é aplicável em estruturas timbrísticas ou harmônicas, sendo inclusive uma poderosa ferramenta para nublar os limites entre estas duas propriedades. Em Timbre and Harmony: Interpolations of Timbral Structures, Kaija 95

Saariaho (1987) associa sons harmônicos ao termo “som” e inarmônicos ao termo “ruído”. No artigo a compositora comenta possíveis aplicações deste eixo em processos criativos:

Há alguns anos eu tenho a tendência em minha música de relacionar o controle do timbre com o controle da harmonia. Inicialmente eu comecei a usar o eixo som/ruído para desenvolver frases musicais e formais maiores, para assim criar tensões internas na música. Em um senso atonal e abstrato o eixo som/ruído pode ser substituído pela noção de consonância/dissonância. Uma textura ruidosa e áspera seria assim paralela à dissonância, enquanto uma textura clara e suave corresponderia à consonância. É verdade que o ruído em uma noção puramente física é uma forma de dissonância levada ao extremo. No nível da percepção auditiva, nós podemos comparar de um lado a percepção de uma tensão que está relacionada com a tônica (ou com a consonância se o contexto não é tonal) e, de outro, uma textura ruidosa que, enquanto magnífica por si só, transforma-se em sons puros: pode-se achar certa analogia aqui. O “ruído” por si só pode se manifestar de modos distintos – suave, ríspido etc. De um modo geral, o conceito de “ruído” significa para mim expressões como (sons de) respiração, sons de flauta em registros graves ou um instrumento de cordas tocando “sul ponticello”. Em contraste, um som puro seria similar a um soar de sinos ou uma voz humana cantante na tradição ocidental. O eixo som/ruído existe como uma abstração que pode ser aplicada em diferentes escalas: ela pode ser comunicada com uma arcada de violino, ou utilizando todos os instrumentos de uma orquestra. (SAARIAHO, p. 94, 1987, tradução nossa)35

A aplicação de Saariaho permite que atuemos nas propriedades timbrísticas e harmônicas (no sentido sincrônico) de uma dada estrutura. O pólo som/ruído, bem como o nível de saturação cromática de uma estrutura sincrônica caracterizam exemplos de aplicação da abstração harmonicidade/inarmonicidade sobre as propriedades do timbre e da harmonia, respectivamente.

35 For some years now I have a tendency in my music to relate the control of timbre with the control of harmony. Initially I began to use the sound/noise axis to develop both musical phrases and larger forms, and thus to create inner tensions in the music. In an abstract and atonal sense the sound/noise axis may be substituted for the notion of consonance/dissonance. A rough, noisy texture would thus be parallel to dissonance, whilst a smooth, clear texture would correspond to consonance. It is true that noise in the purely physical sense is a form of dissonance pushed to the extreme. At the level of auditory experience, we can compare on the one hand the perception of a tension which is related by the tonic (or by a consonance if the context is not tonal) and, on the other a noisy texture which, while magnifying itself, transforms into pure sounds: one finds a certain analogy here. The "noise" in itself can actually manifest itself in different ways — soft, harsh etc. In a general way, the concept of "noise" signifies to me utterances such as breathing, the sound of a flute in a low register or a string instrument playing "sul ponticello." By contrast, a pure sound would be more akin to the ringing of a bell or a human voice singing in the Western tradition. The sound/noise axis exists as an abstraction which can be applied on different scales: it might be conveyed with a single violin bow, or by using all the instruments of an orchestra. (SAARIAHO, p. 94, 1987)

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Na figura 83, temos um exemplo de migração via interpolação de um pólo a outro do eixo em uma estrutura sincrônica. O ponto A desta estrutura reproduz um modelo harmônico (no caso, um acorde composto pelos primeiros seis componentes da série harmônica); o ponto B é caracterizado por alto grau de saturação cromática, simulando um modelo inarmônico. A transição entre um conteúdo e outro é realizada via interpolação; neste caso, cada altura de A é transformada por meio de glissandi em alturas de B.

Fig. 83: migração entre pólos do eixo harmônico/inarmônico via interpolação de alturas

No próximo exemplo (figura 84), a migração entre os pólos se dá via morphing em uma linha melódica tocada por um violoncelo. À medida em que o intérprete alivia a pressão dos dedos sobre uma corda pressionada, a sonoridade deslocase de uma altura definida para um som ruidoso e complexo. A sonoridade ruidosa é estabilizada no momento em que o intérprete mantém o dedo levemente encostado na corda, abafando-a.

Fig. 84: migração entre pólos do eixo harmônico/inarmônico via morphing em uma linha de violoncelo (exemplo nosso).

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3.1.3 Combinação dos eixos

Os eixos sincrônico/diatônico e harmônico/inarmônico podem ser dispostos perpendicularmente; desta forma, obtemos todas as combinações possíveis – ou seja, todos os estados limítrofes deste sistema. Esses estados são classificados como sincrônico-harmônicos, sincrônico-inarmônicos, diacrônico-harmônicos e diacrônicoinarmônicos (figura 85).

Fig. 85: eixos dispostos perpendicularmente e estados possíveis a partir das combinações entre seus pólos

A figura 86 apresenta quatro exemplos musicais construídos sobre as combinações expostas na figura 85.

Fig. 86: exemplos musicais construídos sobre estados limítrofes do sistema de transmutação de propriedades

Agora construiremos as estratégias de transmutação para a composição das transições entre cada estado utilizando livremente as ferramentas estudadas no capítulo 2 desta dissertação (figura 87).

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Fig. 87: transição construída sobre estratégias de transmutação entre propriedades

Transforma-se o som ruidoso em um som com altura definida (Dó 4) por meio do morphing. Após isto, a altura é gradualmente interpolada para um Dó 3. A este Dó 3 são adicionadas as alturas Ré e Mib. As notas deste cluster são interpoladas continuamente (glissandi) para a estrutura Dó 2 – Sol 2 – Dó 3. Finalmente, um Dó 1 é adicionado à estrutura. Em termos musicais, transmutamos um ruído em uma altura definida, transformamos esta altura em um cluster e este cluster em um acorde consonante. As transmutações ocorreram entre timbres (ruído → altura), texturas (altura → cluster) e harmonia (cluster → acorde consonante), concretizando assim a ideia de trânsito dentro de um continuum de propriedades. O exemplo em questão poderia ser arranjado para um quarteto de cordas, conforme demonstrado na figura 88:

Fig. 88: Possibilidade de orquestração do exemplo comentado na figura 87.

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3.1.4 Múltiplas camadas de transformação

Múltiplas camadas de transformação são caracterizadas por duas ou mais transformações progressivas ocorrendo simultaneamente. A figura 89 apresenta um exemplo de múltiplas camadas de transformação em C'est Un Jardin... de Tristan Murail.

Fig. 89: múltiplas camadas de transformação em C'est Un Jardin... de Tristan Murail Fonte: MURAIL, 1977, p. 1

No exemplo da figura 89, podemos observar a indicação para “apertar progressivamente os harmônicos em fundamentais36”. Ao mesmo tempo, o intérprete deve deslocar progressivamente o modo de arcada de ordinario para sul ponticello e realizar um accelerando. São então duas ocorrências simultâneas de morphing e uma ocorrência de interpolação de durações (accelerando). As ferramentas estudadas no capítulo 2 podem ser combinadas livremente entre si para criar estratégias de transmutação a partir de múltiplas camadas de transformação. A figura 90 apresenta um exemplo desta ideia aplicado à uma escrita para violino.

36 Appuyez progressivement les harmoniques em fondamentales.

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Fig. 90: exemplo de estratégia de transmutação com uso de múltiplas camadas de transformação

Na primeira camada de transformação temos a ocorrência de morphing melódico via operações: neste processo, o morphing melódico é realizado unicamente como operações (adição, subtração, inserção, exclusão, permutação, substituição). No exemplo em questão, a estrutura A é introduzida sem os elementos a3 e a4, que são adicionados à estrutura nos compassos 2 e 3. A partir do quarto compasso, o elemento b1 substitui o elemento a1 e b2 é inserido. No quinto compasso, o elemento b4 substitui a4 e b5 é inserido. No sexto compasso, a3 é excluído e o elemento b3 substitui o elemento a2 Na segunda camada, há a realização de um crossfading. Os elementos de A tem suas dinâmicas gradativamente reduzidas de mf para p enquanto as dinâmicas de B são gradativamente elevadas de p para mf. A terceira camada explora morphing por meio da posição do arco. O primeiro compasso é tocado sul tasto; o segundo compasso transita de sul tasto para ordinario; o terceiro compasso é tocado inteiramente ordinario; o quarto compasso transita de ordinario para sul ponticello; o quinto compasso é tocado inteiramente sul ponticello; finalmente, o sexto compasso transita de sul ponticello para ordinario

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novamente. As possibilidades de combinações entre as ferramentas expostas no capítulo 2 é enorme; as inúmeras estratégias de transmutação advindas destas possibilidades são um terreno fértil para a criação musical. O próximo capítulo tratará da produção composicional realizada em conjunto com a pesquisa descrita nesta dissertação. Trataremos então de questões dentro do âmbito criativo, descrevendo ferramentas e estratégias de transmutação empregadas em um contexto composicional.

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Capítulo 4: Relato de produção composicional

4.1 Anicca (2013)

Anicca é uma peça para guitarra solo. O título é um termo que, traduzido do páli, significa “impermanência”. Trata-se de um conceito budista que diz respeito ao caráter de eterna transformação da existência material. A obra foi concebida como um enorme processo de transmutação, no qual há, em termos formais, pouca estaticidade em seus conteúdos; os enunciados são constantemente transformados, aludindo à ideia de impermanência. A figura 91 apresenta as estratégias de transmutação utilizadas em Anicca.

Fig. 91: estratégias de transmutação em Anicca.

No início de Anicca um ataque em harmônicos é transmutado por meio 103

de adição de elementos juntamente com morphing timbristico para uma estrutura melódica composta por quatro colcheias. O morphing é realizado utilizando-se uma das técnicas empregadas por Murail comentadas no segundo capítulo, na qual o intérprete deve pressionar progressivamente a corda a fim de se obter a transformação do harmônico em fundamental (figura 92).

Fig. 92: transmutação entre estruturas em Anicca de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013a, p. 1

A estrutura de quatro colcheias é então submetida a um processo de interpolação de alturas, promovendo um morphing melódico; após o morphing, a identidade consequente tem suas durações interpoladas de colcheias para semicolcheias; estas operações são precedidas por um morphing timbristico obtido por meio de ataques de palheta que se deslocam para sul ponticello e depois para ordinario (figura 93).

Fig. 93: morphing melódico e timbrístico em Anicca. Fonte: ISHISAKI, 2013a, p. 1

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Após estas transmutações uma estrutura de semicolchias Fa# Mi Fa# Mi é adicionada (figura 94).

Fig. 94: Enunciado produto da adição das alturas Fa# Mi Fa# Mi à estrutura consequente do exemplo anterior.

Um novo processo de interpolação de alturas tem início, resultando no enunciado da figura 95:

Fig. 95: consequente do processo de interpolação de alturas sobre o enunciado da figura 94.

Tal enunciado sofre alguns processos de exclusão de elementos e é gradualmente transformado em um acorde, havendo aqui uma transmutação do pólo diacronico para o pólo sincrônico (figura 96).

Fig. 96: transmutação do pólo diacrônico para o pólo sincrônico em Anicca de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013a, p. 2

A próxima transmutação é caracterizada por interpolações nas alturas sobre este acorde. Após o processo, elementos são subtraídos da estrutura, restando então apenas a altura Mi. A esta altura, novos elementos são adicionados, resultando em um novo consequente (figura 97). 105

Fig. 97: interpolações de alturas e subtração de elementos em Anicca de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013a, p. 2

Este consequente é composto por um ostinato tocado em legato pela mão esquerda e uma figura melódica tocada com palheta. Na próxima transformação a figura melódica é excluída (como se fosse filtrada) e o ostinato tem suas durações interpoladas para semicolcheias. Após esta operação a figura melódica é retomada com suas durações interpoladas e com a inserção da nota Si em semicolcheias. Na próxima etapa, a altura Mi é adicionada à estrutura de semicolcheias (figura 98).

Fig. 98: filtragens por exclusão e inserção de elementos na figuração melódica da voz superior junto a interpolações no ostinato da voz inferior em Anicca de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013a, p. 3

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A obra é finalizada com uma nova filtragem dos conteúdos melódicos junto à reversão da interpolação nas durações do ostinato. Após isto, o conteúdo melódico é retomado uma última vez, para enfim ser excluido novamente, restando apenas a figura do ostinato, que sofre sua ultima transmutação - desta vez, um morphing timbrístico obtido por meio de ataques cada vez mais suaves realizados com o polegar da mão direita (figura 99).

Fig. 99: final de Anicca de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013a, p. 3

4.2 Areia e Espuma (2013)

Areia e Espuma é uma peça para piano solo inspirada no poema Sand and Foam (1926) de Kahlil Gilbran. A peça é inteiramente composta a partir de estratégias de transmutação, adquirindo o aspecto de um processo initerrupto, sem segmentações em termos formais. Alguns trechos foram compostos com transmutações em direção específica, enquanto outros foram concebidos a partir de direcionamento livre. A figura 100 apresenta as estratégias de transmutação empregadas na composição da obra.

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Fig. 100: estratégias de transmutação em Areia e Espuma de Bruno Ishisaki

A subtração progressiva de elementos foi utilizada para promover a transmutação entre um aglomerado de clusters e uma linha melódica – ou seja, o deslocamento do campo sincrônico para o diacrônico ocorre junto ao deslocamento do campo inarmônico para o harmônico. Esta mesma linha tem suas durações interpoladas de semicolcheias para fusas. A partir de então, permutações são realizadas para realocar temporalmente os elementos, ocasionando uma transmutação de um perfil diacrônico para um perfil sincrônico. Esta nova estrutura sofre adições progressivas, transmutandoa em um novo aglomerado de clusters. Esta estratégia é imediatamente repetida sobre outros materiais; contando com a repetição do processo, a transmutação deste trecho segue a trajetória cluster → linha melódica → acorde → cluster → linha melódica → acorde → cluster (figura 101).

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Fig. 101: transmutação cluster → linha melódica → acorde → cluster em Areia e Espuma de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013b, p. 1

Ao fim do processo anterior, uma nova estratégia é empregada. No caso em questão, um cluster é progressivamente arpejado até se transformar em um perfil escalar ascendente. As durações deste perfil são interpoladas de fusas de quintinas para colcheias. A partir da ocorrência dos grupos de semicolcheias, elementos do perfil passam a ser progressivamente subtraídos, até restarem as alturas Fa#3, La#3, Sol4 e Si4. Mais um processo de interpolação ocorre para promover um deslocamento nos ataques de cada altura. Na prática, cada ataque ocupa a posição de uma nota em um grupo de quatro semicolcheias; assim, o processo foi pensado para conseguir variedade na transição entre colcheias e semicolcheias. Isto é evidenciado na “reescrita” da estrutura, que a partir deste ponto inicia diversos processos de adição (figura 102).

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Fig. 102: transmutações em Areia e Espuma de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013b, p. 3-4

O próximo trecho é caracterizado por adições e subtrações progressivas do agrupamento de semicolcheias. Ao fim deste processo, um morphing melódico é realizado – no qual interpolações no campo das durações e alturas são efetuadas simultaneamente (figura 103).

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Fig. 103: morphing melódico em Areia e Espuma de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013b, p. 5

O resultado final do morphing melódico é um perfil cromático descendente. A este perfil aloca-se uma imitação transposta uma sexta menor abaixo. Neste trecho, a imitação é progressivamente deslocada, a fim de se obter uma transmutação diacrônicosincrônica gradual. Ao fim do processo, os dois perfis estão completamente integrados no campo sincrônico (figura 104).

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Fig. 104: deslocamento progressivo da imitação ocasionando em um perfil sincrônico em Areia e Espuma de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013b, p. 6

Este novo perfil sincrônico tem suas durações interpoladas de fusas para semicolcheias. Sobre este perfil é construída uma pequena coda (figura 105). Esta coda aproveita estruturas intervalares do perfil – entretanto, não constitui uma transformação progressiva direta (ou seja, não é fruto de um processo de transmutação).

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Fig. 105: coda em Areia e Espuma de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2013b, p. 6-7

4.3 Paracelso (2014)

Paracelso (2014) é uma obra para quarteto de guitarras (mais precisamente, para três guitarras de seis cordas e uma guitarra de sete cordas). O título é uma alusão ao alquimista Paracelso e também uma homenagem ao compositor Celso Mojola. Em Anicca e Areia e Espuma o propósito composicional era o de elaborar peças que soassem como processos de transmutação. Em Paracelso esta intenção também existe; contudo, a proposta principal deste quarteto é a de conectar sonoridades extremamente díspares por meio dos processos. Paracelso possui então uma abordagem em relação à condução das transformações que é calcada na busca de sonoridades mais ousadas e contrastantes entre si, bem como na construção de transições apropriadas entre estas sonoridades. A figura 106 apresenta as estrátegias de transmutação empregadas em Paracelso.

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Fig. 106: estratégias de transmutação empregadas em Paracelso de Bruno Ishisaki

No início da obra, cada guitarra repete uma figura rítmica: a guitarra 1 toca semínimas pontuadas, a guitarra 2 toca mínimas, a guitarra 3 toca mínimas pontuadas e a guitarra 4 toca semibreves. A primeira transmutação tem início com as interpolações dessas durações iniciais em valores menores, em conjunto com a adição progressiva de elementos a estes ataques iniciais. Este processo densifica a textura, culminando em um estado de ebulição textural, no qual as guitarras 2, 3 e 4 executam tremolos e morphings enquanto a guitarra 1 repete uma estrutura rítmica em semicolcheias e fusas (figura 107).

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Fig. 107: ebulição textural causada por progressivas interpolações de durações e adição de elementos em Paracelso de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2014c, p. 1-2

A partir deste estado, interpolações são realizadas nas durações das guitarras 2, 3 e 4. Os tremolos se transformam progressivamente em figuras de semicolcheia (guitarra 2), colcheia (guitarra 3) e semínima (guitarra 4). Isto é feito de modo a possibilitar a escuta de uma textura mais próxima a da polifonia, com linhas melódicas 115

independentes e que se complementam ritmicamente. A guitarra 1 sofre adição progressiva de alturas neste processo. Seu perfil rítmico também é manipulado a partir de exclusões e interpolações de durações. A partir do compasso 30, as linhas de todas as guitarras são gradualmente manipuladas, tendo seus elementos cuidadosamente excluídos. No compasso 38, um crossfading é realizado: resta apenas uma nota de cada linha de guitarra, que é tocada simultaneamente com um harmônico. Esta nota tem suas dinâmicas diminuídas a cada repetição, enquanto o harmônico ganha proeminência (figura 108).

Fig. 108: transmutações em Paracelso de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2014c, p. 4-5

Duas técnicas de morphing timbrístico são aplicadas nos compassos 41-43:

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primeiramente, os harmônicos são transformados em fundamentais; com a diminuição de densidade promovida pela desaceleração dos tremolos, há o deslocamento da posição de ataque da palheta de ordinario para sul ponticello (figura 109).

Fig. 109: morphing em Paracelso de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2014c, p. 5

Após este trecho, os guitarristas devem acionar os overdrives de seus pedais e amplificadores e utilizar o bottleneck para as próximas passagens (figura 110). Várias interpolações de alturas são realizadas com os glissandi de bottleneck. Nos compassos 49-52, as interpolações seguem o desenho de “escada” utilizado por Ligeti em Atmosphères (ver figura 31, seção 2.1.6, p. 42).

Fig. 110: interpolações de alturas em Paracelso de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2014c, p. 5

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A partir do compasso 51, ocorre um densificamento da textura. Neste trecho, cada guitarrista deve fazer pequenos glissandi na região mais aguda possível do instrumento, dentro do limite delimitado pelos pares de cordas designado para cada intérprete. Algumas interpolações de durações são realizadas para se obter variedade de ocorrências de ataques na textura. Após o desenvolvimento desta ideia, um elemento timbrístico distinto (obtido raspando-se a palheta nas cordas) é gradualmente inserido na textura, promovendo o decaimento da sonoridade anterior e a proeminência da nova sonoridade. Consideramos esta aplicação como um exemplo prático de crossfading dentro de um plano textural (figura 111).

Fig. 111: crossfading em Paracelso de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2014c, p. 7

A sonoridade de “raspagem” é gradualmente transformada por meio de técnicas de morphing timbrístico até resultar em uma textura de tremolos. Esta textura é interpolada para figuras de sextinas de semicolcheia, que têm seus elementos progressivamente excluídos. A peça é concluída com o decaimento obtido por meio de subtração progressiva das notas restantes (figura 112).

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Fig. 112: final de Paracelso de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2014c, p. 8

4.4 O Interior Manifesto (2013)

O Interior Manifesto é uma obra para orquestra, escrita em paralelo com a elaboração do texto Manifesto Interior (2013). Este texto foi escrito pelo autor deste trabalho juntamente com o compositor Marco Antônio Machado e foi assinado pelos pelos compositores Laiana Oliveira, Dino Beguetto e Paulo Henrique Raposo. Trata-se de um manifesto no qual os signatários expõem certas posições políticas, sociais e estéticas concernentes à cultura musical nas cidades do interior do estado de São Paulo. O texto foi lido publicamente em duas ocasiões nas quais o grupo Tempo-Câmara (do qual os autores do texto são integrantes) realizou sessões de improvisação livre. Em O Interior Manifesto os processos de transmutação são por vezes sobrepostos, configurados em camadas; assim, têm-se estruturas com identidades base e identidades consequentes cujos processos de transmutação ocorrem simultaneamente. A seção A da obra apresenta transformações em duas camadas: a primeira camada sendo composta por oboé e flautas e a segunda camanda por cordas. A figura 113 apresenta as estratégias de transmutação utilizadas na primeira camada da seção A de O Interior Manifesto.

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Fig. 113: estratégias de transmutação na primeira camada da seção A de O Interior Manifesto de Bruno Ishisaki

O modo como as operações de transmutação foram utilizadas não difere do que foi exposto nos tópicos sobre as peças anteriores. Portanto, nos concentraremos nesta seção em detalhar outros procedimentos, pressupondo que o resultado composicional da aplicação de tais operações já foi exaustivamente exemplificado nas seções prévias. A primeira camada tem início com um fragmento melódico tocado pelo primeiro oboé que é imitado pelas flautas. Na segunda etapa vê-se que a textura se densifica; além disso, nota-se a adição textural do segundo oboé. Esta camada decai em densidade, restando um prolongamento em uníssono da altura Dó4. Sobreposta à primeira camada, tem-se a segunda na qual outro roteiro de transmutações é desenvolvido (figura 114):

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Fig. 114: estratégias de transmutação na segunda camada da seção A de O Interior Manifesto de Bruno Ishisaki

A segunda camada tem início com um ataque curto por instrumento no naipe de cordas, que aumenta sua densidade gradualmente por meio da adição progressiva de elementos. Após o processo de adição atingir um pico de densidade, processos de interpolação de durações e alturas promovem o decaimento gradual da estrutura. Um aspecto importante a ser salientado em relação à sobreposição das duas camadas diz respeito ao ponto culminante de cada uma delas em relação à densidade de eventos. Este ponto culminante não coincide (compasso 11 na primeira camada e compasso 13 na segunda camada); além disso, a primeira camada decai no compasso 17, enquanto a segunda camada se mantém até o início da seção B, no compasso 19. A seção B apresenta transmutações nas linhas dos oboés e clarinetas. As estratégias de transmutação dessas linhas é apresentada na figura 115.

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Fig. 115: estratégias de transmutação em oboés e clarinetas na seção B de O Interior Manifesto de Bruno Ishisaki

A partir do compasso 37, as alturas Mi e Réb são reforçadas pelas flautas. Essas duas alturas são estruturalmente importantes na seção seguinte. A ressonância trabalhada pelas flautas neste trecho pontua o início de uma transformação sincrônicodiacrônica. No trecho em questão, as duas alturas se relacionam sincrônicamente (figura 116).

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Fig. 116: flautas reforçando as alturas Mi5 e Réb5 derivadas da textura de oboés e clarinetas em O Interior Manifesto de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKi, 2014b, p. 11

Na seção C, a estrutura tocada pelas flautas é transposta para os violinos (compassos 46-50. A partir do compasso 51, o enunciado passa a ser diacrônico – assim, as notas não soam mais simultaneamente. Uma estrutura que antes era composta por dois ataques cujas durações se sobrepunham passa a ser, do compasso 51 em diante, tratada como um motivo melódico. As seções D, E, F e G exploram uma escrita motívica (o que não impede a produção circunstancial de trechos transmutados). A seção H trabalha novamente com a transmutação integral de estruturas. Neste caso, uma figura cromática tocada pelas cordas cria uma textura densa que aos poucos se transforma em uma valsa modal. Isto é feito por meio de inserções progressivas de elementos melódicos juntamente com a exclusão progressiva de elementos cromáticos – caracterizando uma espécie de crossfading (figura 117).

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Fig. 117: transmutação de textura cromática em valsa modal via crossfading na seção H de O Interior Manifesto de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2014b, p. 18-19

Após algum desenvolvimento motívico dos elementos de “valsa” na seção I, a obra é finalizada na seção J, na qual há um contraponto de dinâmicas sobre uma estrutura harmônica tocada em tutti. A ideia deste trecho foi a de obter variações timbrísticas e harmônicas utilizando somente o deslocamento de sonoridades obtidas pelos diferentes envelopes de dinâmica designados para a parte de cada instrumento da orquestra. Aplicamos o conceito de morphing via transformações contínuas sobre os perfis dinâmicos de cada componente dessa estrutura harmônica massiva (figura 118).

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Fig. 118: contraponto de dinâmicas na seção J de O Interior Manifesto de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2014b, p. 21

4.5 Uso circunstancial de transmutações em outros projetos composicionais

Transmutações musicais não se limitam apenas a obras cujos propósitos 125

estejam relacionados à escuta de processos. A técnica pode ser empregada em qualquer tipo de projeto composicional. Nesta seção descreveremos alguns usos da técnica em obras cuja poética não está diretamente relacionada à percepção de processos de transformação. O uso da técnica nessas obras é pontual – neste caso, a transmutação é um entre vários procedimentos composicionais utilizados na produção de cada obra. Em Eis-me Vento, Entre o Oriente e o Ocidente (2013), obra para flauta solo, há um trecho no qual o morphing foi realizado a partir de um eixo composto por 1) key clicks e 2) key clicks + sopro. O trecho em questão é construído sobre frases tocadas com key clicks; em determinados momentos o intérprete deve soprar com crescendi e decrescendi, transformando a sonoridade percussiva e de puro ataque dos key clicks em sons contínuos de envelope dinâmico variável (figura 119).

Fig. 119: morphing em Eis-me Vento, Entre o Oriente e o Ocidente de Bruno Ishisaki

Ao final de Eis-me Vento... outro procedimento de morphing é realizado. O intérprete deve tocar a nota Dó#4 em um crescendo que culmina na marcação dinâmica fff. O efeito esperado desta passagem é o de uma nota grave e com ruído se 126

transformando em um harmônico, dada a impossibilidade do instrumento executar Dó#4 em fff sem sofrer este tipo de transformação (figura 120).

Fig. 120: morphing em Eis-me Vento, Entre o Oriente e o Ocidente de Bruno Ishisaki

Lunar (2013) é uma obra para mezzo soprano, guitarra e piano. A figura 121 expõe algumas técnicas de transmutação trabalhadas no início da peça.

Fig. 121: técnicas de transmutação no início de Lunar de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2013c, p. 1

Contudo, a obra se vale das técnicas de transmutação como uma dentre várias ferramentas para desenvolver seus materiais. A figura 122 apresenta um trecho de Lunar no qual observa-se interpolações nas durações na parte de guitarra junto a interpolações de durações e alturas na parte de piano. Segue-se a esse desenvolvimento 127

uma seção sem técnicas de transmutação, cujo desenvolvimento passa a ser motívico.

Fig. 122: transmutações seguidas de desenvolvimento motívico em Lunar de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2013c, p. 6

Aurum nostrum non est aurum vulgi (2014) é uma obra para quatro vozes masculinas, na qual há trechos de transmutação trabalhados com morphing via fonemas. A transformação contínua de um fonema em outro produz transformações timbrísticas devido ao fato de cada vogal assumir uma configuração espectral específica (figura 123).

128

Fig. 123: morphing via fonemas na primeira página de Aurum nostrum non est aurum vulgi de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2014a, p. 1

As consoantes são progressivamente inseridas ao texto, para formar no final da peça a frase “aurum nostrum non est aurum vulgi”, que traduzida para o português significa “nosso ouro não é o ouro vulgar37”. Pode-se então falar desta estrutura na qual consoantes são progressivamente inseridas como uma transformação gradual de sons vocálicos sem significado semântico em um texto completo com consoantes e vogais – consequentemente, com a inserção progressiva de ruídos advindos dos sons das consoantes T, R e G (figura 124).

37 Ver o comentário de Jung na p.1.

129

Fig. 124: última página com o texto completo em Aurum nostrum non est aurum vulgi de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2014a, p. 4

Na obra para orquestra Apocatástase (2012), técnicas de transmutação foram utilizadas para promover o decaimento de algumas texturas. A figura 125 apresenta um exemplo que ocorre entre os compassos 130-141, nos quais a textura de tremolos tocada pelos violoncelos e contrabaixos é submetida à interpolações nas alturas e durações, decaindo em termos de densidade.

130

Fig. 125: decaimento textural via interpolação nos violoncelos e contrabaixos em Apocatástase de Bruno Ishisaki. Fonte: ISHISAKI, 2012, p. 20

Há também nos compassos 84-86 de Apocatástase um crossfading massivo entre duas estruturas harmônicas (figura 126):

131

Fig. 126: crossfading em Apocatástase de Bruno Ishisaki Fonte: ISHISAKI, 2012, p. 16

O crossfading trabalhado em Apocatástase pode ser visto como um gesto reduzido do contraponto de dinâmicas que efetuamos em O Interior Manifesto (fig. 118, p. 127). Em ambos os casos, temos uma sonoridade cromaticamente saturada que se 132

transforma de acordo com a regulação dos envelopes dinâmicos de suas componentes. Neste capítulo buscamos demonstrar a aplicação da técnica de transmutação em dois contextos: 1) o da poética composicional norteada pela ideia da transmutação e da escuta dos processos (seções 3.2.1-3.2.4)

e 2) o da aplicação da técnica com

objetivos composicionais distintos (seção 3.2.5). Durante a pesquisa que resultou nesta dissertação, foram muitas as metodologias testadas para alcançarmos nosso objetivo: algumas envolviam o uso extensivo do computador, enquanto em outras nos vimos dependentes demais da necessidade de realizar longos cálculos que nem sempre resultavam na sonoridade que buscávamos. Chegamos enfim ao método sobre o qual construímos o segundo capítulo desta dissertação, método este que permitiu a aplicação das ferramentas de modo bastante natural durante o processo composicional. Consideramos a aquisição de ferramentas composicionais que possam ser integradas ao fluxo criativo como meta principal deste trabalho. Por isso, não incluímos neste texto os resultados obtidos por meio de outras metodologias que foram trabalhadas por nós durante a pesquisa – não por serem inúteis ou por não funcionarem, e sim porque representam um desvio à meta deste trabalho, que é fornecer ferramentas composicionais que podem ser aplicadas sem interromper o processo de escrita. Isto vem de uma necessidade do autor deste texto em buscar uma escrita cada vez mais fluída, não representando de modo algum um posicionamento crítico à composição assistida por computadores.

133

Considerações finais

No primeiro capítulo expusemos o conceito de transmutação, conforme o seu sentido original advindo da alquimia, e trabalhamos a transposição do conceito para a prática da composição musical. Além da transpormos a ideia, tratamos de complementá-la conforme as necessidades deste trabalho com uma categorização dos tipos de transformação que a caracterizam. No segundo capítulo extraímos de exemplos do repertório do século XX certos procedimentos sobre os quais estabelecemos ferramentas composicionais que nos permitiriam promover a transmutação entre estruturas na composição de música instrumental e vocal. As ferramentas obtidas foram a adição, subtração, inserção, exclusão, permutação e substituição progressiva de elementos, a transmutação timbrística via morphing ou via crossfading e as interpolações de alturas e durações. Exploramos no terceiro capítulo as possibilidades de combinação entre estas ferramentas. A estas possibilidades demos o nome de estratégias de transmutação. Foi observado que, por meio destas estratégias, seria possível criar transições musicais entre os eixos sincrônico-diacrônico e harmônio-inarmônico. Todos esses recursos (ferramentas e estráegias) constituem a nossa proposta de técnica de transmutação entre estruturas musicais. Com esta técnica, um certo número de obras foi composta. A aplicação da técnica nessas obras foi comentada em detalhes no subcapítulo 3.2. Tristan Murail e György Ligeti foram compositores cujas obras foram utilizadas como exemplos de maneira recorrente ao longo deste texto. Isto indica que a técnica de transmutação, conforme exposta nesta dissertação, não é uma novidade. A prática já estava presente em maior ou menor grau nos procedimentos composicionais utilizados ao longo do século XX. Portanto, este trabalho possui, de certa forma, um aspecto de catalogação de práticas concernentes à transformação de estruturas musicais. Não pretendemos afirmar que os procedimentos contidos neste texto são os únicos que caracterizam uma técnica de transmutação. Acreditamos que existe um grande acervo de técnicas a ser catalogado, desenvolvido ou descoberto; neste ponto, este trabalho apresenta os procedimentos que seriam os mais básicos – um ponto de partida ou de referência em relação a certos conceitos relacionados à transformação de 134

estruturas na escrita de música instrumental ou vocal. Pesquisas relacionadas ao tecnomorfismo podem ser valiosas nesse sentido. Pois foi na música eletroacústica que a ideia de um som que se transforma e que passa por algum tipo de processamento tem a sua expressão mais contundente. Não por acaso, citamos vários exemplos de obras eletroacústicas (sobretudo quando comentamos o morphing e os glissandi). Inevitavelmente, novas problemáticas surgiram no decorrer da pesquisa. Ao refletirmos sobre a percepção auditiva dos processos de transmutação, nos deparamos com algumas questões, que apesar de fugirem do escopo deste trabalho, inevitavelmente tangenciaram parte do levantamento bibliográfico. Na obra eletroacústica Vox-5 o compositor Trevor Wishart promove transmutações que partem de sons vocais para outras imagens sonoras. Durante o processo composicional da obra, houve por parte do compositor a preocupação de que as transformações fossem reconhecíveis no plano da escuta. Neste contexto, o compositor aponta uma problemática concernente à percepção das transmutações:

Não importa o quão suave uma interpolação possa ser em termos acústicos ou matemáticos; nós tendemos perceptualmente a fazer saltos súbitos em nossa percepção de objetos não-familiares. Conforme é sugerido na teoria da catástrofe, quando percebemos um objeto que inicialmente reconhecemos e que muda continuamente, nós continuamos interpretando-o como o objeto original até que um limite é alcançado. Neste ponto é provável que haja um desvio no reconhecimento de um novo objeto. (WISHART, 1988, p. 24-25, tradução nossa)38

Há uma ressonância entre o comentário de Wishart e a definição de distância transformacional proposta por Smalley:

A ideia da distância transformacional não é uma medida de tempo, e sim uma medida subjetiva dos graus de mudança de identidade relativos à uma identidade base. Em outras palavras, ele está relacionado aos resíduos da identidade base retidos em qualquer estado consequente, e também aos graus em que o ouvinte permanece fixo na base. A distância máxima é atingida se uma identidade consequente é verdadeiramente estabelecida: a distância 38 No matter how smooth an interpola-tion may be acoustically or mathematically, we are perceptually prone to make sudden leaps in our perception of unfamiliar objects. As suggested by ca-tastrophe theory, when perceiving a continuously changing object that we initially recognize, we con-tinue to interpret it as the original object until a certain threshold is reached. At this point there is likely to be a sudden switch to the recognition of a new object. (WISHART, 1988, p. 24-25)

135

máxima é portanto sinônimo de uma direcionalidade específica. No outro extremo, próximo à base, nenhuma identidade consequente é estabelecida e a transformação é escutada mais como algum tipo de realce, mudança amena ou sombreamento expressivo da base. (SMALLEY, 1993, p. 287, tradução nossa)39

Em ambos nota-se que a percepção, em algum ponto do processo, deixa de perceber A (identidade base) e começa a perceber B (identidade consequente), sendo que este salto perceptivo pode não ocorrer exatamente ao fim da transmutação. Estudos de modelos perceptivos baseados na teoria da catástrofe citada por Wishart tem sido realizados no campo da percepção visual. No artigo Stochastic catastrophe analysis of switches in the perception of apparent motion (2002), Annemie Ploeger, Han L. J. Van Der Maas e Pascal A. I. Hartelman apresentam primeiramente um panorama da pesquisa de modelos perceptivos concernentes à percepção visual do movimento para, a partir de dois paradigmas expostos no artigo, derivar o fenômeno que os autores chamam de “divergência” na percepção do movimento. Na contextualização de Ploeger, Maas e Hartelman, experimentos com transformações progressivas no campo da percepção visual evidenciaram o fenômeno perceptivo chamado histerese:

Histerese significa que o que é percebido em qualquer momento depende do estado precedente do sistema visual. Como resultado, a percepção depende da direção da mudança de parâmetro. Quando um parâmetro é aumentado gradualmente, mudanças na percepção vão ocorrer em um ponto distinto das mudanças na percepção que ocorriam quando o parâmetro é gradualmente diminuído. Ou seja, a percepção inicial tende a persistir, embora o parâmetro tenha mudado para um valor que favoreça a percepção alternativa. (PLOEGER, MAAS, HARTELMAN; p. 26, 2002, tradução nossa)40.

39 The idea of transformational distance is not a measure of time but a subjective measure of degree of change of identity relative to the base identity.8 In other words it is concerned with the residues of base identity retained in any consequent state, and thus the degree to which the listener remains tied to base. Maximum distance is achieved if a consequent identity is truly established: maximum distance is therefore synonymous with specific direction. At the other extreme, proximate to the base, no consequent identity is established and the transformation is heard more as some kind of enhancement, mild change or expressive shading of the base. (SMALLEY, 1993, p. 287) 40 Hysteresis means thatwhat is perceived at any moment depends on the preceding state of the visual system. As a result, perception depends on the direction of parameter change.When a parameter is gradually increased, changes in percept will occur at a different point from changes in percept that occur when the parameter is gradually decreased. That is, the initial percept is likely to persist, althoughthe parameter has changed to a value that favors the alternative percept. (PLOEGER, MAAS, HARTELMAN; p. 26, 2002)

136

O conteúdo das citações de Wishart e de Smalley são um indício da existência do fenômeno de histerese na percepção auditiva; assim, entendemos que os fenômenos notados na percepção de movimento podem ter seus equivalentes no processo de escuta de uma transmutação musical. O ponto de catástrofe caracteriza a mudança na percepção e marca a presença da diferença enquanto colapso, fator de segmentação e corte no fluxo de invariâncias; marca portanto a interrupção do fenômeno de histerese na escuta de um processo de transmutação. Isto nos situa diante de um paradoxo: transformações contínuas ou graduais que apresentem pontos de catástrofe no nível perceptivo não serão percebidas como contínuas e graduais – ou seja, apresentarão interrupções, fruto do colapso que ocorre devido à progressiva incrementação de conteúdos de diferenciação entre A e B; o corolário disso é que transformações contínuas e graduais que não apresentam pontos de catástrofe no nível perceptivo não serão percebidas como transformações direcionais de A para B, pela ausência da percepção da incrementação de seus conteúdos de diferença. Não apuramos estas hipóteses, pois as mesmas surgiram em decorrência do levantamento bibliográfico que fazíamos tendo como foco de pesquisa a transmutação na composição musical. Contudo, julgamos ser relevante expor uma problemática que pode servir para pesquisas futuras, e que se relaciona diretamente com o conteúdo desta dissertação. Em relação ao que propomos no início deste trabalho, consideramos a pesquisa bem sucedida, no sentido em que uma variedade de ferramentas foi obtida e objetivamente aplicada à uma produção composicional variada em termos de formações instrumentais. O autor deste trabalho espera que o estudo aqui apresentado seja útil e benéfico a outros compositores e pesquisadores que também busquem soluções para a construção de transições e transmutação de estruturas. Pois consideramos este o intuito final de um trabalho acadêmico como o que realizamos: que contribua para a construção de saberes individuais, e que estes saberes retornem na forma de obras musicais, pesquisa e docência para as comunidades na quais tais indivíduos estão inseridos. Agradecemos a leitura, esperando que o conteúdo deste estudo traga contribuições ao leitor e à comunidade. Obrigado. 137

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142

Anexo 1: Anicca

143

Anicca Bruno Ishisaki  = entre 60 e 75 bpm



H.N. 5

Guitarra

 8



2

p delay = 

  



mínimo de 8 repetições

4

gradualmente s.p. -----------------------------------------------tocar repetidamente o conteúdo do box apertando progressivamente as cordas para transformar o harmônico em fundamental

    mp

                                            3

8

ord., deixar vibrar quando for possível...

  8



     

                    3

3

4

4

3

3

3

2

4

----------------

3

4

3

                             4

8

gradualmente s.p.

gradualmente ord.

mf

3

3

                                

p

8

  

   

   

    

3

8

8

2

 

  



4

 

    2

deixar vibrar quando for possível...

     2

3

----------------

  0



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crescendo poco a poco...

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3

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tocar repetidamente o conteúdo do primeiro box soltando progressivamente as cordas para transformar a fundamental em harmônico e realizar o procedimento ao contrário a partir do segundo box.

2

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4

3

gradualmente indo para s.p.

ppp

mf

realize as ligaduras das notas com haste para baixo com a mão esquerda e palhete as notas com hastes para cima



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gradualmente indo para s.p.

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tocar sem palheta: apenas com o polegar produzindo um som com pouco ataque...

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p















São José dos Campos, 1 de outubro de 2013

















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3

Anexo 2: Areia e Espuma

144

Pno.

Pno.

Piano

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AREIA E ESPUMA

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Bruno Ishisaki

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Pno.

Pno.

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Pno.

Pno.



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poco

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ritardando...

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Anexo 3: O Interior Manifesto

145

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