A Travessia do Atlântico: impressões de primeira viagem e o medo de ser devorado

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João Gilberto Walmsley Melato
RA: 155900
Trabalho final de HH727A
Professora Lisa Castilho
A Travessia do Atlântico: impressões de primeira viagem e o medo de ser devorado
"Esses negros arrebanhados (...) tornam-se para os europeus um rebanho humano em consignação, cujo estatuto jurídico não é de fato definido pois os cativos somente serão escravos após serem vendidos. Será um rebanho amorfo? Certamente o estupor e o medo, o abatimento e o pavor, o horror diante do desconhecido, do estranho e da coação, são suas primeiras reações".
Kátia Mattoso
À maneira de introdução – breves considerações metodológicas
Alan Rice começa seu livro Radical Narratives of the Black Atlantic notando a presença de um negro entre os mordomos do poeta e político inglês Wilfrid Scawen Blunt (1840-1922). Indo atrás de seu rastro, Rice descobre tratar-se de um cabo-verdiano, vendido pela mãe, que passava fome, ao famoso poeta inglês, em 1865, e que fora batizado com o nome britânico de Pompey por seu senhor. O curioso, mas talvez previsível, é que a história de Pompey fora apagada dos memoriais da História. Considera-se normalmente a década de 1960 como a data de chegada de não-brancos à região de Sussex, na Inglaterra. A própria existência de Pompey é portanto excluída da História – e note-se que assim exclui-se da História também a fome de sua mãe, habitante de uma colônia portuguesa na África.
Meu propósito é o de recuperar a história (ou um aspecto dela) de pessoas como Pompey através da abordagem micro-histórica, e para isso contarei, fundamentalmente, com as narrativas autobiográficas escritas por ex-escravos. A Micro-História consiste em fazer, não uma "História dos grandes nomes", mas antes uma História dos "pequenos" nomes, de pessoas que nunca imaginariam que um dia haveria alguém de querer saber tanto sobre elas. Mas não só: ao entender esses "personagens" históricos como inseridos e agentes dos processos societários que viveram, e ao analisar como eles se relacionavam com esses processos, o método micro-histórico permite desvendar aspectos fundamentais das sociedades em que essas pessoas viveram, bem como desfazer equívocos homogeneizantes (como a ideia de que só houveram negros em Sussex a partir da segunda metade do século XX).
Neste trabalho, me debruçarei sobre algo que me chamou a atenção ao ler as narrativas de escravos: muitos cativos, em sua primeira viagem pelo Oceano Atlântico, temiam ser vítimas de atos canibais por parte dos senhores brancos ou dos próprios traficantes. Com ajuda dos documentos e da – escassa – historiografia que pude encontrar sobre, analisarei mais detidamente essa questão. Dessa forma, meu trabalho se inscreve no campo da história cultural, mas, ao analisar um aspecto das relações de trabalho da época, pode também ser inscrito no campo da história social, demonstrando que, talvez, devêssemos enxergar esses campos (e falo em "campos", não em "áreas", propositalmente) de forma menos dicotômica.
Uma última observação é necessária. Já reconheci, implicitamente, que os documentos possuem subjetividade – mas não me limitei à simples constatação e afirmei ser necessário observar como a fonte se relaciona com a sociedade na qual se insere. Para além disso, devo lembrar também que o historiador possui subjetividade. Assim sendo, uma vez que nunca trabalhei sob regime de escravidão e que sou de etnia branca, o problema da minha relação com meu tema de estudo é um problema de alteridade.
Revelações interessantes de Olaudah Equiano
É possível encontrar o medo de ser devorado na Interesting Narrative of the life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, the African, written by himself, uma narrativa autobiográfica publicada pelo liberto e expoente do movimento abolicionista Olaudah Equiano, em 1789. Segundo o testemunho de Equiano, ele passou pelo medo de ser comido pelos senhores brancos pelo menos por três vezes. A primeira vez é logo de sua chegada no navio negreiro, quando ele desmaia e, ao se recuperar, pergunta aos traficantes africanos que o trouxeram se ele não seria comido "por aqueles homens brancos de aparência horrível, rostos vermelhos e cabelos longos". Não obtém resposta, e a dúvida continua o atormentando até que, entre os africanos de diversas nacionalidades no navio, encontra alguns com quem consegue se comunicar:
Em pouco tempo, entre os miseráveis homens acorrentados, eu descobri alguns de meu próprio país (...). Eu perguntei o que ia acontecer com a gente. Eles me disseram que nós seríamos levados ao país desses homens brancos para trabalhar para eles. Isso me acalmou um pouco, eu pensei que se não seria nada pior do que trabalhar, minha situação não era assim tão desesperadora. Mas eu ainda temia que me matassem, aqueles homens brancos agiam e se portavam de forma tão selvagem; que eu nunca tinha visto em nenhum povo níveis tão elevados de crueldade e brutalidade.
Na segunda ocasião, o relato do autor é intrigante: ao chegarem na ilha de Barbados, todos os escravos, ao verem o entusiasmo da tripulação e dos traficantes que estavam esperando o navio, foram tomados pela certeza de que seriam devorados pelos homens brancos. Então, recusaram-se a descer do navio, e só mudaram de ideia quando os homens brancos trouxeram da ilha escravos africanos com maior experiência que os garantiram que eles não iriam ser comidos, mas trabalhar, e que encontrariam muitos compatriotas em terra firme, acalmando assim os recém-chegados.
A terceira ocasião é um pouco diferente. Nela, o medo não vem "espontaneamente" de Olaudah, mas é induzido nele pelos brancos com quem convive. Enquanto trabalhava em um navio inglês, no qual foi chamado de Gustavus Vassa pela primeira vez, houve um momento em que a comida – até ali abundante – começou a faltar, devido ao atraso na trajetória. Nessa altura, o capitão e a tripulação informaram a Equiano que iriam mata-lo e comê-lo, o que o deprimiu bastante, por gostar muito deles, e o fez temer que todo momento seria seu último, o que não aconteceu.
Choque psicológico ou boato de proporções universais?
Não é somente no relato de Olaudah Equiano que podemos encontrar evidências desse medo por parte dos cativos a bordo. Em toda uma infinidade de documentos, é possível encontrar resquícios dessa mesma preocupação entre os africanos. Cite-se, por exemplo, o testemunho do jesuíta Alonso de Sandoval, que soube que os escravos que partiram de Luanda em 1622 estavam deprimidos e acreditavam que seriam submetidos a um ritual de feitiçaria, onde seriam transformados em óleo e devorados. Ou ainda a ocasião, trabalhada pela historiadora Kátia Mattoso, de uma rebelião num negreiro brasileiro em 1823. Segundo ela:
A rebelião teria ocorrido em pleno mar, instigada por um negro "ladino" (isto é, que já falava português) e se chamava José Toto ou José Pato. Este José assegurara aos negros que seriam comidos pelos brancos tão logo alcançassem terra firme. Os cativos amotinados teriam conseguido matar todos os brancos e alcançado a Bahia, façanha somente tornada possível por haver a bordo escravos-marinheiros que sabiam um pouco das regras de navegação.
A historiografia enfrentou esse problema, ainda que de maneira insuficiente, é possível dizer, principalmente se pensamos na historiografia de língua portuguesa. Seja como for, as contribuições da historiografia revelarão a existência, não apenas de um medo, mas também de uma sociedade na qual esse medo está inserido e com a qual ele se relaciona. A leitura atenta dos documentos e as contribuições da historiografia vêm revelar que se trata de um tema de história cultural e de história social, afinal toda cultura não é senão a cultura de uma sociedade.
O primeiro argumento historiográfico para "explicar" o medo de ser devorado pelos senhores brancos que sentiam os cativos é o do "choque psicológico". É introduzido pelo historiador africanista John Thornton, segundo o qual, graças aos "horrores" e à "máxima degradação humana" pela qual passavam os cativos, "muitos enlouqueciam, e outros sofriam um severo choque psicológico". Assim, para Thornton, o medo sentido pelos escravos de serem devorados pelos senhores brancos é uma consequência da situação de extrema privação e calamidade a que são submetidos durante a travessia do Atlântico.
O já citado Alan Rice vai por um caminho diferente, adicionando dois elementos que não é possível ignorar: primeiro, um argumento de ordem empírica: muitos cativos, ao se recusarem a comer, eram submetidos à alimentação forçada por parte da tripulação, o que eles interpretavam como evidência de estarem sendo engordados para posteriormente serem comidos; segundo, a presença de mitos, boatos e representações de homens brancos canibais na África durante o tráfico de escravos.
Obviamente, ao ler o segundo argumento, meus olhos de historiador do século XXI, tão preocupados em não cometer erros homogeneizantes, se irritaram um pouco (e esta irritação, de fato, ainda persiste). Mas Rice se baseia em uma pesquisa sólida, e parece comprovar seu ponto, que é tão ambicioso quanto parece ser: citando diversos documentos, o autor tenta provar que os rumores "não estavam confinados à África ocidental" mas podem ser rastreados ao Sul e ao Leste do continente, inclusive no século XIX. Entre os documentos por ele citados, está o relato de De Sandoval; a recepção do príncipe Job Ben Solomon por africanos espantados ao voltar à Gâmbia, uma vez que seus compatriotas acreditavam que quem era levado pelos homens brancos era devorado ou morto; o ritual do povo Ibo segundo o qual aqueles que ofendiam o oráculo eram devorados por ele (e, em realidade, eram feitos cativos por traficantes); etc, além de pesquisas realizadas pelos historiadores Sam Shepperson, Thomas Price e Neil Parson.
Assumindo, portanto, como verdadeira a assertiva de que os rumores do canibalismo europeu estavam quase que universalmente espalhados pela África, o problema ainda persiste. Ora, a não ser no caso dos Ibo, não há qualquer conexão direta entre o boato e a experiência real de travessia que determine, invariavelmente, que o cativo irá acreditar no boato e temer ser vítima de um ritual canibalístico. Além disso, como mostrei, foram os próprios compatriotas de Equiano que o acalmaram e o disseram que ele iria trabalhar no país dos homens brancos. No entanto, ao chegar à Barbados, os mesmos que o tinham acalmado entraram em desespero com ele, e recusaram-se a descer do navio. Porque, então, o boato era falso e depois verdadeiro, na mente daqueles cativos? O que os fazia acreditar no boato?
Seria possível creditar ao primeiro argumento de Rice a explicação: afinal, o próprio Equiano relata ter sido forçado a comer quando se negou, o que poderia explicar o fato dos demais cativos terem sido "convencidos" da validade do boato. No entanto, lendo a narrativa de Equiano, podemos encontrar o relato do seguinte episódio: certo dia, a tripulação pescou muitos peixes. Comeram muito, se deliciaram e ficaram cheios, mas ainda sobrava uma quantidade razoável de peixes. Os cativos, ao verem aquilo, pediram e imploraram para comer, já que estavam famintos, mas a tripulação ignorou-os e jogou os peixes no mar. Ora, não há evidências, portanto, de que os brancos estivessem "engordando" os negros do navio de nosso narrador: pelo contrário, há evidências de que os brancos os fariam passar fome mesmo tendo comida de sobra para satisfazê-los. Porém, ao chegar o navio, pouco depois desse episódio, todos os escravos não temeram ser vítimas de canibalismo? Mattoso nos diz, sobre as provisões, que a água era mais valorizada que a comida, uma vez que sua escassez era mais fatal. E, embora ela mesma nos diga que as condições de alojamento, fome e sede nos navios variava muito, acredito que a preferência da água sobre a comida fosse mais ou menos universal – afinal, o potencial devastador da escassez de água é universal.
Obviamente, não estou dizendo que a disseminação dos boatos ou o impacto psicológico da alimentação forçada não devam ser considerados como fatores fundamentais para a existência do medo entre os cativos. No entanto, os episódios relatados na narrativa de Olaudah Equiano e a informação trazida pelo estudo de Mattoso servem para impor limites a esses elementos como fatores explicativos. É preciso encontrar algo mais.
Para responder a esse impasse, deve-se pensar na relação dos homens com os boatos que chegam até eles: ninguém acredita totalmente em um boato. Normalmente, guarda-o como uma possibilidade em suas considerações, mas não o toma como verdade absoluta num primeiro momento. A partir daí, tenta verificar a validade do boato através de suas experiências reais, e aí reside a força do argumento de Rice de que a alimentação forçada foi mal-interpretada pelos cativos, dando origem ao medo de serem devorados. No entanto, a fome pela qual passavam só pode ter desfeito, muitas vezes, essa impressão. Porque, então, os cativos ainda acreditavam que seriam vítimas de rituais canibalísticos?
Relembro as palavras de Equiano sobre suas impressões com o homem branco: ele temia por sua vida, pois os brancos eram tão "selvagens" que ele nunca havia visto, em nenhum outro povo, "níveis tão elevados de crueldade e brutalidade". Ou seja, a situação de profunda degradação e humilhação física e psicológica a que estavam submetidos os cativos pode ter reforçado, tanto sua má impressão do homem branco, quanto sua crença de que seu destino só poderia ser o pior possível. Assim, entende-se que o boato é ora creditado, ora descartado pelo cativo, e que o mediador fundamental dessa relação são as condições materiais a que ele está submetido. Portanto, proponho reaproveitar assim a teoria do "choque psicológico", entendendo que a representação que o africano a bordo do navio faz de sua situação é informada por crenças anteriores que ele adquiriu na própria África.
O medo na política
Como venho insistindo nesse texto, o "medo" não pode ser tratado como um aspecto exclusivamente cultural, ou melhor, não pode ser compreendido em sua dimensão cultural se considerar-se a cultura como isolada da sociedade. Nenhuma cultura se desenvolve de forma totalmente independente da sociedade na qual ela está inserida. Assim sendo, para levar essa discussão adiante, é proveitoso que se olhe, rapidamente, para o papel que esse medo jogou em conflitos sociais e políticos relacionados à dinâmica própria do escravagismo.
Primeiro um exemplo já citado: a rebelião escrava num negreiro brasileiro, incitada por um negro "ladino" que assegurou aos seus companheiros que viriam a ser devorados pelos brancos ao alcançarem terra firme. Uma narrativa preconceituosa veria nesse ato um "delírio" coletivo dos cativos, revoltando-se violentamente por conta de um boato no qual acreditavam. No entanto, é possível negar que a crença deles naquilo estava condicionada pelas péssimas condições em que viajavam? Não seria, portanto, essa rebelião uma rebelião contra as condições sub-humanas a que os cativos estavam expostos? No entanto, deve-se tomar cuidado para não cair no outro extremo: o da narrativa pós-estruturalista que vê o medo de ser devorado como tão somente um "símbolo" da rebelião cativa: é preciso ter em mente que os cativos de fato acreditavam que seriam devorados, e que para eles essa não era uma questão de ordem simbólica.
No entanto, não somente os cativos souberam manejar a existência de seu medo a seu favor. Rice nos mostra que os ingleses, por exemplo, aproveitaram-se do medo para incitar boatos de práticas canibais, afastando os escravos negros de possíveis aliados abolicionistas e anticolonialistas. Assim, o medo de ser devorado por parte do africano escravizado assumiu diversos tons e jogou diversos papéis ao longo da história do escravismo. Desvendar essas relações é parte importante do processo de escrita da História dos que dela vêm sendo excluídos. Mas, para além disso, desvendar essas relações nos ajuda a compreender a sociedade de hoje, ao fornecer elementos para entender, por exemplo, as relações entre cultura, trabalho e política.



MATTOSO, K. M. Q. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 43.
RICE, A. Radical Narratives of the Black Atlantic. Londres: Continuum, 2003. p. 1-3.
GATES, H. L. ANDREWS, W. L. Pioneers of the Black Atlantic: five slave narratives from the Enlightenment, 1772-1815. Whashington: Civitas, 1998. p. 217-218.
Idem, p. 219.
Idem, p. 221-222.
Idem, p. 225.
Sandoval, Instauranda, p. 108 APUD THORNTON, J. K. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 226-227.
MATTOSO, K. M. Q. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 53.
THORNTON, J. K. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 226
RICE, A. Radical Narratives of the Black Atlantic. Londres: Continuum, 2003. p. 122.
Idem, p. 122-125.
GATES, H. L. ANDREWS, W. L. Pioneers of the Black Atlantic: five slave narratives from the Enlightenment, 1772-1815. Whashington: Civitas, 1998. p. 218-219.
Idem, p. 221.
MATTOSO, K. M. Q. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 46.
GATES, H. L. ANDREWS, W. L. Pioneers of the Black Atlantic: five slave narratives from the Enlightenment, 1772-1815. Whashington: Civitas, 1998. p. 219.
RICE, A. Radical Narratives of the Black Atlantic. Londres: Continuum, 2003. p. 125.


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