A Trindade em K. Rahner

July 7, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Theology, Trinity, Karl Rahner, Trinitarian Theology
Share Embed


Descrição do Produto

TEOLOGIA TRINITÁRIA A perspectiva de Karl Rahner JOÃO DUQUE – UCP BRAGA É suficientemente sabido que a teologia de Karl Rahner, não sendo de matriz substancialmente trinitária, deu um forte contributo para a renovação dos estudos trinitários no interior da teologia católica. Isso deveu-se essencialmente a algumas intervenções suas a esse propósito, sobretudo com um grande e famoso capítulo, no contexto do também célebre manual alemão de teologia sistemática Mysterium Salutis1. Não é aqui o lugar para retomar todos os elementos desse contributo, assim como os efeitos e os debates que provocou2. É minha intenção, apenas e pressupondo todos esses elementos, debater o significado de alguns aspectos fundamentais, abordando-os de modo crítico, o que significa, sob a forma de uma avaliação positiva e, eventualmente, negativa ou, pelo menos, questionadora. Para esse efeito, centrar-me-ei no significado da teologia trinitária para uma teologia transcendental bem entendida e, como consequência, no debate sobre a noção de pessoa. A minha avaliação da perspectiva de Rahner quanto a esses dois aspectos pretende, embora humilde e limitadamente, levar as afirmações de Rahner para além delas mesmas, tornando-as assim eventualmente ainda férteis no contexto da actual teologia trinitária.

1. Transcendentalidade O mais citado contributo rahneriano para a teologia trinitária do séc. XX encontra-se no seu famoso axioma: “A Trindade «económica» é a «imanente» e vice-versa”3. Não podemos repetir aqui as minuciosas análises a que esse axioma tem sido sujeito. Pessoalmente, interessa-me, sobretudo, explorá-lo no contexto da teologia transcendental, que lhe deu origem, e, a partir dele, poder compreender mais precisamente o que pretende essa modalidade de teologia. Sintomaticamente, o título do capítulo para o referido manual de teologia está assim formulado: O Deus trino como princípio e fundamento transcendente da história da salvação. Ao falar desse modo, assume-se claramente um discurso transcendental, preocupado com a condição de 1 2

3

K. RAHNER, Der dreifaltige Gott als transzendentaler Urgrund der Heilsgeschichte, in: J. FEINER / M. LÖHRER, Mysterium Salutis, Vol. II, 1967, 317-401 (doravante citado como MS). Uma excelente síntese de tudo isso pode encontrar-se no artigo de L. F. LADARIA, La teología trinitaria de Karl Rahner. Un balance de la discusión, in: «Gregorianum» 86 (2005) 276-807. Nas notas 1 e 2, o autor indica o que de mais importante se escreveu, nas últimas décadas, sobre o assunto. Por isso, remeto para o seu texto, dispensandome de fornecer mais dados bibliográficos (a não ser a excelente abordagem de S. DEL CURA ELENA, Tra mistero ed esperienza. La dottrina trinitaria dopo Karl Rahner, in: I. SANNA [Ed.], L’eredità teológica di Karl Rahner, Roma 2005, 143-191). MS 328.

possibilidade da própria história salvífica e atribuindo essa condição, enquanto seu fundamento, ao Deus transcendente, denominado explicitamente como Deus trino. Assim sendo, a Trindade imanente é afirmada como condição de possibilidade da Trindade económica4. Vista a afirmação simplesmente nesta perspectiva, poderia parecer o exemplo acabado do mais puro transcendentalismo apriorístico. Mas, em Rahner, a percepção da transcendentalidade como condição a priori – na ordem ontológica, se quisermos usar essa nomenclatura – não significa que o seu conhecimento – na ordem gnoseológica, portanto – seja a priori, mas sim explicitamente a posteriori5. Por isso, não é de todo correcto dizer que existe para ele uma “constituição préempírica do «eu» na ordem do ser, condição a priori de todo o conhecimento particular”6. Isso seria simplesmente Kant, ou ainda eventualmente o «eu» transcendental de Husserl. Mas, para chegar ao conhecimento dessa transcendentalidade (não tanto do eu, mas do próprio ser e mesmo de Deus), o trajecto é o da experiência histórica, portanto a posteriori, segundo a mais pura tradição tomista (nesse aspecto, mais claramente aristotélica que platónica). Trata-se de uma versão da íntima relação entre ser e ente (esse e ens), na medida em que o ser se revela no ente e, nele, se torna verdadeiramente experimentável. Nesse sentido, Rahner é perfeitamente empírico, o que permite compreender o papel da história categorial de Jesus como ponto de partida do conhecimento de Deus. Ora isso exige, simultaneamente, o (re-)conhecimento de Deus como uni-trino. Não é a revelação de Deus em Jesus Cristo que torna o Deus trino condição do ser; mas é ela que permite o conhecimento dessa realidade. Se assim não fosse, não seria conhecimento de Deus. A abertura transcendental da teologia será, então e ao contrário do que frequentemente se afirma, aquilo que “não limita a priori as possibilidades e a amplitude de uma revelação”7; nem a limita a posteriori, como seria talvez o caso, se essa revelação fosse simplesmente categorial ou particular. Isso porque, nas palavras do próprio Rahner, “existe um termo intermédio entre a dedução a priori e a mera recolecção a posteriori do factos arbitrários: é o conhecimento de que o experimentado a posteriori é algo transcendentalmente necessário e não mera facticidade. Se se concebe esta necessidade de maneira formal, torna-se legítima a tentativa de procurar compreender esta necessidade a partir do que é conhecido a posteriori, na medida em que for possível. Esta espécie de conhecimento do «necessário» encontra-se, por exemplo, com frequência em Tomás de Aquino”8 – aliás, todo o pensamento teológico que, na tradição e mesmo muito antes do aquinate, procurou as rationes necessariae da fé, não fez outra coisa senão seguir este método. A formulação do próprio axioma trinitário não é inocente, quanto a este aspecto. Antes de mais, tal afirmação é precedida do enquadramento adequado, que lhe facilita a hermenêutica. Trata4

5 6 7 8

Um bom esclarecimento deste aspecto encontra-se no conhecido artigo: K. RAHNER, Über den Begriff des Geheimnisses in der katholischen Theologie, in: «Schriften zur Theologie», vol. IV, Einsiedeln 1962, 51-99, esp. 94ss. Cf.: K. RAHNER, Grundkurs des Glaubens, Freiburg i. Br.: Herder, 1977, 61ss. V. HOLZER, Le Dieu Trinité dans l’histoire. Le différend théologique Balthasar-Rahner, Paris: Cerf, 1995, 210. Ibidem, 211. MS 388, nota 104.

se da “tese fundamental que estabelece… [a] conexão entre os tratados e que coloca em relevo a Trindade como mistério salvífico para nós (na sua realidade e não como doutrina)”. E a primeira afirmação é de que a Trindade económica – que nos possibilita real e historicamente o conhecimento do Deus uni-trino – é a Trindade imanente, porque é o próprio Deus que se revela e age na história humana. Ou seja, o ponto de partida e o sentido do axioma é a sua dimensão soteriológica, por isso mesmo, a categorialidade da revelação e acção trinitárias na economia da salvação, no interior temporal da história humana, dos acontecimentos existenciais. Assim sendo, poderíamos considerar, agora em perspectiva soteriológica ou económica, que a importância da tese radica, precisamente, em pretender (re)ligar a reflexão teológica sobre a Trindade ao seu significado salvífico. Ou seja, o “isolamento” a que essa reflexão tinha sido votada pela história da teologia – do qual resultava que a definição de Deus como uni-trino apenas se referisse a uma especulação sobre Deus em si mesmo, sem consequências sobre a sua relação connosco e, por isso, sem pertinência salvífica – será superado, precisamente, se considerarmos que o conceito trinitário de Deus possui um significado soteriológico irrecusável. E esse é o caso se, e só se, Deus para nós for o mesmo que Deus em si mesmo. Resumindo, poderíamos dizer que, com o seu axioma, Rahner conseguiu formular de modo pertinente a primazia gnoseológica da história da salvação, para a compreensão adequada do próprio conceito de Deus uni-trino – o qual, enquanto mistério transcendente e fundamento transcendental de toda a realidade, possui uma primazia por assim dizer ontológica ou fundacional; ao mesmo tempo, consegue formular adequadamente o significado soteriológico desse Deus unitrino, como agente trinitário da história da salvação. Trata-se, pois, de um caso feliz de conjugação entre teologia e economia, no sentido clássico dos termos e cuja relação tinha sido debilitada, por um lado, pelas especulações unilaterais da teologia pura e, por outro, pelas radicalizações de certa economia biblicista, sobretudo na sequência da teologia reformada. Seria, portanto, desadequado acusar Rahner de ser um transcendentalista puro, que se limitasse à elaboração de uma dedução transcendental, até atingir o próprio conceito de Deus unitrino. O seu ponto de partida é claramente a historicidade do ser humano e, no mesmo sentido, o carácter irredutivelmente categorial da história da salvação, concentrada sobretudo na pessoa de Jesus Cristo, como revelação trinitária – na sua auto-revelação como Filho, revela o Pai e o Espírito. E a sua revelação é a sua acção salvífica. Assim, revelando-se como Deus uni-trino na economia da salvação, Deus age trinitariamente. Por isso, Deus é Trindade e relaciona-se trinitariamente com o ser humano – ou, mais vastamente, com toda a criação. Por outro lado, não deixa de ser importante o não abandono do nível transcendental do discurso teológico. De facto a abordagem económica ou histórico-salvífica não passaria da narrativa fugaz e parcial de uma história humana particular, se não estivesse ligada à afirmação dogmática de que Jesus é o Filho de Deus e, concomitantemente, que Deus é Pai, Filho e Espírito. Ora, essa

afirmação, contendo o conceito de Deus, é uma afirmação sempre de nível transcendental, pois tematiza a condição universal de possibilidade de tudo aquilo que é – inclusivamente, do próprio acontecimento de salvação. Excluído esse nível transcendental do discurso, não poderíamos dizer que se tratasse propriamente de discurso teológico – e, nesse sentido, não seria Deus a referência do mesmo. Mas, sendo assim, também não poderíamos sustentar que tenha sido de Deus a acção salvífica em favor dos humanos. Logo, estaria eliminada a própria salvação e a sua história, enquanto auto-comunicação de Deus ao mundo9. Embora o posicionamento transcendental de Rahner possa ter sido provocado pela abordagem kantiana, ele situa-se num patamar muito distinto, muito mais pós-moderno, se quisermos usar o termo. De facto, para Rahner, a revelação histórica é origem da percepção de uma verdade transcendental, de tal modo que o ser histórico-temporal é a única mediação possível para o conhecimento ou experiência do ser eterno – mesmo que este seja realmente a condição de possibilidade daquele. Assim, a alternativa entre razão e história – o famoso intransponível fosso de Lessing, que se limitou a interpretar radicalmente “a religião nos limites da simples razão”, no sentido Kant – deixa de fazer sentido, pois o que na história se nos revela, teologicamente, é precisamente a sua condição transcendental. Assim, segundo Rahner, a relação entre fundamento do ser e história da sua revelação – ou, no caso que nos ocupa, entre imanência de Deus e economia da salvação – é de mútua pertença e inseparabilidade. Por isso, o método transcendental de Rahner – tal como exemplarmente surge expresso e aplicado no axioma trinitário referido – é igualmente um método histórico e, por isso, um método da perfeita simbiose – ou pericorese – entre a abordagem transcendental e a abordagem categorial. Nas palavras concisas e precisas de Jörg Splett, antigo discípulo de Rahner e meu venerando mestre: “A existência, a consciência, a vida realizam-se no tempo, em permanente vinda e antecipação de uma interpelação, a partir da qual existem. Por isso, a historicidade tem que ser compreendida transcendentalmente. Mas, se se compreende a historicidade transcendentalmente, então tem que se compreender a transcendentalidade historicamente; porque, se a transcendentalidade fosse a-histórica, se pertencesse a uma esfera ou mesmo a um «nível» separados da historicidade, então a historicidade só possuiria significado e validade regional, não mais transcendental… [e a transcendentalidade, por seu turno, não seria transcendental, mas igualmente regional…] Transcendentalidade não é o outro da categorialidade, mas o seu não-outro”10. Assim sendo, poderemos interpretar o axioma da identidade entre Deus em si e Deus para nós como perfeita articulação entre transcendentalidade e categorialidade, sendo que, do ponto de vista da compreensão humana, a categorialidade é primeira e, do ponto de vista da origem e finalidade do ser, a transcendentalidade é primordial.

9 10

Este foi, como é sabido, um dos argumentos patrísticos fundamentais, para defender a ortodoxia do dogma trinitário. Cf.: J. SPLETT, Transzendentale Erfahrung und geschichtliche Begegnung, in: E. KLINGER (Hrg.), Christentum innerhalb und ausserhalb der Kirche, Freiburg i. Br.: Herder, 1976, 145-161, aqui 152.159.

Mas, em realidade, quem é Deus em si mesmo, enquanto mistério primordial de tudo, que se nos auto-comunica numa história concreta, sobretudo e plenamente na pessoa de Jesus Cristo?

2. Personalidade As tradições catequética e dogmática cristãs definem Deus como um só, em três pessoas. A tradição neo-testamentária, por seu turno, diz-nos que Deus é amor. Como se conjugam estas «definições» e qual a posição de Rahner, em relação a elas? A compreensão sistemática da Trindade, tal como foi elaborada por Rahner, segue um esquema mais histórico do que psicológico. Ou seja, a realidade da Trindade manifesta-se na própria estrutura trinitária da História da Salvação, na qual se revela a estrutura trinitária de toda a história humana. Esta é acontecimento da auto-comunicação de Deus, enquanto Pai ou origem. Essa auto-comunicação dá-se em verdade (enquanto Filho e, num certo sentido, enquanto acontecer histórico) e amor (enquanto Espírito e, relativamente à história, como abertura de futuro). Não sem certa influência de Hegel, Rahner lê a história como acontecimento trinitário. Nesse sentido, poderia ser acusado mais propriamente de historicismo do que de transcendentalismo. É certo que, na reflexão sistemática sobre a Trindade e à boa maneira do idealismo hegeliano, procura conduzir o processo económico da sua revelação, enquanto acontecimento, ao conceito de si, articulado precisamente como auto-comunicação de Deus em verdade e em amor. Mas admite, diferentemente do idealismo, que a realidade histórica precede o conceito e nunca se esgota nele. Num certo sentido, a revelação histórica de Deus como verdade e como amor parece ser a própria constituição da Trindade. Já nesta reflexão conceptual sobre o significado da Trindade económica, Rahner tem dificuldade em recorrer ao conceito de pessoa, porque compreende a Trindade muito mais a partir do processo do acontecer histórico do que a partir da relação inter-pessoal. Por outro lado, ao referir tão radicalmente a Trindade imanente ao acontecer da história, deixa suspeitas abertas sobre a dependência de Deus em relação ao ser humano e à história. É o que parece ressaltar de expressões algo ambíguas, tais como: “Se Deus quer sair de si mesmo livremente, deve criar o ser humano”11. Ou, mais claramente ainda: “… o sujeito humano-pessoal é esse ser a que se dirige a autocomunicação divina, exigido necessariamente por sua essência mesma, que é criado por tal comunicação, como condição de possibilidade sua…”12 Isto é, a auto-comunicação de Deus – ou o próprio Deus, como auto-comunicação de si – seria impossível sem um outro fora de si, que seria precisamente o ser humano, enquanto ser pessoal. Para fazer frente a esse problema, Rahner reconhece que, a fim de poder auto-comunicar-se livremente para fora de si, Deus terá que ser pensado quanto à auto-comunicação «imanente» a si

11 12

MS 380. MS 381.

mesmo. O Deus único é, assim, auto-comunicação do Pai, em verdade (no Filho) e em amor (no Espírito). Esta auto-comunicação é pensada, por Rahner, como uma espécie de auto-realização de Deus, sem sair de si mesmo. Por isso é que ele parece considerar que o Filho e o Espírito sejam modos de auto-comunicação do Pai, tratando-se por isso de um único e mesmo Deus. É a partir desta ideia central que Rahner encontra dificuldades no conceito de pessoa, tal como tem sido aplicado às três hipóstases divinas. Esse questionamento do conceito de pessoa, se aplicado às distinções hipostáticas entre Pai, Filho e Espírito é, sem dúvida, um dos elementos mais conhecidos e mais debatidos da teologia trinitária rahneriana. De modo algo abusivo, resumiria esse questionamento em dois problemas centrais, que parecem opostos ou mesmo paradoxais. Por um lado, o conceito de pessoa parece não fazer justiça às diferenças trinitárias; por outro lado, parece levar longe demais essas diferenças. Vejamos o que isso significa. Quando se fala em três pessoas, em Deus, corre-se o risco de se aplicar um conceito unívoco – precisamente o conceito de pessoa – a três diferentes modos de ser. Ora, o que marca a diferença dessas três hipóstases – a que chamamos Pai, Filho e Espírito – é precisamente a impossibilidade de reduzir a sua diferença a um denominador comum, como conceito comum a todos. Assim, se o conceito de pessoa pretende exprimir a diferença entre Pai, Filho e Espírito, não o podemos aplicar, como conceito geral, comum a essas diferenças. “Quando dizemos «em Deus há três pessoas, Deus subsiste em três pessoas», generalizamos e somamos precisamente o que não pode somar-se…”13 Em realidade, deveríamos dizer sempre que Deus uni-trino é Pai, Filho e Espírito – e nada mais. Dizer que é um em três pessoas é já pressupor que os três são pessoas de igual modo. Nesse caso, seríamos realmente modalistas, pois concentraríamos no conceito de pessoa a essência tripartida de Deus, sendo o Pai, o Filho e o Espírito simples modos pessoais de ser, relativos à pessoa única que é Deus. A par deste problema formal, Rahner explora um problema de conteúdo, que se prende com o desenvolvimento medieval e moderno do conceito de pessoa. Se esse conceito foi adquirindo um significado próximo ao de «indivíduo» – como centro de auto-consciência (no sentido hegeliano de Selbstbewusstsein), de vontade, de iniciativa, de subjectividade – então, falar de três pessoas em Deus seria o mesmo que falar de três deuses diferentes, como diferentes subjectividades autorealizadas em si mesmas. O «ser-em-si-mesmo» da pessoa, enquanto elemento incomunicável e identificável, acabaria por fazer do Pai, do Filho e do Espírito três divindades autónomas. Nesta segunda perspectiva, Rahner procura contrariar precisamente o inverso da primeira, isto é, o triteísmo e não o modalismo – que foram, aliás, os dois principais problemas do debate trinitário nos primórdios do cristianismo. E, na preocupação de fugir a esse perigo triteísta, Rahner chega a preferir uma outra terminologia teológica (não propriamente catequética, querigmática ou 13

MS 391.

litúrgica): em vez de falar em três pessoas, seria preferível falar em três «modos de subsistência» (Subsistenzweise). Esses três modos de subsistência seriam outros tantos modos de realização do único Deus. Ora, concentrando a definição da pessoa na questão da consciência subjectiva – constituidora da identidade do sujeito pessoal – Rahner acaba por considerar que, nesse sentido, Deus será simplesmente uma pessoa, pois é um único sujeito de conhecimento e de liberdade. Mas, se assim é e se, pelo que vimos a propósito da relação entre Trindade económica e Trindade imanente, a realização de Deus em conhecimento e liberdade, ou amor, é a expressão do Pai no Filho e no Espírito, então seríamos obrigados a reduzir o Deus imanente ao processo, pelo qual o Pai se conhece e se ama, ou seja, ao processo pelo qual o Pai é uma pessoa única. Nesse sentido, não poderíamos falar rigorosamente de comunicação entre Pai, Filho e Espírito, na Trindade, senão de auto-comunicação do Pai a si mesmo, segundo os modos do conhecimento e do amor, isto é, segundo os modo do Filho e do Espírito – que aqui não passariam de metáforas para realizações subjectivas do Pai, ou melhor, do próprio Deus, cuja metáfora mais adequada seria a paternidade, enquanto origem sem origem. Rahner diz explicitamente que não se dá “«intratrinitariamente» um «tu» recíproco”14. É neste âmbito do debate que nos surgem, de modo mais evidente, algumas ambiguidades da teologia rahneriana sobre a Trindade.

3. Ambiguidades 1. É irrecusável a importância da chamada de atenção rahneriana para os reais perigos modalistas e triteístas, em torno ao conceito de Trindade imanente e de pessoa, nesse mesmo contexto. Desse ponto de vista, não podemos recusar a mais valia do seu contributo teológico – e de todos os efeitos benéficos que teve na teologia do último século. De qualquer modo, é legítimo perguntar se Rahner conseguiu escapar a esses dois perigos, de forma suficientemente clara. Em relação ao perigo de triteísmo – que parece estar mais distante da sua proposta – convém recordar que, a partir da sua leitura da Trindade económica e da saliente autonomia histórico-salvífica entre Pai, Filho e Espírito, levanta-se a possibilidade (herdada de certo subordinacionismo oriental) de interpretar as três hipóstases como divindades pelo menos historicamente independentes, mesmo que o Filho e o Espírito sejam auto-comunicação do Pai. Não serão semelhantes a uma espécie de demiurgos ou mediadores da presença do Pai no processo histórico? É claro que Rahner nunca pretendeu afirmar tal coisa. Mas a sua perspectiva demasiado historicista pode levantar esse fantasma. A prova de que essa não era a sua intenção está no facto de que, ao falar da Trindade imanente, o teólogo alemão está mais próximo do perigo modalista do que do triteísta. De facto, se 14

MS 370, nota 79.

afirma claramente que o Pai, o Filho e o Espírito são três modos de subsistência da mesma subjectividade, do mesmo «ser-em-si» de Deus, isto é, da única pessoa divina, como poderemos distinguir isso daquela posição que anula a diferença entre Pai, Filho e Espírito? 2. Ora, parece-me que esta dificuldade ou ambiguidade da teologia Trinitária rahneriana se poderia resolver com o recurso a dois apoios: um de índole externa e outro completamente interno à sua própria teologia. O primeiro está estreitamente ligado ao debate sobre o próprio conceito de pessoa. Jürgen Moltmann, no seu tratado sobre a Trindade, critica Rahner, precisamente devido à respectiva leitura do conceito moderno de pessoa: “Aquilo que Rahner considera «o nosso uso linguístico profano do conceito de pessoa» nada tem de comum com o pensamento personalista da modernidade. O que ele descreve é, antes, extremo individualismo: cada um é um centro de acção que se possui e controla a si mesmo, separado de todos os outros. O personalismo filosófico de Hölderlin, Feuerbach, Buber, Ebner, Rosenstock [sic] e outros surgiu precisamente como superação deste individualismo possessivo: o eu só pode compreender-se a partir do tu, isto é, relacionalmente”15. É certo que poderíamos retorquir a Moltmann que o conceito individualista de pessoa marcou real e fortemente a modernidade, a ponto de os referidos pensadores personalistas terem que o superar. Mas isso não invalida o facto de podermos – e devermos – compreender esse conceito relacionalmente e não substancialmente, seja a partir do referido personalismo, seja mesmo a partir da tradição teológica antiga, em torno ao conceito de pessoa. E essa compreensão está praticamente ausente do horizonte de Rahner – pelo menos no modo como explicitamente aborda a Trindade imanente16. Nesse âmbito, concentra a sua noção de pessoa, como sujeito auto-consciente, no «serem-si» (In-sich-sein) e no «ser-para-si» (Für-sich-sein), como único modo de identidade marcante do ser pessoal. Sendo assim, seria de facto equívoco falar de três pessoas em Deus. Mas se abordarmos o conceito de pessoa a partir de outro modelo, a questão muda de figura. Não será o ser pessoal um modo de constituição da identidade precisamente a partir do outro e para o outro? Não será o elemento constituinte da pessoa muito mais a resposta ao outro, do que a afirmação de si; muito mais a passividade da origem, do que a actividade individualisticamente auto-construtora?17 E, se assim é, não será esse ser pessoal que define, precisamente na sua diferença e identidade, o Pai, o Filho e o Espírito? E se cada um se identifica pela sua relação ao outro, não é isso a marca indelével da sua diferença? De facto, se assim for, a identidade do Pai define-se, precisamente, pela sua – e só sua – relação ao Filho, com o Espírito, e ao Espírito, com o Filho. Assim acontece com cada uma das outras três pessoas. E porque cada uma das relações é 15 16 17

J. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes, München: Kaiser, 1980, 162-163. Embora não deixe de referir, explicitamente, o seu carácter relacional (cf.: MS 388-389). Cf.: J. SPLETT, Leben als Mit-sein, Frankfurt a. M.: Knecht, 1990, esp. 55ss.; ID., Die Bedingung der Möglichkeit. Zum transzendentalphilosophischen Ansatz der Theologie Karl Rahners, in: B. J. HILBERATH (Hrg.), Erfahrung des Absoluten – absolute Erfahrung?, Düsseldorf: Patmos, 1990, 68-87.

distinta, sendo ao mesmo tempo uma relação da mesma pericorese intra-trinitária, são salvaguardadas a unicidade, a unidade e a diferença trinitárias do Deus uni-trino – evitando assim tanto o modalismo como o triteísmo. Se o conceito de pessoa assenta no de relação, então pressupõe a diferença e, por isso, nunca pode ser assumido como conceito unívoco, senão como conceito analógico. Isto é, no conceito de pessoa inclui-se a diferença do modo específico de ser pessoa e a relação ao outro de si mesmo. Por isso, aplicado a Deus uni-trino, é inseparável da denominação de Deus como Pai, como Filho e como Espírito, enquanto tripla relacionalidade. Dizer que Deus é um em três pessoas não é fazer uma afirmação essencial, mas dizer de modo mais sintético que o único Deus é Pai, Filho e Espírito, pois as pessoas não poderiam ser, senão na sua diferença relacional como Pai, Filho e Espírito. Ora, neste ponto parece-me claro que o «axioma» trinitário abordado inicialmente, se for verdadeiramente levado a sério, pode contribuir para resolver as ambiguidades referidas acima. De facto, se o ponto central da Trindade económica reside na diferença histórico-salvífica entre Pai, Filho e Espírito, o que implica uma relação real entre as três hipóstases – e, por isso uma relação pessoal, com a existência de um «tu recíproco», negado na Trindade imanente – isso terá que ter consequências sobre a nossa compreensão teológica da Trindade imanente. Assim, não podemos continuar a manter essa diferenciação real e comunicação inter-pessoal histórica (económica) e anulá-la numa única subjectividade imanente em Deus, mesmo que esta fosse pensada como condição de possibilidade daquela. Se assim fosse, a história da salvação não passaria de aparente realização trinitária, nada mais sendo do que a expressão de um único sujeito divino, incomunicável em si mesmo – e então, a Trindade também não teria pertinência soteriológica, ao contrário do que afirma explicitamente Rahner, ao apresentar o seu axioma. Por isso, se ele pretende manter em pé esse axioma – e já vimos em que medida isso é fundamental para a sua teologia – então terá que pensar a Trindade imanente como real processo de comunicação interpessoal, única forma de pensar Deus como fundamento da própria comunicação histórico-salvífica. Só assim poderá, correspondendo à sua própria intenção, escapar à crítica de Yves Congar, que o acusa de “falar personalisticamente da economia e modalisticamente da Trindade eterna”18. 3. Assim, a partir de um outro conceito de pessoa e a partir do próprio axioma rahneriano, poderemos ousar corrigir Rahner, quando considera Deus apenas como Pai, o qual é a condição primeira, que se exprime em conhecimento e amor, como se fossem simplesmente dois modos seus de ser, copulativamente somados (porquê só dois, mesmo que estes sejam os modos essenciais de realização da pessoa?). Essa perspectiva não se livra das críticas a um monoteísmo claramente «patriarcal», no sentido quase literal, as quais formaram já o cerne de certo ateísmo moderno. Se

18

Y. CONGAR, El Espíritu Santo, Barcelona: Herder, 1983, 459. Se é certo que Ladaria (op. cit., 293) considera exagerada esta crítica, não é menos certo que as afirmações de Rahner, a esse respeito, são, no mínimo, ambíguas.

pretendemos afirmar a profissão de fé no Deus uni-trino como resposta eficaz aos problemas levantados por esse ateísmo19, então teremos que nos basear numa outra concepção. Se, historicamente, a compreensão de Deus como amor, que se revela na relação económica entre Pai, Filho e Espírito, constitui uma das principais fontes bíblicas que originou a formulação trinitária dogmática, porque não partir dessa compreensão como critério? Sendo assim, o conceito relacional de pessoa seria a base para compreender, quer a trindade quer a unicidade e unidade de Deus. Porque a compreensão do amor como «essência» exige, ao mesmo tempo, a compreensão da relação de diferenças, que só existe em pessoas diferentes. Assim sendo, a essência seria a própria relação tripessoal e a relação tripessoal seria essencial, sem que pudéssemos abordar os dois planos isoladamente, como pelo menos implicitamente acaba por fazer Rahner, ao reduzir a essência de Deus à pessoa do Pai, duplamente expresso. A essência do Deus-amor só o é nas e pelas pessoas. 4. De todo este debate – que seria improvável sem a provocação de Rahner – parece-me importante retirar duas conclusões centrais (entre muitas outras possíveis). Do ponto de vista metodológico, manifesta-se importante, para todo o discurso teológico – e, do mesmo modo, para todo o discurso crente – salvaguardar a dimensão da transcendentalidade, para evitar reduzir a própria história da salvação à expressão contextual de uma cultura, de um grupo ou de um processo histórico particulares. Se é certo que essa dimensão histórica particular é incontornável, não é menos certo que a universalidade do assunto – e do acontecimento – exige um correspondente nível de linguagem. Assim sendo, a interpretação rahneriana da estreita ligação entre o discurso sobre a actuação de Deus na história e o discurso sobre Deus em si mesmo será a mais adequada teologicamente. E isso não simplesmente por razões lógicas ou formais. Trata-se, sobretudo, de uma questão de conteúdo. É que, se só Deus – o Deus universal, origem e fim de tudo – pode salvar o mundo, então a sua actuação na história terá que ser realmente sua – e não simplesmente de intermediários criados. E, ao ser a sua actuação, será uma actuação segundo aquilo que ele é. Ou seja, a verdade da actuação de Deus – e da correspondente actuação humana – depende da correspondência ao próprio ser ou verdade de Deus, ou a Deus como verdade. Ora, corresponder a algo, como fonte e modelo, é ser análogo a essa fonte. Assim sendo, a tematização transcendental é fundamental para compreender o processo histórico da salvação, conduzido sinergeticamente pelo Espírito e pelos humanos, como processo de construção do mundo – sobretudo das relações inter-humanas – em correspondência, isto é, em analogia com o próprio Deus. Mas para isso, é preciso conhecer histórico-transcendentalmente quem é Deus. Caso contrário, o processo histórico de salvação seria arbitrariamente elaborado pelos humanos – ou seja, seria antes um processo de perdição, como fomos tendo provas, ao longo da história real da humanidade. 19

Cf.: W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, 3ª Ed., Mainz: Grünewald, 1995, esp. 382ss.

É neste ponto que encaixa a segunda conclusão: se Deus em si é condição de possibilidade para a salvação do mundo, é importante a compreensão humana desse Deus em si. E se a salvação do mundo, tal como revelada e realizada em Jesus Cristo, é a sua transformação pelo amor, então isso é assim, porque essa transformação corresponde à verdade de Deus em si. Originariamente, ela só é salvífica, porque corresponde à sua fonte. Nesse sentido, não basta considerar Deus em si como condição da sua comunicação salvífica ao mundo, mas é importante que a própria comunicação amorosa seja reconhecida, enquanto tal, como a verdade e o caminho da salvação. Assim sendo, e tendo em conta a dinâmica analógica de todo o processo, acolher e confessar Deus como amor – como comunicação inter-pessoal – em si mesmo é condição de possibilidade da realização da salvação como transformação do mundo em comunicação inter-pessoal, segundo o modelo da comunicação trinitária. Assim, a dinâmica da relação de diferenças, em que a identidade de cada um reside no seu «ser-a-partir-do-outro», no seu «ser-com-o-outro» e no seu «ser-para-o-outro», é exemplarmente e transcendentalmente realizada em Deus. Por isso, a relação de Deus ao mundo é livre e amorosa e a relação que salvará o mundo é do mesmo género. Assim, a Trindade, compreendida como amor de Pai, Filho e Espírito – no sentido de que cada um, ama o outro, com o terceiro, de um modo único e irrepetível, por isso pessoal – é a condição de possibilidade da comunicação de Deus ao ser humano e, por essa via, de salvação do mundo. Gostaria de terminar com uma citação de Rahner, que revela a sua intenção mais funda, e com outra de Splett, que leu Rahner para além dele mesmo. Segundo o primeiro, “a Trindade é um mistério salvífico. Caso contrário, não nos teria sido revelado. Mas, se assim é, temos também de compreender claramente porque o é”20. Segundo Splett, “isso exige, contudo e finalmente, uma nova e mais aprofundada leitura da frase «Deus é amor». Se ela é válida, de tal modo que Deus permaneça, ao mesmo tempo, amor e Deus, então Ele não pode amar apenas a Criação. Deus tem que ser pensado como Único – e, precisamente por isso, como um «Com» intradivino e interpessoal. Só assim se salvaguarda, não apenas a liberdade da Criação e o carácter pessoal dos humanos, mas, antes de tudo, a própria divindade de Deus”21.

20 21

MS 328. J. SPLETT, Leben als Mit-sein, 63.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.