A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro

May 23, 2017 | Autor: Gustavo Tepedino | Categoria: Direitos Da Personalidade, Personality Rights
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A TUTELA DA PERSONALIDADE NO ORDENAMENTO CIVILCONSTITUCIONAL BRASILEIRO

Gustavo Tepedino*

Sumário: 1. Introdução: a personalidade como objeto de situações jurídicas subjetivas. A configuração dogmática dos chamados direitos da personalidade; o debate em torno do objeto do direito. 2. Características, classificações e delimitação dos direitos da personalidade. Personalidade e direitos humanos: necessidade de superação da dicotomia entre o direito público e privado. 3. Fontes dos direitos da personalidade. Crítica às concepções jusnaturalistas. 4. Teorias pluralista e monista: crítica. 5. A insuficiência das orientações doutrinárias tradicionais. A pessoa humana como valor unitário e sua proteção integral. A cláusula geral de tutela da personalidade no ordenamento brasileiro. Os direitos da personalidade no Código Civil de 2002. A diversidade axiológica das relações patrimoniais e extrapatrimoniais. Os chamados direitos da personalidade das pessoas jurídicas.

1. Introdução: a personalidade como objeto de situações jurídicas subjetivas. A configuração dogmática dos chamados direitos da personalidade; o debate em torno do objeto do direito

Poucos temas revelam maiores dificuldades conceituais quanto os chamados direitos da personalidade. De um lado, os avanços da tecnologia e dos agrupamentos urbanos expõem a pessoa humana a novas situações que desafiam o ordenamento jurídico, reclamando disciplina; de outro lado, a doutrina parece buscar em paradigmas do passado *

Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.

as bases para as soluções das controvérsias que, geradas na sociedade contemporânea, não se ajustam aos modelos nos quais se pretende enquadrá-las. Com efeito, o direito romano não tratou dos direitos da personalidade aos moldes hoje conhecidos. Concebeu apenas a actio injuriarum, a ação contra a injúria que, no espírito prático dos romanos, abrangia qualquer “atentado à pessoa física ou moral do cidadão”, hoje associado à tutela da personalidade humana.1 A categoria dos direitos da personalidade constitui-se, portanto, em construção recente, fruto de elaborações doutrinárias germânica e francesa da segunda metade do século XIX. Compreendem-se, sob a denominação de direitos de personalidade, os direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade.2 Em síntese feliz, observou-se que “o homem, como pessoa, manifesta dois interesses fundamentais: como indivíduo, o interesse a uma existência livre; como partícipe do consórcio humano, o interesse ao livre desenvolvimento da `vida em relações'. A esses dois aspectos essenciais do ser humano podem substancialmente ser reconduzidas todas as instâncias específicas da personalidade”.3 Perduraram, todavia, por muito tempo, hesitações da doutrina quanto à existência conceitual da categoria, expandindo-se dúvidas no que tange à sua natureza e conteúdo, bem como no que concerne à extensão da disciplina aplicável. Destacam-se, antes de mais, as chamadas teorias negativistas (Roubier; Unger; Dabin; Savigny; Thon; Von Tuhr; Enneccerus; Zitelmann; Crome; Iellinek; Ravà; Simoncelli,

1

Ebert Chamoun, Instituições de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1951, p. 398. Para uma percuciente análise da gênese e evolução histórica da tutela da personalidade, desde a antiguidade oriental, v. R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 26 e ss. Cf., ainda, sobre o tema, Elimar Szaniawski, “Direitos da Personalidade na Antiga Roma”, in Revista de Direito Civil, vol. 43, p. 28 e ss. e, especialmente, pp. 37 e 38. 2 Para o exame da configuração dogmática dos direitos da personalidade, v. E. H. Perreau, “Des droits de la personnalité”, in Revue trimestrielle de droit civil, 1909, p. 33 e ss. Fundamental, ainda, no direito francês, Pierre Kayser, Les droits de la personnalité: aspects théoriques et pratiques, in Revue trimestrielle de droit civil, 1971, p. 30 e ss. V., também, além das obras ulteriormente referidas ao longo do texto, Davide Messinetti, “Personalità (diritti della)”, in Enciclopedia del diritto, vol. XXXIII, Milano, Giuffrè, 1983, p. 355 ss.; Ezio Capizzano, “Vita e integrità fisica (diritto alla)”, in Novissimo digesto italiano, vol. XX, Torino, UTET, 1975, p. 999 e ss; e, do mesmo autor, “La tutela del diritto al nome civile”, in Rivista di diritto commerciale, 1962, p. 249 e ss.; Adolfo di Majo Giaquinto, “Profili dei diritti della personalità”, in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1962, p. 69 e ss., todos com ampla bibliografia italiana, francesa e germânica. 3 Giorgio Giampiccolo, “La tutela giuridica della persona umana e il c.d. diritto alla riservatezza”, in Riv. trimestrale di diritto e procedura civile, 1958, p. 458.

dentre outros), que, no século passado, refutaram a categoria dos direitos da personalidade. Afirmava-se, em síntese estreita, que a personalidade, identificando-se com a titularidade de direitos, não poderia, ao mesmo tempo, ser considerada como objeto deles. Tratar-se-ia de contradição lógica.4 Segundo a famosa construção de Savigny, a admissão dos direitos da personalidade levaria à legitimação do suicídio ou da automutilação, sendo também eloqüente a objeção formulada por Iellinek, para quem a vida, a saúde, a honra, não se enquadrariam na categoria do ter, mas do ser, o que os tornaria incompatíveis com a noção de direito subjetivo, predisposto à tutela das relações patrimoniais e, em particular, do domínio.5 Conforme registrado em doutrina, “a origem dessa discussão parte da concepção de alguns autores que vêem os direitos de personalidade como o direito de alguém sobre sua própria pessoa, na evolução da idéia do antigo ius in se ipsum. De acordo com esse pensamento, não se constituem os direitos de personalidade em direitos subjetivos, mas sim em meros efeitos reflexos do direito objetivo, donde ser concedida uma certa proteção jurídica a determinadas radiações da personalidade”.6 4

V., por todos, Enneccerus, in Tratado de Derecho Civil, vol. I, Parte General, Barcelona, Bosch, 1947, p. 307, que aduz aos argumentos deduzidos no texto: “Pero además no hay necesidad alguna de reconocer un derecho general de la personalidad, pues los bienes indisolublemente unidos a la persona, como la vida, el cuerpo, la salud y la liberdad corporal tienen una protección absoluta general igual que los derechos subjetivos. En cuanto a otras irradiaciones de la personalidad, por ejemplo, la libre actuación de la individualidad espiritual, el honor, la potencia de trabajo, la libertad económica, la esfera privada secreta, etcétera, es suficiente la protección especial e ilimitada de estos bienes por el derecho penal, las normas de policía y el derecho civil. La inclusión de un derecho general de la personalidad entre los derechos subjetivos opondría graves entorpecimientos al desenvolvimiento de otras personalidades y obstacularizaría el progreso.” 5 Tais argumentos são analisados e rebatidos por Francesco Ferrara, “Trattato di diritto civile italiano”, vol. I, Dottrine Generali, Roma, Athenaeum, 1921, p. 395. 6 Elimar Szaniawski, Direitos de Personalidade e sua Tutela, São Paulo, Rev. dos Tribunais, 1993, pp. 36-37. Ainda o mesmo autor registra o pensamento de Von Tuhr, segundo o qual “nem todos os bens jurídicos protegidos pela lei devem ser considerados como direitos subjetivos e, conseqüentemente, a ocorrência de certo fato que é proibido e que produz danos não pode simplesmente ser tratado como lesão de um direito subjetivo. Pois nesse caso teríamos, diante da fraude, um direito à verdade, e na hipótese de falsificação, teríamos um direito à autenticação e assim por diante. O titular do direito de personalidade não possui um poder ou domínio semelhante ao titular de um direito de propriedade. Nem possui o poder de monopolizar a seu favor alguma atividade lícita (...) A vida, o corpo, a liberdade de obrar, constituem um estado natural, não podendo esses bens ser monopolizados. Também não podem existir em relação aos direitos de personalidade disposições sobre o nascimento, extinção, renúncia ou transferência desses direitos (...) A agressão a tais bens personalíssimos, segundo o tratadista alemão constitui ato contrário aos bons costumes”. Para Enneccerus, referido na mesma resenha (p. 39), os chamados direitos das pessoas seriam um “poder jurídico de alguém sobre sua própria pessoa”. Devido a tal entendimento, nega a existência dos direitos de personalidade, admitindo, porém, que “a personalidade humana deve ser protegida na esfera penal através da cominação de penas aos infratores (...) A proteção de reparação constitui inegavelmente um direito subjetivo; não se poderia afirmar, porém, que exista um direito especial que se constitui no chamado direito da personalidade.”

Em outras palavras, não se considerava a proteção jurídica da personalidade revestida dos característicos do direito subjetivo, limitando-se à reação do ordenamento contra a lesão — o dano injusto —, através do mecanismo da responsabilidade civil. Daí decorreriam situações objetivas, não já o direito subjetivo, figura jurídica autônoma e preestabelecida pela lei ou pela vontade das partes, que assegura poderes ao titular não apenas para protegê-lo contra lesões mas para que possa dispor livremente do próprio direito. Muitas foram as críticas antepostas às teorias negativistas. Atacou-se sua premissa. É que a personalidade, a rigor, pode ser considerada sob dois pontos de vista. Sob o ponto de vista dos atributos da pessoa humana, que a habilita a ser sujeito de direito, tem-se a personalidade como capacidade, indicando a titularidade das relações jurídicas. É o ponto de vista estrutural (atinente à estrutura das situações jurídicas subjetivas), em que a pessoa, tomada em sua subjetividade, identifica-se como o elemento subjetivo das situações jurídicas. De outro ponto de vista, todavia, tem-se a personalidade como conjunto de características e atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico. A pessoa, vista deste ângulo, há de ser tutelada das agressões que afetam a sua personalidade, identificando a doutrina, por isso mesmo, a existência de situações jurídicas subjetivas oponíveis erga omnes.7 Dito diversamente, considerada como sujeito de direito, a personalidade não pode ser dele o seu objeto. Considerada, ao revés, como valor, tendo em conta o conjunto de atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano (que se irradiam da personalidade), constituem bens jurídicos em si mesmos, dignos de tutela privilegiada. Nesta direção, lecionava em 1942 o professor San Tiago Dantas: “A palavra personalidade está tomada, aí, em dois sentidos diferentes. Quando falamos em direitos de personalidade, não estamos identificando aí a personalidade como a capacidade de ter direitos e obrigações; estamos então considerando a personalidade como um fato natural, Sobre o tema, v. Francesco Carnelutti, “Diritto alla vita privata (contributo alla vita privata)”, in Rivista trimestrale di diritto pubblico, 1955, p. 3 e ss., o qual, após criticar ironicamente as doutrinas negativistas florescidas na Alemanha (e não na Itália, “segno del nostro buon senso”...), define o direito da personalidade como um “diritto sul proprio corpo” (ao invés da fórmula usual diritto sulla propria persona), “dove la differenza tra corpo e persona risponde alla opposizione tra il soggetto e l'oggetto del rapporto”. 7

como um conjunto de atributos inerentes à condição humana; estamos pensando num homem vivo e não nesse atributo especial do homem vivo, que é a capacidade jurídica em outras ocasiões identificada como a personalidade”.8 A distinção entre os conceitos de personalidade como objeto e como sujeito de direitos é clarificada pelo Código Civil Português, a partir da análise do art. 70, I, que estabelece a tutela geral da “personalidade física ou moral” dos indivíduos, assim considerada, pela doutrina, como “os bens inerentes à própria materialidade e espiritualidade de cada homem”. Remarcou-se que “a personalidade surge, aqui imediatizada no ser humano e configurada como objeto de direitos e deveres, não se perspectivando como elemento qualificador do sujeito da relação jurídica enquanto tal, cuja qualificação nos é dada antes pelas idéias de personalidade jurídica, ou seja, pelo reconhecimento de um centro autônomo de direitos e obrigações, e de capacidade jurídica, isto é, pela possibilidade jurídica inerente a esse centro de ser titular de direitos e obrigações em concreto”.9 Adriano De Cupis, em página clássica, afirma que “existem direitos sem os quais a personalidade restaria uma atitude completamente insatisfeita, privada de qualquer valor concreto; direitos desacompanhados dos quais todos os outros direitos subjetivos perderiam

8

Programa de Direito Civil, Rio de Janeiro, Ed. Rio (ed. Histórica), I, p. 192. E conclui o mesmo autor, que introduziu o estudo do direitos da personalidade em suas aulas já em 1942: “Quer dizer que a palavra personalidade pode ser tomada em duas acepções: numa acepção puramente técnico-jurídica ela é a capacidade de ter direitos e obrigações e é, como muito bem diz Unger, o pressuposto de todos os direitos subjetivos e, numa outra acepção, que se pode chamar acepção natural, é o conjunto dos atributos humanos, e não é identificável com a capacidade jurídica. Aquele pressuposto pode perfeitamente ser o objeto de relações jurídicas”. O Professor Ebert Chamoun, em suas lições admiráveis, expõe de maneira extremamente clara o tema: “a personalidade pode ser considerada do ponto de vista jurídico ou do ponto de vista vulgar. Juridicamente, a personalidade é a qualidade da pessoa que em verdade é titular de direito e tem deveres jurídicos, mas, vulgarmente, a personalidade é um conjunto de características individuais, de valores, de bens, de aspectos, de parcelas, que são realmente dignos de salvaguarda jurídica. Quando se diz que há um direito subjetivo da personalidade, não se está dizendo que a titularidade coincida com o objeto, apenas se está referindo a certos aspectos da personalidade, tomada a palavra no sentido vulgar, que são objetos da personalidade sob o ponto de vista jurídico” (aulas datilografadas da Faculdade de Direito da UEG, ano acadêmico de 1965, sem responsabilidade da cátedra). 9 R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 106, o qual ressalva: “Todavia, os institutos da personalidade e da capacidade jurídicas interpenetram-se, sem se confundirem, com o bem da personalidade humana juridicamente relevante, na medida em que os valores jurídicos que aqueles institutos incorporam são reabsorvidos também no bem jurídico da personalidade, enquanto objeto da tutela geral referida.”

qualquer interesse para o indivíduo: a ponto de chegar-se a dizer que, se esses não existissem, a pessoa não seria mais a mesma. São esses os chamados direitos essenciais”.10 Já Francesco Ferrara, no início do século, admitia a existência dos direitos da personalidade associando, para tanto, o conceito de direito subjetivo ao respeito pelo ordenamento da incidência da vontade do sujeito sobre a tutela do interesse. No direito subjetivo a alavanca do mecanismo de proteção é colocada nas mãos do titular. Este pode, na imagem oferecida por aquele autor, movimentá-la no seu interesse quando quiser.11 Assim é que a doutrina predominante, a partir dos anos 50, admitiu a existência dos direitos subjetivos atinentes à personalidade, embora bastante apegada, como adiante se demonstrará, ao modelo dos direitos subjetivos patrimoniais, e em particular à propriedade.12 Admitido que a personalidade possa ser objeto de direito, discutiu-se se estes direitos subjetivos incidem sobre a própria pessoa — ius in se ipsum —, já que todo homem é considerado como unidade física e moral, ou sobre parte ou algumas partes dela; ou, ao contrário, se incidiriam sobre objeto externo, fora da própria pessoa, constituindo numa obrigação negativa geral.13 Na lição de Orlando Gomes, “em Direito, toda utilidade, material ou não, que incide na faculdade de agir do sujeito, constitui um bem, podendo figurar como objeto de relação jurídica, porque sua noção é histórica, e não naturalística. Nada impede, em conseqüência, que certas qualidades, atributos, expressões ou projeções da personalidade sejam tuteladas no ordenamento jurídico como objeto de direitos de natureza especial”. Segundo o mestre baiano, os direitos da personalidade “recaem em manifestações especiais de suas projeções, consideradas dignas de tutela jurídica, principalmente no sentido de que devem ser I diritti della personalità, Milano, Giuffrè, 1950, pp. 18-19. No original: “Vi sono certi diritti, vale a dire, senza dei quali la personalità rimarrebbe un'attitudine completamente insoddisfatta, priva di ogni concreto valore; diritti, scompagnati dai quali tutti gli altri diritti soggettivi perderebbero ogni interesse rispetto all'individuo: tanto da arrivarsi a dire che, se essi non esistessero, la persona non sarebbe più tale. Sono essi i c.d. `diritti essenziali', con cui si identificano precisamente i diritti della personalità.” 11 Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile italiano, cit., p. 388 e ss., e em particular pp. 396-397, onde demonstra magistralmente a autonomia dos direitos da personalidade. 12 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. VII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1983, p. 5, observa: “a imediata influência do instituto da propriedade, em tempos que conheceram a servidão e a escravidão, concorria para que se pensasse em propriedade, sempre que se descobria serem absolutos os direitos em causa. Ainda no século em que vivemos, juristas de prol resistiram a tratar a integridade psíquica, a honra e, até, a liberdade de pensamento como direitos”. 10

resguardadas de qualquer ofensa, por necessária sua incolumidade ao desenvolvimento físico e normal de todo homem”.14 Afirmou-se que os direitos da personalidade “são os direitos supremos do homem, aqueles que garantem a ele a fruição de seus bens pessoais. Em confronto com os direitos a bens externos, os direitos da personalidade garantem a fruição de nós mesmos, asseguram ao indivíduo a senhoria da sua pessoa, a atuação das próprias forças físicas e espirituais”.15 O debate, portanto, como se depreende do último excerto, ressente-se da preocupação exasperada da doutrina em buscar um objeto de direito que fosse externo ao sujeito, tendo em conta a dogmática construída para os direitos patrimoniais. Em outras palavras, a própria validade da categoria parecia depender da individuação de um bem jurídico — elemento objetivo da relação jurídica — que não se confundisse com a pessoa humana — elemento subjetivo da relação jurídica —, já que as utilidades sobre as quais incidem os interesses patrimoniais do indivíduo, em particular no direito dominical, lhe são sempre exteriores. A dificuldade de individuação do bem jurídico objeto dos direitos da personalidade revela-se na lição de Ferrara, para quem “nos direitos absolutos o objeto não é a res, mas os outros homens obrigados a respeitar o seu exercício”. Assim sendo, os direitos da personalidade “têm por conteúdo a pretensão de exigir respeito de tais bens pessoais. A vida, o corpo, a honra, são o ponto de referência (termine di riferimento) da obrigação negativa que incumbe à coletividade”.16

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Sobre o tema, v., por todos, R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 106 e ss. Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1996, 12ª edição, p. 151. Em outro passo (Novos Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 254), acrescenta Orlando Gomes: “é o direito da pessoa humana a ser respeitada e protegida em todas as suas manifestações imediatas dignas de tutela jurídica, assim como na sua esfera privada e íntima. Na sua concepção, esse direito geral de personalidade é o fundamento de todos os direitos especiais da personalidade, logicamente antecedente e juridicamente preferencial”. 15 Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile italiano, cit., p. 389. Na mesma esteira, no direito pátrio, Anacleto Faria, Instituições de Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1972, 2ª edição, p. 293, os designava como direitos personalíssimos, definindo-os como “aqueles que têm por objeto a própria pessoa do sujeito, considerada em seu todo, ou em alguns aspectos, prolongamentos ou projeções da mesma”. 16 Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile italiano, cit., p. 395. V., ainda, a tentativa de esclarecimento proposta por Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. VII, cit., p. 7: “a) no suporte fáctico de qualquer fato jurídico, de que surge direito, há, necessariamente, alguma pessoa, como elemento do suporte; b) no suporte fáctico do fato jurídico de que surge direito de personalidade, o elemento subjetivo é o ser humano, e não ainda pessoa: a personalidade resulta da entrada do ser humano no mundo jurídico.” 14

A matéria é magistralmente enfrentada por Giampiccolo, segundo o qual a utilidade juridicamente protegida não se confunde com o dever geral de abstenção (necessário à sua conservação, não já à sua constituição), identificando-se “con l'essere e le condizioni essenziali dell'essere ed è quindi acquisita e intriseca al soggetto per ragione di natura”. Daí decorreria o equívoco dos autores que consideravam estranho à pessoa o ponto de referência da relação jurídica (postulado que, segundo o mesmo autor, acarretaria um direito sem objeto ou a negativa de direito subjetivo). E remata, demonstrando que a separação entre o sujeito e o objeto do direito é postulado lógico quando o interesse protegido dirigese a uma utilidade externa, tal qual ocorre nas relações jurídicas patrimoniais. Entretanto, a regra não se adapta definitivamente à categoria das relações jurídicas não-patrimoniais.17

2.

Características,

classificações

e

delimitação

dos

chamados

direitos

da

personalidade. Personalidade e direitos humanos: necessidade de superação da dicotomia entre o direito público e privado

A preocupação com a pessoa humana, surgida com as declarações de direitos, a partir da necessidade de proteger o cidadão contra o arbítrio do Estado totalitário, limitava-se, por isso mesmo, à tutela conferida pelo direito público à integridade física e a outras garantias políticas, não existindo nas relações de direito privado um sistema de proteção fora dos limites dos tipos penais. Durante o liberalismo, o indivíduo não encontrava limites nas relações jurídicas patrimoniais, cuidando o direito privado basicamente de estipular garantias para que o domínio fosse exercitado sem ingerência externa; e para que a transferência de riqueza (da propriedade, portanto) pudesse ter livre curso mediante a disciplina dos contratos. A lesão à 17

Giorgio Giampiccolo, La tutela giuridica della persona umana e il c.d. diritto alla riservatezza, cit., pp. 466-477: “è naturale che, dove oggetto di tutela è l'essere stesso della persona, epperò una condizione di utilità che non implica relazione alcuna com un bene esterno, la prospettiva debba mutare; e diviene allora una necessità logica riconoscere che qui, per la speciale natura dell'interesse protetto, è proprio la persona a costituire, al tempo stesso che il soggetto titolare del diritto, il punto di riferimento oggettivo del rapporto. Non è già che con questo si pretenda dividere l'uomo in due aspetti (io e non io); si tratta di accetare semmai il concetto, niente affatto contradditorio e in tutto aderente alla realtà, di una duplice rilevanza formale dello stesso elemento, in relazione al diverso angolo visuale dal quale volta a volta può procedere l'analisi; a parte subiecti, a parte obiecti”.

integridade das pessoas era matéria do direito público, que asseguraria, com o direito penal, a repressão aos delitos. Na medida em que a pessoa humana torna-se objeto de tutela também nas relações de direito privado, com o estabelecimento de direitos subjetivos para a tutela de valores atinentes à personalidade, trataram os civilistas de definir a sua configuração dogmática, delineando-se um direito iluminado pelo paradigma do direito subjetivo privado por excelência, o direito de propriedade. Cogita-se, nesta esteira, que tais direitos pertencem à categoria dos direitos privados exatamente porque “a vida, a integridade física, a honra, a liberdade, satisfazem aspirações e necessidades próprias do indivíduo em si mesmo considerado, e inserem-se, portanto, na esfera da utilitas privada”. Ao lado de tais direitos subjetivos privados conviveriam, assim, os direitos subjetivos públicos, também chamados direitos civis, os quais atenderiam às aspirações do indivíduo em face do Estado, para protegê-lo das opressões oriundas da coletividade estatal, “cujo objeto seria sempre o mesmo, embora diversificado nas suas manifestações”.18 Quando o ordenamento considerasse que certas necessidades do homem possuem características tais a justificar a proteção do direito privado, além daquela que a ordem pública oferece para a tutela da pessoa humana, estabeleceria o respectivo direito subjetivo privado. Daí considerar-se que “os direitos humanos

são, em princípio, os mesmos da

personalidade; mas deve-se entender que quando se fala dos direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando examinamos os direitos da personalidade, sem dúvida nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoas.”19 Assim sendo, considerados como direitos subjetivos privados, os chamados direitos da personalidade possuem, como característicos, no dizer da doutrina brasileira

18

Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., p. 27. Fabio De Mattia, “Direitos da Personalidade II”, in Enciclopédia Saraiva, vol. 28, São Paulo, Saraiva, 1979, p. 150, que invoca, em apoio à sua posição, o entendimento de Arturo Valencia Zea, Alex Weill, Jean Carbonnier e Orlando Gomes. 19

especializada,

a

generalidade,

a

extrapatrimonialidade,

o

caráter

absoluto,

a

inalienabilidade, a imprescritibilidade e a intransmissibilidade.20 A generalidade significa que esses direitos são naturalmente concedidos a todos, pelo simples fato de estar vivo, ou pelo só fato de ser. Por isso mesmo alguns autores os consideram como inatos, terminologia que, todavia, mostra-se por vezes dúbia, já que, como se verá adiante, suscita a conotação jusnaturalista, adotada por alguns autores, no sentido de que tais direitos preexistiriam à ordem jurídica, independentemente, portanto, do dado normativo. A extrapatrimonialidade consistiria na insuscetibilidade de uma avaliação econômica destes direitos, ainda que a sua lesão gere reflexos econômicos.21 São absolutos, já que oponíveis erga omnes, impondo-se à coletividade o dever de respeitá-los. A indisponibilidade retira do seu titular a possibilidade de deles dispor,22 tornando-os também irrenunciáveis e impenhoráveis; e a imprescritibilidade impede que a lesão a um direito da personalidade, com o passar do tempo, pudesse convalescer, com o perecimento da pretensão ressarcitória ou reparadora. Finalmente, a intransmissibilidade constitui característico controvertido, estando a significar que se extinguiria com a morte do titular, em decorrência do seu caráter personalíssimo, ainda que muitos interesses relacionados à personalidade mantenham-se tutelados mesmo após a morte do titular.23 20

V., por todos, Milton Fernandes, Os Direitos da Personalidade, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 12 e ss., que os designa como direitos personalíssimos. 21 Sobre esta específica característica, cf., na doutrina estrangeira, a lição de Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., p. 28: “L'oggetto dei diritti della personalità essendo un modo di essere fisico o morale della persona, bem s'intende come esso mai contega in se stesso una immediata utilità d'ordine economico. La vita, l'integrità fisica, la libertà e così via dicendo permettono al soggetto di conseguire altri beni muniti di utilità economica: ma non possono nè identificarsi nè confondersi con questi altri beni. Quando viene leso un diritto della personalità, sorge nel soggetto un diritto al risarcimento del danno, rivolto a garantirgli il tantundem di quei beni che l'oggetto del dirritto leso era in grado di fargli conseguire. L'equivalenza tra il diritto al risarcimento del danno e il diritto leso della personalità è una equivalenza di carattere indiretto: l'equivalenza tra i diritti non può essere che un riflesso dell'equivalenza tra i rispettivi oggetti; ed equivalenza non sussiste direttamente tra la somma di danaro attribuita a titolo di risarcimento e la vita, l'integrità fisica e via dicendo, ma bensì tra quella e i beni che quest'ultime possono far conseguire al soggetto.” 22 Da indisponibilidade deriva o intenso debate sobre a licitude dos atos lesivos aos direitos da personalidade praticados com o consenso do interessado. Sobre o ponto, v., ainda, Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., p. 50, para quem não existe um princípio geral de invalidade de tais atos, os quais, embora por vezes reprimidos pelo ordenamento, não necessariamente afetam a ordem pública, refletindo um aspecto particular e mais modesto da faculdade de dispor. 23 Diogo Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, cit., p. 43, observa que, embora a morte cesse a personalidade, “a doutrina, as leis, os juízes, afirmam a permanência, depois da morte, de um certo número de interesses e dos direitos respectivos: o direito à sepultura e à sua proteção; o direito ao seu cadáver e de decidir o seu destino; o direito à imagem que `era', e também o direito à imagem do cadáver; o direito ao nome; o direito moral do autor; etc”. Daí ter o Código Civil Português, no art. 71, previsto que os direitos da

A tais característicos há quem acrescente, especificamente, a essencialidade e a preeminência dos direitos da personalidade em relação aos demais direitos subjetivos, em função da peculiaridade do seu objeto.24 Estabelecidos os seus contornos, os civilistas em geral pretendem classificar os direitos da personalidade, embora não sejam suficientemente convincentes os critérios científicos adotados e a importância prática de tais partições.25 De toda sorte, costuma-se distingui-los em dois grupos: os direitos à integridade física e os direitos à integridade moral. No primeiro grupo situam-se o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver. No segundo, encontram-se o direito à honra, o direito à liberdade, o direito ao recato, o direito à imagem, o direito ao nome e o direito moral do autor.26 Este conjunto de direitos decorre da previsão constitucional, do Código Civil e das leis especiais que, pontualmente, fornecem elementos normativos capazes de permitir sua configuração dogmática. Vale registrar, a título exemplificativo: o art. 5o, X, da Constituição da República, segundo o qual “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”; o art. 220, também do texto maior, que assegura a liberdade de “manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo”, em conformidade com o art. 5º, IV e V, do rol das garantias fundamentais; a Lei nº 9.434/97 (modificada pela Lei nº 10.211/2001) que, respondendo ao comando do art. 199, § 4º, da Constituição, regula o transplante de órgãos; o art. 5º, XXVII e XVIII, da Constituição e a Lei nº 9.610/98, que disciplinam os direitos

personalidade são protegidos depois da morte do seu titular, tendo legitimidade para pedir a sua proteção, o cônjuge e qualquer descendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido. Comentando o dispositivo, aquele autor português leciona que “Os parentes e herdeiros do falecido não defendem um interesse próprio (o que é evidente, por exemplo, tratando-se da defesa de um nome que não é usado pelo que o defende) mas sim um interesse do defunto”. E remata: “Assim a personalidade jurídica prolonga-se, é `empurrada', para depois da morte.” 24 Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., p. 22, para quem o seu objeto apresenta duas características distintivas (ressaltando-se a sintomática referência à senhoria): “1) si trova colla persona in un nesso strettissimo, così da potersi dire organico; 2) si identifica, tra i beni suscettibili di signoria giuridica, con quelli più elevati.” 25 Milton Fernandes, Os Direitos da Personalidade, cit., p. 145, passa em revista as diversas classificações propostas pela doutrina, as quais, segundo leciona, “não têm bases sólidas de apoio nem produzem resultados úteis”. 26 Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, cit., p. 153.

morais do autor; os arts. 54 e ss. da Lei nº 6.015/73, que fixam a normativa do direito ao nome. Sublinhe-se, ainda, que o Código Civil de 2002 dedica um capítulo aos direitos da personalidade, em dez artigos, do 11 ao 21. Na esteira de disposições semelhantes dos arts. 5 a 10 do Código Civil italiano, encontram-se aí enunciados os direitos à integridade física, o direito ao nome, a proteção à honra, à imagem e à privacidade. Os atos de disposição do corpo são vedados quando ocasionam uma diminuição permanente da integridade física ou quando sejam contrários aos bom costume. Ressalvase, contudo, a hipótese de necessidade médica, como no caso da cirurgia de mudança de sexo.27 O Código protege ainda a autonomia do paciente, no caso de tratamento médico ou intervenção cirúrgica com risco de vida (art. 15). A tutela do nome e do pseudônimo, que deve ser entendida na acepção mais abrangente de um direito à identidade pessoal28, é afirmada nos artigos 16 a 18. Já o direito à imagem e o direito à honra foram misturados na confusa redação do art. 20, contra a tendência doutrinária e jurisprudencial de reconhecer autonomia ao direito à imagem.29 Junte-se a isso, a infelicidade do dispositivo, ao estabelecer a administração da justiça e a manutenção da ordem pública como os únicos casos em que se justifica a utilização da imagem de uma pessoa sem sua autorização. Tais critérios não encontram amparo constitucional, motivo pelo qual já se observou, em doutrina, que para evitar a declaração formal de inconstitucionalidade do dispositivo há de se utilizá-lo somente em situação excepcional, para a proibição prévia de divulgações “quando seja possível afastar, por

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Resta pacificado o entendimento de que a cirurgia de transgenitalização realizada em transexuais tem a finalidade terapêutica de corrigir a chamada “disforia de gênero”, quando o sexo psicológico do paciente não é condizente com seu fenótipo, como determina a Resolução n. 1.652/2002 do Conselho Federal de Medicina. Sobre o tema, v. Ana Paula Ariston Barion Peres, Transexualismo: o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. 28 É o que ressalta Maria Celina Bodin de Moraes em seu artigo A tutela do nome da pessoa humana, in Revista Forense, vol. 364, 2002, pp. 217 e ss. 29 Esta tendência foi consolidada no julgamento, pela Segunda Seção do STJ, em 25.12.2002, dos Embargos de divergência em REsp 230268, quando o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira destacou: “Não há como negar a reparação à autora, na medida em que a obrigação de indenizar, em se tratando de direito à imagem, decorre do próprio uso indevido desse direito, não havendo, ademais, que se cogitar de prova da existência de prejuízo. Em outras palavras, o dano é a própria utilização indevida da imagem com fins lucrativos, sendo desnecessário perquirir-se a conseqüência do uso, se ofensivo ou não”.

motivo grave e insuperável, a presunção constitucional de interesse público que sempre acompanha a liberdade de informação e de expressão”.30 Duas cláusulas gerais são veiculadas nos arts. 12 e 21. O artigo 12 prevê a possibilidade de cessão de ameaça ou da lesão a direito da personalidade (a chamada “tutela inibitória”) e o ressarcimento pelos danos causados.31 Nos termos do art. 21, “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Ambos os dispositivos, lidos isoladamente no âmbito do corpo codificado, não trazem grande novidade, sendo certo que os dispositivos constitucionais mencionados já traziam previsão geral a esse respeito. Os preceitos ganham contudo algum significado se interpretados como especificação analítica da cláusula geral de tutela da personalidade prevista no Texto Constitucional no art. 1o, III (a dignidade humana como valor fundamental da República). A partir daí, deverá o intérprete afastar-se da ótica tipificadora seguida pelo Código Civil, ampliando a tutela da pessoa humana não apenas no sentido de contemplar novas hipóteses de ressarcimento mas, em perspectiva inteiramente diversa, no intuito de promover a tutela da personalidade mesmo fora do rol de direitos subjetivos previstos pelo legislador codificado. A rigor, as previsões constitucionais e legislativas, dispersas e casuísticas, não logram assegurar à pessoa proteção exaustiva, capaz de tutelar as irradiações da personalidade em todas as suas possíveis manifestações. Com a evolução cada vez mais dinâmica dos fatos sociais, torna-se assaz difícil estabelecer disciplina legislativa para todas as possíveis situações jurídicas de que seja a pessoa humana titular. Além disso, os rígidos compartimentos do direito público e do direito privado nem sempre mostram-se suficientes para a tutela da personalidade que, as mais das vezes, exige proteção a só tempo do Estado e das sociedades intermediárias — família, empresa, associações —, como ocorre, com freqüência, nas matérias atinentes à família, à inseminação artificial e à procriação assistida, ao

Luís Roberto Barroso, “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, in Revista Trimestral de Direito Civil, n. 16, out.-dez. 2003. 31 Mostra-se correlato ao tema o problema da indenização por dano moral, sobre a qual remete-se à obra de Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional do dano moral. Rio de Janeiro, Renovar, 2003. 30

transexualismo, aos negócios jurídicos relacionados com a informática, às relações de trabalho em condições degradantes, e assim por diante.32

3. Fontes dos direitos da personalidade. Crítica às concepções jusnaturalistas

Provavelmente na tentativa de se ampliar o espectro da tutela da pessoa humana, debate-se, de maneira acirrada, o problema das fontes dos direitos da personalidade. Grande parte da doutrina, incluindo-se aí os autores brasileiros em larga maioria, nega a primazia do direito positivo, buscando em fontes supralegislativas a legitimação dos direitos inerentes à pessoa humana. Considera-se, desse modo, que “o fundamento próximo da sua sanção é realmente a extratificação no direito consuetudinário ou nas conclusões da ciência jurídica. Mas o seu fundamento primeiro são as imposições da natureza das coisas, noutras palavras, o direito natural”.33 No direito português, onde há expressa tutela no Código Civil, afirma-se que “os direitos da personalidade são direitos naturais. São expressão e tutela jurídicas da estrutura

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O direito de família é rico em situações não tipificadas e interdisciplinares, atinentes a aspectos da personalidade humana. Cf. a emblemática hipótese decidida por unanimidade pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sendo Relator o Des. Marcus Faver (in ADV-COAD, 1997, nº 77.562), com a seguinte ementa: “Regulamentação de visitas. Pedido formulado por irmãos unilaterais através de processo cautelar (...) Não contendo o ordenamento jurídico vedação à pretensão deduzida, não há que se falar em impossibilidade jurídica do pedido (...) Saber se o autor tem ou não direito em relação a pretensão deduzida é matéria de mérito. Os irmãos, tal como os tios e avós, têm direito de visita, em relação aos menores, irmãos, sobrinhos ou netos, ainda que com amplitude reduzida. Embora não sendo titulares de pátrio poder, aos irmãos, pelos princípios que orientam o direito de família, pela solidariedade familiar, pelo interesse na formação da personalidade e do psiquismo, do menor, deve ser assegurado, com limitação, o direito de visitas, em relação aos irmãos menores, ainda que unilaterais.” Fatos inusitados, por outro lado, surgem a cada dia, desafiando a dogmática tradicional e a técnica regulamentar. Segundo noticiou a imprensa (Jornal O Estado do Paraná, 25 de maio de 1997), sob o inquietante título “O Incesto Tecnológico”, o príncipe herdeiro do Japão, Naruhito, de 37 anos, diante da constatação de sua esterilidade, teria consentido com que sua mulher Masako, de 33 anos, viesse a ser inseminada artificialmente com o sêmen do pai dele, o imperador Akhito, de 63 anos, a fim de garantir a continuidade da dinastia de 2.700 anos. 33 Rubem Limongi França, “Direitos da Personalidade I”, in Enciclopédia Saraiva, vol. 28, São Paulo, Saraiva, 1979, p. 142. Na mesma direção, Maria Helena Diniz, “Curso de Direito Civil Brasileiro”, vol. I, Teoria Geral do Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 1994, 10ª ed., p. 83; Fabio De Mattia, Direitos da Personalidade, cit., p. 154; e, ainda, Carlos Alberto Bittar, Teoria Geral do Direito Civil, São Paulo, Forense Universitária, 1991, p. 108, para quem os direitos da personalidade “são inatos (...) nascem com a pessoa e para a sua individualização no mundo terrestre; prevalecem sobre os demais direitos, que, em eventual conflito, fazem ceder; impõem-se como condicionantes da ordem jurídica, na exata medida do respeito à individualidade humana”. O mesmo autor, em monografia específica, Os Direitos da Personalidade, São

e das funções da pessoa, do seu ser e da sua maneira de ser. O Direito tem um fundamento axiológico (que é a sua justificação, e sem o qual se transforma em instrumento da opressão) que é imposto pela pessoa humana — o Direito é produto do homem e feito para o homem. A primeira e principal tarefa do jurista é reconhecer e descrever os direitos da pessoa. A pessoa humana `anterior' e superior à sociedade. Impõe-se, portanto, ao Direito”.34 Tal posição justifica-se historicamente,35 embora não se possa com ela concordar nos dias de hoje, em que pese o respeito que merecem as conceituadas vozes divergentes.36 A concepção dos direitos da personalidade teve sua gênese ligada, inicialmente, às teorias jusnaturalistas, como forma de proteção do homem contra o arbítrio do totalitarismo e, de forma geral, do poder público. Daí a concepção desses direitos como direitos inatos, invulneráveis, portanto, ao arbítrio do Estado-legislador.37 Observe-se que a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão emanada pela Assembléia Constituinte francesa de 20 a 26 de agosto de 1789 invoca, em seu

Paulo, Forense Universitária, 1989, pp. 7-8, salienta: “Esses direitos existem antes e independentemente do direito positivo, como inerentes ao próprio homem, considerado em si e em suas manifestações.” 34 Diogo Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, cit., p. 38. 35 V., sobre o ponto, Francisco Amaral, Direito Civil Brasileiro, vol. I, “Introdução”, Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 258, para quem os direitos da personalidade, produto de construção doutrinária do século XIX, podem ser associados a longo processo evolutivo: “Sua raiz já se encontra, porém, nas declarações históricas dos direitos humanos, como a Magna Carta, de 1215, o Bill of Rights, de 1689, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Convenção Européia dos Direitos Humanos, de 1968.” Diogo Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, cit., pp. 36-37, observa que, embora seja normalmente associado o fundamento da “personalidade” à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia francesa em 1789, tal Carta “fora precedida de muitas outras, adaptadas nos estados norte-americanos, desde o século XVII (carta de Carlos I à colônia de Rhode Island de 1643; constituição de Locke para a Carolina do Norte, de 1669; Bills of Rights de diversos estados, particularmente o da Virgínia de 1776). Normalmente de muito maior elevação do que a declaração”. 36 Precisamente em razão dessa relatividade histórica, não pode ser considerada contrastante a opinião de José Lamartine Correa de Oliveira e de Francisco José Ferreira Muniz, “O Estado de Direito e os Direitos da Personalidade”, in Revista dos Tribunais, vol. 532, pp. 17-18, publicada em 1980, ainda sob a égide, portanto, da Carta autoritária de 1969, em que sustentam uma espécie de neonaturalismo: “não se trata do jusnaturalismo racionalista do iluminismo, que desconhece a inserção do homem na história (...) o núcleo do jusnaturalismo moderno são os direitos do homem.” 37 V., sobre o tema, Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., pp. 19-20: “la concezione dei diritti innati a un'origine storica che va ricercata nelle condizioni formatesi in seguito alla compressione e all'assorbimento dell'individuo da parte dei poteri assoluti; sorge allora la presupposizione di uno stato primitivo di esistenza, al quale avrebbero dovuto corrispondere i diritti innati: quando nessun settore della vita individuale poteva dirsi immune dall'invadente e prepotente attività degli organi dello Stato, si offriva spontanea la determinazione di una sfera che quella immunità avrebbe dovuto godere secondo natura”.

preâmbulo, “les droits naturels inaliénables et sacrés de l'homme”.38 Tal circunstância histórica, contudo, que se justifica mais por razões metajurídicas do que técnico-jurídicas, não autoriza a construção de uma categoria de direitos impostos à sociedade independentemente de sua própria formação cultural, social e política. À essa luz, Adriano De Cupis aduz que a suscetibilidade de ser titular de direitos da personalidade não está menos vinculada ao ordenamento jurídico do que estão os demais direitos e obrigações. Dessa maneira, qualquer situação jurídica só pode nascer do dado positivo, ou seja, de uma lei.39 De resto, conforme leciona Pietro Perlingieri, o equívoco das escolas jusnaturalísticas está no fato de que mesmo os princípios da razão e da natureza apresentam-se como “noções historicamente condicionadas: (...) o direito natural (dever ser) é sempre condicionado pela experiência do direito positivo (ser)”.40 E prossegue: “os direitos do homem, para ter uma efetiva tutela jurídica, devem encontrar o seu fundamento na norma positiva. O direito positivo é o único fundamento jurídico da tutela da personalidade; a ética, a religião, a história, a política, a ideologia, são apenas aspectos de uma idêntica realidade (...) a norma é, também ela, noção histórica”.41 A rigor, poder-se-ia mesmo dizer que, fora de um determinado contexto histórico, não existe possibilidade de se estabelecer um bem jurídico superior, já que a sua própria compreensão depende de condicionantes multifacetados e complexos atinentes aos valores sociais historicamente consagrados. Afinal, bastaria lembrar que, em nome da vida e da liberdade, inúmeros contingentes humanos já foram sacrificados, invariavelmente sob fundamentos éticos, religiosos e políticos que, invocados pelos Estados, pretendem

O registro é de Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., p. 20, para quem “La Dichiarazione costituì il trionfo della scuola del diritto naturale, suggellando la concezione dell'esistenza di diritti soggettivi preesistenti allo Stato, non creati, ma soltanto riconosciuti da esso. Ma, nello stesso tempo che il trionfo, fu anche il suo canto del cigno, per la immediata reazione della scuola storica, la quale all'idea dei diritti dell'essere umano, deducibili per la pura ragione, volle sostituito lo studio esclusivo del datto storico, del diritto rivelato progressivamente dall'esperienza”. 39 Adriano De Cupis, I diritti della personalità, ob. e loc. cit. 40 Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, Napoli, Esi, 1972, p. 131, o qual esclarece, ainda, relativamente ao conceito de norma jurídica: “la sua nozione è relativa non tanto al sistema delle fonti formalmente previsto in un certo ordinamento quanto a quello effettivamente vigente, frutto non soltanto di una gerarchia ma della sensibilità e della mentalità degli operatori del diritto.” 41 Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, cit., p. 131. 38

justificar guerras, genocídios, apartheid e outras formas de discriminação social, sexual, étnica e cultural. No Estado de Direito, a ordem jurídica serve exatamente para evitar os abusos cometidos por quem, com base em valores supralegislativos, ainda que em nome de interesses aparentemente humanistas, viesse a violar garantias individuais e sociais estabelecidas, através da representação popular, pelo direito positivo. Resulta, em definitivo, assaz difícil para os defensores das teses jusnaturalistas definirem o que seria a expressão de direitos sagrados do homem, quando se pensa na variedade de posições adotadas pela consciência social dos povos nas diversas épocas históricas e pontos geográficos em que se insere a pessoa humana. A religião muçulmana, com suas penas corporais e as cirurgias através das quais milhares de mulheres africanas são mutiladas, ao nascer, nos dias de hoje42; os países cristãos e as concepções ideológicas que adotam a pena de morte; o regime da escravidão em sociedades consideradas civilizadas; a prática de torturas e de linchamento como formas de sanção socialmente reconhecidas em diversos estados brasileiros; tudo isso coloca em crise a simplista tese segundo a qual seria a consciência universal a estabelecer os direitos humanos e os direitos da personalidade, cabendo ao ordenamento jurídico apenas reconhecê-los. No plano metodológico mais geral, não parece convincente qualquer tomada de posição quanto às fontes do ordenamento desprovida de uma prévia análise do momento histórico em que se insere o jurista. Do mesmo modo, não há correntes hermenêuticas que possam ser avaliadas fora do seu tempo. Superado o autoritarismo e admitindo-se, como premissa, a consolidação de um estado social de direito, o positivismo pode se constituir em uma sólida garantia da promoção da pessoa humana, contra costumes muitas vezes

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Edição da Revista Veja (10 de junho de 1998), em matéria intitulada Prazer Extirpado, relata o conflito entre o direito positivo, religião e costumes: “a mutilação genital é praticada em 28 países da África e dois do Oriente Médio, atingindo milhões de mulheres todo ano. O objetivo é exercer a mais total forma de controle do desejo sexual feminino, de forma a garantir esposas dóceis e fiéis. Segundo a ONU, 110 milhões de mulheres em todo o mundo já foram submetidas ao ritual da mutilaçào. Pelo mesmo cálculo, cerca de 2 milhões de meninas são mutiladas a cada ano. Em lugares como Somália e Djibuti, estima-se que praticamente todas as mulheres são extirpadas. Alguns países coíbem a prática, medida inócua que não arranha a convicção arraigada entre homens e mulheres de que remover os genitais femininos externos é questão de respeito e honra. No Egito, onde se calcula que pelo menos 55% das mulheres muçulmanas e cristãs coptas ainda sejam submetidas à mutilação, o governo proibiu a operação em hospitais públicos e particulares em 1996. Houve uma chuva de protestos de líderes religiosos mais ortodoxos, sobretudo os fundamentalistas

retrógrados que tendem a reproduzir as desigualdades constituídas ao longo do tempo, a partir de hegemonias econômica e social que, não fosse a norma jurídica, imposta através do Estado democrático e interventor, jamais se alterariam.43 Sobre o tema, já se observou, em página primorosa, que “é justo o direito, em uma concepção positivista, a garantir que não seja a vontade popular ou a consciência popular a tutelar a personalidade, pois a história ensina que exatamente a assim chamada vontade popular (a vontade obtida por persuasão ou por coação) cometeu os maiores crimes contra a humanidade, contra, pois, a pessoa”.44 À vista de tais considerações, parece possível considerar os chamados direitos da personalidade como inatos unicamente pelo fato de nascerem juntamente com a pessoa humana, segundo a disciplina do direito positivo, despidos assim de qualquer conotação jusnaturalista. Neste diapasão, todos os direitos inatos são direitos da personalidade, embora nem todos os direitos da personalidade sejam inatos (ex., o direito moral do autor, cuja existência pressupõe a criação intelectual).45 A mesma acepção dos direitos inatos é defendida por Pietro Perlingieri, ainda que através de construção inteiramente diversa da anterior: “o direito da personalidade nasce imediatamente e contextualmente com a pessoa (direitos inatos). Está-se diante do princípio da igualdade: todos nascem com a mesma titularidade e com as mesmas situações jurídicas

muçulmanos, empenhados em `proteger as mulheres das conseqüências do excessivo desejo sexual' (original não grifado)”. 43 Já se observou, em outra sede (Gustavo Tepedino, Diritto all'abitazione e rapporti locatizi, tese de doutorado apresentada à Scuola di Perfezionamento in Diritto Civile, Università degli Studi di Camerino, ano acadêmico de 1985, p. 56, espec. nota 92), “quanto são inflexíveis e restritivas, na economia de mercado, algumas valorações correntes da realidade (...) tendo-se em conta certas práxis, consolidadas na cultura dominante pelas forças econômicas e pela mass-media”. Cf., ao propósito, Pietro Perlingieri, “Prassi, principio della legalità e scuole civilistiche”, in Rassegna di diritto civile, 1983, p. 156 e ss; e Note sulla crisi dello Stato sociale e sul contenuto minimo della proprietà, cit., p. 444, onde o autor adverte, inclusive, para o perigo de se superavaliar o princípio da efetividade em detrimento da legalidade, quando, então, “prevale chi a più forza di imporre, con manovre di palazzo o di piazza, il proprio punto di vista nell'interpretazione della Costituzione”. A necessidade de alteração de inúmeras práticas da jurisprudência e da administração pública, claramente em contraste com os valores constitucionais, percebe-se, ictu oculi, em diversos campos do direito. Na experiência italiana, por exemplo, a recusa imotivada, consolidada na práxis do tabelionato e da magistratura de primeiro grau, de se atribuir ao filho o sobrenome materno, ao lado do paterno, é hipótese criticada, em doutrina, por Maria Cristina De Cicco, “La normativa sul cognome e l'eguaglianza tra genitori”, in Rassegna di diritto civile, 1985, p. 960 e ss. 44 Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, cit., p. 127. 45 Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., p. 41.

subjetivas

(...)

A

personalidade

comporta

imediata

titularidade

de

relações

personalíssimas”.46

4. Teorias pluralista e monista: crítica

Com a consagração dos direitos da personalidade como direitos subjetivos privados, absolutos, oponíveis erga omnes, dúvidas surgiram quanto à sua tipificação, debatendo as correntes pluralista (defensora da existência de múltiplos direitos da personalidade) e monista (que sustenta a existência de um único direito da personalidade, originário e geral). Assim como no debate relacionado às duas primeiras controvérsias, as correntes pluralista e monista também padecem da excessiva vinculação ao paradigma dos direitos patrimoniais, como se poderá, de fácil, demonstrar. A favor da pluralidade de direitos, sustenta-se: “admitido que a individuação dos bens ocorra com base na individuação das necessidades, e admitido que a exigência da existência seja distinta em relação àquela da liberdade; que a necessidade de viver de maneira honrada não se confunda com a necessidade de se distinguir dos outros sujeitos, etc. (...), daí decorre por conseqüência que distintos são também os bens correspondentes assim como os direitos sobre estes”.47 Em defesa da tese oposta, argumenta-se que a pessoa humana é um valor unitário e que os seus interesses relativos ao ser, mesmo se dotados de características conceituais próprias, apresentam-se substancialmente interligados. Disso resultaria que as diversas normas atinentes à tutela da personalidade, disseminadas pelo Código Civil, Código Penal e leis especiais, mais do que constituírem direitos autônomos, representariam a disciplina específica de alguns aspectos particulares da sua tutela, da qual seriam o concreto desenvolvimento. “Não existem direitos da personalidade; existe um direito da personalidade: um direito único, com conteúdo indefinido e diversificado (como indefinido

46 47

Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, cit., p. 140. Adriano De Cupis, I diritti della personalità, cit., pp. 25-26.

e diversificado é, em outro campo, o conteúdo do domínio), que não se identifica com a soma de suas múltiplas expressões individualmente protegidas por normas particulares”.48 Semelhante posição doutrinária é esposada, no Brasil, ao argumento de que a pessoa humana é una, refutando-se, a partir daí, a técnica legislativa dos tipos preestabelecidos de direitos de personalidade, embora se considere inexistente no direito positivo brasileiro uma cláusula geral capaz de assegurar tal direito subjetivo, abrangendo todos os aspectos de proteção da pessoa humana.49 Quanto à objeção comumente aposta contra o direito geral de personalidade, no sentido de que este não teria bem definidos os seus contornos, afirma-se que “os limites do direito geral de personalidade são fixados em cada caso concreto, através da ponderação de bens e interesses postos em litígio, aplicando-se o princípio da proporcionalidade”.50 San Tiago Dantas, defendendo a pluralidade dos direitos da personalidade, contrapondo-se à tese segundo a qual a personalidade é una e a honra, a integridade corpórea, a liberdade, a vida, são aspectos de manifestações da personalidade, daí resultando um único direito da personalidade e não uma coleção deles, leciona: “A esse argumento pode se objetar com uma expressão que os lógicos empregam freqüentemente: o argumento prova demais. Ele prova não só que não existem direitos da personalidade vários, como prova, também, que não existem direitos patrimoniais vários, porque assim como a personalidade é uma só, o patrimônio também é um só. Os bens, a propriedade, a posse, os contratos, todos os direitos que se distinguem dentro da esfera dos direitos patrimoniais, podem ser considerados de um modo unitário; sendo possível, então, dizer que só existe um direito patrimonial e que todos esses, que habitualmente se estudam, são dele simples face ou manifestações”.51 Curiosamente, o paralelo com os direitos patrimoniais é também utilizado por Giampiccolo, mas em sentido oposto, vale dizer, no intuito de demonstrar a unicidade do direito da personalidade que, como a propriedade, não poderia ser desmembrado em tantos direitos quantas são as prerrogativas do proprietário. Veja-se o interessante passo do autor

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Giorgio Giampiccolo, ob. cit., p. 463. Elimar Szaniawski, Direitos de Personalidade e sua Tutela, cit., p. 57. 50 Elimar Szaniawski, Direitos de Personalidade e sua Tutela, cit., p. 62. 49

italiano: “Do proprietário de um terreno não se pensa, decerto, que ele tenha um distinto direito à integridade do bem, a mantê-lo fechado, à sua desafetação e assim por diante; nem se postula do ordenamento uma específica norma para a proteção dessas qualidades individualizadas, que no seu conjunto fazem a coisa ser exatamente o que é e permitem que ela sirva à sua função. Por que então, com estranha contradição, dever-se-ia considerar diferentemente quanto à pessoa, se o homem é exatamente o valor fundamental sobre o qual incide todo o ordenamento? Porque o homem deveria ter proteção limitada somente aos aspectos expressamente regulados por uma norma, não se estendendo esta proteção indistintamente a todos os interesses da personalidade que possam parecer socialmente relevantes, e assim merecedores de tutela?”52

5. A insuficiência das orientações doutrinárias tradicionais. A pessoa humana como valor unitário e sua proteção integral. A cláusula geral de tutela da personalidade no ordenamento brasileiro. Os direitos da personalidade no Código Civil de 2002. A diversidade axiológica das relações patrimoniais e extrapatrimoniais. Os chamados direitos da personalidade das pessoas jurídicas A insuficiência das elaborações antes examinadas — monista e pluralista — para a proteção da pessoa humana foi posta em evidência por atenta doutrina, segundo a qual tais correntes tratam, uma e outra, os direitos da personalidade como expressão de tutela meramente ressarcitória e de tipo dominical. Criticam-se, nesta direção, as construções dogmáticas que concebem a proteção da personalidade aos moldes (ou sob o paradigma) do direito de propriedade.53

Programa de Direito Civil, cit., p. 193, onde se aduz: “Na verdade os direitos da personalidade podem ter um tratamento unitário, porque a personalidade é una, mas isto não quer dizer que, entre eles, não se possa fazer diferenciações capazes de apresentá-los como relações jurídicas, distinguindo-os tal qual o patrimônio.” 52 Giorgio Giampiccolo, ob. cit., p. 469. 53 Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, cit., passim. V. também, do mesmo autor: “La tutela giuridica della `integrità psichica' (a proposito delle psicoterapie)”, in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1972, p. 763 e ss.; “Il diritto alla salute quale diritto della personalità”, in Rassegna di diritto civile, 1982, p. 1.021 e ss; Perfis do Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 153 e ss. 51

Segundo Pietro Perlingieri, principal artífice desta corrente doutrinária, a personalidade humana mostra-se insuscetível de recondução a uma “relação jurídica-tipo” ou a um “novelo de direitos subjetivos típicos”, sendo, ao contrário, valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas e renovadas situações em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado será necessariamente insuficiente para atender às possíveis situações subjetivas em que a personalidade humana reclame tutela jurídica.54 O que se verifica, a rigor, do debate antes enunciado em torno das diversas correntes que buscam explicar a conceituação, o objeto e o conteúdo dos direitos de personalidade, é que todas elas se baseiam no paradigma dos direitos patrimoniais: ora se entende que, como o direito de propriedade, o direito em tela deve compreender uma série de atributos que, como no caso do domínio, são postos à disposição do titular — sem que se possa fracionar o poder dominical em vários direitos; ora, ao revés, entende-se que, tal qual o patrimônio, a universalidade de direitos não justifica a reductio in uno, sendo certo que uma única massa patrimonial comporta tantos direitos quantas distintas relações jurídicas possam ser identificadas, à luz dos interesses em jogo — ainda que entre tais relações jurídicas haja um vínculo orgânico. Imaginando-se a personalidade humana do ponto de vista estrutural (ora o elemento subjetivo da estrutura das relações jurídicas, identificada com o conceito de capacidade jurídica, ora o elemento objetivo, ponto de referência dos chamados direitos da personalidade) e protegendo-a em termos apenas negativos, no sentido de repelir as ingerências externas à livre atuação do sujeito de direito, segundo a técnica própria do direito de propriedade, a tutela da personalidade será sempre setorial e insuficiente. Não se subestime o elevado valor de todas as orientações doutrinárias que, sem rebuços de dúvidas, permitiram a ampliação da tutela dos direitos humanos, antes limitada aos tipos do direito penal e às relações entre Estado e cidadão, e hoje estendida (é bem verdade) às relações de direito privado. E isto ocorreu a partir das construções que engendraram os direitos da personalidade, quer mediante a tipificação de uma série de direitos subjetivos, quer através da configuração de uma relação jurídica-tipo, generalizante

54

Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, cit., esp. p. 174 e ss.

e abrangente. Entretanto, a realização plena da dignidade humana, como quer o projeto constitucional em vigor, não se conforma com a setorização da tutela jurídica ou com a tipificação de situações previamente estipuladas, nas quais pudesse incidir o ordenamento.55 Nem parece suficiente o mecanismo simplesmente repressivo, próprio do direito penal, de incidência normativa limitada aos momentos patológicos das relações jurídicas, no momento em que ocorre a violação do direito, sob a moldura de situações-tipo. A tutela da pessoa humana, além de superar a perspectiva setorial (direito público e direito privado), não se satisfaz com as técnicas ressarcitória e repressiva (binômio lesão-sanção), exigindo, ao reverso, instrumentos de promoção do homem, considerado em qualquer situação jurídica de que participe, contratual ou extracontratual, de direito público ou de direito privado.56 Assim é que, no caso brasileiro, em respeito ao texto constitucional, parece lícito considerar a personalidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercido a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de validade. Nesta direção, não se trataria de enunciar um único direito subjetivo ou classificar múltiplos direitos da personalidade, senão, mais tecnicamente, de salvaguardar a pessoa humana em qualquer momento da atividade econômica, quer mediante os específicos direitos subjetivos (previstos pela Constituição e pelo legislador especial — saúde, imagem, nome, etc.), quer como inibidor de tutela jurídica de qualquer ato jurídico patrimonial ou extrapatrimonial que não atenda à realização da personalidade. A prioridade conferida à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III, CF), fundamentos da República, e a adoção do princípio da igualdade substancial (art. 3º,

55

V., sobre o ponto, José Lamartine Correa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, O Estado de Direito e os Direitos da Personalidade, cit., p. 14, que propuseram (em 1980) uma cláusula geral de tutela da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro, aos moldes da experiência alemã, relatada pelos autores, os quais destacam: “A tipologia que se pretende exaustiva não exaure a realidade e camufla o sentido único de toda a problemática”. 56 Para uma crítica aguda às técnicas tradicionais dos direitos da personalidade, v. Ezio Capizzano, Vita e integrità fisica, cit., p. 1.003, segundo o qual “o direito à integridade física, como especificação de um mais amplo direito à saúde, reflete o interesse público à eliminação das condições de fato (ambientais, etc.) que, possibilitando a agressão a tal bem, constituem, em razão do seu próprio valor instrumental, um obstáculo de

III), ao lado da isonomia formal do art. 5º, bem como a garantia residual estipulada pelo art. 5º, § 2º, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordinário, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tábua axiológica eleita pelo constituinte.57 Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento. Sublinhe-se a técnica legislativa — não por acaso — empregada pelo constituinte, fixando, no Título I, princípios fundamentais que, ali situados, impõem específica função aos demais direitos constitucionais, permeando todo o sistema jurídico com os valores ali indicados, expressos nos fundamentos e objetivos da República. Significa dizer, em primeiro lugar, que qualquer lei que, mesmo cumprindo os ditames constitucionais específicos para certas matérias, como por exemplo o art. 199 da CF, em matéria de transplante —, desatendesse a preocupação do legislador constituinte relativamente à realização da personalidade e à dignidade da pessoa humana, padeceria do natureza social à atuação e ao desenvolvimento da personalidade”; e Massimo Dogliotti, “I diritti della personalità: questioni e prospettive”, in Rassegna di diritto civile, 1982, p. 657 e ss. 57 Tal perspectiva metodológica, que mais e mais se difunde, capitaneada por Pietro Perlingieri (Perfis do Direito Civil, cit., passim; Scuole, tendenze e metodi, Napoli, ESI, 1988, espec. p. 109 e ss.), deve a Maria Celina Bodin de Moraes, “A Caminho de um Direito Civil Constitucional”, in Revista de Direito Civil, vol. 65, p. 21 e ss., a primeira e mais importante contribuição doutrinária entre os civilistas brasileiros. A autora (p. 29) redimensiona, inclusive, o papel atribuído — em sede interpretativa — ao art. 5º, LICC: “As finalidades sociais da norma e exigências do bem comum foram já delimitadas pelo legislador constituinte quando da elaboração do Texto Constitucional. Do que resulta que, a teor do disposto, a interpretação das normas jurídicas, ainda que importe sempre na sua recriação pelo Juiz, não resta submetida ao livre arbítrio do Magistrado ou dependente de sua exclusiva bagagem ético-cultural, encontrando-se definitivamente vinculada aos valores primordiais do ordenamento jurídico.” V., ainda, entre os constitucionalistas, Clemerson Merlin Clève, “A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo (Para uma Dogmática Constitucional Emancipatória)”, in Seleções Jurídicas — ADV-COAD, 1994, p. 45 e ss., que propõe uma “Constituição normativa integral”, mediante interpretação na qual se reconheça que “os princípios, inclusive aqueles enunciados no preâmbulo, dispõem de uma funcionalidade”, “cimentam a unidade da Constituição”, “ fixam standards de justiça, prestam-se como mecanismos auxiliares no processo de interpretação e integração da Constituição e do direito infraconstitucional, (...)” (p. 48); de modo a emergir “uma prática jurídica definida como constitucionalização (filtragem constitucional) do direito infraconstitucional (direito civil, direito penal, direito do trabalho, direito processual, etc.). Esse processo fará incidir sobre o direito infraconstitucional os valores substanciais emancipatórios adotados pela Carta Constitucional” (p. 51).

vício da inconstitucionalidade: não há condições ou requisitos legais destinados a promover e incentivar a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplantes que possam desconsiderar o valor máximo do ordenamento constitucional brasileiro, ou seja, a pessoa humana e o desenvolvimento de sua personalidade. Por outro lado, como se aludiu acima, tais diretrizes, longe de apenas estabelecerem parâmetros para o legislador ordinário e para os poderes públicos, protegendo o indivíduo contra a ação do Estado, alcançam também a atividade privada, informando as relações contratuais no âmbito da iniciativa econômica. Não há negócio jurídico que não tenha seu conteúdo redesenhado pelo texto constitucional. Mais ainda, a tutela da personalidade, como bem se acentuou na doutrina alienígena, é dotada do atributo da elasticidade, não se confundindo, todavia, tal característica com a elasticidade do direito de propriedade. No caso da pessoa humana, elasticidade significa a abrangência da tutela, capaz de incidir a proteção do legislador e, em particular, o ditame constitucional de salvaguarda da dignidade humana a todas as situações, previstas ou não, em que a personalidade, entendida como valor máximo do ordenamento, seja o ponto de referência objetivo.58 Demais disso, a regulamentação dos direitos de personalidade deferida ao legislador ordinário não significa uma reserva legal ilimitada. À legislação infraconstitucional, tanto em matéria de direito civil, como no caso do direito do trabalho, acidentário ou previdenciário, por exemplo, só é permitido impor restrições às garantias individuais ou sociais na medida em que a disciplina normativa encontre justificativa na própria dignidade da pessoa humana. Já na regulamentação das relações jurídicas patrimoniais, ao revés, a dignidade da pessoa humana é o limite interno capaz de definir com novas bases as funções sociais da propriedade e da atividade econômica. A assertiva é confirmada pela técnica empregada

58

Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, pp. 185-186, cujo passo merece transcrição: “Elasticidade da tutela da personalidade significa que não existe um numerus clausus de hipóteses tuteladas mas que é tutelado o valor da personalidade sem limites, ressalvados os limites postos no interesse de outras personalidades, não de terceiros. Elasticidade nas situações subjetivas reais (ao revés), e em particular na propriedade assim chamada formal (elasticidade do dominium) quer significar que, com a extinção de um direito real limitado à propriedade readquire o seu conteúdo originário. Elasticidade das situações pessoais significa portanto que a sua tutela deve ser estendida também às hipóteses (juridicamente relevantes) não previstas pelas leis ordinárias” (grifou-se).

pelo constituinte, associando, expressa e imediatamente, à garantia do direito de propriedade (art. 5o, XXII), o atendimento de sua função social (art. 5o, XXIII); e às finalidades da ordem econômica, o dever de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, e observados, dentre outros, os princípios da função social da propriedade e da redução das desigualdades regionais e sociais, além da busca do pleno emprego (art. 170, caput, e incisos III, VII e VIII). Os grupos sociais, como a família, os sindicatos, a universidade, a empresa, as associações filantrópicas ou mesmo religiosas, todas elas, igualmente, embora protegidas constitucionalmente, devem ter o seu regulamento interno adequado ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, não lhes sendo consentido impor aos seus associados, mercê de uma mal compreendida tutela constitucional à autonomia associativa, normas de conduta que não se coadunam com os princípios acima referidos. As comunidades intermediárias têm a sua razão de ser e sua justificativa no papel que representam para a promoção da pessoa humana, deixando de ser tuteladas no momento em que deixem de cumpri-lo.59 Tal constatação revela a crise da dogmática tradicional, que entendia que as normas de direito público, em particular os chamados direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, tinham como objetivo único a proteção do indivíduo em relação ao Estado. Definidos os objetivos maiores e os fundamentos da República, na técnica constitucional de enumeração introdutória de princípios fundamentais, a eles não se pode supor alheia toda a gama de relações de direito privado, cabendo aos operadores do direito cotejarem a atividade econômica privada com os parâmetros do texto maior. A tutela da personalidade — convém, então, insistir — não pode se conter em setores estanques, de um lado os direitos humanos e de outro as chamadas situações jurídicas de direito privado. A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de promoção da dignidade humana.60 59

Pietro Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, p. 145 e ss. A necessidade de superação das técnicas setoriais é suscitada por Maria Celina Bodin de Moraes, “Recusa à Realização do Exame de DNA na Investigação de Paternidade e Direitos da Personalidade” in A Nova Família: Problemas e Perspectivas (org. Vicente Barretto), Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 169, em análise crítica à interessante ordem de habeas corpus concedida, por apertada maioria, pelo Supremo Tribunal 60

Justificam-se assim, igualmente, as críticas acima dirigidas às diversas doutrinas dos direitos da personalidade que reproduzem a lógica dos direitos subjetivos patrimoniais, permeados por técnica excessivamente regulamentar. Procura-se tipificar os direitos da personalidade e descrever o seu conteúdo — nem sempre, contudo, delineados pelo legislador —, reservando-se erroneamente a tutela jurídica somente a quem é titular de tais direitos. Por outro lado, a incidência normativa não se resume às situações que configuram delito ou que causam dano injusto — momento patológico da tutela da personalidade —, mas se estende a todos os momentos da atividade econômica, daí decorrendo que a validade dos atos jurídicos, por força da cláusula geral de tutela da personalidade, está condicionada à sua adequação aos valores constitucionais e à sua funcionalização ao desenvolvimento e realização da pessoa humana. De tais elaborações decorrem, ainda, as teses que, movidas embora pelo louvável propósito de ampliar os confins da reparação civil, consideram indistintamente a pessoa física e a pessoa jurídica como titulares dos direitos da personalidade, a despeito do

Federal, em favor de réu, em ação de investigação de paternidade, que se recusou a se submeter ao teste de DNA. A autora propõe que a solução entre o “conflito de valores constitucionais: direito à (real) identidade pessoal versus direito à integridade física” seja dirimido em favor do primeiro, considerando a recusa abusiva. “A perícia compulsória se, em princípio, repugna aqueles que, com razão, vêem o corpo humano como bem jurídico intangível e inviolável, parece ser providência necessária e legítima, a ser adotada pelo juiz, quando tem por objetivo impedir que o exercício contrário à finalidade de sua tutela prejudique, como ocorre no caso do reconhecimento do estado de filiação, direito de terceiro, correspondente à dignidade de pessoa em desenvolvimento, interesse este que é, a um só tempo, público e inidividual” (grifou-se). E conclui (p. 194): “o princípio da dignidade da pessoa humana estabelece sempre os limites intransponíveis, para além dos quais há apenas ilicitude”. Parece aliás sintomático que, nos manuais italianos, a matéria já comece a ser enfrentada em perspectiva unitária. Além da escola doutrinária analisada no texto (v. o manual de Pietro Perlingieri, Il diritto civile nella legalità costituzionale, Napoli, ESI, 1984, p. 347 e ss.), fazem-se estimulantes as páginas de C. Massimo Bianca, Diritto civile, vol. I, La norma giuridica — I soggetti, Roma, Giuffrè, 1990 (rist.), p. 143 e ss., em que o autor trata do tema como “Os direitos fundamentais do homem ou direitos da personalidade” (literalmente, I diritti fondamentali dell'uomo o diritti della personalità), esclarecendo que “os direitos fundamentais do homem, ditos também direitos da personalidade, são aqueles direitos que tutelam a pessoa nos seus valores essenciais (...) inserindo-se na categoria mais ampla dos direitos pessoais, como direitos que tutelam os interesses inerentes à pessoa, isto é, os seus diretos interesses materiais e morais”, em contraposição aos “direitos patrimoniais, os direitos que tutelam interesses econômicos”. Em perspectiva metodológica unitária apresenta-se também Pietro Rescigno, Manuale del diritto privato italiano, Napoli, Jovene, 1994, p. 223 e ss., que se refere ao tema em capítulo sugestivamente intitulado “Tutela civile della persona”, no qual aborda simultaneamente as garantias constitucionais, a Convenção européia dos direitos do homem e os direitos da personalidade previstos na legislação infraconstitucional.

tratamento diferenciado atribuído pelo ordenamento constitucional aos interesses patrimoniais e extrapatrimoniais.61 As lesões atinentes às pessoas jurídicas, quando não atingem, diretamente, as pessoas dos sócios ou acionistas, repercutem exclusivamente no desenvolvimento de suas atividades econômicas, estando a merecer, por isso mesmo, técnicas de reparação específicas e eficazes, não se confundindo, contudo, com os bens jurídicos traduzidos na personalidade humana (a lesão à reputação de uma empresa comercial atinge — mediata ou imediatamente — os seus resultados econômicos, em nada se assemelhando, por isso mesmo, à chamada honra objetiva, com os direitos da personalidade). Cuida-se, afinal, de uma tomada de posição do legislador constituinte, que delineou a tábua axiológica definidora do sistema e, por conseguinte, da atividade econômica privada. Daí a necessidade de uma reelaboração dogmática, de molde a subordinar a lógica patrimonial àquela existencial, estremando, de um lado, as categorias da empresa, informadas pela ótica do mercado e da otimização dos lucros, e, de outro, as categorias atinentes à pessoa humana, cuja dignidade é o princípio basilar posto ao vértice hierárquico do ordenamento. Tampouco se pode tomar de empréstimo a ótica individual e patrimonialista para a solução de conflitos inerentes à tutela da pessoa humana — permeados por bem outros valores. A empresa privada, na esteira de tal perspectiva, deve ser protegida não já pelas

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Adota francamente tal posição a valorosa dissertação de mestrado do Professor Alexandre Ferreira de Assumpção Alves, A Pessoa Jurídica e os Direitos da Personalidade, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 81 e ss., com ampla referência bibliográfica. Cf., no mesmo sentido, a tendência jurisprudencial, exemplificada em acórdão decidido à unanimidade pela 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (ap. civ. nº 8.203/96, julg. em 28/01/97, reg. em 7/3/97, fls. 4.925), assim ementada: “A honra objetiva da pessoa jurídica, consoante entendimento consagrado pelo Superior Tribunal de Justiça, pode ser ofendida pelo protesto indevido do título cambial, cabendo indenização pelo dano extrapatrimonial daí decorrente. Por se tratar de algo imaterial, ou ideal, não se pode exigir que a comprovação do dano moral seja feita pelos meios utilizados para a demonstração do dano material. Jamais poderia a vítima comprovar a dor, a tristeza, ou a humilhação através de documentos, perícia ou depoimentos. Neste ponto a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, de tal modo que, provado o fato danoso, `ipso facto' está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção `hominis'ou `facti', que decorre das regras da experiência comum”. Verifica-se do excerto a dificuldade de enquadramento da espécie, circunstância que também se observa em acórdão decidido à unanimidade pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (ap. civ. nº 3/96, julg. em 2/4/96, reg. em 9/4/96, fls. 17.202), de cuja ementa se destaca: “Dano moral da empresa. Possibilidade da sua identificação quando o agravo de natureza moral vai repercutir no livre curso das atividades comerciais e industriais da pessoa jurídica, comprometendo a sua idoneidade financeira e a qualidade dos seus serviços” (grifou-se). Tal entendimento foi consagrado no enunciado da Súmula n. 227 do STJ: “As pessoas jurídicas podem sofrer danos morais”.

cifras que movimenta ou pelos índices de rendimento econômico por si só considerados, mas na medida em que se torna instrumento de promoção dos valores sociais e nãopatrimoniais. Ainda em referência ao tema em questão, destaca-se a cláusula geral contida no art. 52 do Código Civil, segundo a qual “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. Andou bem o legislador em não conferir à pessoa jurídica direitos informados por valores inerentes à pessoa humana. Limitou-se o dispositivo a permitir a aplicação, por empréstimo, da técnica da tutela da personalidade, e apenas no que couber, à proteção da pesoa jurídica. Esta, embora dotada de capacidade para o exercício de direitos, não contém os elementos justificadores (fundamento axiológico) da proteção à personalidade, concebida como bem jurídico, objeto de situações existenciais. Assim é que o texto do art. 52 parece reconhecer que os direitos da personalidade constitutem uma categoria voltada para a defesa e para a promoção da pessoa humana. Tanto assim que não assegura às pessoas jurídicas os direitos subjetivos da personalidade, admitindo, tão-somente, a extensão da técnica dos direitos da personalidade para a proteção da pessoa jurídica. Qualquer outra interpretação, que pretendesse encontrar no art. 52 o fundamento para a admissão dos direitos da personalidade das pessoas jurídicas, contraria a dicção textual do dispositivo e se chocaria com a informação axiológica indispensável à concreção da aludida cláusula geral. A rigor, a lógica fundante dos direitos da personalidade é a tutela da dignidade da pessoa humana. Ainda assim, provavelmente por conveniência de ordem prática, o codificador pretendeu estendê-los às pessoas jurídicas, o que não poderá significar que a concepção dos direitos da personalidade seja uma categoria conceitual neutra, aplicável indistintamente a pessoas jurídicas e pessoas humanas. Descartada a equiparação dos direitos tipicamente atinentes às pessoas naturais (integridade psicofísica, pseudônimo, etc.) vê-se que não é propriamente a honra da pessoa jurídica que merece proteção, nem em vertente subjetiva tampouco em caráter objetivo. A tutela da imagem da pessoa jurídica — atributo mencionado, assim como a honra, pelo art. 20 — tem sentido diferente da tutela da imagem da pessoa humana. Nesta, a imagem é atributo de fundamental importância, de inspiração constitucional inclusive para a

manutenção de sua integridade psicofísica. Já para a pessoa jurídica com fins lucrativos, a preocupação resume-se aos aspectos pecuniários derivados de um eventual ataque à sua atuação no mercado. O ataque que na pessoa humana atinge a sua dignidade, ferindo-a psicológica e moralmente, no caso da pessoa jurídica repercute em sua capacidade de produzir riqueza, no âmbito da atividade econômica por ela legitimamente desenvolvida. Há que se resguardar, todavia, a necessária diferenciação entre as pessoas jurídicas que aspiram lucros e aquelas que se orientam por outras finalidades. Particularmente neste último caso não se pode considerar (como ocorre na hipótese de empresas com finalidade lucrativa) que os ataques sofridos pela pessoa jurídica acabam por se exprimir na redução de seus lucros, sendo espécie de dano genuinamente material. Cogitando-se, então, de pessoas jurídicas sem fins lucrativos poder-se-ia admitir a configuração de danos institucionais, aqui conceituados como aqueles que, diferentemente dos danos patrimoniais ou morais, atingem a pessoa jurídica em sua credibilidade ou reputação, sendo extrapatrimoniais, posto informados pelos princípios norteadores da iniciativa econômica privada.62 Com base em tais premissas metodológicas, percebe-se o equívoco de se imaginar os direitos da personalidade e o ressarcimento por danos morais como categorias neutras, adotadas artificialmente pela pessoa jurídica para a sua tutela (a maximização de seu desempenho econômico e de seus lucros). Ao revés, o intérprete deve estar atento para a diversidade de princípios e de valores que inspiram a pessoa física e a pessoa jurídica, e para que esta, como comunidade intermediária constitucionalmente privilegiada, seja

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Sobre o tema, seja consentido remeter a Gustavo Tepedino, A Pessoa Jurídica e os Direitos da Personalidade, no Apêndice deste Temas de Direito Civil e, mais aprofundadamente, Crise de Fontes Normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002, in Gustavo Tepedino (coord.), A Parte Geral do Novo Código Civil — Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2003 (2ª ed.), p. XXX, onde se aduz, em defesa da nova categoria dos danos institucionais: “ O ataque a imagem de uma empresa normalmente se traduz em uma diminuição de seus resultados econômicos. Situações há, contudo, em que a associação sem fins lucrativos, uma entidade filantrópica por exemplo, é ofendida em seu renome. Atinge-se sua credibilidade, chamada de honra objetiva sem que, neste caso, se pudesse afirmar que o dano fosse mensurãvel economicamente, considerando-se sua atividade exclusivamente inspirada na filantropia (...) a solução, pois, é admitir que a credibilidade da pessoa jurídica, como irradiação de sua subjetividade, responsável pelo sucesso de suas atividades, é objeto de tutela pelo ordenamento e capaz de ser tutelada, especialmente na hipótese de danos institucionais. Tal entedimento mostra-se coerente com o ditado constitucional e não parece destoar do raciocínio que inspirou a recente admissiblidade, pelo STJ, dos danos morais à pessoa jurídica” (original não grifado).

merecedora de tutela jurídica apenas e tão-somente como um instrumento (privilegiado) para a realização das pessoas que, em seu âmbito de ação, é capaz de congregar. À guisa de conclusão, repita-se, sem cerimônia: tanto a teoria pluralista dos direitos da personalidade, também chamada tipificadora, quanto a concepção monista, que alvitra um único direito geral e originário da personalidade, do qual todas as situações jurídicas existenciais se irradiariam, ambas as elaborações parecem excessivamente preocupadas com a estrutura subjetiva e patrimonialista da relação jurídica que, em primeiro lugar, vincula a proteção da personalidade à prévia definição de um direito subjetivo; e que, em segundo lugar, limita a proteção da personalidade aos seus momentos patológicos, no binômio dano-reparação, segundo a lógica do direito de propriedade, sem levar em conta os aspectos distintivos da pessoa humana na hierarquia dos valores constitucionais.

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