A TUTELA INDIVIDUAL E COLETIVA DO DIREITO À SAÚDE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

June 8, 2017 | Autor: Osmir Globekner | Categoria: Health Equity, Health Systems, The Right to Health, Fundamental Social Rights
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SEÇÃO IV

DIREITO COLETIVO

A TUTELA INDIVIDUAL E COLETIVA DO DIREITO À SAÚDE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO  INDIVIDUAL AND COLLECTIVE PROTECTION OF THE RIGHT TO HEALTH BY THE PUBLIC PROSECUTORS OFFICE

Osmir Antonio Globekner [email protected] Doutorando em Bioética pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (FD/UFBA). Especialista em Direito Sanitário pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e em Direito Aplicado ao Ministério Público pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU); possui graduação em Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Atua profissionalmente na Assessoria Jurídica do Ministério Público Federal.

A TUTELA INDIVIDUAL E COLETIVA DO DIREITO À SAÚDE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

RESUMO O presente artigo ocupa-se de questões teóricas e práticas em torno da tutela do Direito à saúde pelo Ministério Público, procurando analisar comparativamente as duas vias possíveis de exercício dessa tutela: a individual e a coletiva, bem como as respectivas características, perspectivas e aptidões para realizar o objetivo de garantir a efetividade do acesso à Saúde como um direito de todos. Analisa também os reflexos dessa atuação na proteção de grupos vulneráveis da população, na promoção da equidade no acesso e na obtenção de provimentos jurisdicionais com maior abrangência e resolutividade em termos sociais, colaborando-se assim para a construção de um sistema universalista de atenção, proposta cuja expressão constitucional é o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE Direitos fundamentais sociais. Direito à Saúde. Sistema de Saúde. Tutela Jurisdicional. Equidade.

ABSTRACT This paper deals with theoretical and practical issues around the protection of the right to health by the Public Prosecutors Office, with the aim of analyze comparatively the two pathways to perform such protection: the individual and the collective lawsuit, and their characteristics, perspectives and abilities to accomplish the goal of ensuring the effectiveness of access to health as a right for all. Also analyzes the consequences of this activity in the protection of vulnerable population groups, in promoting equity in access to health and in obtaining jurisdictional provision with greater coverage and resolution in social terms, and in this way collaborating to build a universal health care system, whose constitutional expression is the Brazilian Unified Health System (SUS).

KEYWORDS Fundamental social rights. Right to Health. Health System. Jurisdictional Protection. Equity.

SUMÁRIO Considerações iniciais. 1. A tutela do direito à saúde e seu caráter plural e social. 2. A atuação do Ministério Público na tutela do direito à saúde. 2.1 O Ministério Público na tutela individual do direito à saúde e o interesse social no exercício dessa tutela. 2.2 O Ministério Público na tutela coletiva do direito à saúde. 3. A tutela coletiva como forma de atuação prioritária do Ministério Público na defesa do Direito à saúde, alguns aspectos pragmáticos. Considerações finais. Referências.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS O direito à saúde foi reconhecido pela Constituição Federal de 1988 como “direito de todos e dever do Estado” e a sua tutela jurídica atravessou, ao longo destes 25 anos, por diferentes etapas, de acordo com a compreensão que se foi plasmando na sociedade do conteúdo específico desse direito, bem como dos instrumentos jurídicos postos ao operador do Direito para lhe dar a necessária e esperada efetividade. O Ministério Público, instituição com inequívoca vocação para a promoção da referida tutela, adequou-se também, ao longo desse período, às diferentes demandas por sua atuação, contribuindo decisivamente para a construção do sistema de saúde de que hoje dispomos e que emergiu da Constituição. O Direito à saúde segue oferecendo, entretanto, desafios à sua concretização, decorrente dos fatores dinâmicos que o conformam, entre eles, a própria evolução da ciência e das tecnologias em saúde e a evolução da organização da colaboração social, quer no âmbito das relações privadas e do mutualismo que rege o sistema de saúde suplementar; quer no âmbito da organização do Estado, como prestador de serviços públicos de saúde e como agente controlador, regulador e fomentador da atividade privada relacionada aos serviços de saúde. Um aspecto importante da atuação ministerial na tutela do direito à saúde, a merecer a atenção neste estudo, é precisamente o seu caráter social. A prestação de serviços de saúde está incontornavelmente atrelada ao problema da escassez dos recursos sanitários e à correspondente necessidade de se observar critérios éticos e jurídicos para o acesso equitativo e para a seletividade dos serviços, ou, sob outro aspecto, à necessidade de se observar critérios de alocação racional dos recursos sociais, objetivando obter dos mesmos os melhores resultados, com a maior economia de custos sociais. No escopo de contribuir para a discussão da atuação do Ministério Público na proteção da dignidade da pessoa humana, através da garantia da atenção à saúde, se propõe, no presente artigo, a análise das peculiaridades das duas vias possíveis de exercício da tutela jurídica, a individual e a coletiva, bem como as respectivas características, perspectivas e aptidão para realizar o objetivo de garantir a efetividade do acesso à Saúde como um direito de todos.

1. A tutela do direito à saúde e seu caráter plural e social O Direito tutela, em múltiplos momentos e sob diferentes aspectos, a saúde humana1, sendo que esta tutela se espraia por seus diferentes ramos. A própria disci1

Os conceitos de Saúde evoluem a partir do marco fundamental dado em 1946, na Constituição da Organização Mundial de Saúde, que define saúde como o “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade”. Definição que mantém sua atualidade,

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plina jurídica do direito à saúde adquiriu autonomia como campo de conhecimento, de estudo e de aplicação do Direito2. Enciclopedicamente, o Direito à Saúde, ou Direito Sanitário, como tem sido denominado no Brasil3, relaciona-se com todos os demais ramos do Direito, a exemplo do Direito Constitucional, em razão da afirmação do direito fundamental à saúde, em nosso caso, em face de um desenho constitucional para o Sistema Público de atenção à saúde, e em razão da disciplina da relação com a Ordem Econômica e o sistema privado de atenção à saúde; do Direito Administrativo, que fornece o arcabouço jurídico para a organização administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a disciplina do poder de polícia do Estado, e para a regulação jurídica do setor da saúde suplementar; do Direito Previdenciário, pelo liame histórico e de financiamento, com a Saúde emergindo topograficamente, em nossa Constituição, do capítulo da Seguridade Social; do Direito Civil, com o qual possui vários pontos de contato, no campo dos direitos privados da personalidade, do biodireito, na disciplina da disposição do próprio corpo, tecidos e órgãos, do sigilo profissional no campo sanitário, na tutela do interesse dos incapazes, na tutela dos direitos civis dos portadores de doenças mentais, na reprodução assistida etc.; do Direito Penal, nos delitos contra a saúde pública, ou contra a administração pública, no que ser refere ao sistema público de saúde; do Direito do Consumidor, em uma extensão em face da proteção à saúde do consumidor de produtos e serviços ou na tutela dos consumidores dos serviços de saúde e das relações assimétricas que emergem da comercialização de planos e seguros de saúde; do Direito Internacional Público e Privado, em face das normas supranacionais relacionadas à saúde, da cooperação técnica científica sanitária, da proteção patentária de medicamentos, produtos e insumos sanitários, da segurança internacional e das medidas sanitárias e fitossanitárias de fronteira, entre outros temas.

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a despeito de muitas elaborações posteriores. Uma das elaborações interessantes e atuais do conceito é o de saúde integral, definida como “a capacidade e o direito individual e coletivo de realização do potencial humano (biológico, psíquico e social) que permita a todos participar amplamente dos benefícios do desenvolvimento”. “la capacidad y el derecho individual y colectivo de realización el potencial humano (biológico, psicológico social) que permita a todos participar ampliamente de los beneficios del desarrollo.”(traduzimos) ASOCIACIÓN LATINOAMERICANA Y DEL CARIBE DE EDUCACIÓN EN SALUD PÚBLICA. I Conferencia Panamericana de Educación en Salud Pública. XVI Conferencia de ALAESP. Informe final, Rio de Janeiro, 1994. Para um conceito de Direito Sanitário, conferir, entre outros, Fernando Aith: “O Direito Sanitário é o ramo do direito que abrange o conhecimento das normas jurídicas voltadas à proteção do direito à saúde em uma sociedade. É o Direito Sanitário responsável pela regulação das ações e serviços de interesse à saúde no país, tendo como grandes objetivos a redução dos riscos de doenças e outros agravos à saúde e a garantia de acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos de saúde.” AITH, Fernando. A emergência do Direito Sanitário como um novo campo do Direito. In: ROMERO, Luiz Carlos e DELDUQUE, Maria Célia (org.). Estudos de Direito Sanitário: a produção normativa em Saúde. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 13. Health Law, entre os países de língua inglesa; Droit de la Santé, nos países francófonos; Diritto della Salute, na Itália; Derecho Sanitario, nos países de língua espanhola; Dret Sanitari, em catalão; Gesundheitretcht, na Alemanha. São algumas das designações do Direito Sanitário adotadas em outros países.

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Essa pluralidade de relações demonstra claramente o caráter abrangente do direito à saúde, cuja tutela penetra e permeia as demais disciplinas jurídicas, transitando mesmo entre o Direito Público e o Direito Privado, fato apontado por alguns autores como uma das características desse novo ramo do Direito4. A tutela da saúde pelo Direito perpassa também todas as dimensões dos Direitos Fundamentais. Como direito de primeira dimensão, o direito à saúde impõe o dever de respeito à vida e à integridade biopsíquica de toda pessoa humana, protegendo-a de toda indevida agressão5. Como direito de segunda dimensão, impõe o dever de promoção das condições mínimas que permitam a cada indivíduo o desenvolvimento pleno de suas capacidades para realização de seus projetos de vida6. Por fim, como direito de terceira dimensão, projeta-se para além da perspectiva da liberdade e igualdade individual, alcançando, como direito difuso e coletivo, proteger a vida humana digna em sociedade7, conectando o tema da saúde à pauta ambiental, ecológica, da preservação da paz e da identidade cultural, entre outras, no campo dos direitos humanos de terceira dimensão, também chamados direitos de solidariedade ou de fraternidade8.

“Resta evidente que o direito sanitário não pode ser enquadrado na decadente summa divisio entre o direito público e o privado, pois é integrado tanto por normas que seriam típicas de direito público, quanto as que regem as relações que se travam entre particulares a respeito da prestação de um determinado serviço de saúde. Tudo porque a convergência de suas normas e princípios não se dá em função da natureza dos destinatários, ou da eventual existência de um regime de direito público ou privado, mas sim da necessidade de fornecer tutela a um determinado bem jurídico que é a saúde.” RODRIGUES, Geisa de Assis. Direito Sanitário, in: NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Manual de Direitos Difusos. São Paulo: Verbatim, 2009, p 290. 5 Giovanni Berlinguer refere-se aos “direitos inerentes e inalienáveis” à “preservação da vida” “Reivindicar o direito à vida, naquela época [Declaração de Independência dos Estados Unidos da América], objetivava sobretudo protegê-la do abuso pessoal e do arbítrio legal”. BERLINGUER, Giovanni. Ética da saúde. Tradução de Shirley Morales Gonçalves. São Paulo: Hucitec, 1996, p 34. 6 “[...] es importante reconocer la amplitud que tiene este derecho y no definirlo solamente como un derecho de acceso a la asistencia sanitaria sino también a las precondiciones de la salud… en ciertos aspectos el derecho a la salud se superpone con los derechos civiles y políticos y con otros derechos económicos sociales y culturales”. CAYUSO, Suzana Graciela. El derecho a la salud: un derecho de protección y de prestación. In: FARINATI, Alicia (Coord.). Salud, derecho y equidad. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001. p 44. 7 “Nessa perspectiva, teríamos como núcleo central a ideia de qualidade de vida, [...]. Talvez possamos vê-la como um dos elementos da cidadania, como um direito à promoção da vida das pessoas, um direito de cidadania que projeta a pretensão difusa e legítima a não apenas curar/evitar a doença, mas a ter uma vida saudável, expressando uma pretensão de toda(s) a(s) sociedade(s) a um viver saudável.” MORAES, José Luis Bolzan de. O direito da saúde. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). A saúde sob os cuidados do direito. Passo Fundo: UPF, 2003. p 24. 8 “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Tem primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed., São Paulo : Editora Malheiros, 2006, p. 569. 4

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Dallari e Nunes apontam para as diferentes dimensões da saúde, para identificá-la com um bem jurídico individual, coletivo e de desenvolvimento, “assim pensado não só com base nas presentes, mas também nas futuras gerações” 9. As demandas envolvendo o tema do direito à saúde, por via de consequência, podem revestir-se, por vezes simultaneamente, das características, tanto de um interesse ou direito individual quanto de um interesse ou direito transindividual. Em relação à dimensão individual, é importante salientar a concepção dada ao direito à saúde no Brasil a partir da Constituição de 1988, que, visando à sua máxima eficácia, foi construída de forma a, por um lado, impor ao Estado e aos particulares determinados deveres de abstenção e de prestação e, por outro, reconhecer nele um direito público subjetivo à prestação concreta da atenção à saúde, exercitável diretamente pelo indivíduo em face do Estado. Considerando-se a eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais10, tais deveres são exigíveis também em face dos entes privados, em especial os que exploram serviços de saúde, declarados na Constituição como serviços de relevância pública (art. 197), submetendo-se sua disciplina, por tal motivo, a um especial controle, fiscalização e regulação pelo Poder Público. Ocorre, entretanto, que a concepção do direito subjetivo, categoria historicamente desenvolvida no âmbito do individualismo liberal, acompanhada de uma práxis voltada prioritariamente para a concepção individualista no processo judicial, pode não se revelar suficiente para a tutela da saúde como direito de segunda e terceira dimensão. O fato é que, muito embora o direito à saúde possa ser adequadamente tutelado individualmente, também é possível, com frequência, reconhecer-se, na sua tutela, o caráter de interesse difuso, coletivo estrito senso ou individual homogêneo11. A permeabilidade social às doenças e agravos à saúde, a deflagração de epidemias em sua mais larga acepção, quer as relacionadas à propagação de agentes patológicos, quer a associada à difusão de modos e estilos de vida que repercutam sobre a saúde coletiva, enfim, o fato de que a maior parte das doenças e agravos à saúde, de uma forma ou de outra, são dissemináveis na sociedade e dependente de fatores sociais, dão às ações e serviços de saúde o caráter de interesse difuso, também em face da natureza indivisível e da saúde pública e da titularidade indeterminada do direito à sua proteção e preservação. 9

DALLARI, Sueli Gandolfi e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito Sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010, p 10. 10 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p 35. 11 Um mesmo suporte fático pode ensejar o concurso sucessivo ou simultâneo de interesses e direitos de natureza coletiva e de natureza individual, originando as situações denominadas por Teori Albino Zavascki, “situações jurídicas heterogêneas”, cumprindo “ao aplicador da lei a tarefa de promover a devida adequação, especialmente no plano dos procedimentos, a fim de viabilizar a tutela jurisdicional mais apropriada para o caso”. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007, p. 46 a 48.

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O direito à saúde também pode se revestir do caráter coletivo em estrito senso, por exemplo, nos caso de doenças e agravos à saúde que acometem grupos sociais ou classes de pessoas determinadas ou determináveis. O caráter coletivo podendo decorrer das circunstâncias aptas a revelar uma relação jurídica básica a unir o grupo ou classe de pessoas. Por fim, o interesse tutelado pelo direito à saúde também pode ser, e amiúde é, caracterizado como um direito individual homogêneo, pois seu objeto é divisível e passível de tutela individual, muito embora revele, quase em regra, uma origem comum, quer decorrente, sob o ponto de vista fático, da própria etiologia ou natureza das enfermidades e agravos à saúde, a acometer populações determinadas; quer, sob o ponto de vista jurídico, da existência de uma relação comum, estabelecida, por exemplo, entre uma operadora do seguro saúde e os consumidores de seus serviços, empresa e seus funcionários etc. A distinção do caráter específico do interesse tutelado, se puramente individual, difuso, coletivo estrito senso ou individual homogêneo, como salienta Watanabe12, há de ser feita no momento de fixação do objeto litigioso no processo. Frise-se, porém, conforme explanado neste tópico, o fator que torna de extrema relevância a abordagem do direito à saúde como um direito coletivo amplo senso é o da realidade incontornável da escassez dos recursos sanitários13, contraposta ao imperativo, para uma sociedade que se pretenda livre, justa e solidária, do acesso universal e igualitário aos mesmos.

2. A atuação do Ministério Público na tutela do direito à saúde A legitimação do Ministério Público para a tutela do direito à saúde é inequívoca e se evidencia já na vontade do legislador constituinte, que forjou a expressão “serviços de relevância pública” para utilizá-lo, expressamente, em dois momentos no texto constitucional de 1988. A primeira, no art. 129, inciso II, ao atribuir ao Ministério Público a função de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, pro12 WATANABE, Kasuo. Da defesa do consumidor em juízo. Disposições gerais. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. 13 Esta escassez não está adstrita a fatores econômicos, financeiros ou orçamentários, dizendo respeito também a recursos tais como disponibilidade de tecidos e órgãos humanos, bens postos fora do comércio, ou o concurso de habilidades, destrezas e experiências humanas, dificilmente traduzíveis em termos de pecúnia. Esta escassez não está tampouco, por óbvio, adstrita ao sistema público de saúde, uma vez que a atividade privada, em especial a relacionada ao mutualismo, como é o caso dos convênios e seguros de saúde, se sujeita igualmente à referida escassez e à consequente necessidade de racionalidade econômica no uso dos recursos. Conferir GLOBEKNER, Osmir Antonio. A saúde entre o público e o privado: o desafio da alocação social dos recursos sanitários escassos. Curitiba: Juruá, 2011.

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movendo as medidas necessárias à sua garantia.” A segunda, no art. 197, ao declarar que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”. Sendo de salientar, portanto, que as ações e serviços de saúde, mesmo quando prestado por entes privados, estão submetidos a um regime especial de controle, fiscalização e regulação pelo Poder Público e sujeitos à observância dos direitos assegurados na Constituição, tendo o Ministério Público a função institucional de zelar pelo efetivo respeito desses direitos. A despeito da ampla legitimação do Ministério Público, é importante que se busque a máxima eficiência no exercício dessa tutela. É necessário que a atuação ministerial seja pautada na racionalidade, na economia de recursos e na resolutividade em relação ao objeto da tutela, quer seja, o de redução dos riscos de doenças e agravos à saúde individual e coletiva, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. A busca da equidade no acesso, erigida em princípio constitucional do Sistema de Saúde, torna necessária e urgente a concepção de instrumentos e práticas processuais que promovam um maior equilíbrio entre direitos individuais e coletivos na tutela jurisdicional da saúde, inclusive para evitar que um desigual acesso à Justiça, redunde em fator de agravamento da desigualdade no acesso aos serviços de saúde. O Ministério Público, ator privilegiado nessa seara, tem grande contribuição a dar para esse desiderato.

2.1 O Ministério Público na tutela individual do direito à saúde e o interesse social no exercício dessa tutela A jurisprudência de nossos tribunais, em especial a do Superior Tribunal de Justiça, orientou-se inequivocamente para o reconhecimento da legitimação do Ministério Público para propor a ação individual nas causas que discutam o direito e acesso às ações e serviços de saúde. Os fundamentos para essa legitimação são diversos, sendo o principal deles a natureza indisponível do direito à saúde14. 14 A título de exemplo, o seguinte aresto: “RECURSO ESPECIAL – ALÍNEAS "A" E "C" – AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA – RECURSO CONHECIDO APENAS PELA ALÍNEA "A" – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TRATAMENTO DE CÂNCER – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL – LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA DO PARQUET. [...]. O Ministério Público tem legitimidade para defesa dos direitos individuais indisponíveis, mesmo quando a ação vise à tutela de pessoa individualmente considerada (art. 127 da Constituição Federal/1988). 3. Busca-se, com efeito, tutelar os direitos à vida e à saúde de que tratam os arts. 5º, caput, e 196 da Constituição em favor de pessoa carente do medicamento para tratamento de câncer. A legitimidade ativa se afirma, não por se tratar de tutela de direitos individuais homogêneos, mas por se tratar de interesses individuais indisponíveis. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido. (STJ. RESP 710715. Segunda Turma. Rel.

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A indisponibilidade do direito à saúde autoriza mesmo a atuação proativa ministerial, sem provocação, em face de situações fáticas delicadas, a exemplo das que envolvem a internação compulsória do dependente químico15. Nesse caso específico, a despeito inclusive da controvérsia sobre a eficácia sanitária e social da medida16, o que faz ressaltar a necessidade de responsabilidade e discernimento na atuação do órgão ministerial em face do caso concreto. O manejo da Ação Civil Pública pelo Ministério Público na tutela do interesse individual indisponível está respaldado expressamente pela lei, por exemplo, no art. 6º, inciso VII, alínea “c”, da Lei Complementar nº 75/93, que estabelece a competência do Ministério Público da União (MPU) para promover o inquérito civil e a ação civil pública para “a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, à criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor” 17. Também há previsão legal expressa de legitimação do Ministério Público para a tutela dos interesses individuais, no escopo de aumentar a proteção a determinados grupos vulneráveis. É o caso da criança e do adolescente, art. 201, V, da Lei nº 8.069/1990; do idoso, art. 74, I, da Lei nº 10.741/2003; dos incapazes, art. 82, I, do Código de Processo Civil, entre outros. A propositura de ações individuais pelo Ministério Público e a própria possibilidade de discussão judicial do acesso às ações e serviços de saúde por via da Min. Humberto Martins. Julg. 06/02/2007, DJ DATA:14/02/2007 PG:00210). No mesmo sentido, temos o RE 407.902. 15 INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. Dependente químico, especialmente álcool e crack. Pedido formulado pelo Ministério Público. Infrutíferas as tentativas de recuperação de usuária de drogas há mais de 25 anos. Medida que resguarda a saúde, a integridade física e mental do dependente químico e dos seus familiares. Demanda procedente. Recurso não provido. (TJ-SP - APL: 00018184920118260374 SP 0001818-49.2011.8.26.0374, Relator: Edson Ferreira, Data de Julgamento: 26/03/2014, 12ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 28/03/2014) 16 O entendimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que o tratamento psicossocial e farmacológico da dependência química não deve ser forçado, salvo situações excepcionais, de alto riso a si ou aos outros, e o tratamento compulsório só deve ser mantido em condições e por período de tempo específicos. Nesse sentido, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) emitiu nota técnica no seguinte teor: “A priorização de medida extrema como a internação compulsória, além de estar na contramão do conhecimento científico sobre o tema, pode exacerbar as condições de vulnerabilidade e exclusão social dos usuários de drogas”. Nota Técnica da OPAS/OMS no Brasil sobre internação involuntária e compulsória de pessoas que usam drogas. Disponível em: . Acesso em: 26.mai.2015. 17 O manejo da Ação Civil Pública para tutelar o direito individual, de pessoas determinadas, a despeito da previsão legal na LC nº 75/93 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, em relação a direitos indisponíveis, como é o caso da saúde, não é livre de críticas. A questão, levada ao Supremo Tribunal Federal, teve reconhecida a sua repercussão geral no julgamento do RE 605.533, decisão assim ementada: “Possui repercussão geral a controvérsia sobre a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública com o objetivo de compelir entes federados a entregar medicamentos a pessoas necessitadas.”.

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ação individual não é isenta de crítica e de questionamento na doutrina, inclusive com propostas no sentido de sua restrição. Uma delas, apenas para exemplificar, é a desenvolvida por Luís Roberto Barroso no âmbito do dever estatal de fornecer medicamentos. O autor sugere a normatização no sentido de que a possibilidade de postular individualmente fique restrita aos medicamentos constantes de listas elaboradas pelo Poder Público e, para os medicamentos não constantes dessas listas, de que a tutela jurisdicional só possa ser exercida através de ações coletivas ou ações abstratas de controle de constitucionalidade18. De forma um pouco mais branda e no intuito de controlar os efeitos que as decisões em sede de ação individual venham a ter sobre o sistema como um todo, ou seja, o efeito que as decisões microalocativas, somadas, tenham sobre a macroalocação dos recursos em saúde, Gustavo Amaral propõe fórmula no sentido de limitar o campo das decisões judiciais, em sede de ações individuais, pela ponderação de elementos como a essencialidade da prestação cuja pretensão deduzida e a excepcionalidade da situação em face da decisão alocativa questionada19. Embora não se possa negar a existência de conflitos a serem equacionados entre os interesses individuais e coletivos em torno de determinada prestação de saúde e a necessidade de critérios de ponderação de uns e outros, entende-se que deva ser afastada a ideia de condicionar a tutela dos direitos sociais à via das ações coletivas, ou restringir o acesso do cidadão ao Poder Judiciário, em razão de sua hipossuficiência econômica e técnica, ou informacional, nas relações jurídicas que estabelecem em torno do acesso aos serviços de saúde, públicos e privados. Respeitadas as peculiaridades de uma e outra via de acesso ao judiciário, com frequência se pode verificar uma relação dialética entre as vias. Devendo em ambas estar presente a consideração da necessidade de repartição social, não apenas dos encargos e ônus incorridos no funcionamento de um sistema de saúde, mas também dos frutos e bônus desse sistema. Em outras palavras, a necessidade de organização da solidariedade social e da promoção da justiça distributiva, deve constituir-se em fundamentos para a apreciação jurisdicional e não em argumentos para o seu afastamento.

18 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf. mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude/Saude_-_judicializacao_-_Luis_Roberto_Barroso.pdf>. Acesso em: 22 mai. 2014. 19 “O Judiciário, ao apreciar demandas individuais ou coletivas relativas a pretensões positivas, deve ponderar o grau de essencialidade da pretensão, em função do mínimo existencial e a excepcionalidade da situação, que possa justificar a decisão alocativa tomada pelo Estado que tenha resultado no não atendimento da pretensão.” AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p 128.

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Em termos práticos, ordinariamente, o conhecimento das demandas em saúde que serão tuteladas pelo Ministério Público se origina da apresentação de uma pretensão individual à determinada prestação. A pretensão coletiva em saúde, mais raramente se apresenta como tal desde o princípio da postulação. De ordinário o seu reconhecimento resulta do desdobramento de demandas individualmente deduzidas. Cada demanda individual pode revelar, ou não, a necessidade de abordagem mais abrangente20, de caráter coletivo, o que poderá ser aclarado, sobretudo, na instrução do inquérito civil correspondente. Assim, eventualmente, pretensões individualmente deduzidas perante o órgão ministerial serão objeto de apreciação no âmbito da tutela coletiva, sem prejuízo de que os titulares, individualmente identificados, sejam beneficiados, direta e expressamente, nos acordos coletivamente firmados ou, no bojo do processo judicial coletivo, na execução da tutela de urgência ou da sentença de mérito que venha a reconhecer a procedência dos pedidos, em condições de igualdade, à coletividade dos usuários abrangidos pela tutela. A ação coletiva, de toda maneira, apresenta a vantagem de lograr decisões com eficácia subjetiva ampla, com provimentos voltados para o futuro, abrangendo o Sistema de Saúde como um todo e cobrindo a situação de indivíduos ou grupos ainda não acometidos, não diagnosticados ou que ainda não lograram o acesso às prestações de saúde. O fato é que as vias, individual ou coletiva, de atuação podem, reciprocamente, beneficiar-se uma da outra. E podemos mesmo considerar que a via individual, a par da coletiva, em si mesma, é apta a prover a tutela de Direitos Fundamentais Sociais, se considerarmos os instrumentos processuais que podem oportunizar a extensão da coisa julgada inter partes, ou, ao menos, ensejar o conhecimento pelo Ministério Público e demais órgãos legitimados à tutela coletiva para fins de promoção da ação coletiva correspondente21. Lembre-se, por fim, que, observadas as regras do art. 104 do Código de Defesa do Consumidor em torno dos efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes da ação coletiva em relação aos titulares das ações individuais, uma via não exclui a outra e o manejo de uma ou outra pelo Ministério Público há de considerar aspectos em torno da situação fática em concreto, bem como as vantagens que, caso a caso, cada via apresente em termos da já mencionada racionalidade, economia de recursos e resolutividade em vista do objetivo perseguido. 20 Há demandas individuais que, por sua natureza, a exemplo do que ocorre com algumas enfermidades raras ou com situações clínicas muito específicas, cujo aspecto litigioso muitas vezes se origina na sua não previsão em protocolos clínicos oficiais, precisamente por se tratar de demanda não ordinária dentro do Sistema de Saúde, desafiam a atuação do Ministério Público, embora não se possa considerá-las pretensões de interesse coletivo, se nos ativermos ao critério do número de indivíduos potencialmente atingidos pela negativa de prestação. 21 GLOBEKNER, Osmir Antonio. A Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais Sociais Através do Instrumento das Ações Individuais. Revista de Processo, n.170. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./2009.

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A parte da ponderação estritamente jurídica, o interesse da tutela da saúde na via individual pelo Ministério Público resulta das próprias imbricações entre individual e coletivo no tema da saúde, dada a já mencionada permeabilidade social às doenças e agravos à saúde e dado que a própria definição de saúde envolve sempre uma componente social. Pois, não apenas a saúde de cada indivíduo é dependente de determinantes de caráter social, como também a saúde coletiva sofre reflexos da condição de saúde dos indivíduos integrantes da comunidade considerada. Como explica Sueli Gandolfi Dallari: “ninguém pode ser individualmente responsável por sua saúde” 22. E esta realidade fática implica, entre outras consequências, que o acesso às ações e serviços de Saúde, ainda quando tutelado individualmente, repercuta sobre a coletividade, pois possui componentes sociais e apresenta componente de interesse público. É esta a razão pela qual a tutela da saúde, ainda quando exercida na via da ação individual, reveste-se de interesse para a atuação do Ministério Público.

2.2 O Ministério Público na tutela coletiva do direito à saúde A utilização do processo coletivo nas ações que discutem a prestação da atenção à saúde é um imperativo que decorre da própria natureza da prestação, vinculada como está, especialmente quando esta atenção esteja a cargo do poder público, à concepção de políticas públicas de saúde. O próprio texto constitucional determina que a saúde, direito de todos, seja garantida pelo Estado “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196 da Constituição Federal). Não poderia ser de outra forma, uma vez que a definição de saúde faz com que ela resulte de uma permanente e dinâmica construção social, envolvendo uma “cidadania ativa em que usuários/consumidores se convertem em agentes de transformação da sociedade, pela percepção de que produtos e serviços de atenção à saúde [...] integram aquela soma de recursos sociais que, por sua escassez, exigem responsabilidade em sua utilização [...] em benefício de todos” 23. A concepção do SUS, com sede constitucional, procura dar consequência ao caráter social do acesso à saúde com observância dos ditames do princípio de22 DALLARI, Sueli Gandolfi. O conteúdo do direito à saúde. COSTA, Alexandrino Bernardino et al. (Org.). O direito achado na rua: introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2008, p. 94. 23 GLOBEKNER, Osmir Antonio. A construção social do conceito de saúde e direito à saúde, in: Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, n. 34, janeiro/junho de 2011, p. 118/119. Disponível em: < http://boletimcientifico.escola.mpu.mp.br/boletins/boletim-cientifico-n-34-janeiro-junho-de-2011/a-construcao-social-do-conceito-de-saude-e-direito-a-saude>; acesso em: 25.05.2014.

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mocrático, assegurando expressamente, como diretrizes desse Sistema, a descentralização e a participação da comunidade em sua administração (art. 198, incisos I e III) 24. A consequência, como já assinalado, é a necessidade de se reconhecer a autonomia da população destinatária na discussão e definição das questões atinentes à saúde. Esta característica da saúde como bem jurídico protegido, em sua múltipla dimensão (individual, social e de cidadania), refletirá na natureza do direito decorrente, fazendo “as possibilidades do âmbito de validade deste direito ser permeada por conteúdos e orientações construídas a partir das práticas sociais.” 25, conforme salienta Felipe Dutra Asensi ao chamar a atenção para o pluralismo jurídico26 no direito à saúde. Esta tendência ao pluralismo e ao direito regulatório são fatores que também determinam a necessidade de interlocução entre os atores sociais envolvidos, do Estado e da administração pública, da sociedade civil em suas diversas formas de auto-organização e do Ministério Público, no equacionamento das questões do acesso às ações e serviços de saúde. O inquérito civil e os instrumentos da atuação extraprocessual do Ministério Público apresentam-se, nesse cenário, como o lócus adequado para promover a discussão e conciliação dos direitos individuais e coletivos em torno da prestação e acesso à atenção à saúde, pela aptidão da via para “assegurar maior efetividade possível aos direitos sob a perspectiva coletiva, com rapidez e qualidade (baixo custo, resolutividade e satisfação das partes)” 27, conforme assinala Alexandre Amaral Gavronski. O mesmo ocorrendo, no âmbito processual, com o manejo da ação civil pública, cujo rito permite amplas possibilidades de representação processual, incluindo a possibilidade de litisconsórcio ativo entre os colegitimados, conforme previsto no § 2º do art. 5º da Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985. A via processual apresenta ainda a vantagem de sua aptidão para repercutir na esfera jurídica de todos os cidadãos que possuam interesses na demanda. A sentença de procedência poderá produzir a eficácia ultra partes e erga omne, característica da via.

24 A participação da comunidade na gestão do SUS foi regulada na Lei nº 8142, de 28 de dezembro de 1990, que condiciona as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde à constituição e ao funcionamento, em cada esfera de governo, das Conferências e Conselhos de Saúde. 25 ASENSI, Felipe Dutra. Indo além da judicialização: o Ministério Público e a saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, Centro de Justiça e Sociedade, 2010, p 161/162. 26 Conferir também: FARIA, José Eduardo. Pluralismo Jurídico e Regulação: oito tendências do direito contemporâneo, in: COSTA. Alexandre Bernardino et al. (orgs.). O Direito Achado na Rua: Introdução critica ao Direito à Saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2008, p. 49 a 64. 27 GAVRONSKI, Alexandre Amaral. Técnicas Extraprocessuais de Tutela Coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p 433.

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Todas essas razões orientam o Ministério Público, no campo da tutela da saúde humana, para a atuação prioritária em sede de processo e de ações coletivas.

3. A tutela coletiva como forma de atuação prioritária do Ministério Público na defesa do Direito à saúde, alguns aspectos pragmáticos Embora, conforme já exposto, se entenda que há um papel indeclinável a ser desempenhado pelo Ministério Público na tutela do direito à saúde em sua matriz individual, em atuação de caráter principal, nos casos em que haja previsão legal, ou em caráter subsidiário, mormente nas omissões, naqueles casos em que essa missão constitucional é compartilhada com outros órgãos também legitimados 28; entende-se que a atuação prioritária do Ministério Público na defesa da saúde deva ser no campo das ações coletivas. Este posicionamento suporta-se, em grande medida, na vocação institucional do Ministério Público, podendo-se lhe acrescer, todavia, considerações pragmáticas relacionadas principalmente à racionalização da atuação institucional, diante da realidade incontornável da amplitude da demanda por esta atuação, contraposta à limitação de recursos materiais e humanos requeridos para a mesma, a que também a Instituição está sujeita. Sendo importante considerar, nesse sentido, que a atividade no exercício da tutela individual estará sempre, inclusive pelo custo de oportunidade, em concorrência com a atividade precipuamente deferida ao órgão, na tutela do mesmo direito sob o aspecto coletivo. Observe-se, ainda, o fato de que já existe uma demanda de intervenção do Ministério Público nas ações individuais que discutam o direito à saúde, mesmo quando não atua como parte, na qualidade de fiscal da lei, em razão mesmo da natureza da matéria e da inequívoca presença de interesse público, conforme sustentado nesse trabalho, com os poderes previstos nos incisos I e II do art. 83 e no § 2º do art. 499 do CPC. Outra consideração a ser feita é a de que a natureza dos interesses individuais e coletivos, embora em parte convergentes, não são sempre coincidentes. A ampla legitimação do Ministério Público pode conduzir a algumas perplexidades. Um exemplo: a frustração do interesse e da expectativa de atuação de um cidadão ou grupos de cidadãos que acorram ao MP para solicitar providências para o fornecimento de dado medicamento ou procedimento, quando o Órgão do MP, atendendo ao interesse público primário e, mesmo, a defesa do próprio Sistema de Saúde e se 28 Em especial a Defensoria Pública, também instituição essencial à função jurisdicional do Estado à qual está incumbida a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, conforme disposto no art. 134 da Constituição Federal; inclusive na defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos destes (art. 3º, inciso VIII, da Lei Complementar nº 80/1994).

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convencendo da inadequação da providência pleiteada, conclua pelo não fornecimento e sustente essa posição, na esfera extrajudicial, por exemplo, arquivando o inquérito civil, ou, mesmo, na esfera judicial, transigindo de alguma forma no pedido inicialmente formulado. A atuação descrita no parágrafo anterior resulta legítima em face da amplitude dos interesses tutelados pelo Ministério Público. Mas não é menos verdade que, para a efetividade do princípio do contraditório, o sistema jurídico-processual deveria garantir que o interesse individual ou de determinados grupos dentro da população esteja processualmente representado, quer no âmbito administrativo e extraprocessual, quer no âmbito judicial, e, neste, inclusive na via coletiva. Daí a relevância de que haja outros atores sociais e processuais, que representem essa ordem de interesses. Lembremos que, na defesa da Ordem Jurídica e no papel de custos legis, o MP, embora possa não tutelar um direito ou interesse específico em si, deverá sempre tutelar a efetiva representação processual desses direitos ou interesses, também de ordem constitucional29. Para garantir a tutela da saúde, quer sob o prisma individual, quer sobre o prisma coletivo, é importante que o órgão ministerial receba e conheça as pretensões a Direitos Fundamentais Sociais individualmente deduzidas, embora deva priorizar a adoção de providências no sentido da tutela coletiva, encaminhando a dedução da tutela individual, excetuados aqueles casos que a legitimação decorra de expressa previsão legal, para os demais órgãos que, constitucionalmente, detêm essa atribuição. Há ainda um aspecto de caráter pragmático a se analisar, especificamente em relação ao âmbito de atuação do MPU, em seus distintos ramos. A atuação jurisdicional do MPU, em razão de suas atribuições constitucionais, dá-se quase sempre em face de órgãos centrais do SUS, ou em face das Agências Nacionais de regulação do setor, fazendo com que a atuação dos órgãos ministeriais, mesmo quando verificada perante órgãos judiciários singulares de primeira instância e jurisdição territorial limitada, finde repercutindo sobre o Sistema como um todo, nacionalmente considerado. Por outro lado, a repercussão do dano, critério utilizado no processo coletivo para a fixação do órgão judiciário competente e da abrangência dos efeitos da sentença, nas questões relacionadas à atenção à saúde, revela amiúde uma extensão regional ou nacional. Esse fato, associado ao caráter nacional do Ministério Público, indicam a necessidade de coordenação entre seus órgãos e unidades administrativas, visando uma maior eficiência e economicidade da atuação, evitando-se, por exemplo, a multiplicidade de investigação com o mesmo objeto. 29 Sobre o direito fundamental à prestação jurisdicional efetiva, conferir, entre outros: MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004; ZOLLINGER, Marcia Brandão. Proteção Processual aos Direitos Fundamentais. Salvador: JusPODIVM, 2006.

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No desenho atual, não é raro identificarem-se ações propostas pelo MPU em diferentes órgãos da Justiça Federal, com objetos idênticos ou similares, cujos processos nem sempre findam reunidos em razão da conexão ou continência, em face da própria complexidade da matéria e dos pedidos formulados em juízo, do emaranhado normativo, da complexidade da estrutura do SUS em nosso sistema federativo e, em última análise, da complexidade do próprio aparato judiciário. A integração informacional que vem sendo promovida no Ministério Público e no Poder Judiciário é fator que converge para a instrumentalização da coordenação das atuações e para a racionalização da instauração de inquéritos civis e da propositura de ações civis públicas. Evitando-se a aludida multiplicidade de investigação, quando seria suficiente, respeitada a autonomia funcional, uma única investigação, capitaneada por determinado órgão ministerial, conquanto com a colaboração dos demais, na coleta de documentos, depoimentos, representações que venham a instruir aquele procedimento investigatório único. Nesse desiderato, entretanto, é fundamental a coordenação e racionalização não meramente de procedimentos, mas também dos próprios objetivos perseguidos na atuação judicial e extrajudicial, visando a contemplar a atenção à saúde na extensão correspondente, sendo incontornável, neste caso, a utilização das ações coletivas perante o Poder Judiciário, com aptidão para conferir a extensão territorial e subjetiva necessárias à conformação da equidade desejada no acesso à prestação de saúde.

Considerações finais Do exposto no presente artigo, extraímos o protagonismo do Ministério Público na garantia da saúde como um direito de todos e do acesso igualitário às ações e serviços de saúde a cargo do Estado e dos entes privados, quando, nessa condição, prestem serviços de saúde, declarados no art. 197 da Constituição Federal, serviços de relevância pública. Este protagonismo não impede ou elide a atuação coordenada com os demais atores sociais, pois a natureza do bem jurídico protegido impõe uma pluritutela, com deveres e obrigações dirigidos a todos, incluindo os próprios destinatários dos direitos correspondentes, uma vez que a participação da comunidade no processo de efetivação da atenção sanitária erige-se em diretriz constitucional do sistema de saúde como resultado da própria natureza da saúde e de seus determinantes sociais. Quer na via individual, quer na via coletiva, a atuação do Ministério Público na defesa do Direito à Saúde, segundo sua vocação constitucional, há de buscar que a litigância e a judicialização nos casos concretos seja um veículo para o avanço do Direito à Saúde na sociedade, atento aos compromissos que a socie145 

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dade e o Estado devem assumir na proteção de grupos vulneráveis e na promoção da equidade do acesso. A tutela da saúde na via coletiva, à parte de viabilizar a atuação concertada e racional dos órgãos ministeriais, garante, com mais eficiência, a democratização da tutela jurisdicional e do direito fundamental do cidadão à obtenção de provimentos jurisdicionais eficazes, econômicos e aptos a garantir o bem da vida almejado. Pelo exposto, o manejo das ações coletivas, mormente da ação civil pública, sem afastar o manejo da via da ação individual, quando esta for necessária ou exigida pelas circunstâncias do caso concreto, é a via que oferece ao Ministério Público as melhores oportunidades de realização de sua missão constitucional na tutela do direito fundamental social à saúde.

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Submissão: 09/11/2014 Aprovação: 24/11/2015

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