A universidade e a formação cultural de seus alunos

July 24, 2017 | Autor: M. Andries Nogueira | Categoria: Teacher Education, Teoría Crítica, Formação Cultural
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A UNIVERSIDADE E A FORMAÇÃO CULTURAL DE SEUS ALUNOS Monique Andries Nogueira/UFG Introdução: O presente artigo busca contribuir incrementar o debate acerca da formação cultural dos alunos universitários, refletindo sobre as questões que envolvem suas experiências estéticas e a postura da academia em relação a essa formação. Para tanto, inicio com uma breve delimitação do conceito de formação cultural utilizado neste texto. Em seguida, passo a analisar algumas contribuições de teóricos da educação a respeito da formação cultural de alunos e professores. Por fim, focalizo o papel da universidade no tocante a esta questão, apontando para a necessidade de um maior investimento da academia nesta empreitada.

1. O conceito formação cultural Cultura é um termo polissêmico, aberto a várias interpretações. Sendo assim, possibilita entendimentos diversos, ás vezes paralelos, outras vezes contraditórios. Nesse sentido, é necessário, logo de início, explicitar o viés eleito neste trabalho. Entendo cultura como o conjunto das disposições e das qualidades características do espírito cultivado, isto é, a posse de um amplo leque de conhecimentos e competências cognitivas gerais, uma capacidade de avaliação inteligente e de julgamento pessoal em matéria intelectual e artística, um senso de profundidade temporal das realizações humanas e de poder escapar do mero presente (FORQUIN, 1993, p. 11).

Cultura, nesta acepção, pode ser compreendida como um conjunto de múltiplas leituras da realidade que se constituem, através das gerações, na própria essência de humanidade. Aproxima-se, portanto, do que o senso comum nomeia “cultura geral”. Para melhor compreender o recorte feito, segue-se uma menção à gênese do termo “cultura”, assim como à sua evolução nas ciências humanas. Vindo do latim, o termo cultura originalmente significava o cuidado dispensado ao campo, ao cultivo de plantas ou animais. Segundo Cuche (1999), a evolução deste termo percorre uma trajetória singular. No começo do século XVI, ele não significa mais o estado da coisa cultivada e passa a designar a própria ação de fazê-lo. Tem-se aí a produção da

metonímia, ou seja, a substituição do sentido original da palavra por outro, valendo-se de uma relação lógica. Nesse caso, substituiu-se o efeito pela ação. Mais tarde, na segunda metade do século XVI, começa-se a utilizar outro sentido figurado – cultura como o desenvolvimento de uma faculdade humana. No entanto, essa metáfora – cultivar o espírito, assim como se cultiva a terra – só obterá reconhecimento acadêmico a partir do século XVII. Nesse período, a palavra cultura é quase sempre seguida de um complemento como "cultura das letras", explicitando a coisa cultivada. Aos poucos, o termo se consolida e acaba por ser empregado sem complementos, significando a formação ou educação do espírito. Assim, de forma curiosa, há o reverso do movimento original: passa-se de cultura como ação para cultura como estado do espírito cultivado. Esse uso então é consagrado por meio das Enciclopédias.Nesse sentido, cultura é um termo que se torna emblemático do pensamento iluminista, associado sempre às idéias de progresso, educação e razão. No século XVIII, a palavra cultura se aproxima de outra, muito utilizada no vocabulário francês: civilização. Apesar de próximos, não são sinônimos, uma vez que cultura trataria dos progressos individuais, e civilização, dos progressos coletivos (CUCHE, 1999). A noção de civilização, portanto, implicaria um processo de melhoria, de evolução da sociedade. O prestígio da língua francesa, cujo uso era traço característico das elites de então, possibilita a expansão do pensamento iluminista em toda a Europa. Assim, a evolução do termo cultura e de suas acepções é semelhante em vários países da Europa. Algumas características especiais marcam, contudo, esta evolução nos meios alemães. Lá, durante a segunda metade do século XVIII, os intelectuais, precursores dos ideais nacionalistas, mostravam-se insatisfeitos com a aristocracia, visto que para eles os príncipes dos diferentes estados alemães se ocupavam em "imitar as maneiras civilizadas (grifo meu) da corte francesa" (CUCHE, 1999, p. 25) em detrimento das artes e literatura, isto é, da cultura alemã. Nota-se, portanto, uma certa oposição entre os termos cultura e civilização, não observada no francês. Para os intelectuais alemães, cultura diz respeito ao que é autêntico e que contribui para o enriquecimento espiritual; já civilização trataria de um refinamento, um dado supérfluo. Sintetiza Cuche (1999, p.25): "cultura se opõe à civilização como a profundidade se opõe à superficialidade". Este entendimento se consagra e a noção alemã de cultura passa pela consolidação das diferenças nacionais:

cultura é, nessa concepção, o conjunto de tradições artísticas e intelectuais que marcam determinado povo. Enquanto isso, a evolução do termo na França é curiosa. De certa forma influenciada pela filosofia alemã, cultura tem sua acepção ampliada, enriquecendo-se com uma dimensão social. Passa a se referir ao coletivo, aos traços característicos de uma comunidade e não apenas ao desenvolvimento do indivíduo. Desta forma, cultura e civilização se aproximam bastante, sendo substituídas uma pela outra. Esta aproximação com a noção alemã, todavia, não apaga a diferença essencial: cultura, para os franceses, guarda ainda a idéia do pensamento universalista, enquanto que para os alemães a oposição entre cultura (nacional) e civilização (universal) se mantém. Ainda segundo Cuche, o século XX é marcado pelo aumento da rivalidade francoalemã, notadamente após a I Guerra Mundial, fazendo com que o debate ideológico entre as duas concepções de cultura se intensifique. Para esse autor, o debate vai além de questões político-geográficas: ele é dá origem às duas concepções de cultura estabelecidas nas ciências sociais contemporâneas: a particularista (alemã) e a universalista (francesa). Segundo Forquin (1993, p. 11), a relação entre essas duas concepções poderia ser descrita como “uma tensão entre uma faceta individual e uma faceta coletiva, um pólo normativo e um pólo descritivo, uma ênfase universalista e uma ênfase diferencialista”. Entre as acepções atuais, um vasto campo semântico se abre. Sempre, contudo, encontrarse-á em um lado, a acepção tradicional, individual, de herança francesa, pela qual Forquin (1993, p.11) conceitua cultura como “o conjunto das disposições e das qualidades características do espírito cultivado” e, no outro, a acepção descritiva, oriunda das ciências sociais, de herança germânica, que considera a cultura como “o conjunto dos traços característicos do modo de vida de uma sociedade, de uma comunidade ou de um grupo”. Feitas essas observações preliminares sobre a origem e evolução do termo cultura, cabe agora direcionar a reflexão para o ponto central deste estudo que é a idéia de formação cultural. Nesse sentido, é fundamental recorrer a Adorno, para quem “a formação nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva” (1996, p. 389).

O conceito de formação cultural (“Bildung”)1 é central na obra de Adorno. Para ele, a “Bildung” apresenta um duplo caráter: por um lado, aponta para a autonomia, por outro, para a adaptação (1996). De forma dialética, esses pólos ora se aproximam, ora se afastam, compondo assim a dinâmica comum a um fenômeno social relevante. Essa tensão entre uma faceta que aponta para a liberdade do sujeito (autonomia) e outra que sugere sua submissão à realidade (adaptação) é analisada por Pucci (1997, p. 90): É essa tensão constitutiva da cultura enquanto instrumental negativo e emancipador do sujeito que Adorno quer reavivar em pleno capitalismo tardio. Absolutizar um qualquer de seus pólos antagônicos e complementares significa negar-lhe a potencialidade e mesmo a realidade.

O problema é que, por vezes, esse duplo caráter é negado e a faceta da adaptação passa a ser hegemônica, trazendo com isso nefastas conseqüências para o homem: [...] nos casos em que a cultura foi entendida como conformar-se à vida real, ela destacou unilateralmente o momento da adaptação, e impediu que os homens se educassem uns aos outros (ADORNO, 1996, p. 390).

Está nessa absolutização de um dos pólos constitutivos da cultura (o da adaptação) o gérmen daquilo que Adorno classifica como semicultura (“Halbbildung”). Para Adorno, a semicultura é, de fato, uma deformação, uma estratégia burguesa para exercer o domínio. Os produtos culturais oferecidos, dos quais foi extirpada a faceta da autonomia, apontam exclusivamente para o consumo não crítico, superficial e, portanto, conformador. Na visão de Adorno, a semicultura deve ser entendida não como uma etapa preparatória à cultura, como seria de se supor pela presença do prefixo latino “semi”: uma porta semi-aberta está a um passo de se abrir totalmente. No caso da semicultura, no entanto, dá-se o inverso, pois ela é um empecilho à verdadeira formação cultural. O oposto à formação cultural seria a não-cultura, um estado em que haveria uma predisposição ao saber, “como mera ingenuidade e simples ignorância, permitia uma relação imediata com os objetos e, [...], podia elevá-los à consciência crítica” (ADORNO, 1996, p. 397). O estágio de não-cultura, portanto, poderia anteceder um estágio de cultura real (no seu duplo caráter de autonomia e adaptação), por meio de um processo efetivamente emancipador, denominado, com propriedade, formação cultural. 1

Repito aqui a esclarecedora nota de Newton Ramos-de-Oliveira na tradução da “Teoria da semicultura” (1996): “Bildung” indica, ao mesmo tempo, formação cultural e cultura. Opto por seguir autores que, em português, utilizam a seguinte equivalência: “Bildung” para formação cultural e “Halbbildung” para semicultura.

Já no caso da semicultura isso não acontece, pois suas características não apontam para um processo de crescimento, muito pelo contrário, reforçam o sentido de alienação: “a semiformação não se confina meramente ao espírito, adultera também a vida sensorial” (ADORNO, 1996, p. 400). Sobre isso, Adorno é cáustico: “o entendido e experimentado medianamente – semi-entendido e semi-experimentado – não constitui o grau elementar da formação e sim seu inimigo mortal” (1996, p. 402). Feitas essas observações, pretendo expor o recorte eleito neste texto. Compreendendo, portanto, formação cultural como a própria cultura subjetivada, passarei então a utilizar essa expressão, ao longo desse texto como o processo pelo qual o indivíduo se conecta ao mundo da cultura, mundo esse entendido como um espaço de diferentes leituras e interpretações do real, concretizado nas artes (música, teatro, dança, cinema, artes visuais) e na literatura. Por ser processo, trata-se de ação contínua; é, além disso, cumulativa. Está intrinsecamente ligado à questão da democratização do acesso aos bens culturais e, sobre isso, é preciso refletir. É sabido que no Brasil o acesso à alta cultura – ou seja, às formas mais elaboradas de Arte e Literatura – é restrito. Razões históricas, políticas e sociais contribuíram para tal quadro e ainda contribuem para a manutenção do mesmo. Desde o período colonial, quando a cultura elaborada era acessível apenas à aristocracia até o momento atual, quando as elites econômicas detêm esse acesso de forma quase exclusiva, o quadro pouco mudou. Ainda hoje, a maior parte da população brasileira se mantém distante de um patrimônio cultural consagrado universalmente. Cabe aqui, no entanto, ressaltar que a falta de familiaridade com a alta cultura não significa que o indivíduo oriundo das camadas desfavorecidas não seja, ele próprio, portador de cultura. Trata-se aqui da cultura popular, reconhecidamente válida, nem pior nem melhor que a chamada alta cultura. Essa modalidade de cultura, distintiva de determinados grupos sociais, é constituída pelo conjunto de suas crenças, valores e tradições, o que a aproxima do próprio conceito de cultura de origem germânica, isto é, particularista. De forma alguma, essa modalidade de cultura deve ser desvalorizada ou ter sua importância diminuída. Contudo, o que defendo nesse texto é a ampliação dos referenciais culturais de cada indivíduo, portanto, para além da cultura de seu próprio meio

social. Não se trata de perder ou substituir seus próprios valores, mas sim de articulá-los a todo um patrimônio que a humanidade vem construindo há séculos. Oponho-me radicalmente à idéia de que para as camadas populares bastam as expressões culturais de seu próprio meio, reservando as expressões ditas eruditas apenas para o deleite das elites. É possível afirmar que a cultura popular e a cultura mais elaborada não são antagônicas e, sim, complementares; “[...] elas têm de manter-se em sua autonomia, pois seria tão bárbaro abolir a cultura popular, onde habita a memória da injustiça, como abolir a alta cultura, onde habita a promessa de reconciliação” (ROUANET, 1999, p. 130). Sendo assim, atacar a cultura erudita em nome de uma pretensa defesa da cultura popular é negar às camadas populares o acesso a um patrimônio do qual as elites vêm usufruindo há séculos. Compreendo que a concepção de formação cultural expressa neste estudo pode vir a ser alvo de críticas. Dirão que é ingênuo pensar em formação cultural sem levar em consideração a realidade que está posta, isto é, desconhecendo-se que se vive em um período em que os limites entre as diferentes modalidades de cultura são tênues, configurando-se naquilo que Canclini (2000) tão acertadamente denomina “culturas híbridas”. Não desconheço esse fato, mas, ainda assim, considero que, mesmo havendo uma interação entre as diferentes modalidades de cultura, é preciso ter cuidado com as armadilhas que a indústria cultural apresenta; ou seja, essa interação não é tão natural assim, nem tão inócua; “adornianamente” entendendo que esses produtos não contribuem para a formação de um fruidor crítico, julgo que a semiformação não constitui uma etapa anterior à formação propriamente dita e, sim, um entrave a ela. Reconheço que os professores estão imersos em um mundo permeado pela cultura de massa; entretanto, o que entendo como fundamental para sua formação de seus alunos não se reduz a ela. A idéia de formação cultural defendida neste artigo vai, portanto, além da dicotomia cultura popular – cultura erudita. Ir além não no sentido de ignorar as diferenças, mas, sim, de promover um processo de enriquecimento pessoal que abrace todo esse campo, que inclua tanto o conhecimento das práticas culturais locais quanto das obrasprimas universais. No caso específico da formação cultural do professor e de seus alunos, o desejável é que ele consiga travar, ao longo de sua vida profissional, contato com o mundo da cultura de forma intensa e diferenciada: que vá ao cinema, que vá ao teatro, que assista a

concertos e recitais, que vá a shows e espetáculos de dança, que leia livros literários e que, com as visões de mundo e interpretações do real que essas obras de arte expõem, amplie seus próprios referenciais, alargue seus conceitos, coloque em dúvida suas convicções. Um professor assim formado teria condições de exercer uma prática docente melhor, que possibilitasse também o enriquecimento cultural de seus alunos. 2. A formação cultural de professores A revisão na literatura sobre formação de professores, produzida nesta década passada, traz muitas menções sobre a importância das atividades culturais. Farei, a partir de agora, um pequeno levantamento destas contribuições, analisando-as em seguida. Imbernón chama atenção para um tipo de conhecimento que julga ser importante para a prática reflexiva e para a formação e desenvolvimento profissional do professor: o conhecimento cultural. Para ele, o professor “deve converter-se em um agente de uma cultura de âmbito geral e de uma cultura específica de conhecimento no qual atua” (1997, p. 53). Há aqui uma conceituação importante: o autor diferencia dois tipos de cultura. Uma delas diz respeito ao corpo de conhecimentos específicos de uma área de atuação; trata-se do saber especializado, do domínio de conteúdos específicos. O outro tipo de cultura (“a cultura de âmbito geral”) vai ao encontro do objeto da presente investigação. Esta modalidade de cultura abarcaria outros campos de conhecimento, outras formas de manifestações estéticas, para além dos conteúdos específicos. Para Imbernón, seria tarefa das instituições formadoras introduzir elementos de culturização, o que significa incorporar o interesse pela cultura em suas diversas manifestações e formas artísticas. Evidentemente, se inclui aqui a necessidade de aproximar-se, para tentar entendê-la ou conhecê-la melhor, da cultura que por motivos diversos permanece à margem da cultura acadêmica, mas que influi na infância e, sobretudo, na adolescência e juventude: conhecer novos estilos e novas formas musicais, os códigos de valores, as linguagens específicas (1977, p. 58).

Sacristán, ao se referir à cultura, liga esse conceito à idéia de formação. Ressalta que essa formação cultural não deve ser compreendida como mera ilustração: a formação não é brilho subjetivado emprestado pelas obras da cultura; ela molda qualidades dinâmicas nos sujeitos. A cultura, como algo objetivado – elaborado e disponível – intervém, após ter sido subjetivada, como mecanismo reflexivo nas ações do sujeito e nas atividades sociais (1999, p. 162).

É possível afirmar que para esse autor cultura é mais que um saber específico: é uma vasta área que abarca as diferentes manifestações humanas. Por isso, quando afirma a necessidade de os professores serem cultos “para poderem dar cultura” (SACRISTÁN, 1996, p. 3), revela a concepção de professor como mediador, como aquele que possibilita a aproximação do aluno com o mundo da cultura, como aquele que será responsável pelo cultivo do espírito de seus alunos. De tal forma julga essa função primordial que assevera, categoricamente: o professor que não possui “cultura em profundidade”, não pode ensiná-la nem em níveis elementares. MC Laren, por sua vez, enxerga os professores como “trabalhadores culturais”. Nesse sentido, entende ser fundamental que os professores tragam para suas salas de aula visões diferenciadas que permitam aos alunos fazer o contraponto com a “realidade colonizada”, a fim de que esta possa ser interrogada e transformada: este é o motivo pelo qual encorajo os professores a estudarem tanto a alta cultura quanto a cultura popular, as formas culturais da ópera, música clássica, rap, música para dançar, jornais de TV, novelas, eventos esportivos e assim por diante (MCLAREN, 1997, p.306).

Ao se referirem especificamente à formação de professores, Giroux e MCLaren (1999) defendem a proposta de uma pedagogia radical, que utilize o discurso da vida cotidiana, isto é, uma pedagogia atenta aos diferentes universos dos alunos: se os educadores radicais tratarem as histórias, experiências e linguagens de diferentes grupos culturais como formas particularizadas de produção, terão menos dificuldade de entender as diferentes leituras, respostas e comportamentos que os alunos exibem, por exemplo, ao analisar determinado texto apresentado em classe (GIROUX e MC LAREN, 1999, p. 146).

Nesse caso, é possível argumentar que para serem capazes de estabelecer esta empatia com os alunos e suas diferentes produções culturais, mais uma vez uma formação cultural ampla por parte dos professores seria fundamental. E os autores vão além quando se referem a uma situação específica como a de "um texto lido em classe": a análise dos alunos pode estar levando em conta, por exemplo, um filme a que assistiram ou a letra de uma canção; nesse caso, um professor freqüentador de eventos culturais teria mais chance de se aproximar do pensamento de seus alunos, assim como de lhes oferecer outras ferramentas de análise.

Outro autor que se refere à formação cultural é Kincheloe. Segundo ele, a escola modernista ancora-se sobremaneira nos valores do passado, o que mantém os alunos “vítimas das restrições das gerações passadas” (1997, p. 50). Os estudantes, todavia, vivem em um mundo de cultura, dinâmico e veloz, o que certamente lhes possibilita outras análises. É aí que o autor enxerga o problema: ironicamente, não é a escola que encoraja tais análises, mas o mundo da música, da televisão e dos filmes. Infelizmente, os dois mundos se mantêm desconectados, na medida em que os estudantes vêem a experiência escolar como fria, concreta, sem corpo, sem espaço para o pensamento crítico e analítico (1997, p. 50).

Parece importante lembrar que, não estando também familiarizado com estas formas de expressão, o professor perde uma boa chance de se aproximar de seus alunos. Kincheloe ainda desenvolve mais suas idéias a respeito do papel das diferentes linguagens. Segundo ele, arte e literatura imaginativa oferecem uma epistemologia alternativa, uma forma de conhecer que transcende as declarativas formas de conhecimento; os textos literários, de drama, de música e de pintura fortalecem o poder dos indivíduos para ver e ouvir além do nível superficial da vista e do som (1997, p. 72).

Nesse sentido, penso que fica clara a importância das múltiplas experiências na formação do professor e na de seus alunos, pois não se vê nem se ouve “além do nível superficial da vista e do som” sem um longo e contínuo processo de aprendizado. A formação do ouvinte crítico, por exemplo, processo gradual e rico, é de vital importância para aquele que se dedica a trabalhar com crianças e jovens. No Brasil, entretanto, isso ainda soa como algo irrelevante, pois a música é vista como um pequeno adorno nos raros cursos de formação de professores nos quais está presente. Garcia aponta para a necessidade de se ampliarem as possibilidades de produção do conhecimento mediante uma atuação mais diversificada por parte do professor. Que este ofereça aos alunos múltiplas opções: ao pretender educar, educar (o que não significa domesticar) o olho, o ouvido, o tato, o olfato e a gustação, formas de conhecimento do mundo e de si mesmo, pois só assim lhes será oferecida a possibilidade de diversidade do pensamento, de diversidade de linguagens (GARCIA, 2000, p. 12).

Kramer também trata freqüentemente da questão cultural na atividade docente. Em boa parte de sua obra, são encontradas referências ao papel das diferentes linguagens no processo de construção do conhecimento da criança e menções ao enriquecimento do trabalho docente ao se lançar mão das contribuições do mundo da literatura e das artes. Segundo esta autora, o professor fica preso ao conhecimento formal e ao conteúdo que supostamente deva ser ensinado. Além de perceber na arte elementos fundamentais para a Educação, Kramer lembra da riqueza do mundo da literatura e das experiências culturais na vida do professor. Para ela, “a formação cultural de professores é parte do processo de construção da cidadania, é direito de todos se considerarmos que todos – crianças e adultos – somos indivíduos sociais, sujeitos históricos, cidadãos e cidadãs produzidos na cultura e produtores de cultura” (1998, p. 21). Diferentemente dos outros autores, ela, além de enfatizar a questão da importância desta formação, avança ao defender uma política de formação que assegure a todos os professores o acesso a cinemas, centros de cultura, museus, revistas (1998). Essas foram, em síntese, algumas contribuições de autores que acenam em suas obras para a importância das experiências estéticas, adquiridas por meio das Artes e da Literatura, no intuito de formar profissionais mais articulados e sensíveis, capazes de oferecer a seus alunos diversas possibilidades de se conceber a realidade. Vale ressatar que embora a formação cultural seja um tema que goze de aceitação por parte da academia, que seja considerado relevante aos olhos de alguns dos mais influentes educadores da última década, ao mesmo tempo, não tem sido equacionado com vigor ou, pelo menos, não tem sido reconhecido no âmbito das políticas de formação, nem no das reformas curriculares. 3. Políticas culturais e formação Segundo Teixeira Coelho, política cultural seria a ciência da organização das estruturas culturais, [mas é entendida habitualmente como um] programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas (1999, p. 293).

Sendo assim, pode ser compreendida como o conjunto das iniciativas que visa a promover a produção e o acesso à cultura, reconhecida como patrimônio coletivo a ser

socializado. Essas iniciativas podem se dar sob duas formas: em nível organizacional, ou seja, mediante normas que regem as relações entre os sujeitos e os produtos culturais; ou em nível direto, isto é, ações culturais propriamente ditas. Lembra ainda o que o conceito de política cultural “apresenta-se, com freqüência, sob uma forma altamente ideologizada” (TEIXEIRA COELHO, 1999, p. 293) e isso nos parece claro. Sendo a cultura entendida como elemento primordial da sociedade, a idéia de política cultural tanto pode ser apropriada pelo Estado (ou por outros tipos de financiadores) como forma de legitimação de sua atuação política, quanto pode servir de base para agentes culturais que objetivem transformações sociais de maior envergadura. Seja em qualquer uma dessas vertentes, o fato é que o conceito de política cultural guarda claros contornos ideológicos. Nesse sentido, é também possível analisar as políticas culturais com base em suas motivações, que podem ser variadas do ponto de vista de sua origem. Há motivações baseadas na idéia de difusão cultural (“levar cultura para o povo”) e outras que se ancoram nas chamadas “demandas sociais”. Ainda segundo Teixeira Coelho, na prática essas políticas se equivalem, pois ambas “[...] se desenham a partir de uma morfologia da dinâmica social que é vista como claudicante, devendo ser assim complementada ou suplementada” (1999, p. 294). Como conseqüência dessa concepção, claros contornos paternalistas e intervencionistas acabam por se apresentar. Mais recentemente, essas modalidades de política cultural vêm sendo forçadas a enfrentar novas circunstâncias, com base nas transformações advindas do processo de globalização, de forma que precisam ser revistas em virtude das novas relações surgidas na sociedade contemporânea. Entre os motivos que forçam essa revisão, destaca-se aquele que pondera sobre a incapacidade dos Estados contemporâneos (principalmente em se tratando de países periféricos) de ocupar todas as frentes de promoção cultural, dadas as inúmeras outras solicitações urgentes de caráter econômico e/ou social. Sendo assim, é necessário estabelecer parcerias com outros agentes, inclusive da iniciativa privada; vale, no entanto, ressaltar que, ainda assim, cabe ao Estado garantir que as modalidades de cultura não sejam enclausuradas a fim de atender exclusivamente à dinâmica do mercado, isto é, o Estado não deve abrir mão de seu papel fiscalizador, no sentido de garantir a pluralidade na produção e a democratização no acesso.

Voltando às matrizes ideológicas das políticas culturais, é possível afirmar que há basicamente três formas de atuação: políticas de dirigismo cultural, políticas de liberalismo cultural e, por fim, políticas de democratização cultural (TEIXEIRA COELHO, 1999). A primeira delas é posta em prática geralmente por Estados totalitários e guarda características tradicionalistas e populistas. Freqüentemente enfatiza a preservação do folclore como patrimônio nacional e pouco ou nenhum apoio é dado às manifestações de vanguarda ou à chamada cultura erudita. Isto ocorre pelo fato de serem essas práticas identificadas como estranhas às ditas raízes nacionais. São exemplos dessa modalidade de política cultural, a atuação do Estado brasileiro em períodos como o do Estado Novo e o da ditadura militar pós 1964. O segundo tipo – o das políticas de liberalismo cultural – parece ser o mais em voga. Por um lado, avança em relação ao primeiro por não defender modelos únicos de padrões culturais nem o controle total por parte do Estado. Mas, por outro lado, ancora-se numa espécie de mecenato, ficando sempre à mercê da iniciativa privada e suas fundações. O mais grave é que objetivando sua melhor implantação, essa modalidade de política cultural vem sempre “precedida por uma vasta operação de liquidação dos órgãos públicos voltados para a cultura, como ocorreu no Brasil sob o governo Collor, e de privatização da cultura” (TEIXEIRA COELHO, 1999, p. 299). Obviamente, o perigo é que a cultura, estando apenas regida para atender às leis de mercado, reduza-se a simples instrumento de divulgação da imagem de seus patrocinadores. É uma questão por demais delicada e complexa e não tenho a pretensão de esgotá-la neste artigo; no entanto, cabe ressaltar que por mais que as iniciativas do grande capital se nos apresentem como desinteressadas e comprometidas com os ideais de promoção cultural, é preciso manter a vigilância. O terceiro tipo – o das políticas de democratização cultural – parece-me o mais adequado ao projeto de formação cultural que defendo neste estudo. Considerando a cultura como “força social de interesse coletivo que não pode ficar à mercê das disposições ocasionais do mercado” (TEIXEIRA COELHO, 1999, p. 299), com essas políticas procurase democratizar o acesso à cultura, sem privilegiar modelos ou grupos. Geralmente é patrocinado por entidades públicas ou semipúblicas; pode, também, fazer parte do projeto de organizações não-governamentais de caráter progressista ou entidades ligadas a partidos políticos populares-democráticos. Teixeira Coelho adverte que

embora vise difundir todas as formas de cultura, alguns consideram que os valores institucionais deste modelo, derivados das classes habitualmente no poder, acabam forçando o privilégio às formas de cultura superior (1999, p. 299).

Quanto a esse perigo – o de privilegiar as formas elaboradas de cultura -, julgo ser necessária outra linha de reflexão, o que farei em seguida. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que é uma preocupação procedente e que esse perigo pode mesmo ocorrer. Ora, é mesmo fundamental que exista o cuidado de garantir a liberdade às diversas modalidades de cultura, quanto a isso não há dúvida. Também não deve haver dúvida quanto ao compromisso desses agentes em relação à cultura popular e suas manifestações. Não se pode esperar, porém, que esses agentes reneguem sua própria formação e abracem unicamente a cultura dita popular, o que acabaria por tornar suas ações muito semelhantes às do primeiro grupo, isto é, as de caráter populista e tradicionalista, oriundas dos Estados totalitários. O fato de freqüentemente patrocinarem produções da chamada cultura erudita me parece extremamente adequado a um projeto de ampliação dos referenciais culturais da população. Recorrendo a Rouanet (1999), lembro que não se pode deixar de oferecer às camadas populares o acesso às formas mais elaboradas de cultura, sob pena de aí, sim, se estar praticando o elitismo cultural; ou seja, confinar as camadas populares a guetos culturais, o que em nada contribui para seu enriquecimento. É preciso, portanto, reconhecer que o equilíbrio entre a valorização dos padrões populares e o apoio à cultural erudita é difícil de ser alcançado de forma absoluta: estará sempre sendo mais uma meta que uma conquista real.

4. Universidade e formação cultural Volto agora minha análise para a universidade. Tentarei refletir sobre a maneira pela qual essa instituição tem manifestado suas intenções em relação à política cultural. A universidade brasileira, de forma geral, reforça a concepção que aponta para uma supervalorização técnica, em detrimento de tudo que envolva subjetividade, sensibilidade e criação cultural. Os alunos chegam à universidade marcados por uma estrutura escolar direcionada para o vestibular, que freqüentemente menospreza os valores culturais e artísticos; já a universidade pouco contribui para reverter esse quadro. Seus currículos são extremamente fechados, centrados em si mesmos, havendo raras intercessões entre diferentes áreas do saber. Em geral, o aluno de determinado curso só mantém contato com

professores de sua área; mesmo quando há a possibilidade de escolha de matérias optativas, ela recai, quase sempre, sobre disciplinas extras ministradas na própria unidade de origem, ou no máximo, em áreas afins. Até mesmo nos cursos da área de Artes, muitas vezes o aluno só freqüenta disciplinas de sua linguagem específica: o aluno de Música não tem contato com as Artes Visuais, o de Teatro desconhece história da música e por aí vai. Que dizer então dos cursos de Pedagogia, responsáveis pela formação de grande parte dos educadores? Em geral, seus alunos ficam confinados às faculdades e centros de educação, marcados ainda por um cientificismo ingênuo, sempre voltado para a busca de uma equivalência com os modelos das ciências naturais, ainda que no discurso, os critiquem. Nesse quadro, a questão da formação cultural é sempre periférica, e assim, as possibilidades de uma saber mais abrangente, que rompa com essa visão tecnocêntrica, tornam-se cada vez mais raras. Uma vez que, nos cursos de graduação, as possibilidades são pequenas, resta direcionar o olhar para as políticas culturais que possam ter origem nos órgãos responsáveis pela extensão e cultura na universidade. Na maior parte das universidades brasileiras a questão da formação cultural dos alunos passa por iniciativas promovidas pelas próreitorias de extensão e cultura e similares. Restringem-se, em geral, à promoção de eventos isolados, como por exemplo, aberturas de seminários e encontros científicos. Por vezes, a universidade apóia iniciativas de outras entidades, fazendo parte de eventos já consagrados nos municípios. São iniciativas louváveis, sem dúvida, mas esse conjunto de medidas isoladas está longe do que se poderia denominar de uma política cultural, no sentido de uma articulação de acontecimentos que vise à difusão e à produção cultural no âmbito da universidade. No tocante à formação cultural propriamente dita, as deficiências são incontestes. Os eventos promovidos não mobilizam o conjunto dos estudantes: apenas os já previamente envolvidos comparecem, ou seja, os que já têm uma formação cultural, ainda que incipiente. A grande maioria permanece alheia a toda programação que fuja de seus interesses mais imediatos. Conseqüentemente, as iniciativas de promoção cultural, por mais que cresçam em número, não atingem o objetivo de ampliar sua audiência, uma vez que só envolvem os que já freqüentam espaços culturais fora do campus. Creio ser necessária uma atuação conjunta dos órgãos responsáveis pela graduação e pela extensão, no sentido de

trabalhar também no interior dos cursos e seus fechados currículos. Seria preciso ainda, pelo menos em um primeiro momento, que o calendário cultural fizesse parte dos interesses dos envolvidos na graduação, de forma a levar o maior número possível de alunos aos eventos. Além disso, que se estabelecessem medidas que propiciassem um processo de aproximação gradual e intensa com a cultura, tornando possível a esses alunos a apropriação dos códigos estéticos, de forma que os habilitasse a fruir os eventos culturais com propriedade. Em outras palavras: medidas que apontassem para a educação estética dos estudantes, para a efetiva formação de um público. Nesse sentido, entendo que iniciativas que rompam com esse quadro e assumam a parcela de responsabilidade das instituições formadoras na ampliação do universo cultural de seus alunos sejam fundamentais e devam constituir material de reflexão, a fim de que seus alcances e limitações sejam compreendidos.

Bibliografia: 1.

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