A Universidade e a Formação de Professores

July 9, 2017 | Autor: F. Ferreira | Categoria: Teacher Education, University
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A UNIVERSIDADE E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Fernando Ilídio Ferreira Instituto de Estudos da Criança UNIVERSIDADE DO MINHO PORTUGAL [email protected]

Com base em trabalhos de investigação, de natureza teórica e empírica, que temos vindo a desenvolver nos últimos anos, sustenta-se, nesta comunicação, que o ambiente de reforma permanente em que as escolas e os professores têm estado mergulhados, desde os anos 80 – período em que os valores do gerencialismo neoliberal impregnaram as subjectividades dos professores e de outros actores educativos – tem gerado uma “azáfama de mudança” que não tem sido propícia à reflexão, à experimentação e à descoberta de alternativas à forma escolar tradicional e que, pelo contrário, tem alimentado uma mentalidade expectante e uma lógica de sobrevivência que se tem traduzido numa maior preocupação com a encenação, o aparato e o faz-deconta do que com os processos educativos concretos. Se bem que em termos teóricos a formação de professores seja considerada um campo privilegiado para o desenvolvimento de práticas profissionais reflexivas, na realidade as entidades que a organizam tendem a acentuar essa azáfama em vez de a contrariarem. Defende-se, por isso, que o papel das instituições de ensino superior que têm responsabilidades na formação de professores, como é o caso das universidades, é o de promoverem um pensamento reflexivo e crítico mais comprometido com a acção concreta das escolas do que com os “temas do momento” das reformas educativas, de modo a que os professores se sintam autores de processos de mudança e não apenas seus destinatários. Mas acrescenta-se que não basta às universidades e aos seus docentes e investigadores promoverem um pensamento reflexivo e crítico sobre as práticas das escolas e dos professores dos “outros” níveis de ensino. É necessário, também, que se

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tornem reflexivos e críticos sobre as suas próprias práticas – organizacionais, de formação, de investigação e de ligação à comunidade. A impregnação dos valores do gerencialismo neoliberal nas subjectividades dos professores A partir dos anos 80, as ideias descentralizadoras e os apelos aos dinamismos locais surgiram em resposta às críticas ao centralismo e à burocratização do Estado, à reprodução das desigualdades e a outras críticas que durante os anos 60 e 70 tiveram como alvo as instituições em geral e, em particular, a Escola. O “local” tornou-se, assim, o horizonte privilegiado das políticas e da acção educativas. Porém, a tão proclamada devolução de poderes ao local não se tem traduzido, de forma linear, como é entendido e sugerido frequentemente, num reforço do princípio da comunidade em detrimento dos princípios do Estado e do mercado. O mesmo fenómeno abriu caminho à propagação das políticas neoliberais e, se bem que tenham proliferado, desde então, os apelos à autonomia, à participação, às parcerias, à democracia e à cidadania locais, isso acontece num contexto dominado por uma vaga de reformas educativas assentes em lógicas de compatibilização problemática, como a democratização, a modernização e o neoliberalismo. Embora a visibilidade das políticas e reformas neoliberais não seja a mesma em todos os países, não se pode ignorar que os valores do gerencialismo neoliberal se têm difundido, ora de forma mais explícita, ora de maneira mais subterrânea, no plano das subjectividades dos professores e de outros actores educativos. Com efeito, desde os anos 80 que os valores mercantis da competição e do lucro invadiram não apenas os sectores económico e empresarial, como outros domínios da vida social. O próprio sector da administração pública foi influenciado por estes valores, difundindo-se a ideia de que ele é ineficiente e de que a lógica de mercado e o modelo de funcionamento da empresa constituem a chave da sua modernização e eficácia. É neste contexto, por exemplo, que se observam as tendências de privatização dos sectores da saúde e da segurança social e que surge o interesse na “profissionalização” da gestão das escolas. No campo educativo, a lógica neoliberal tem sido caracterizada através de um conjunto de noções que fazem apelo à “eficiência”, à “eficácia”, à “excelência”, à “qualidade”, à “escolha da escola pelos pais”, revelando uma focalização das políticas educativas, designadamente das políticas de autonomia e gestão local da escola, nos direitos do consumidor mais do que nos direitos do cidadão (Whitty, 1996). Considerando, porém, que no campo da educação e das políticas sociais em geral as forças de mercado continuam a ser mediadas pelo Estado, alguns autores preferem falar, neste caso, não num mercado propriamente dito, mas num “quase-mercado”. Geoff Whitty argumenta que, num sentido estritamente económico, estas políticas de quasemercado não podem ser vistas como uma privatização do sistema educativo, mas requerem que as instituições do sector público operem mais como instituições do sector privado e que as famílias tratem as decisões educativas de uma forma similar a outras decisões acerca do mundo privado. Os analistas têm-se pronunciado de diferentes maneiras sobre este fenómeno, considerando a maior ou menor intensidade com que a lógica neoliberal se manifesta, tratando-se de países centrais, periféricos ou semiperiféricos, como é o caso de Portugal. Tomando como referência o período que vai de meados da década de 80 a meados da década de 90, Licínio Lima e Almerindo Afonso (2002) argumentam que os vectores da

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democratização, da modernização e do neoliberalismo se manifestaram de um modo particular, no nosso país, ao longo desse período, considerando que as reformas neoliberais tiveram uma expressão híbrida, mitigada, ou, até, em alguns casos, em contraciclo, distinguindo-se em muitos aspectos da agenda emergente no contexto internacional. Numa investigação empírica, Almerindo Afonso (1998) conclui que, nesse período, apesar de se encontrarem vectores do gerencialismo neoliberal ao nível mais geral da definição das políticas públicas, eles não se traduziram de forma tão clara em termos de orientações concretas para a gestão das escolas. Considera por isso que não é possível falar, no caso do nosso país, de uma valorização mais do que retórica da ideologia do mercado no domínio da educação pública, tratando-se antes de um “neoliberalismo educacional mitigado”. No mesmo sentido, Manuel Sarmento (1999) sustenta que algumas das medidas mais marcantes das políticas neoliberais do mundo anglosaxónico não têm expressão visível no caso português senão em termos simbólicos. Relativamente ao nosso país, este autor fala de um “tempo em contra-ciclo”, correspondente ao processo escolar pós-25 de Abril, tendo em conta que este período é marcado por fenómenos aparentemente contraditórios: a expansão da escola básica é norteada pelos princípios da democratização e da igualdade de oportunidades, mas realiza-se num momento em que noutros países se verificava já uma contracção do financiamento dos sistemas educativos e se afirmava a nível global a ideologia neoliberal. Referindo-se especificamente às políticas de gestão local da escola e ao facto de muitas vezes elas serem consideradas como uma expressão da lógica neoliberal no campo educativo, João Barroso (1999) é também de opinião de que elas assumem características muito diferentes consoante os contextos políticos dos diferentes países e os seus antecedentes históricos e culturais. Nesse sentido, explica que as reformas neoliberais são essencialmente de dois tipos. No primeiro tipo inserem-se países como a Austrália, o Reino Unido, a Nova Zelândia, que instituíram, entre finais dos anos 80 e meados dos anos 90, um sistema de gestão das escolas designado por “self-management school” ou “local management school”, sendo exemplos deste sistema as “grantmaintained schools”, no Reino Unido, e as “school based management” e, mais recentemente (a partir do início dos anos 90), as Charter Schools, nos EUA. No segundo tipo inserem-se países como Portugal, Espanha e a França, nos quais as políticas de gestão local da escola fazem parte de processos mais amplos de descentralização. Tendo em conta estas particularidades, este autor lembra que é necessário usar de alguma prudência na utilização e transferência das análises das políticas neoliberais, pois o que é específico destas políticas e da construção de um mercado da educação não é o “reforço da autonomia da escola” ou o princípio da “gestão centrada na escola” mas a sua “combinação explosiva” com a livre escolha da escola pelos pais e da concorrência entre escolas induzida pelo sistema de financiamento por aluno. Outros analistas têm vindo, no entanto, a chamar a atenção para o facto de que os valores neoliberais, tal como outros elementos, circulam hoje à escala mundial, entre os sectores económico, social, político e cultural, para o que muito contribui a grande mobilidade das pessoas e da informação, assegurada pelas tecnologias da informação e da comunicação, de revistas e livros, de conferências e encontros, de associações profissionais e científicas, de especialistas e de organizações internacionais. Estes elementos fazem parte de uma “circulação ‘internacional’ de ideias sobre práticas apropriadas e interpretações da mudança escolar” (Popkewitz, 2000: 48), operando uma reorientação da educação no sentido de uma sociedade mais global do que nacional

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(Meyer, 2000). John Meyer sustenta que, através de isomorfismos, a sociedade global fornece modelos que influenciam bastante os sistemas educativos nacionais, mas acrescenta que se existe uma cultura educacional global e um emergente sistema educativo global eles não podem ser concebidos como fruto apenas de uma espécie de aproximação de práticas. Há certamente uma influência global generalizada, mas, mais do que o domínio de uns países sobre outros, o sistema educativo globalizado envolve uma densa estrutura de associações e profissões educacionais e sistemas de prestígio chamando a atenção para “histórias educacionais de sucesso”. As reformas neoliberais correspondem, pois, a um fenómeno de alcance global, que se espalhou por várias partes do mundo e invadiu os diversos sectores da vida social. Estamos perante um fenómeno que, não obstante as especificidades contextuais, se propaga através de um “espírito gestionário” (Ogien, 1995). Conquanto se tenha entrado, a partir dos anos 80, num “universo de justificação múltipla” (Derouet, 1992), em que a escola deixa de ser encarada exclusivamente na perspectiva do Estado e passa a ser entendida como uma “ordem local” resultante da combinação de diversas lógicas – estatal, empresarial, mercantil, comunitária –, a lógica neoliberal encontra maior difusão. Assim, embora estejamos de acordo com os argumentos de que esta lógica não atingiu a mesma expressão em todos os países, pretendemos aqui chamar a atenção para os seus efeitos profundos, sobretudo no plano das subjectividades, tendo em conta que ela se manifesta quer através de um “neo-liberalismo doutrinário”, como é mais o caso da Grã-Bretanha, quer através de um “neo-liberalismo gestionário”, como é o caso de outros países da Europa (Jobert, 1994). O gerencialismo neoliberal não é, pois, um fenómeno circunscrito a um determinado conjunto de países. Há que ter em conta as formas de penetração difusa da orientação neoliberal e a sua difusão subterrânea à escala local (Ball e Van Zanten, 1998). O processo nacional de elaboração de políticas é um processo de bricolage e, como tal, as reformas e as políticas neoliberais, sejam elas entendidas como manifestações “objectivas” ou como tecnologias de circulação e difusão de ideias e de valores e de impregnação das subjectividades dos professores e de outros actores educativos, devem ser compreendidas como o produto de múltiplas influências e interdependências (Ball, 1994). Como sustenta Stephen Ball, as tecnologias políticas de reforma educacional não são apenas veículos para a mudança técnica e estrutural; são também mecanismos que contribuem para a mudança das subjectividades, das identidades, dos valores (Ball, 2002). Este autor lembra que sob a aparência de liberdade que é criada pela retórica da devolução de poderes, da flexibilidade e da autonomia, emergem novas formas de controlo que penetram as subjectividades dos professores. Por exemplo, as tecnologias políticas de reforma educativa, das quais o autor destaca o mercado, o gerencialismo e, particularmente, a “performatividade”, põem em causa a colegialidade e a autenticidade dos professores. A nova cultura da performatividade competitiva gera sentimentos de culpa, incerteza e insegurança ontológica: “estarei a trabalhar bem?”, “estarei a trabalhar o suficiente?”, “estarei a trabalhar no sentido certo?”, “será isto que querem que eu faça?”. Como explica Stephen Ball, esta insegurança tende a gerar uma “fantasia encenada” para ser vista e avaliada; o espectáculo e a opacidade tendem a sobrepor-se à transparência e à autenticidade. Assim, as políticas neoliberais, de forma ora mais explícita ou implícita, ora mais objectiva ou subjectiva, veiculam mensagens aos actores educativos (professores, pais, alunos, gestores escolares) do que é mais e menos valorizado. Estes

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são encorajados a entrar em competição uns com os outros, mais do que a cooperar, de modo a assegurarem a sua sobrevivência institucional e profissional. O ambiente de reforma permanente das duas últimas décadas: a azáfama de mudança A partir dos anos 80 os professores têm estado envolvidos num ambiente de reforma permanente. Os temas das reformas educativas – a autonomia e gestão da escola, a reorganização curricular, etc. – têm gerado no seio dos professores a ideia de que as mudanças lhes são exteriores ou de que lhes compete apenas o papel de actores secundários. Em consequência da referida impregnação dos valores do mercado e do gerencialismo nas subjectividades dos professores, tem-se difundido a ideia de que as mudanças educativas passam essencialmente pela “gestão”. Tem-se gerado a ilusão de que a mudança educativa é um fenómeno da exclusiva responsabilidade dos “administradores” e dos “gestores”, em relação ao qual os professores que trabalham quotidianamente com os alunos parecem considerar-se alheios ou apenas actores secundários. Se bem que as preocupações com a gestão da escola, por exemplo, já viessem da década anterior, designadamente, em torno da ideia de “gestão democrática”, é no contexto da “reforma educativa” iniciada em Portugal em meados da década de 80 que se instala no debate educacional – em que participam académicos e especialistas, políticos e administradores, professores e sindicalistas – o conceito de “gestão”: o “novo modelo de gestão”, o “regime de autonomia e gestão”, a “gestão local da escola”, a gestão da rede escolar, a gestão curricular, a gestão pedagógica, a gestão de recursos. As ideias de que “na escola todos somos gestores”, de que “o professor VIP é o gestor” e de que as “boas práticas” são as práticas de gestão povoam hoje o imaginário docente. Mesmo falando-se muito, actualmente, em “autonomia”, é a gestão que tem estado no centro das preocupações das escolas e dos agrupamentos de escolas, designadamente com a instalação de órgãos, com a elaboração de documentos escritos, etc. A lógica de reforma e a ideia a ela associada de que a essência da actividade educativa é a gestão têm produzido diversos efeitos ao nível das representações dos professores sobre o seu trabalho. Um dos principais efeitos foi ter gerado e/ou acentuado o sentimento de que as mudanças na esfera do próprio trabalho pedagógico lhes são exteriores. Assim, o ambiente de reforma permanente em que as escolas têm estado mergulhadas tem sido mais favorável à emergência de um pensamento fatalista e resignado do que à acção autónoma e reflexiva. A retórica da eficiência, da eficácia, da qualidade e da excelência recorre a um tom pragmático, apelativo e mobilizador, criando uma “azáfama de mudança” e não deixando tempo aos actores locais para a reflexão sobre o que realmente é necessário mudar. Como sustenta J. A. Correia (2000), a “escola atarefada” perde, assim, a sua capacidade de formular perguntas e definir problemáticas e, ao mesmo tempo que afirma ter-se libertado do peso da burocracia estatal para se tornar ágil, leve e flexível, parece também ter-se libertado do peso das suas convicções e dos seus princípios. Trata-se, segundo este autor, de um excesso de activismo incontrolado e conformado e um défice de reflexividade e de inconformidade. Para compreendermos mais profundamente estes fenómenos é necessário ter em conta o contexto de forte questionamento da legitimidade estatal que ocorreu no período dos anos 60/70 e o consequente desenvolvimento de estratégias de relegitimação por parte do Estado e da Administração, a partir dos anos 80, nomeadamente, através dos

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apelos aos dinamismos locais. Vendo a sua autoridade tradicional posta em causa, o Estado e a Administração encontraram outras modalidades de intervenção, de modo a recuperarem a legitimidade e a confiança perdidas. Utilizando uma linguagem eufemística, agora afirmam que não impõem; dizem, antes, que sugerem, recomendam, propõem e monitorizam. Mas isso não significa que a sua intervenção se tenha tornado menos constrangedora para os contextos e actores locais. Com as políticas de descentralização, autonomia e gestão local da escola, passaram a dispor de mais “tempo livre” para invadirem as escolas com as suas “propostas” de inovação, criando, nos contextos da acção local, um verdadeiro corrupio. Por exemplo, no âmbito das políticas de autonomia e de gestão da escola e da reorganização curricular do ensino básico, o “projecto” transformou-se numa espécie de palavra mágica. Porém, como sustenta Nicolas-Le Strat (1996), a forma-projecto procura “domesticar o futuro”, multiplicando os momentos em que a vida se subordina ao cerimonial da formalização projectiva. Este autor considera o fenómeno preocupante, na medida em que esta formalização é feita em detrimento de outros princípios de acção, designadamente dos que se desenvolvem de um modo menos linear, intencional e estratégico e que não se sujeitam imediatamente aos imperativos da racionalidade instrumental. A permanente intencionalidade do “projecto” e, principalmente, quando ele é entendido, numa lógica burocrática, como um mero documento escrito, retira à experiência de cada um a aventura, a deriva, as hesitações e as transgressões, que configuram a autenticidade. Ora, como temos vindo a observar no nosso país, no âmbito das referidas políticas, os professores viram-se obrigados a elaborar o “projecto educativo de escola”, o “projecto curricular de escola”, o “projecto curricular de turma”, e outros, mas, em grande medida, assumindo esse trabalho como um processo administrativo de elaboração de documentos escritos exigidos pela Administração e pela Inspecção. Do mesmo modo, no âmbito da reorganização curricular, as novas áreas – a Área de Projecto, a Formação Cívica e o Estudo Acompanhado – tendem a ser encaradas como “modas”, como mais uma disciplina a leccionar, como uma forma de intensificação do seu trabalho. O ambiente de reforma permanente das duas últimas décadas não tem sido, portanto, favorável à reflexão, à experimentação e à descoberta de alternativas à forma escolar tradicional, na medida em que a “azáfama de mudança” e o “alvoroço projectocrático” em que as escolas e os professores têm estado mergulhados têm gerado uma mentalidade expectante e uma lógica de sobrevivência que se traduz numa maior preocupação com a encenação, o aparato e o faz-de-conta do que com os processos educativos concretos. Tal clima não tem deixado tempo para a reflexão sobre questões que possam fazer a própria agenda educativa das escolas e dos actores locais. Estes andam cada vez mais atarefados, desinteressando-se, ou vendo-se impossibilitados, muitas vezes, de exercerem uma atitude reflexiva e crítica sobre os constrangimentos e as oportunidades da sua acção profissional. Os “temas do momento” das reformas educativas tendem, assim, a ser encarados numa lógica cumulativa e de exterioridade relativamente aos processos de mudança e não como uma possibilidade de transformação do próprio trabalho quotidiano. As instituições de ensino superior e a formação de professores Em Portugal, a formação de professores teve grandes desenvolvimentos nas três últimas décadas. É de salientar o papel desempenhado pelas novas universidades criadas nos anos 70, que, através de um “modelo integrado” de formação, passaram a formar e a

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certificar os professores. A partir de meados dos anos 80, o governo determinou que toda a formação de professores fosse de nível superior, incluindo a formação de professores do ensino primário e de educadores de infância. Na década de 90, a formação inicial destes docentes, que era antes de três anos, foi alargada para quatro, passando para o nível de licenciatura como já acontecia com a formação dos professores dos outros níveis de ensino. Operou-se, assim, neste período, um fenómeno de “universitarização” e de “academização” da formação de professores (Formosinho, 2002). Segundo este autor, tal fenómeno introduziu benefícios, designadamente uma fundamentação teórica mais sólida da acção educativa, a valorização do estatuto da profissão docente, mais investigação em vários domínios das Ciências da Educação, mais investigação sobre o ensino, os professores e as escolas, o alargamento de perspectivas profissionais dos professores, a emergência de projectos de investigação e intervenção e uma maior aproximação das universidades e dos seus docentes e investigadores às realidades dos outros níveis de ensino. No entanto, como salienta, o fenómeno gerou outros efeitos, na medida em que “a universidade tradicional tem sido caracterizada institucionalmente por uma cultura académica baseada predominantemente na compartimentação disciplinar, na fragmentação feudal do poder centrada em territórios de base disciplinar e num individualismo competitivo que resiste a uma coordenação docente e obstaculiza posturas solidárias” (Formosinho, 2002: 169). Existe, portanto, uma grande incongruência entre estas caracterrísticas da universidade e da cultura académica e o discurso produzido nesse universo sobre a formação de professores e a actividade escolar, que advoga o trabalho em equipa, a coordenação docente e a colegialidade, a interdisciplinaridade e a integração curricular, a integração comunitária da escola, etc. A referida academização da formação dá-se, pois, por vias mais directas ou mais difusas, nomeadamente através do contacto dos professores dos outros níveis de ensino com a cultura universitária e do efeito de “impregnação” que esse contacto produz. Por exemplo, em resultado dos programas de formação em que participam, os professores tendem a reproduzir discursos teoricamente elaborados e “pedagogicamente correctos” que, ao invés de contribuírem para a reflexão sobre as próprias práticas, podem produzir efeitos de ocultação das mesmas. Por outro lado, no que concerne à investigação, os académicos têm incidido os seus estudos principalmente sobre as políticas, as práticas e os contextos dos outros níveis de ensino, mantendo ausente uma análise e reflexão crítica sobre as suas próprias práticas e sobre a cultura universitária. Sem uma vinculação às práticas, às experiências e aos projectos do terreno da acção concreta, a própria teoria tende a ser confundida com retórica. O discurso académico, tal como outros discursos que proliferam no campo educativo, parece estar a gerar uma inflação retórica que, ao invés de estimular o desenvolvimento de práticas profissionais reflexivas, parece acentuar a referida azáfama e a lógica de sobrevivência das escolas e dos professores. A análise de António Nóvoa (1999) sobre a situação actual dos professores é a esse respeito bastante elucidativa. De acordo com este autor, observa-se um excesso ao nível da retórica política e dos mass-media, das linguagens dos especialistas internacionais, do discurso científico educacional, das “vozes” individuais dos professores e, simultaneamente, uma pobreza ao nível das políticas educativas, dos programas da formação de professores, das práticas pedagógicas e das práticas associativas docentes. O período recente tem sido marcado, como diz, pelo “excesso de discursos” e pela “pobreza das práticas” e por um pensamento que se

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projecta num “excesso de futuro” como forma de justificar um “défice de presente”. A mudança tende, assim, a ser encarada como um mero jogo nominalista, como se não houvesse outra mudança para além da alteração dos nomes. Ao invés de contrariarem este entendimento da mudança como mero jogo nominalista, as instituições de formação e os formadores tendem a acentuá-lo, criando e alterando constantemente as noções que utilizam, frequentemente a reboque dos “temas do momento” das reformas educativas. Por exemplo, a “área escola” passou a chamar-se “área de projecto”, os “currículos alternativos” passaram a designar-se “gestão flexível do currículo”, o conceito de “escola democrática” tem sido preterido em favor do de “escola inclusiva”, o debate sobre os “modelos de gestão” tende a circunscrever-se às questões de morfologia organizacional, designadamente, a composição dos órgãos, as suas competências e os documentos que devem ser elaborados. Ainda recentemente, no âmbito da constituição dos “agrupamentos de escolas”, uma questão que era considerada relevante era apenas saber o que deveria ser elaborado primeiro: se o projecto educativo ou o regulamento interno. A própria discussão em torno do conceito de “projecto” tem-se cingido, em grande medida, a uma preocupação com os “nomes”, procurando distinguir as noções de “projecto educativo”, “projecto curricular”, etc., mas esquecendo a questão essencial do “projecto” enquanto dispositivo de trabalho pedagógico e de aprendizagem através da pesquisa, envolvendo equipas de alunos; de alunos e professores; de alunos e pais; de alunos, pais e professores; de alunos, professores e pessoas da comunidade; etc. O sistema de formação contínua de professores, dada a lógica individual e instrumental e o formalismo que decorre da sua ligação à progressão na carreira, também não tem sido propício ao desenvolvimento de processos colectivos de aprendizagem referenciados aos contextos e situações de trabalho (Ferreira, 1998). Muitas acções de formação intitulam-se “Círculos de Estudos” e, embora postulem a reflexão colectiva como objectivo principal e difundam a ideia de que estão a dar resposta às “necessidades” das escolas e dos professores, não vão além da “reflexão” sobre os “temas do momento” das reformas educativas. O mesmo fenómeno verifica-se frequentemente ao nível da formação inicial e especializada, através da criação de novos cursos e dos respectivos planos de estudos, da criação de novas disciplinas e da introdução de novos conteúdos curriculares subordinados aos “temas do momento” das reformas educativas. No campo da formação de professores, a prioridade não reside, portanto, na invenção de novas noções, na criação de novos cursos ou na mudança de planos e conteúdos curriculares, mas principalmente na autocrítica e na procura de coerência entre o discurso e a prática universitária. O papel das instituições de ensino superior que têm responsabilidades na formação de professores, como é o caso das universidades, é o de promoverem um pensamento reflexivo e crítico que possa contrariar o pensamento fatalista e resignado e a lógica de sobrevivência que se tem vindo a instalar entre os professores. Mas para que tal possa acontecer é necessário que os docentes e investigadores do ensino superior tenham consciência da “azáfama” que se vive no seu próprio contexto de trabalho e dos seus efeitos inibidores na capacidade de reflectir e de criticar. Para além disso, é necessário que se tornem reflexivos e críticos sobre as suas próprias práticas – organizacionais, de formação, de investigação e de ligação à comunidade – e não apenas sobre as práticas dos “outros”. Aliás, muitos destes “outros”, em grande medida por influência dos cursos de formação que têm realizado no universo do ensino superior – de mestrado, de doutoramento e de outras especializações

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– começam justamente a questionar as práticas deste universo utilizando os novos instrumentos críticos de que dispõem. O que está em causa, portanto, é uma mudança de atitude relativamente às formas de “apoio externo crítico às escolas” (Canário, 2002). Como sustenta Rui Canário, a maior parte dos processos de inovação e reforma dos últimos trinta anos foram da iniciativa central e desenvolveram-se numa lógica estreita de tutela, concebendo o papel da Administração fundamentalmente como um processo de ensinar as escolas e os professores a serem inovadores e criativos. Este autor defende, no entanto, que a maior exigência que se coloca às entidades que pretendem realizar um apoio externo crítico às escolas é a adopção de uma atitude de grande humildade, de modo a poderem aprender com elas. Deste modo, deixa de estar em causa ensinar as escolas a serem criativas e inovadoras e passa a estar em causa realizar com elas um processo de aprendizagem, a partir do que elas produzem. Para que isso seja possível – conclui o autor – é necessário criar condições para dar a palavra às escolas e aprender a saber escutá-las.

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