A valorização do mundo não humano: um estudo comparativo de currículos1

June 15, 2017 | Autor: Mónica Baptista | Categoria: Education, Science Education, Curriculum Studies, Deep Ecology, Teoria Curricular
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A valorização do mundo não humano: um estudo comparativo de currículos1 Orlando Figueiredo Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa [email protected] Paulo Almeida Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa [email protected] Mónica Baptista Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa [email protected] Cecília Galvão Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa [email protected] Categoria: A. Desafios e debates sócio-ambientais nos conteúdos CTS (CTSA) Resumo Os discursos ecológicos podem ser categorizados em três tipologias distintas: (1) antropocentrismo; (2) biocentrismo e (3) ecocentrismo. Com centralidades que se deslocam, progressivamente, da espécie humana para os seres vivos e para o ecossistema, das prédicas referidas é a primeira que assume os contornos hegemónicos do discurso acriticamente instalado; contudo, face ao colapso da biosfera que todos testemunhamos, as últimas décadas veem emergir linguagens críticas do status quo que, ao assumirem um posicionamento pós humanista, reconhecem o valor intrínseco dos seres vivos e ecossistemas negado pelas quimeras do paradigma dominante. Tendo por pano de fundo uma conceção da escola como agente de mudança e conscientes que os discursos críticos, ainda que abranjam áreas reflexivas extensas (ética, sociologia, psicologia, etologia, ecologia...), fundamentam as suas posições nos saberes científicos e que a não referência aos discursos minoritários é equipolente a privilegiar e perpetuar o discurso hegemónico, procurámos compreender quais os paradigmas ecológicos que os currículos de ciências de três países — Portugal, Nova Zelândia e Finlândia — e de uma região autónoma da China — Hong Kong — veiculam. A escolha feitas resulta de este estudo se inserir no Projeto de Avaliação do Currículo de Ciências Físicas e Naturais, do 3.º ciclo do Ensino Básico, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/CPE-CED/102789/2008) e estes serem os currículos analisados até à data de submissão da proposta de comunicação.

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Recorremos a uma metodologia interpretativa centrada na análise crítica do discurso, identificando e categorizando fragmentos textuais dos currículos portadores de indícios, implícitos ou explícitos, de um determinado posicionamento ecológico. Os resultados iluminam, ainda que com uma gradação nos diferentes documentos, um esbatimento da presença dos discursos ecológicos alternativos e, ainda que menos acentuada no currículo finlandês, a presença de uma visão utilitarista e instrumentalista do mundo não humano. Foi também notada, nas construções textuais eleitas pelos currículos, a ausência da promoção, junto dos alunos, de um exercício reflexivo e crítico do paradigma dominante de forma a garantir o contacto destes com ideias e perspetivas diferenciadas. Problematização A globalização que se deu nas últimas décadas, sustentada pelo desenvolvimento tecnocientífico, parece ter um efeito duplo: se, por um lado, logra afastar as pessoas das suas origens naturais, por outro legitima e (quase) vulgariza o discurso crítico dos pressupostos civilizacionais planetários de exploração predatória dos recursos e de degradação ambiental. Paralelamente ao discurso hegemónico — caracterizado pelas conceções antropocentradas e utilitaristas que reificam o mundo não humano e promovem a alienação da espécie humana face às suas origens, simultaneamente, naturais e naturalistas — emergem outros discursos pós-humanistas e contrahegemónicos que reclamam uma relação diferente dos humanos com o mundo não humano. São diversas as vozes que criticam a abordagem escolar que desvaloriza “os aspetos humanistas da ciência e das ciências sociais — a imaginação, a criatividade, o pensamento crítico rigoroso — [...] à medida que os Estados preferem perseguir ganhos a curto prazo através da promoção de qualificações técnicas altamente especializadas que respondem a este objetivo” (Nussbaum, 2010, p. 10). Se as competências que Nussbaum (2010) refere assumem um papel fulcral na educação e formação de cidadãos críticos e interventivos, o desenvolvimento de uma ecoliteracia (Orr, 2004) é uma ferramenta fundamental na agência social, política e ecológica (Kahn, 2009). A escola, assumindo-se como agente de mudança social (Giroux, 2011), deve dar a conhecer as perspetivas emergentes de forma a possibilitar o desenvolvimento de uma dimensão simultaneamente crítica e emancipatória nos alunos. O ensino das ciências surge como particularmente pertinente nesta demanda dado que estes discursos se sustentam nos saberes científicos. Conscientes de que a não inclusão dos discursos alternativos nos currículos escolares é vetá-los à marginalidade, este trabalho procura conhecer em que medida, implícita ou explicitamente, os currículos analisados veiculam perceções hegemónicas, ou se abrem caminho ao debate de múltiplas perspetivas no domínio do bio e ecocentrismo. Enquadramento teórico Os discursos ecológicos podem ser categorizados em três domínios: antropocentrismo, biocentrismo e ecocentrismo. O primeiro, que Dunlap, Van Liere, Mertig e Jones (2000) apelidaram de paradigma social dominante, coloca a espécie humana no centro de toda a existência e lança, ao mundo natural, um esgar utilitarista e instrumentalista. É um discurso que vê na razão humana o instrumento manipulador do mundo e apela à sua intendência e apropriação, acreditando, ingenuamente, na possibilidade do eterno progresso (Lima & Guerra, 2004). Porque apenas se reconhece estatuto moral2 ao humano, as manifestações em defesa do ambiente

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emergem porque se reconhece a possibilidade de os desequilíbrios ambientais o porem em causa. As correntes biocêntricas alargam o valor intrínseco a todas as formas de vida, em duas perspetivas: a primeira, sustentada pela senciência (Singer, 1975/2008) e direitos dos animais (Regan, 2004) promove uma hierarquização do estatuto moral do indivíduo em resultado da combinação concomitante da sua condição de ser senciente e do nível de complexidade; a segunda estende-se de forma igualitária a todas as formas de vida reconhecendo-lhes estatuto moral, pelo menos do ponto de vista da ação humana (Taylor, 1986/2011). O contributo do biocentrismo para a discussão ética sobre os direitos dos espécimes individuais é inegável; contudo, uma perspetiva holística que transcende a individualidade e se debruça sobre os direitos dos ecossistemas chega-nos pela mão do ecocentrismo. Reconhecendo no ecossistema um sistema homeostático idêntico a um organismo vivo, o discurso ecocêntrico coloca o enfoque valorativo nos ecossistemas. O planeta emerge como uma unidade integrada e o ser humano como uma espécie que vive em interdependência com os seus pares e com o resto do planeta. Dado que a violação das leis naturais não é uma opção que os humanos possam avocar, reconhece-se a finitude planetária e os limites da ação humana (Dunlap et al., 2000). Uma forma que o ecocentrismo assumiu ao reconhecer valor intrínseco aos ecossistemas, é cunhada por Naess (2001) na década de 1970, que apelidou de Ecologia Profunda; profunda porque convida à reflexão e ao estabelecimento de ligações afetivas dos humanos com o mundo não humano e procura transcender a relação mecânica e instrumentalista da antropocêntrica ecologia superficial (Capra, 1997; Naess, 2001). Metodologia A natureza deste trabalho levou à adoção de uma metodologia interpretativa, sustentada na análise crítica do discurso. De acordo com Jørgensen e Phillips (2002), “discurso é uma forma particular de falar e compreender o mundo (ou um dos seus aspetos)” (p. 1). É o discurso sobre uma parte do mundo — as perspetivas ecológicas — patente nos documentos oficiais que pretendemos analisar; contudo, porque se trata de discernir acerca da presença de discursos que se colam ou às perspetivas hegemónicas ou às perspetivas críticas das hegemonias, não hesitámos em atribuir o adjetivo de crítica à análise aqui desenvolvida. Procedeu-se à análise comparativa dos discursos dos currículos de Portugal, Finlândia, Nova Zelândia e Hong Kong, que orientam o ensino das ciências de alunos entre os 12 e os 15 anos. Procurou-se discernir quais os paradigmas ecológicos subjacentes aos discursos e de que forma estes promovem a adoção de ecopedagogias críticas (Kahn, 2009). Para tal foram identificados e categorizados os excertos dos currículos que indiciavam, de forma explícita ou implícita, um determinado posicionamento ecológico (antropocêntrico, biocêntrico ou ecocêntrico). Visto tratar-se de um estudo em progresso1, reportamos os resultados dos currículos já analisados, provenientes de um conjunto mais alargado que foi selecionado com base nas classificações que os respetivos países obtiveram no estudo PISA 2006 (OECD, 2007) para a literacia científica.

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Resultados Portugal Foram analisados quatro documentos: (1) as Competências Gerais e Competências Específicas para as Ciências Físicas e Naturais do Currículo Nacional do Ensino Básico: competências essenciais3 (CNEB) (Ministério da Educação, 2001), onde se discriminam os princípios e valores orientadores do currículo, bem como as competências gerais e específicas a desenvolver pelos alunos; (2) as Orientações Curriculares para as Ciências Físicas e Naturais no 3.º ciclo do Ensino Básico (OCCFN) (Galvão et al., 2001), nas quais se especificam as competências para a literacia científica que os alunos devem desenvolver e se apresentam os quatro temas unificadores, comuns às disciplinas Ciências Naturais e Ciências Físico-Químicas: Terra no Espaço, Terra em transformação, Sustentabilidade na Terra e Viver melhor na Terra; as Metas de Aprendizagem (MA) (3) para as Ciências Físico-Químicas (Martins, Lopes, Cruz, Soares, & Vieira, 2010b) e (4) para as Ciências Naturais (Martins, Lopes, Cruz, Soares, & Vieira, 2010a), que se apresentam como instrumentos fundamentais na gestão curricular das diferentes disciplinas. O discurso ecológico patente no CNEB é transversal a todo o documento e assume um pendor conservacionista sem descurar a necessidade de intervenção por parte dos humanos no mundo não humano. É explicitada a importância da discussão dos efeitos e limites dessa intervenção; contudo, as motivações de valorização intrínseca do mundo não humano não estão explicitamente patentes no discurso do documento analisado. As construções textuais, ainda que não seja de forma sistemática, legitimam o discurso antropocêntrico de apropriação utilitarista do mundo não humano; um exemplo desta legitimação é a referência à “necessidade humana de apropriação de recursos” (Ministério da Educação, 2001, p. 140). As OC denotam uma maior neutralidade. Deixam transparecer uma posição conservacionista, mas não apresentam razões, mesmo no domínio antropocêntrico, como sustentam os exemplos: (1) “os alunos devem tomar consciência da importância de se acabar com a emissão de determinados gases, tendo em vista a proteção da vida na Terra” (Galvão et al., 2001, p. 27), estando aqui patente a importância de proteção da vida sem que se apontem quaisquer razões que a apoiem e (2) “pensar e sugerir propostas relativas a uma gestão racional dos recursos” (Galvão et al., 2001, p. 29). Também neste excerto, não se sugere a discussão, em contexto de aula, sobre as razões subjacentes à pertinência de uma gestão racional dos recursos, que faculte a emergência de questões relacionadas com a relação subjetiva entre o aluno e a Terra. Nas MA, as construções textuais relacionadas com a sustentabilidade e a ecologia, assumem um caráter conservacionista; contudo, as razões que sustentam as necessidades conservacionistas não são, explícita ou implicitamente, denotadas; como sugerem os exemplos: (1) “classifica fontes de energia em primárias e secundárias, renováveis e não-renováveis” (Martins et al., 2010b) e (2) “descreve as consequências para os ecossistemas [...] da utilização não sustentada dos recursos naturais” (Martins et al., 2010b). Nova Zelândia A análise do currículo neozelandês teve por base dois documentos — The New Zeland Curriculum (Ministry of Education, 2007) e Science in the New Zeland Curriculum (Ministry of Education, 1993). No primeiro expressam-se as visões,

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princípios, valores, e competências-chave e apresentam-se as finalidades gerais dos currículos, de cada uma das áreas de aprendizagem, nas quais se inclui as ciências. Esta área contempla 5 domínios: a "Natureza da ciência (que é um domínio transversal, com objetivos próprios), o "Mundo vivo", o "Planeta Terra e além", o "Mundo físico" e o "Mundo material". O segundo documento citado, contem os objetivos gerais da educação em ciência e apresenta o currículo específico de cada dos domínios referidos, com as metas de aprendizagem, sugestão de experiências de aprendizagem e exemplos de avaliação. Do primeiro documento, destacamos o conjunto de valores que devem orientar a educação, onde encontramos o respeito pela diversidade e a sustentabilidade ecológica. Nele expressa-se uma forte preocupação com as diferentes culturas que constituem a população humana e com o futuro sustentável do país, em termos económicos, sociais, culturais e ambientais. No entanto, consideramos que o currículo, ainda que apresente essas preocupações, denota, ainda, um discurso conservacionista, próximo de uma perspetiva de ecologia superficial (Naess, 2001), centrada em aspetos tecnocientíficos e nos conteúdos tradicionais das ciências. Por exemplo, a relação com os outros constitui-se como uma das competências-chave a desenvolver nos alunos, mas há uma ausência da menção à relação com os outros seres e com o ambiente, pelo que os "outros" são aqui tomados como sendo exclusivamente os "humanos". Tal é compreensível quando no texto se refere "Relacionar-se com os outros é sobre interagir eficazmente com uma grande diversidade de pessoas numa variedade de contextos. Esta competência inclui a capacidade de ouvir ativamente, reconhecer pontos de vista diferentes, negociar e compartilhar ideias" (p. 12). Há, portanto, uma ausência de posicionamento do indivíduo num mundo caracterizado pela diversidade biológica/ambiental. Compreende-se, também, em algumas das construções textuais relativas ao domínio da "Ciência", uma visão biocêntrica, ao referir-se na componente do "Mundo Vivo", o respeito pela fauna, flora e pelos ecossistemas únicos do país. No entanto, no mesmo texto refere-se, na componente do "Planeta Terra e além", que os humanos devem constituir-se como "guardiões" dos recursos finitos, que a Terra proporciona para a manutenção da vida (com exceção da energia solar). Deposita-se, exclusivamente, nos humanos, a gestão protecionista desses recursos e, apesar das preocupações de natureza ecológica integrarem a agenda educativa, as visões biocêntrica e antropocêntrica vão-se intercalando, sem que haja coerência no discurso ecológico patente no documento. Hong Kong O currículo de Hong Kong, intitulado Syllabuses for Secondary Schools (The Curriculum Development Council, 1998) é constituído por um único documento constituído por 15 unidades de ensino de física, química e biologia. O currículo, apesar de incentivar a adoção de práticas docentes de índole construtivista, centra-se nos saberes tradicionais da ciência e as relações com a sociedade são estabelecidas em função dos conteúdos científicos abordados. A ilustrar esta situação podemos referir a temática da conservação das espécies e do impacto da atividade humana no ambiente, abordada no final da unidade 2 — Observando o Mundo Vivo. Anteriormente, nesta unidade, foram trabalhados assuntos relacionados com os seres vivos, como as características e variedade dos seres vivos e dos seus habitats e a classificação de animais e plantas. Esta opção, que se mantém em todo o documento, pode denotar uma perspetiva que olha as questões relacionadas com o mundo não humano como a possibilidade de aí aplicar os conhecimentos científicos mais tradicionais, escamoteando outro tipo de olhares a lançar sobre estas questões. Além de não se valorizar esta dimensão, não se promove qualquer discussão que procure

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relacionar os estilos de vida, o consumismo, o sistema económico com o impacte da atividade humana. Retomando o exemplo da Unidade 2, sugere-se a identificação da atividade humana como um dos fatores que coloca as espécies em vias de extinção, mas não se discute a legitimidade e a necessidade dessa atividade e, ainda menos, se coloca a pergunta sobre as razões que estão subjacentes à necessidade de conservar o meio ambiente. As situações idênticas às aqui descritas multiplicam-se. Na unidade 4 — Energia — as duas últimas secções têm o nome de “Produzindo eletricidade: poluição associada e outras formas de produzir eletricidade” e “Fontes de Energia e nós: os limites dos combustíveis fósseis e a nossa necessidade crescente de energia”; anteriormente foram trabalhadas questões relacionadas com fontes, formas e transferências de energia. Salientamos ainda a unidade 13 — Metais — onde os “problemas ambientais relacionados com a eliminação de metais usados” são abordados no fim da unidade depois de se ter discutido a história do uso dos metais, a forma como estes se obtêm, as suas propriedades e as ligas metálicas. A ausência de problematização das questões relacionadas com a sustentabilidade como forma de abordar as questões científicas, associada à ausência do questionamento sobre as questões éticas da ação humana no mundo não humano, conduzem-nos à conclusão de que há uma instrumentalização das problemáticas ambientais que, sob a falácia da neutralidade, contribui para a divulgação e legitimação dos discursos hegemónicos. As visões biocêntricas estão também patentes, mas ao reconhecerem no humano o intendente do mundo não humano, acabam por se articular com discurso antropocêntrico. Finlândia A análise realizada ao currículo da Finlândia teve por base o documento intitulado National Core Curriculum for Basic Education. Este documento é constituído por cinco partes. A primeira é dedicada a uma apresentação do currículo, onde se destacam instruções para a sua implementação, para os alunos com necessidades educativas especiais e para grupos oriundos de diferentes culturas ou que falam diferentes línguas. Na segunda parte encontram-se os objetivos de aprendizagem, os temas transversais e o domínio da língua materna e literatura. A terceira parte é dedicada ao domínio da segunda Língua Nacional, Línguas Estrangeiras, Matemática, Ambiente e Ciências Naturais, Biologia e Geografia, e Física e Química. A quarta parte contempla a Educação para a Saúde, Religião, Ética, História, Estudos Sociais, Música, Artes Visuais, Artes, Educação Física, Economia e Orientação Educacional e Vocacional. Por último, na quinta parte, é dado relevo à avaliação dos alunos (Finish National Board of Education, 2004). No domínio das Ciências, que se encontra na terceira parte, denotam-se algumas preocupações com o desenvolvimento e o despertar de uma consciência ecológica. Este aspeto é visível nos objetivos das várias disciplinas. Por exemplo, na disciplina Ambiente e Ciências Naturais pretende-se que os alunos aprendam a "proteger a natureza e economizar os recursos naturais" (p. 170), "compreendam como a natureza viva e morta diferem uma da outra" e "descrevam as características de diferentes ambientes, identificando as várias espécies que neles habitam" (p. 172); na disciplina de Biologia pretende-se que os alunos compreendam "os principais objetivos da proteção ambiental e os princípios do consumo sustentável dos recursos naturais" (p. 180); e na disciplina de Geografia que "descrevam as suas próprias oportunidades de contribuírem para uma melhoria do ambiente" (p. 184). Contudo, como se pode verificar nos exemplos anteriores, o documento não problematiza as questões de valor utilitário/intrínseco do mundo não humano e centra a análise nas questões científicas e tecnológicas.

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De salientar que na disciplina de Ética é enfatizada a capacidade dos alunos estudarem "o seu mundo natural e de dirigirem ativamente a sua própria vida" (p. 214). Nesta disciplina é abordada a temática da sustentabilidade e a problematização da valorização do mundo não humano, procurando promover a reflexão dos alunos, enquanto constituintes do ecossistema global. Tal é compreensível quando no texto se refere que é necessário que os alunos se preocupem com o "desenvolvimento sustentável e ao futuro da natureza", que compreendam "o ambiente e natureza, animada e inanimada, e a beleza na natureza" (p. 215), que saibam "como agir com respeito pela natureza" e que compreendam "os princípios de um desenvolvimento sustentável" (p. 216). Esta componente no currículo, onde se destacam as questões éticas da ação humana no mundo não humano, permite-nos perceber que neste documento estão presentes preocupações com questões de natureza ecológica. Discussão final Os quatro currículos de ciências analisados denotam um pendor conservacionista acentuado o que pode ser lido como evidência de posicionamentos biocêntricos, sendo; contudo, os currículos de Hong Kong e da Nova Zelândia estabelecem relações no contexto de uma ecologia superficial. Esta afirmação é sustentada pelo facto de as questões ecológicas surgirem como aplicações dos conteúdos científicos estudados. O currículo finlandês, através da disciplina de ética, é o que atribui maior importância à valorização do mundo não humano per si, pois não adota um discurso exclusivamente instrumentalista e utilitarista. O currículo português apresenta preocupações com a conservação do meio ambiente e, ao contrario, dos anteriores, usa as questões ambientais como ponto de partida na abordagem dos saberes científicos; porém, o discurso enfatiza, fundamentalmente, a utilidade que a preservação do meio ambiente tem para os humanos. Nos quatro currículos, a reflexão sobre o papel que o modelo económico consumista tem na degradação da natureza e no esgotamento dos recursos naturais, está praticamente ausente. O esbatimento, ainda que em diferentes graus, da promoção do discurso ecológico numa perspetiva reflexiva e holística nos currículos escolares apresenta-se problemática em duas vertentes: (1) por um lado, a escola abdica da sua agência de mudança e de promoção da cidadania; mas, (2) por outro lado, é o utente que se pode sentir afastado da escola dado que, escutando o discurso crítico noutros contextos e instituições sociais e, eventualmente, identificando-se com ele, acaba por não se identificar com uma escola incapaz de problematizar questões que lhe surgem como essenciais. Referências Capra, F. (1997). The web of life: A new synthesis of life and matter. Londres: Flamingo. Dunlap, R. E., Liere, K. D. V., Mertig, A. G., & Jones, R. E. (2000). Measuring endorsement of the New ecological paradigm: A revised NEP scale. Journal of Social Issues, 56(3), 425-442. doi:10.1111/0022-4537.00176 Finish National Board of Education. (2004). National core curriculum for basic education 2004. Galvão, C., Neves, A., Freire, A. M., Santos, M. C., Vilela, M. C., Oliveira, M. T., & Pereira, M. (2001). Orientacoes curriculares para as ciencias fisicas e Naturais - 3o ciclo do ensino basico. Lisboa: Ministero da Educacao, Departamento da Educacao Basica. Giroux, H. A. (2011). On critical pedagogy . New York: Continuum.

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Jørgensen, M., & Phillips, L. J. (2002). Discourse analysis as theory and method. London: Sage. Kahn, R. (2009). Critical pedagogy, ecoliteracty, and planetary crisis: The ecopedagogy movement. New York: Peter Lang. Lima, A. V., & Guerra, J. (2004). Degradação ambiental, representações e novos valores ecológicos. In J. F. Almeida (Ed.), Os portugueses e o ambiente. (pp. 7-64). Oeiras: Celta. Martins, I., Lopes, J., Cruz, M. D. G., Soares, M. N. M., & Vieira, R. M. (2010a). Metas de aprendizagem do ensino basico - 3.O ciclo / ciencias Naturais. Martins, I., Lopes, J., Cruz, M. G., Soares, M. N. M., & Vieira, R. M. (2010b). Metas de aprendizagem do ensino básico - 3.º ciclo / Ciências Físico-Químicas [Página na Internet]. Retirado de http://www.metasdeaprendizagem.min-edu.pt Ministério da Educação. (2001). Currículo nacional do ensino básico: Competências essenciais. Lisboa: Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica. Ministry of Education. (1993). Science in the New Zealand curriculum. Wellington: Learning Media Ltd. Ministry of Education. (2007). The New Zealand curriculum. Wellington: Learning Media Ltd. Naess, A. (2001). Ecology, community and lifestyle. Cambridge: Cambridge University Press. Nussbaum, M. (2010). Les émotions démocratiques: Comment former le citoyen du XXIe siècle? Paris: Climat. OECD. (2007). PISA 2006. Science competencies for tomorrow's world - analysis. Retirado de http://www.oecd.org/dataoecd/30/17/39703267.pdf Orr, D. (2004). Earth in mind: On education, environment, and the human prospect. Washington: Island Press. Regan, T. (2004). The case for animal rights. Berkeley: University of California Press. Singer, P. (2008). Libertação animal (2 ed.). Porto: Via Optima. (Original publicado em 1975) Taylor, P. W. (2011). Respect for nature: A theory of environmental ethics. Princeton, N.J.: Princeton University Press. (Original publicado em 1986) The Curriculum Developement Council. (1998). Syllabuses for secondary schools: Science (secondary 1-3). Hong Kong.

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1 Estudo inserido no Projeto de Avaliação do Currículo de Ciências Físicas e Naturais, do 3.º ciclo do Ensino Básico, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (PTDC/CPE-CED/102789/2008).

2 É atribuído estatuto moral a uma entidade que veja os seus interesses tidos em conta aquando da tomada de decisões. 3 Este documento foi revogado pelo Ministério da Educação e da Ciência em dezembro de 2011; porém, à data do início do projeto referido na nota 1, este era o documento orientador da ação educativa do Ensino Básico em Portugal desde 2001 pelo que considerámos pertinente relatar os resultados da sua análise.

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