A \"Vangelisação\" da trilha sonora dos 500 anos: e a mestiçagem musical?

June 14, 2017 | Autor: Gil Nuno Vaz | Categoria: Música, Trilha Sonora, Vangelis Kechriotis, Trilha Musical, Brasil 500 anos
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A "Vangelisação" da trilha sonora dos 500 anos: e a mestiçagem musical? Gil Nuno Vaz

Resumo No Brasil, as primeiras reações à adoção acrítica dos padrões musicais europeus datam do início do século XX, principalmente através das obras de Heitor Villa-Lobos. Desde então, a música brasileira vem desenvolvendo soluções próprias para expressar o sentimento do seu povo. Do movimento antropofágico ao movimento de música nova, dos choros à bossa-nova e à tropicália e às produções independentes, tem havido uma busca estética constante. Esse processo de formação da música brasileira é descrito sinteticamente, após uma introdução que situa o cenário e o objeto de estudo, dentro de uma metodologia que contempla a eleição de obras, produções e nomes representativos, tomados ilustrativa e exemplarmente. A seguir, o ensaio aborda os modelos impostos pela mídia internacional, que ocupam significativo, se não majoritário, espaço no cenário musical brasileiro, apesar das iniciativas de criação de uma linguagem própria. Toma então como dado recorrente e sintomático dessa realidade a utilização freqüente da trilha sonora do filme 1492 - A Conquista do Paraíso, com música do compositor Vangelis, entre as várias trilhas sonoras de reportagens, documentários e representações teatrais e cênicas que aludem aos 500 anos do descobrimento do Brasil. Com outras composições que seguem estilo semelhante, uma moldura musical new age tem sido criada para esse fato histórico. A análise desse contexto é realizada em conjunto com a apresentação de alternativas relacionadas com o espetáculo da Encenação da Fundação da Vila de São Vicente, a partir da experiência do autor na direção musical do evento em 1998. Ao final, as conclusões são extraídas também com o objetivo de sugerir propostas que colaborem para uma maior conscientização de artistas e público, sobre a importância do processo de mestiçagem cultural que é marca característica da música brasileira.

Introdução

O propósito deste ensaio é apontar e analisar certos desvios que ocorrem no cenário musical brasileiro, tendo como contexto o processo das interações que provocam a mestiçagem cultural típica do País. Para desenvolver tal intento, entretanto, é necessário antes estabelecer alguns parâmetros de avaliação e também de diferenciação do fato musical em relação a outros fatos culturais. Afinal, se no campo da linguagem verbal a questão da mestiçagem luso-afro-ásio-brasileira tem no idioma português um ponto de convergência, no campo da linguagem musical os horizontes histórico e geográfico devem ser dilatados, sem o que os comentários correriam o risco de não apresentar a devida consistência e compatibilidade. Começaremos o estudo, assim, por uma breve contextualização das influências musicais que marcaram o Brasil. Num segundo momento, seguirá um ligeiro apanhado dos

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movimentos significativos que, a partir de interações culturais, construíram os estilos característicos formadores da música brasileira como a conhecemos atualmente. A terceira etapa assinala as investidas dos grandes centros de poder econômico mundial, através da mídia cada vez mais globalizada, com o objetivo de impor seus padrões culturais (no caso musicais) a outros países, de modo a facilitar a colocação mercadológica de seus produtos ao redor do mundo, conquistando espaços estratégicos para seus negócios. Escolhe para isso algumas situações exemplares, destacando na ilustração desse processo o uso constante das músicas do filme 1492 - A Conquista do Paraíso, escritas pelo compositor Vangelis1, na trilha sonora de reportagens, documentários e representações teatrais e cênicas que aludem aos 500 anos do descobrimento do Brasil. Com outras composições que seguem estilo semelhante, uma moldura musical new age tem sido criada para esse fato histórico, resultando numa espécie de "vangelisação" musical das comemorações. O estudo encerra com uma sugestão de se pensar uma "evangelização" para a questão da mestiçagem musical, incluindo a análise da trilha sonora utilizada no espetáculo da encenação da Fundação da Vila de São Vicente, realizada em janeiro de 1998, seguida de comentários finais.

Linguagem Musical: Nacional, Universal, Mestiça

Das influências que marcaram a história musical brasileira, destacam-se três grandes fontes geográficas: o canto dos índios que habitavam a região, o sistema musical de origem européia introduzido pelos invasores e colonizadores, e os cantos das tribos africanas a partir da importação de escravos. O canto nativo foi reportado na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, mas não há nela qualquer referência ao canto, apenas às danças e folguedos. "O momento talvez não o comportasse ou a voz cantada estaria naquela algazarra tantas vezes mencionadas em outras crônicas" (CAMÊU 1977: 120). Essa particularidade permite entrever as lacunas de percepção da observação portuguesa. Acostumados à linguagem musical das cantigas medievais e, mais recentemente, das composições polifônicas no limiar da Renascença, não conseguiram captar a essência dos aspectos e valores próprios da cultura nativa. Desse modo, a música índia não representava para eles um estágio de 2

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linguagem musical a considerar, cabendo apenas como objeto de estudos antropológicos. Tal visão dessa realidade musical perdurou até o século XX, quando os elementos da música dos índios passaram a integrar o processo criativo de vários compositores. Já a música africana deixou marca mais significativa na produção musical brasileira, principalmente através de instrumentos e ritmos herdados do povo banto, compreendendo o "conjunto das tribos que ocupavam o antigo Reino do Congo no início das atividades escravocratas no Século XVI (...), particularmente a zona... estendida por ambos os lados da fronteira Zaire-Angola" (MUKUNA s/d : 11). Assim, considerando o seu desenvolvimento desde o início da colonização, as histórias (oficiais) da música brasileira são fundamentalmente uma história que segue o fluxo da linguagem musical ocidental de origem européia, como argumenta MENDES (1975: 127-128):

Entendida a música como linguagem (...) constataremos que ela é uma só em toda a arte do Ocidente. Da Grécia antiga aos nossos dias, através de um processo evolutivo que parte do sistema modal com base no estudo do fenômeno acústico até chegar ao microtonalismo concreto-eletrônico. lnicialmente na Europa, depois ampliado para as Américas em seus últimos estágios, numa trajetória comandada ora pelos gregos, franceses, italianos, alemães ou flamengos. E, atualmente, também pelos americanos. As estruturas significantes fundamentais da música romântica (melismas do cantochão, por exemplo), Ars Antiqua (quintas, oitavas paralelas), Ars Nova (grau sensível com sua aura mística), renascentista (mobilidade modal), barroca (relacionamento tonal), romântica (dissonâncias harmônicas não-resolvidas) e moderna (ruído elevado à categoria de som musical) são as mesmas em qualquer país ocidental. Trata-se, portanto, repetimos, de uma mesma linguagem musical, comunicada por compositores de nacionalidades diversas. E a música brasileira é um dos aspectos dessa linguagem, em sua ramificação para as Américas, no período Barroco, quando ela se manifestou pela primeira vez entre nós, principalmente em Minas Gerais. Primeiramente ela é barroca, depois diremos que é brasileira (...) na maneira como seus compositores utilizaram um mesmo conjunto de estruturas significantes; e sobretudo pelas contribuições pessoais deles na elaboração de signos novos que vieram enriquecer esse conjunto estrutural. Essas contribuições, esses acréscimos é que tornam a música reconhecida como sendo deste ou daquele povo; e, num dado momento, devido a uma contribuição maior, um país passa a liderar, a comandar o desenvolvimento desse mercado comum de significados musicais.

Rumo à música brasileira

A mestiçagem musical brasileira tem sido, assim, o resultado da assimilação de elementos índios e africanos pela linguagem musical européia praticada no País. O processo que levou à formação do que hoje reconhecemos como música brasileira começou

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a ser gerado em meados do século XIX, quando começa a acontecer uma interação entre aquelas fontes, através da incorporação de procedimentos composicionais mais livres, segundo a estética do Romantismo. "Ernesto Nazareth, continuando uma pesquisa de Alexandre Levy, isola elementos estruturais afro-espanhóis e sintetiza a célula rítmica do maxixe, dando um primeiro exemplo de invenção na música popular, repetido ... por Antonio Carlos Jobim, João Gilberto, Gil e Caetano." (MENDES 1975: 129). Mas é nas décadas iniciais do Século XX, principalmente com o recurso técnico da gravação e reprodução do som, que passa a ocorrer uma mestiçagem significativa de correntes e influências musicais. Esse momento, que coincide com o advento da cultura de massa, é marcado por "um pragmatismo antropofágico de artistas nativos" (MENDES 1975: 129). Assim, embora o esforço de libertação dos padrões musicais europeus possa ser remontado até os chorões das últimas décadas do Século XIX e início do Século XX, as primeiras reações à adoção acrítica daqueles padrões podem ser detectadas principalmente através das obras de Heitor Villa-Lobos. Na obra orquestral Uirapuru, de 1917, VillaLobos conjuga a utilização de "percussões populares como coco, reco-reco, tamborim e até de um violinofone (violino ligado a uma trompa)" (MENDES 1975: 130), obtendo com isso um efeito tímbrico que começa a caracterizar o som brasileiro, além das soluções rítmicas que engendra. Desde então, a música brasileira vem desenvolvendo soluções próprias para expressar o sentimento do seu povo. Do movimento antropofágico ao movimento de música nova, podem ser pinçados, além de Villa-Lobos, os nomes de Marlos Nobre e Almeida Prado, que incorporam elementos sonoros dos índios em suas criações, e ainda Jorge Antunes nas pesquisas pioneiras de uma música eletrônica brasileira, sem contar Gilberto Mendes em suas obras mais radicalmente experimentais, misturando por exemplo berimbau com uma formação camerística de base européia, na Música para 12 instrumentos, de 1961. Na música popular, dos choros à bossa-nova e à tropicália, ocorreu uma busca constante de soluções próprias, entre as quais destacamos as obras de Antônio Carlos Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Após a eclosão da bossa-nova e do tropicalismo, no período que engloba as décadas de 60 e 70, um novo surto de propostas 4

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criativas ocorreu na década de 80, propostas principalmente por grupos que ficaram ligados à produção musical independente, não apenas da música popular mas também em outras áreas estéticas (VAZ 1988: 49-56).

Rumo à "Vangelização" musical

A mídia, entretanto, já começava a tornar-se fortemente restritiva, abrindo espaço apenas para músicas com boas perspectivas mercadológicas. Chico Buarque, ao voltar da Itália em 1974, comentava que a televisão organizara-se de tal modo que passaram a predominar determinadas regras para fazer sucesso (BAHIANA 1980: 33-40). A padronização musical ditada pelos interesses em jogo na emergente realidade globalizada que já se desenhava, no início dos anos 80, pode ser avaliada pelos reflexos constatados em duas situações. Nos primeiros anos da década, a indústria do disco vinha sofrendo forte recessão na demanda. Uma das estratégias para manter o equilíbrio foi o desenvolvimento do mercado infantil. "Embora sem recursos próprios, a criança apresenta incrível capacidade de obtêlos, através de um inocente e habilidoso jogo de persuasão, mesmo à custa de desvios no orçamento familiar" (VAZ 1983). Tendo a TV como peça-chave, foram produzidos musicais ultra-sofisticados, cheios de cores e movimentos, visualização maravilhosa do mundo de fantasia da criança. Simultaneamente, lançava-se um disco no mercado, depurado de elementos complexos que pudessem dificultar a sua aceitação. Nada de estórias com diálogos entremeando as músicas, a exemplo das produções clássicas do setor. Apenas um texto de introdução, uma fala breve sobre fundo musical para conferir certa unidade ao conjunto, e uma seqüência de canções interpretadas por artistas de evidência na MPB. O repertório era basicamente música para dançar. E ao invés de cantigas de roda e tradicionais danças folclóricas, canções especialmente compostas por grandes autores. A fórmula de sucesso foi descoberta com A Arca de Noé, que apresentou excelente nível criativo e musical. O resultado foi tão espetacular que deu origem a seqüências e desmembramentos. A equação foi sendo "aperfeiçoada", no sentido de homogeneizar cada vez mais o repertório dançante. Surgiu então a predominância da batida da música pop 5

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internacional, um modelo ainda predominante hoje na música techno, conhecido como bate-estaca. O ponto que pode ser considerado sintomático do limite a que chegou a colonização musical aconteceu no especial Pirlimpimpim, baseado na obra infantil do escritor Monteiro Lobato. A variedade musical, que vinha sendo perseguida nos primeiros especiais, entrava agora por conta do pitoresco, do típico. Um samba cantado por Dona Ivone Lara caía bem quando se tratava da Tia Nastácia, e o balanço de Jorge Benjor (na época, Jorge Ben) servia para caracterizar as peraltices do Saci. Isto é, dentro do contexto de uma obra brasileira, a criação de Monteiro Lobato, a nossa música servia apenas para dar colorido local à universalidade neutra de uma massa sonora indistinta e pastosa. Uma outra situação exemplar desse processo é um anúncio institucional do Governo Federal, durante as comemorações da Independência de 1985. Na peça publicitária, vários braços iam se erguendo no ar, ocupando todo o espaço da tela, brancos e pretos primeiro, verdes e amarelos em seguida. No final, o slogan "Independência é a gente que faz". A trilha musical, entretanto, entrava flagrantemente em conflito com essa mensagem, usando padrões musicais sem qualquer vinculação de raiz ou de reformulação estética. Outro exemplo da época, ainda, e da mesma procedência, era o prefixo musical do tradicional programa radiofônico "A Voz do Brasil". Depois de substituído, alguns anos antes, pelo Hino da Independência, o velho tema da protofonia da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, voltava a ser ouvido. Só que num arranjo popular, bem cadenciado, num balanço que lembrava a trilha do anúncio da Independência (VAZ 1985). Com a aproximação da data comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, várias atividades começam a ser desenvolvidas para celebrar a data. Entre elas, muitos documentários, reportagens e apresentações artísticas, entre as quais encenações teatrais e televisivas. A partir daí um detalhe constante pode ser percebido, no tocante à trilha musical que envolve declarações de personalidades, falas de personagens históricos em dramatizações e tomadas de câmara mostrando locais de importância na história do Brasil. Em meio a várias músicas de origem brasileira, músicas do barroco europeu em geral passaram a fazer o fundo dessas produções da mídia. 6

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Dessa massa sonora, começou então a emergir com bastante freqüência, principalmente quando se tratava de locais ou fatos épicos, as músicas escritas pelo compositor Vangelis para o filme 1492 - A conquista do Paraíso. O filme contava a história de Cristóvão Colombo e foi produzido para as comemorações dos 500 anos do descobrimento da América. Desse filme, a composição que tem sido utilizada com maior freqüência é sem dúvida Conquest of Paradise. Como outras da trilha, apresenta um texto que lembra o latim, pela pronúncia, mas que resulta da leitura invertida de palavras2, com um resultado sonoro rude e bruto, apropriado para cenas selvagens, além de servir para intensificar a dramaticidade de cenas de conquista, envolvendo sugestões de grandiosidade e supremacia. Não cabe adentrar aspectos da significação musical que poderiam ser aprofundados através de estudos semióticos, mas a escolha de composições com essa carga semântica assimilada tem motivação basicamente funcional, e revela uma certa acomodação a estereótipos.3 A questão que se coloca, sob um ponto de vista crítico, é que, no momento em que o País comemora 500 anos de descobrimento, e as comunidades lusófonas buscam uma integração através da comunicação intercultural luso-afro-ásio-brasileira, com destaque para a questão da mestiçagem, não há como justificar o uso "inocente" de elementos como esse que, embora possam funcionar nos diversos contextos em que são empregados, tornam-se a exibição ostensiva de um comportamento acrítico, sem a devida consciência na busca de uma expressividade própria.4 Esta postura não representa qualquer viés xenófobo, pois, como diz MENDES (1975: 128), "quanto mais inventiva, sem ligações com qualquer tradição, mais nacional é a música. Ao contrário da argumentação dos defensores da arte nacionalista, que medem o caráter nacional de uma obra musical pelo grau de sua ligação com o que eles consideram as fontes da nacionalidade; esquecendo-se de que estas fontes são os reflexos mais longínquos da mesma linguagem musical do Ocidente. É o caso do modalismo nordestino, por exemplo, reflexo do mais remoto canto gregoriano medieval europeu. Quanto mais na vanguarda da produção de signos novos, mais pessoal, mais nacional será a arte."

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É evidente que tal pensamento não dá respaldo à utilização, pura e simplesmente, da trilha sonora daquele filme, bem como de obras semelhante em estilo new age e afins, como fundo musical de produções comemorativas da nacionalidade brasileira. Primeiro, porque não apresentam qualquer vínculo com a nossa cultura, usando inclusive remissões sem maior substância à música indiana. Segundo, porque não trazem qualquer proposta inventiva, apenas usa de recursos eletrônicos para fazer música tradicional. Nossos compositores de música eletrônica já estão há algum tempo aprendendo a deglutir em termos pessoais as soluções tecnológicas da música eletrônica. Terceiro, porque temos obras que funcionam tão bem ou melhor que tais composições como contextualização musical. E quarto, quinto, sexto e adiante, porque fortalecem a imposição de padrões, revelam acomodação estética e profissional, e com isso deixa-se de levar ao público expressões do próprio povo.

A música na encenação da Fundação da Vila de São Vicente

Segundo essa percepção crítica, e a título de ilustração, é resumido a seguir o processo de seleção da trilha sonora e musical do espetáculo da Fundação da Vila de São Vicente, realizada na cidade de São Vicente em janeiro de 1998, da qual o autor deste ensaio participou como diretor musical e narrador. A referida produção teve direção geral de Tanah Correa e roteiro de Orleyd Faya, contando com a participação especial dos artistas brasileiros Alexandre Borges, Ney Latorraca, Jonas Mello, Júlia Lemmertz, Edy Botelho, e do artista português José Moreira. Foi a primeira superprodução do espetáculo, que já vinha sendo realizado desde 1982 em menor escala de recursos, elenco e público. A proposta era "mostrar a chegada de Martim Afonso de Souza e a fundação da Vila de São Vicente como o resultado de um processo" 5, o processo histórico das navegações que levaram ao descobrimento do Brasil. Para contar essa história, a direção utilizou ora o recurso da representação realista, ora da representação alegórica. 6 A trilha musical procurou seguir as expressões sugeridas pelo texto narrativo, de acordo com a entonação da fala do narrador, e também visualizando a ação cênica.

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Músicas de época (Renascença) foram incluídas em momentos que cabia um reforço sonoro simbólico, como nas invasões francesas, holandesas, espanholas, ou através do canto gregoriano que sublinhava, com intenção crítica, as palavras da encíclica papal.



Nos momentos da vida tribal, principalmente nas cenas de pajelança, dança guerreira e antropofagia, a solução escolhida foi gerar material próprio, a partir de improvisações de atores músicos, além de usar solos de percussão da música popular brasileira atual, em um nível baixo de sonoridade. Em dois momentos, entretanto, quando se montava um quadro sereno da vida índia comunitária, optouse por um aparente contraste que funcionou pela atemporalidade da cena, mesmo quando servindo de transição para a retomada da narrativa histórica dos navegadores portugueses: a utilização de uma peça contemporânea para saxofone, do compositor português Jorge Peixinho (1940-1995), em que se explora a sonoridade do instrumento em notas prolongadas, com efeitos experimentais de sopro. Um outro uso aparentemente contrastante foi o uso de peças corais da Renascença portuguesa no início do espetáculo, quando os índios caminham em direção à platéia, enquanto é lido um texto sobre a escravização índia.



As cenas épicas foram marcadas principalmente por obras de Villa-Lobos. Três trechos de Uirapuru, obra citada anteriormente, serviram para intensificar dramaticamente a expedição de Vasco da Gama (acompanhada por efeitos sonoros de chuva e trovoadas, quando a "caravela humana" do grupo Orgone, de Renato di Renzo e Cláudia Alonso, representava a travessia do mar, em plena tempestade), e a viagem de Cabral. A chegada de Martim Afonso também teve música de VillaLobos (Suíte do Descobrimento e Dança do Índio Branco), retomando o tema de sua partida, após ter sido nomeado para o Brasil pelo Rei de Portugal.

Essa solução, entretanto, não corresponde à proposta idealizada pelo diretor musical. Foi adotada como alternativa, diante da falta de tempo hábil e de recursos materiais e financeiros para preparar a proposta imaginada, sugerida nas reuniões preliminares da montagem da encenação. Consistia ela em desenvolver um espetáculo que não fosse apenas representação teatral, e sim um misto de representação teatral 9

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(representação realista), com estrutura de uma ópera popular (uma antropofagia da idéia de opera rock) e elementos alegóricos típicos dos desfiles carnavalescos brasileiros, sem a canalização de uma passarela mas num espaço amplo de areia, praticamente circundado pelo público (representação alegórica). Além da característica ímpar de encenação ao ar livre em areia de praia, o espetáculo poderia ser pioneiro, também, como proposta cultural diferenciada. A título exploratório da idéia, é possível estabelecer uma comparação com os festivais de Wagner em Bayreuth, que fazem "la ville sortir de son calme accoutumé et se parer pour recevoir ses hôtes, chaque fois plus nombreux" (LAVIGNAC 1919: 19).

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Em Bayreuth, a cada

temporada há uma renovação da concepção cênica para a música dos dramas wagnerianos. São Vicente poderia desenvolver uma proposta mais flexível e de cunho popular. Tanto a música como o roteiro e a montagem teatral podem ser renovadas a cada ano. Estilos musicais diferentes podem ser associados a roteiros que mostram o processo histórico (1998), que se centram no período da ocupação do litoral paulista que antecedeu a chegada de Martim Afonso (1999), que adotam a ótica do índio como foco narrativo (2000) e, ainda, quem sabe, um seqüência retroativa, partindo do Brasil já constituído em sua nacionalidade de volta para as origens, para a chegada de Martim Afonso de Souza e outros fatos históricos. A parte musical seria então escrita especialmente para o espetáculo, podendo ser música de caráter popular, erudito ou ambos. A título de sugestão, e acenando para essa possibilidade, buscando sensibilizar os organizadores, foram compostas duas músicas, uma que seria para a abertura e outra para o encerramento. A música de abertura intitulava-se "Samba de Camões", composta sobre a última estância do Primeiro Canto de "Os Lusíadas", de Luiz Vaz de Camões. A música de encerramento era a composição "Início da Vila" (Samba da Fundação da Vila de São Vicente), reproduzida a seguir, que conta alguns momentos marcantes do início da colonização.

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INÍCIO DA VILA (Samba da Fundação da Vila de São Vicente) música e letra: Gil Nuno Vaz (em anexo, partitura reduzida para o canto da primeira parte)

1. O ano era mil, quinhentos e trinta e dois

Refrão

(E o mês?) Era o mês de janeiro

São Vicente é o coração (de mãe)

(E o dia?) Era dia vinte e dois (vinte e dois)

A Célula-Mãe do Brasil nação

(E o lugar?) Era o solo brasileiro

Quem é que não sabe?

Chegaram em nosso litoral

Quem é que não sente?

Cinco naus de Portugal

Que o Brasil inteiro cabe

Uma esquadra imponente

Na Vila de São Vicente

Foi nesse dia que aqui desembarcaram

(Diz aí, Martim!)

Nesse dia então fundaram A Vila de São Vicente

3.

Refrão

Martim Afonso de Souza veio ao Brasil

São Vicente é o coração (de mãe)

Governar com poder soberano

A Célula-Mãe do Brasil nação

Conquistar a terra que Cabral descobriu

Quem é que não sabe?

Para glória do império lusitano

Quem é que não sente?

E assim, ao som do canto do vagido

Que o Brasil inteiro cabe

Com que o Brasil recém-nascido

Na Vila de São Vicente

Começou a respirar, um bebê a chorar

(E agora, João?)

Foi aqui, no embalo dessa dança, Que o Brasil ainda criança

2.

Começou a engatinhar

Por pouco esta areia de sangue não se cobriu

Refrão

Com o branco e o índio em pé de guerra

São Vicente é o coração (de mãe)

Então João Ramalho ao meio uma flecha partiu

A Célula-Mãe do Brasil nação

Num gesto de paz que é a marca desta terra

Quem é que não sabe?

E então fizeram um grande carnaval

Quem é que não sente?

Uma festa tropical

Que o Brasil inteiro cabe

Nesta praia, neste sol de verão

Na Vila de São Vicente

O índio nu, no corpo e na pintura,

(Em que ano que foi?)

Pôs o branco na mistura

(Do início, Brasil!)

E foi tudo um só cordão

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A idéia da composição de abertura foi abandonada após a decisão de que o texto de Camões seria dito pelo artista português convidado, que resultou numa leitura de grande impacto, preparatória do desenrolar do evento. Já a composição de encerramento foi programada, tendo sido preparado um impresso com a letra, para distribuição ao público. Entretanto, problemas com o ensaio da música, por uma escola de samba local, e falta de sincronia dessa agremiação com os ensaios do espetáculo, levaram o diretor a cancelar a sua execução. 8

Comentários Finais – Por uma evangelização musical

O processo de "vangelização" musical apontado pode ser em parte explicado pela falta de cultura musical que marca, de uma forma geral, o meio teatral. Recente proposta de criação de um curso de Arte Dramática em Santos9 vem corroborar tal assertiva. Basta atentar para as nove disciplinas programadas: Interpretação Dramática, Literatura Dramática, Direção Cênica, Expressão Corporal, Expressão Vocal, História das Artes Cênicas, Caracterização Cênica, Psicologia das Relações e Ética Profissional, e Iluminação e Sonoplastia. Ou seja, a linguagem musical encontra-se embutida na disciplina Iluminação e Sonoplastia, junto com o uso de luzes e de sons em geral. Enquanto isso, o designer Ucho Carvalho calcula que o resultado estético e funcional de uma peça televisiva depende metade do visual e metade da música. 10 Torna-se necessário, portanto, como resposta a essa "vangelização" musical, uma evangelização musical genérica, que se estenda ao meio teatral e aos produtores culturais em geral, para conscientizá-los da necessidade de melhor trabalhar esse recurso, e também de colaborar para levar ao público uma informação musical mais ampla.

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Notas 1.

Vangelis é de origem grega. Tecladista, participou em início de carreira de bandas como Formix e Aphrodite's Child, de rock progressivo. Em 1970, iniciou carreira solo, montando em Londres o estúdio Nemo, laboratório onde compôs e montou a maioria da sua produção voltada para o cinema, utilizando largamente sintetizadores. Seu primeiro grande sucesso em trilha musical foi o filme Chariots of Fire (Carruagens de Fogo), ao qual se seguiram Blade Runner (O Caçador de Andróides) e outros. 2. Procedimento semelhante foi utilizado na trilha musical do filme Castelo Rá-Tim-Bum. O uso de palavras inventadas em textos de música não é incomum. O poeta Jair de Freitas tem escrito vários poemas em uma língua imaginária que lembra o latim, o provençal e outras, e alguns de seus textos foram musicados pelo compositor Lincoln Antônio, ambos originários da cidade de Santos. Na música "Acróstico para Guido d'Arezzo", do autor deste ensaio, o texto em português é pronunciado de modo a soar como latim. 3. Quando da elaboração da trilha musical do espetáculo da Fundação da Vila de São Vicente, foi sugerida por colaboradores a utilização de músicas do filme 1492. As faixas foram ouvidas atentamente, testadas com a leitura dos textos respectivos, mas não proporcionaram o efeito pretendido, e ao mesmo tempo não se articulavam adequadamente com as outras composições escolhidas. 4. Entre as honrosas exceções está a mininovela A Muralha, recentemente produzida pela Rede Globo de Televisão, sobre romance de Dinah Silveira de Queiroz, tendo a Floresta do Amazonas de Villa-Lobos como tema de abertura, sem contar as cantigas e as peças polifônicas que marcam a presença dos colonizadores. 5. Depoimento da roteirista Orleyd Faya, no video do making of do espetáculo, realizado pela Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de São Vicente. 6. Depoimento do diretor Tanah Corrêa à TV Tribuna, transmitida em 22/01/1998. 7. A decisão de montar uma grande produção para o espetáculo da encenação da Fundação da Vila de São Vicente teve a intenção, "evidentemente, de marcar a cidade como pólo turístico nacional, a partir desse apelo histórico-cultural." (VAZ 1998) 8. Em reforço à nota 2 e ao texto que a provocou, é curioso notar que, diante da decisão de cancelar a execução do samba, algumas opiniões vieram comprovar a tendência de recorrer ao padrão convencional, como a sugestão de tocar a protofonia de Il Guarany, no momento dos aplausos e agradecimentos. Por outro lado, o uso do samba acabou sendo criticado por alguns, uma vez que a solução de terminar "em carnaval" já estava sendo muito praticada nas peças teatrais. Ou seja, a proposta que a música representava passou despercebida por muitos participantes. 9. Conforme reportagem intitulada "Santos pode ganhar curso de Arte Dramática", publicada no jornal A Tribuna de 08/01/2000. 10. Depoimento do designer Ucho Carvalho, em curso realizado nos dias 12 e 13/02/2000, nas Oficinas Culturais Pagu da Delegacia Regional de Cultura em Santos, durante workshop integrante do projeto Perspectivas - Panorama das Artes para o Novo Milênio, em promoção da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e Festa - Federação Santista de Teatro Amador.

Bibliografia BAHIANA, Ana Maria. Nada Será Como Antes - MPB nos anos 70. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. CAMÊU, Helza. Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1977. LAVIGNAC, Albert. Le Voyage Artistique à Bayreuth. Paris, Librairie Delagrave, 1919. MENDES, Gilberto. A Música, in ÁVILA, Affonso - O Modernismo. São Paulo, Perspectiva, 1975. MUKUNA, Kazadi wa. Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira. São Paulo, Global, s/d. VAZ, Gil Nuno. História da Música Independente. São Paulo, Brasiliense, 1988. ____________. "Criança feliz, que vive a cantar... e a dançar". Santos, jornal A Tribuna, 12/10/1983. ____________. No "videclap", o som da Nova República. Santos, jornal A Tribuna, 18/09/1985. ____________. Encenação incrementa cultura em SV. Santos, jornal A Tribuna, 03/02/1998.

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