A Verdade ilumina o Direito ao Desenvolvimento?: uma análise da potencialidade dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade no cenário brasileiro

September 29, 2017 | Autor: Ines Soares | Categoria: Transitional Justice, Justiça De Transição, Comissão Nacional Da Verdade
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DOSSIÊ NOVOS TEMAS

A VERDADE ILUMINA O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO? UMA ANÁLISE DA POTENCIALIDADE DOS TRABALHOS DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE NO CENÁRIO BRASILEIRO1 Inês Virgínia Prado Soares Mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP); membro do Idejust; procuradora da República.

Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos Doutora em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP; pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP).

1. INTRODUÇÃO A conexão entre os eixos da justiça de transição – justiça, memória, verdade, reparação e reformulação das instituições – e o direito ao desenvolvimento começa a despertar atenção dos pesquisadores e

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1 Esse artigo é resultado da combinação de capítulos escritos pelas autoras, em separado, para o livro Direito ao Desenvolvimento, Flávia Piovesan e Inês Virginia Prado Soares (coordenadoras), Editora Forum, 2010.

defensores dos direitos humanos2, embora sejam dois campos de atuação e de estudos que não estão necessariamente vinculados, tanto porque foram construídos a partir de pressupostos diversos como porque têm abordagens, princípios e instrumentos próprios/autônomos. Um olhar um pouco mais atento sobre os temas já permite perceber que há uma construção teórica de convergência entre esses dois campos3. Os marcos conceituais do Direito Internacional de Direitos Humanos influenciam os campos da justiça de transição e do direito ao desenvolvimento. Esses campos são construídos dentro da perspectiva de proporcionar justiça social e partem de uma forte percepção da importância de construir e consolidar um aparato normativo e institucional que proteja e promova os direitos sob a perspectiva dos grupos vulneráveis ou desfavorecidos. As expectativas de um futuro mais justo, com equilíbrio na distribuição de riquezas, com novas oportunidades, com respeito às liberdades4 – estas expressadas nas liberdades políticas, nos aparatos econômicos, nas oportunidades sociais, nas garantias de transparência e na segurança protetiva – e sem repetição de graves violações aos direitos humanos são fortes indícios de que existem muitas conexões entre o desenvolvimento e os enfoques da justiça de transição5. Além disso, a justiça de transição e o direito ao desenvolvimento estão pautados por princípios comuns: da equidade e da inclusão; da accountability; da participação e transparência; do fortalecimento (empowerment) de grupos hipossuficientes (ou de vítimas); e da cooperação internacional. A convergência teórica entre desenvolvimento e verdade, como direitos que integram a cartela dos direitos humanos, no entanto, não é traduzida com facilidade na prática. O caso brasileiro é um exemplo de como essa falta de comunicação entre as demandas para efetividade dos direitos à verdade e ao desenvolvimento traz prejuízos aos direitos humanos, especialmente pelo não atendimento das demandas relativas à verdade sobre o legado de violência da ditadura militar, demandas estas frustradas pelo não processamento penal dos agressores, em razão da Lei de Anistia, publicada em 1979, durante o regime de exceção.

2 Nesse sentido, a Revista International Journal for Transitional Justice, dedicada à temática da justiça de transição, publicou uma edição especial voltada ao tema Justiça e Desenvolvimento: International Journal for Transitional Justice 2, no. 3 (2008). Alex Boraine sugere que a “reconciliação sem justiça econômica é cara e perniciosa.” Alex Boraine, A Country Unmasked (Oxford: Oxford University Press, 2000), 357. Ver também MILLER, Zinaida, Effects of Invisibility: In Search of the‘Economic’ in Transitional Justice, The International Journal of Transitional Justice, Vol. 2, 2008, 266–291, James L. Cavallaro and Sebastian Albuja, “The Lost Agenda: Economic Crimes and Truth Commissions in Latin America and Beyond,” in Transitional Justice from Below: Grassroots Activism and the Struggle for Change, ed. Kieran McEvoy and Lorna McGregor (Oxford: Hart Publishing, 2008). Gerd Junne and Willemijn Verkoren, “The Challenge of Postconflict Development,” in Postconflict Development: Meeting the Challenges, ed. Gerd Junne and Willemijn Verkoren (Boulder: Lynne Rienner, 2004); 3 No mesmo sentido, em palestra sobre a ligação entre Justiça de Transição e Desenvolvimento, Juan Méndez destaca que, embora a construção teórica da convergência entre os dois campos seja inegável, há dificuldades práticas que não podem ser ignoradas, mas que também não devem servir como justificativa para que se deixe de buscar caminhos e soluções para as demandas. MÉNDEZ, Juan E. Linking Transitional Justice and Development 4 Amartya Sen relaciona os citados tipos de liberdade e suportes para o desenvolvimento humano: SEN, Amartya. Development as Freedom. New York: Knopf, 1999. 5

GREIFF, Pablo de, Articulating the Links Between Transitional Justice and Development: Justice and Social Integration,p. 28-69.

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Sob a ótica do Direito, os atos nefastos praticados durante a ditadura, além de crimes passíveis de responsabilização individual, também desafiam a capacidade da ordem jurídica no que diz respeito às instituições privadas e às pessoas físicas que deram suporte financeiro à repressão dos opositores do regime ditatorial. Essa repressão, frequentemente, se traduziu na prática de crimes, os quais foram executados como uma política de Estado e contaram, muitas vezes, com a colaboração de toda uma sociedade ou de uma classe social e com a cumplicidade de um Direito delinquente6. A relação entre direito ao desenvolvimento e os fatores sociais, econômicos e políticos vigentes na democracia (muitas vezes decorrentes do legado da ditadura) tem desdobramentos nos casos concretos, especialmente porque essas ligações são da essência das práticas democráticas7. E informam os mecanismos que contribuem para a proteção da vida humana, com a reversão do quadro de vulnerabilidade e insegurança pessoais8 e fortalecimento dos direitos civis9. Por isso, o desenvolvimento precisa de instrumentos que permitam a participação da sociedade nos processos decisórios. A pesquisa que dá suporte a este texto partiu da concepção de que todas as violações cometidas pelo Estado ditatorial são herdadas pelo Estado Democrático. Uma questão crucial remanesce: o novo governo deve, ou não, investigar e punir os crimes de seus antecessores10? É possível revelar a verdade sobre tais crimes sem que os agressores respondam judicialmente? Em que medida a verdade sem justiça contribui para o direito ao desenvolvimento? E a verdade sobre os grupos e pessoas que deram suporte financeiro ao regime ditatorial, a qual não se obtém pelo processamento criminal? Este texto não pretende responder pontualmente a essas instigantes perguntas, mas tem o escopo de oferecer subsídios para a compreensão da questão colocada, destacando o alcance prático da convergência teórica entre os dois campos dos direitos humanos (desenvolvimento e verdade) no cenário democrático brasileiro, tomando por base a potencialidade dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – CNV, criada pela Lei n. 12.528/2011.

6 Essa roupagem legal de atos condenáveis assemelha-se ao que Hannah Arendt observou no totalitarismo alemão, ou seja, a implementação de uma lei criminosa: “O que nem a teoria política da razão de Estado, nem o conceito legal de atos de Estado previram foi a inversão completa da legalidade; no caso do regime de Hitler, toda a maquinaria do Estado impôs o que são normalmente consideradas atividades criminosas, para usar uma linguagem amena; quase não havia nenhum ato de Estado que, segundo os padrões normais, não fosse criminoso”. Ver: ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, p. 101, 2004. 7

KRIELE, Martin. Introducción a la teoria del Estado, trad. Eugênio Bulygin, Buenos Aires: Depalma, 1980, p.150.

8 CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. Direitos humanos no meio ambiente: paralelo do sistema de proteção internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.

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SEN, Amartya. Prefácio do livro Pathologies of Power, FARMER, Paul, Berkeley: University of California Press, 2003.

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ROBERTSON, Geoffrey. Crimes against humanity – the struggle for global justice. New York: The New Press, 2000.

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Essa lei, logo em seu artigo 1°, estabelece que a CNV tem por objetivo efetivar o direito à memória e à verdade histórica. Assim, em mais uma aproximação com o direito ao desenvolvimento, a memória e a verdade são declaradas como direitos. Esses direitos, expressamente previstos na referida Lei n. 12.528/2011, devem ser efetivados pelo Estado, não somente pela CNV, mas também por outros mecanismos judiciais ou extrajudiciais. Iniciaremos com o objetivo de destacar a importância da Comissões da Verdade para o desenvolvimento nos Estados democráticos, apresentaremos as conexões e diferenças entre direito ao desenvolvimento e justiça de transição, sob a ótica dos direitos humanos. Em seguida, analisaremos as Comissões de Verdade sob a perspectiva da reparação às vítimas e do direito ao desenvolvimento. A partir da pergunta “o que se quer saber de verdade?”, e, tomando por base experiência e doutrina internacionais, analisaremos a potencialidade de a Comissão da Verdade brasileira trazer à tona a verdade, consolidando essa versão como verdade histórica. Por fim, os dois últimos itens do artigo identificam alguns dilemas no olhar conjunto para o direito ao desenvolvimento e para a justiça de transição e retornam ao tema da Comissão da Verdade como instrumento que abriga, alternadamente, os direitos a reparações e ao desenvolvimento.

2. A ABORDAGEM DE DIREITOS HUMANOS PARA O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO E PARA A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO A concepção contemporânea é de que os direitos humanos integram uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, com traços que permitem a conciliação entre catálogos de direitos civis e políticos e de direitos sociais, econômicos e culturais e precisam de um patamar mínimo de democracia11. Como os direitos humanos são tema que abriga uma diversidade de direitos, há um esforço contínuo nos âmbitos local12, regional e internacional para estabelecer instrumentos próprios13 dedicados às temáticas específicas, de acordo com as violações praticadas e com os direitos humanos ameaçados ou violados. 11

STEINER, Henry J.; ALSTON, Philip. International Human Rights in Context, New York : Oxford University Press, 2000.

12 ABREGÚ, Martín; COURTIS, Christian (Ed). La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales, Buenos Aires : Editores del Puerto, 2004. 13 Sobre a justiciabilidade dos direitos sociais ver: Cançado Trindade, Antônio Augusto, La justiciabilidad de los derechos económicos, sociales y culturales en el plano internacional, en Lecciones y Ensayos, Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires/Abeledo Perrot, 1998; ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian, Apuntes sobre la exigibilidad judicial de los Derechos Sociales, en ABRAMOVICH, Víctor, AÑON, María José y COURTIS, Christian, Derechos Sociales: Instrucciones de uso, Buenos Aires : Distribuciones Fontamarra, 2003. Víctor Abramovich y Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, Trotta, Madrid, 2002, 2da. edición 2004.

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A abordagem do direito ao desenvolvimento como direitos humanos remete à concepção de que o desenvolvimento não é apenas um direito ligado a demandas econômicas, mas sim um direito que, pela sua natureza indivisível, interdependente e inter-relacionado, pressupõe uma conciliação entre os catálogos de direitos civis e políticos e de direitos sociais, econômicos e culturais. Por isso, o fio condutor do desenvolvimento é a oferta de condições básicas para que cada pessoa tenha capacidade econômica para fruir uma vida saudável, longeva, com educação e dentro de um padrão digno14. Além disso, a abordagem de direitos humanos indica que o desenvolvimento está vinculado à possibilidade de os povos e os indivíduos exercerem suas liberdades fundamentais, sob um patamar mínimo de democracias15. E, inclusive, com a formulação de suas necessidades econômicas16 e com o acompanhamento da execução das políticas públicas que contemplam essas demandas. A trajetória dos documentos produzidos pelos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos acompanhou a mudança na percepção do direito ao desenvolvimento como direito vinculado exclusivamente à equânime repartição de recursos econômicos. Como resultado, evoluindo-se, nos dias atuais, à uma concepção de direito ao desenvolvimento como um conjunto de abordagens, iniciativas e mecanismos para realização dos direitos humanos (individuais e coletivos) sob enfoques da facilitação do desenvolvimento, da participação social e da justiça social. Seguindo a concepção de desenvolvimento como direito humano (sistematizada na Declaração em comento), a Declaração de Viena (ONU, 1993) reafirmou os principais aspectos do teor do desenvolvimento, declarando que o direito ao desenvolvimento é um direito universal e inalienável e parte integral dos direitos humanos fundamentais. E que a falta de desenvolvimento não poderá ser invocada como justificativa para se limitar os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. O documento também realça a importância da cooperação entre Estados, cabendo à comunidade internacional promover uma cooperação internacional eficaz, com foco na realização do direito ao desenvolvimento e na eliminação de obstáculos ao desenvolvimento. Além da cooperação internacional, a Declaração de Viena destaca a relevância das “políticas eficazes de desenvolvimento em nível nacional, bem como de relações econômicas equitativas e de um ambiente econômico favorável em nível internacional”. A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais são tratados na Declaração de Viena como conceitos interdependentes, que se reforçam 14 O programa de desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP - sigla em inglês) define o desenvolvimento humano como: “a process of enlarging people’s choices. The most critical ones are to lead a long and healthy life, to be educated, and to enjoy a decent standard of living. Additional choices include political freedom, guaranteed human rights and self-respect.” United Nations Development Programme (UNDP), Human Development Report (New York: UNDP, 1990), 10.

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STEINER, Henry J. e ALSTON, Philip, International Human Rights in Context, New York: Oxford University Press, 2000.

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No mesmo sentido, ver Sen, Amartya. The Idea of Justice, Cambridge, Harvard University Press, 2009.

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OFICINA DA ONG ACESSO CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS NO BOJO DO PROJETO MARCAS DA MEMÓRIA DA COMISSÃO DE ANISTIA (PORTO ALEGRE/RS) FONTE: ONG ACESSO

mutuamente. A indicação da interdependência entre democracia, desenvolvimento e liberdades já seria suficiente para a formulação teórica das conexões entre o desenvolvimento e as demandas de sociedades submetidas a regimes autoritários, como o Brasil, que passou por uma ditadura militar em período recente (1964-1985), com graves violações de direitos humanos. No entanto, a Declaração de Viena preferiu explicitar a ligação entre a justiça de transição e o desenvolvimento, reafirmando que os países menos desenvolvidos que optaram pelo processo de democratização e reformas econômicas devem ter o apoio da comunidade internacional em sua transição para a democracia e o desenvolvimento econômico. Por fim, ainda destaca a importância do desenvolvimento sustentável, ressaltando que o “direito ao desenvolvimento deve ser realizado de modo a satisfazer equitativamente as necessidades ambientais e de desenvolvimento de gerações presentes e futuras”. E o direito que todas as pessoas têm “de desfrutar dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações”.

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A Carta Democrática Interamericana (OEA, 2001) declara que “a democracia é essencial para o desenvolvimento social, político e econômico dos povos das Américas (art.1)” e que “a democracia e o desenvolvimento econômico e social são interdependentes e reforçam-se mutuamente (art.11)”. Além disso, é estabelecido que “a participação dos cidadãos nas decisões relativas ao seu desenvolvimento é um direito e uma responsabilidade. É, também, uma condição necessária para o exercício pleno e efetivo da democracia (art. 6)”. O documento considera que “a observância dos direitos econômicos, sociais e direitos culturais é inerente ao desenvolvimento integral, ao crescimento econômico com equidade e à consolidação da democracia dos Estados no Hemisfério (art. 13)”. Em todo teor da Carta há menção à democracia e ao desenvolvimento como o fio condutor da ação dos povos das Américas. O direito ao desenvolvimento previsto na normativa internacional tem como pressupostos a democracia e a paz, sendo composto por um rol de preceitos, valores e direitos, dentre os quais estão: a) a livre autodeterminação dos povos; b) a indivisibilidade e a interdependência dos direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos; c) o direito de cada Estado gerir soberanamente seus recursos naturais e culturais; d) o dever estatal de eliminar e prevenir violações massivas de direitos humanos; e) a oferta de mecanismos que favoreçam o aproveitamento equânime de oportunidades (para os Estados e para os indivíduos); e f) a adoção de postura cooperativa entre atores nacionais e internacionais para redução das desigualdades entre os povos e construção de uma nova ordem econômica internacional. Um dos temas do direito ao desenvolvimento relaciona-se à liberdade ligada às garantias de transparência, ou seja, nas interações sociais, os indivíduos se relacionam com os outros com base em algumas presunções do que lhes é oferecido e do que eles esperam receber. Nesse sentido, a sociedade opera com base na presunção da confiança; por isso, as garantias de transparência versam sobre a necessidade de abertura que as pessoas esperam: a liberdade de se relacionar umas com as outras, com base nas garantias de revelação e lucidez. Quando essa confiança é seriamente violada, a vida de muitas pessoas pode ser adversamente atingida pela falta de abertura. E essa falta de abertura e transparência, que macula a presunção de confiança entre as pessoas, é muito usual nos regimes ditatoriais. Tanto é que, durante os períodos ditatoriais, é comum que os governos caracterizem-se por violações sistemáticas dos direitos de seus cidadãos por meio de uma polícia secreta que os mantém sob seu poder, cometendo torturas e assassinatos, por meio dos chamados “esquadrões da morte”, e perseguindo dissidentes políticos por meio de espiões estatais e informantes. trata-se, aqui, do criptogoverno, que nas palavras de Celso Lafer17 representa “aquele conjunto de ações 50

17 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, p. 257, 1988.

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realizadas por forças políticas que atuam à margem da lei, na sombra, e que operam por meio de serviços secretos. O efeito maléfico do criptogoverno de agências como a CIA, nos EUA, e, entre nós, o SNI e os Centros de Informações das Forças Armadas no período do regime militar é o de minar a confiança recíproca, sem a qual não se constrói um mundo comum”. Depois de enfrentar desafios inéditos, como reconhecer as vítimas, honrar a memória, recontar a história, impedir a guerra e reconstruir uma comunidade jurídica, novos objetivos surgem a partir do momento da consolidação da democracia. Com a transição para democracia, nota-se que uma grande parte da violência praticada não é traduzida em atos nefastos e criminosos contra vítimas que podem ser individualizadas. A quebra de confiança nas instituições, o medo, a associação do silêncio com a segurança pessoal e familiar são alguns dos exemplos da necessidade de responsabilizar publicamente outros atores por atos graves, que são violações massivas contra outros direitos humanos, geralmente ligados à liberdade (de expressão, de associação etc). A apuração da verdade sobre os acontecimentos e atos de violência praticados, a reparação dos danos causados às vítimas e à sociedade brasileira, a prevenção contra novas violações aos direitos humanos, a responsabilização e os limites para concessão de perdão aos agressores (principalmente por leis de anistia) são temas típicos da justiça de transição, que integram as agendas de direitos humanos de diversos países, inclusive do Brasil. Nesse contexto, surgem outros desafios, traduzidos nas perguntas: como, então, julgar a responsabilidade dos agentes particulares e instituições privadas por violações que se encontram na fronteira entre o direito, a ética e a política? Como compreender os novos temas entre justiça e desenvolvimento que surgiram e foram realçados pela experiência de violência extrema? Somam-se a essas o já muito bem apontado por Garapon18: como julgar sem, necessariamente, punir? Como, então, fazer justiça a essas violações massivas que chamam a atenção de toda a comunidade internacional em razão de sua monstruosidade? Nessa reflexão, as demandas das vítimas e da sociedade sobre o acerto de contas em relação ao passado se somam a tantas outras necessidades atuais e futuras que também exigem investimentos financeiros, elaboração e implementação de políticas públicas, emprego de pessoal, oferta de mecanismos participativos etc. Como destaca Jon Elster, em geral, antes de destinarem-se a juízos ou purgas, os recursos humanos e financeiros delineados nas políticas públicas são estabelecidos para o futuro, como o “desenho constitucional, a reconstrução econômica ou a transformação econômica”19. Ou seja, a escolha entre atender as demandas atuais de saúde, educação, tutela dos recursos naturais etc e as demandas retrospectivas de 18

GARAPON, Antoine. Des crimes qu’on ne peut ni punir ni pardonner. Pour une justice internationale. Paris: Odile Jacob, pp. 12-15, 2002.

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ELSTER, Jon, Rendición de Cuentas: La justicia transicional em perspectiva histórica, 1 ed. Buenos Aires: Katz, 2006, p.248.

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justiça, verdade e memória herdadas de um período ditatorial (ou de conflitos armados) é um dos dilemas enfrentados na elaboração de políticas públicas, que sempre envolve ponderações complexas, seja em países em desenvolvimento (países da África ou da América Latina), seja em países desenvolvidos. No Brasil, essa questão não chega a ser um dilema importante ou um obstáculo para o programa de reparação financeira das vítimas. Tanto é assim, que diferentes leis amparam o aporte de recursos para pagamento de indenizações a vítimas, perseguidos políticos e familiares de desaparecidos. No mesmo sentido, há previsão legal para gastos com o funcionamento adequado da Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV), para que seus trabalhos se desenvolvam no período de dois anos. As Comissões de Verdade são uma possibilidade de explicar o passado, segundo documento produzido pelo Escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos.20 Por essa razão, como consequência da experiência acumulada pelas Comissões de Verdade, os assuntos relacionados a reformas em setores essenciais do Estado e em espaços de repercussão pública passam a ter destaque nos relatórios produzidos, como pontua Priscilla Hayner21. Essa questão, embora complexa, no âmbito político, tem respaldo jurídico no caso brasileiro e não pode ser utilizada como argumento válido para a Comissão Nacional da Verdade não investigar e revelar os agentes e fatores de sustentação do regime ditatorial. Um dos traços das Comissões de Verdade que já funcionaram no mundo é o de ser um instrumento que permite a responsabilização, pública e não judicial, dos que praticaram atos nefastos contra os direitos humanos. E, ou, que contribuíram para a manutenção do regime de exceção, especialmente financiando o sistema repressivo. A Comissão Nacional da Verdade, em nosso país, tem esse traço, com dispositivos legais que permitem que a comissão contribua, efetivamente, para a elucidação da verdade. O legado autoritário e os fatores de sustentação do governo ditatorial brasileiro podem ser expostos e conhecidos pela CNV. No caso brasileiro, a relação, durante o regime ditatorial, entre governo e grupos detentores de poder econômico é um aspecto da verdade sobre o legado de violência ainda pouco explorado, embora extremamente importante para a compreensão dos acontecimentos atuais. Não se sabe se a Comissão Nacional da Verdade adentrará nessa delicada seara. No entanto, caso essa linha de investigação e esclarecimento seja adotada, há suporte na lei que criou a CNV 20 Herramientas del Estado de Derecho para Estados de Post-Conflicto, Rule-of-Law for Post-Conflict State, Oficina del Alto Comisionado de Naciones Unidas para los Derechos Humanos, Nueva York, 2006, HR/PUB/06/1) disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/ Publications/RuleoflawTruthCommissionssp.pdf, acesso em 05.02.10. 52

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HAYNER, Priscilla. Unspeakable Truths. Facing the Challenge of Truth Commissions. New York: Routledge, pp. 154-169, 2001.

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para identificar e tornar públicas as estruturas, as instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos e suas eventuais ramificações na sociedade (inc. III art.3º), bem como para promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos (inc VII do art.3º). Por isso, um dos resultados da CNV pode ser esclarecer quais foram os setores da sociedade civil que apoiaram, significativamente (com recursos financeiros, materiais e humanos), a ditadura militar brasileira e de que forma esse suporte foi dado.

3. COMISSÕES DE VERDADE: REPARAÇÕES E DIREITO AO DESENVOLVIMENTO Em geral, a disciplina da justiça de transição reconhece que, devido à realidade política e histórica, os mecanismos da justiça tradicional podem ser inadequados durante a transição política para a democracia22, porque se mostram inaptos para tratar de episódios de violações de direitos humanos em escala massiva. No entanto, as comissões em busca da verdade que se formaram no transcorrer de muitos processos de transição política passaram a analisar a punição e a responsabilidade como sendo temas distintos. E sobre essa distinção, os partidários das comissões de verdade e defensores da justiça de transição afirmam23 que o modelo de justiça penal retributivo, cujo tema central

“Sem pretender uma definição de vítima, pode-se dizer ao menos que se está assinalando, em primeiro lugar, o sofrimento voluntariamente infringido a um inocente”.

é a punição, não avança em importantes interesses sociais em busca de uma ordem social justa e estável. Em particular, a escola da justiça de transição enfatiza a necessidade de se concentrar a

atenção

mais

explicitamente

na

restauração do relacionamento entre as vítimas, os perpetradores e a sociedade, ao invés da punição.

22 BENOMAR, Jamal. “Justice after Transitions”. In: KRITZ, Neil J. (Org.). Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes. New York: United States Institute of Peace Press, 1995. 23 ARRIAZA, Naomi Roth. “Nontreaty sources of the obligation to investigate and prosecute”. In: ARRIAZA, Naomi Roth (Org.). Impunity and human rights in international law and practice. New York: Oxford University Press, 1995.

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Enquanto modelos para Comissões de Verdade variam dependendo das condições locais de cada país, estas, tipicamente, consistem em um órgão temporário de investigação, cujo mandato inclui o estabelecimento de uma história oficial sobre os episódios de violência, repressão e outras situações que culminaram em violações de direitos humanos24. Algumas vezes, as Comissões de Verdade são controversas quando aparecem como substitutas dos mecanismos tradicionais de justiça, numa troca de verdade por justiça25. Defende-se que, em certos casos, elas são preferíveis quando procedimentos penais são impossíveis devido às exigências políticas, de forma que as Comissões de Verdade respondem ao vazio deixado por uma justiça comprometida, constituindo-se em uma segunda melhor opção26. De fato, mecanismos extrajudiciais, como as Comissões de Verdade, podem ser mais aptos a promover o restabelecimento nacional após o conflito, oferecendo uma melhor estrutura para restaurar a justiça, do que julgamentos individualizados. Especialmente porque elas podem recomendar planos de reparações para várias categorias de vítimas e sobreviventes – aquelas pessoas que sofreram as violações diretamente e para seus familiares. Além do que, diferentemente dos julgamentos penais em que a vítima tem um papel secundário, as Comissões de Verdade podem proporcionar audiências públicas focadas, especialmente, nas versões das vítimas. Sem pretender uma definição de vítima, pode-se dizer, ao menos, que se está assinalando, em primeiro lugar, o sofrimento voluntariamente infringido a um inocente. Não se está tratando da vítima de uma catástrofe natural, mas, sim, daquele sofrimento provocado pelo homem voluntária e gratuitamente. Não se pode, portanto, associar a vítima com o mero sofrimento, porque, se assim o fosse, os nazistas condenados à morte em Nuremberg também sofreram. Mas não eram vítimas porque não eram inocentes27. Assim, a função da memória observada no caso da África do Sul, onde se buscava a reconciliação e a restauração da unidade nacional por meio da Comissão de Verdade e Reconciliação, levou Derrida28 a compreender o dever de memória como uma cura terapêutica. E o relato das experiências vividas como sendo capaz de aliviar a dor que havia sido impingida às vítimas. 24 POPKIN, Margaret & ROHT-ARRIAZA, Naomi. “Truth as Justice: Investigatory Commissions in Latin America”. In: KRITZ, Neil J. (Org.). Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes. New York: United States Institute of Peace Press,1995. 25 GUTMANN, Amy & THOMPSON, Dennis. “The Moral Foundations of Truth Commissions”. In: ROTBERG, Robert I. & THOMPSON, Dennis (Orgs.). Truth versus Justice: The Morality of Truth Commissions. Princeton: Princeton University Press, 2000. 26 BERAT, Lynn & SHAIN, Yossi. “Retribution or Truth-Telling in South Africa? Legacies of the Transitional Phase”. In: Law & Social Inquiry, vol. 20, 1995. 27

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MATE, Reyes. “La justicia de las víctimas”. In: Revista Portuguesa de Filosofia, vol. 58, n. 2, pp. 299-318, 2002.

28 Nas palavras de Derrida: “(...) o dever de memória é a melhor terapêutica do corpo social ou nacional contra os efeitos patológicos do recalque. (...) se escutarmos o próprio Mandela, sua experiência (...) A história do relato autobiográfico era exigida pelo sofrimento que passou, pelo cativeiro de 27 anos, pelo que é preciso chamar de martírio de Mandela (...) Martírio, sim, pois o martírio exigia o relato, a saber, o que faz a dor passar para uma linguagem testemunhal”. Ver: DERRIDA, Jacques. “O perdão, a verdade, a reconciliação: qual gênero?” In: NASCIMENTO, Evandro (Org.). Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, pp. 58-62, 2005.

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O valor do direito à memória como fórmula de justiça, em detrimento da aplicação de um processo judicial, também foi apontado por Garapon29. Ele afirma que a memória havia se tornado o imperativo que exonerava a tarefa ingrata de se fazer justiça com instrumentos prosaicos, como as regras e os princípios processuais, pois as ficções jurídicas tornaram-se escandalosas quando o sofrimento humano encontra-se em jogo. De tal forma, que as exigências processuais assemelham-se a formalidades inúteis e ultrajantes. Por último, o direito à memória revela, também, uma atitude positiva diante dos fatos, pois envolve a lembrança. E lembrar-se não é somente acolher, receber uma imagem do passado. É, também, pesquisá-la30, fazer alguma coisa com ela, de tal forma que lembrar-se designa, de fato, que a memória está sendo constantemente exercida. O contrário desse exercício da memória é o esquecimento. A partir dele, gera-se uma vulnerabilidade da própria condição histórica, quando se permite o esquecimento do passado por meio da destruição de um arquivo, de um museu ou de uma cidade31. Assim, as observações sugerem que qualquer procedimento centrado na vítima deve dar grande ênfase ao relato, para que as pessoas possam ser capazes de contar suas histórias diante de um juiz ou de uma autoridade formal considerada neutra e atenta ao relato dos fatos. Isto porque, muitas vezes, o tratamento respeitoso torna-se mais importante do que a reparação pecuniária. Essa afirmação demonstra a utilidade do reconhecimento público do erro, dos monumentos, das comemorações e de outras formas simbólicas de reparações como métodos importantes em uma abordagem voltada à vítima. O que sugere que a compensação ou o encarceramento do ofensor, unicamente, não são suficientes. É importante observar, entretanto, que quando se discute o valor da verdade e da memória coletiva a maioria da literatura sobre justiça de transição privilegia a necessidade de se revelar os fatos a respeito das violações de direitos humanos. E, pouco frequentemente, menciona a necessidade de se explorar a verdade sobre os fatores e condições que levaram a tais violações32. As Comissões de Verdade, enquanto cuidadosamente se dedicam à documentar violações específicas de 29

GARAPON, Antoine. Des crimes qu’on ne peut ni punir ni pardonner. Pour une justice internationale. Paris: Odile Jacob, p. 167, 2002.

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RICOEUR, Paul. La Mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Éditions du Seuil, p. 67, 2000.

31 Por essa razão, Ricoeur salienta a importância do debate entre a memória e o esquecimento, mencionando que a própria memória se define como uma luta contra o esquecimento, como se o dever de memória se enunciasse como uma exortação a não se esquecer, significando que a memória precisa negociar com o esquecimento, para que encontre uma medida justa de seu equilíbrio para com ele (esquecimento). Ver: RICOEUR, Paul. Idem, pp. 536-537. 32 POPKIN, Margaret & ROHT-ARRIAZA, Naomi. “Truth as Justice: Investigatory Commissions in Latin America”. In: KRITZ, Neil J. (Org.). Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes. New York: United States Institute of Peace Press, 1995. HAYNER, Priscilla B. “International Guidelines for the Creation and Operation of Truth Commissions: A Preliminary Proposal”. In: Law & Contemporary Problems, vol. 59, 1996.

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direitos civis e políticos, tradicionalmente têm devotado pouca atenção a explicar por qual motivo esses abusos ocorreram. Relatórios de Comissões de Verdade, tais como de Argentina (1984), Chile (1991) e El Salvador (1993), apresentam breves explicações sobre a polarização política, o aparato repressivo do Estado, a corrupção nos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a ruptura do Estado de Direito etc. Entretanto, experiências mais recentes, como do Peru (2003) e da Guatemala (1999), têm pesquisado mais profundamente sobre as causas históricas, sociais e econômicas e as condições que levaram o país à “guerra suja”33.

4. COMISSÃO DA VERDADE E VERDADE HISTÓRICA: O QUE SE QUER SABER DE VERDADE? A informação detalhada sobre esses e outros acontecimentos nefastos da ditadura militar brasileira é um dever estatal essencial para a consolidação da democracia. As histórias das circunstâncias e motivos das mortes das vítimas, a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos, a revelação do teor de documentos do período são demandas de verdade que ainda precisam de respostas, na esfera pública, para que violações graves do Estado contra os direitos humanos nunca mais voltem a acontecer. No plano internacional, as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) valorizam a verdade e repudiam a omissão dos países em relação aos desaparecimentos forçados e a outras violações nos casos das ditaduras. O Conjunto de princípios atualizados para a proteção e a promoção dos direitos humanos na luta contra a impunidade, produzido pela Comissão de Direitos Humanos da ONU34, considera o direito à verdade como direito inalienável dos povos. Como um direito que somente efetiva com o conhecimento da verdade a respeito dos crimes do passado, inclusive sobre circunstâncias e motivos envolvendo tais atos. Como forma de garantir o direito à verdade, em 18 de novembro de 2011, foram promulgadas duas leis: a Lei de Acesso às Informações Públicas e a lei que cria a Comissão da Verdade no Brasil. Essas leis chegam um ano depois da condenação do Brasil pela Corte IDH, no caso conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Nesse caso, cerca de 70 vítimas estão, até hoje, desaparecidas, não havendo uma explicação do governo brasileiro sobre o que realmente 33 LAPLANTE, Lisa J. “On the Indivisibility of Rights: Truth Commissions, Reparations, and the Rights to Development”. In: Yale Human Rights & Development Law Journal, pp. 141-177, vol. 10, 2007. 56

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E/CN.4/2005/102, disponível em
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