A Via Campesina diante da crise global: a proposição de um modelo agrícola alimentar soberano

May 30, 2017 | Autor: Adriane Camargo | Categoria: Food Sovereignty, Food Security, La Vía Campesina, Social Moviments, Seeds, Food regimes
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Coordenador do Projeto Editorial Praxis Prof. Dr. Giovanni Alves Conselho Editorial Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO Prof. Dr. Jorge Machado – USP Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE

C1728m

Camargo, José Marangoni Múltiplas Faces da Crise Econômica e Financeira Mundial / José Marangoni Camargo, Agnaldo dos Santos e Mirian Cláudia Lourenção Simonetti. - - Bauru, SP: Canal6, 2012. 148 p. ; 21 cm. (Projeto Editorial Praxis) ISBN 978-85-7917-217-5 1. Economia. 2. Crise Econômica Mundial. 3. Crise Financeira Mundial. I. Camargo, José Marangoni. II. Santos, Agnaldo dos. III. Simonetti, Mirian Cláudia Lourenção. IV. Título. CDD: 338 Copyright© Canal 6, 2012

Capítulo 5

A via campesina diante da crise global: a proposição de um modelo agrícola alimentar soberano Mirian Claudia Lourenção Simonetti1 Adriane de Sousa Camargo2 1*2**

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retende-se, nesse texto, trazer elementos para pensar o posicionamento e a atuação da Via Campesina diante da crise global. Essa crise se apresenta de modo multifacetado e generalizado, caracterizando-se em uma crise financeira-alimentar-energético-climática, resultante do processo de reprodução ampliada do capital, que na atualidade se baseia no avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema

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Professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília. Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Geografia Humana, com ênfase nos temas sobre movimentos sociais, políticas públicas de reforma agrária e meio ambiente. É coordenadora do Centro de Pesquisa e Estudos Agrários e Ambientais (CPEA). Bolsista Produtividade 2 CNPq.

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Discente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Centro de Pesquisa e Estudos Agrários e Ambientais (CPEA) da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Coordenador do Projeto Editorial Praxis Prof. Dr. Giovanni Alves Conselho Editorial Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO Prof. Dr. Jorge Machado – USP Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE

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Camargo, José Marangoni Múltiplas Faces da Crise Econômica e Financeira Mundial / José Marangoni Camargo, Agnaldo dos Santos e Mirian Cláudia Lourenção Simonetti. - - Bauru, SP: Canal6, 2012. 148 p. ; 21 cm. (Projeto Editorial Praxis) ISBN 978-85-7917-217-5 1. Economia. 2. Crise Econômica Mundial. 3. Crise Financeira Mundial. I. Camargo, José Marangoni. II. Santos, Agnaldo dos. III. Simonetti, Mirian Cláudia Lourenção. IV. Título. CDD: 338 Copyright© Canal 6, 2012

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alimentar de diferentes países do mundo. Esse processo atinge de maneira desigual grupos sociais, camponeses, populações originárias e etnias. O processo de globalização não se aprofunda sem encontrar resistências. Ao mesmo tempo em que integra a economia mundial também favorece a emergência de diferentes forças sociais que se projetam e constroem um novo cenário político de participação dos movimentos sociais no contexto internacional. Os movimentos sociais se caracterizam como ações coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas das populações se organizarem e demandarem seus direitos. Na atualidade, atuam por meio de redes sociais locais, regionais, nacionais e internacionais e utilizam-se das novas tecnologias de comunicação e informação. Seus atos comportam ações tais como mobilizações, grandes marchas, concentrações e demais enfrentamentos aos poderes constituídos (Gohn, 2003). Há no mundo uma ampla gama de movimentos que se opõe aos processos da globalização. No que concerne às questões da agricultura, destacamos as ações da Via Campesina, tanto pela sua articulação, como pela amplitude de sua intervenção na sociedade contemporânea. A Via Campesina é um movimento social internacional que coordena organizações camponesas, pequenos e médios produtores, organizações rurais de mulheres, comunidades indígenas, organizações de Sem Terra, organizações da Juventude rural, trabalhadores agrícolas migrantes, dentre outros. A Via Campesina nasce em 1992 durante o Congresso da Unión Nacional de Agricultores y Granaderos (UNAG) e,

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desde sua formação3, o movimento tem concentrado suas ações na crítica ao atual modelo capitalista vigente na agricultura mundial, bem como às instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), que são responsáveis pela manutenção desse modelo imposto à agricultura. Concomitantemente, a Via Campesina trabalha de maneira propositiva, buscando alternativas viáveis para a solução de problemas advindos da globalização de um único modelo agrícola, o capitalista. Desse modo, a Via Campesina cumpre seu propósito de defender os interesses de seus membros, atuando em diversas arenas onde são definidas as políticas internacionais dirigidas à agricultura, como na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Destarte, a Via Campesina age com uma organização articuladora de interesses de atores com menor poder de influência no palco internacional e se estabelece, simultaneamente, como arena e ator nas relações internacionais, na medida em que promove um ambiente propício para a participação dos movimentos sociais que a forma e atua internacionalmente sob uma única bandeira, a da Via Campesina. Nas últimas décadas, assistimos no Brasil, e em diferentes países do planeta, uma aceleração da destruição da agricultura camponesa e uma ampliação das monoculturas ligadas ao agronegócio de exportação. Como resultado, podemos perceber uma enorme concentração das terras nas 3

Até a Conferência de Maputo, ocorrida em 2008, a Via Campesina possuía 148 organizações participantes do movimento, estabelecidas em 69 países. (LA VÍA CAMPESINA, 2008b).

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mãos de poucos proprietários e a destruição das florestas nativas. As consequências ecológicas desse processo são bem conhecidas: a destruição das florestas destrói a biodiversidade, os mananciais, os rios e as populações. Verifica-se o crescente avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais na agricultura e no sistema alimentar dos países da América Latina, África e Ásia. Esse avanço envolve desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos até a compra dos produtos, bem como seu processamento, transporte, distribuição e venda ao consumidor. Cada vez mais a produção, distribuição, circulação e consumo dos produtos agrícolas estão centralizados em um número reduzido de empresas. Uma das consequências disso é que os alimentos deixam de ser um direito e tornam-se cada vez mais mercadorias. Verifica-se também uma ofensiva do capital sobre os recursos naturais. O processo de reprodução ampliada do capital lança as grandes empresas numa guerra de privatização que as levam a expulsar camponeses, comunidades indígenas, privatizando suas terras, territórios, florestas, biodiversidade, água e minérios. O cultivo de agrocombustíveis (cana-de-açúcar) em grandes monoculturas industriais também é razão dessa expulsão, amparada em argumentos sobre a crise energética e climática. A realidade por trás destas últimas facetas da crise tem a ver com a atual matriz de transporte de longa distância dos bens, e individualizado em automóveis. Esse fenômeno deve ser compreendido no contexto dos processos vinculados a globalização neoliberal que, segundo Boaventura de Sousa Santos (2005),

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[...] corresponde a um novo regime de acumulação de capital, um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, a dessocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais, e políticos que no passado garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu todo à lei do valor, no pressuposto de que toda atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma de mercado. A conseqüência principal desta dupla transformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das oportunidades produzidos pela globalização neoliberal no interior do sistema mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país (p. 11). Assim, face ao aprofundamento do processo da globalização neoliberal, e às consequências danosas deste sobre as populações originárias e camponesas, esses sujeitos emergem por meio da ação coletiva no cenário internacional. Segundo Desmarais (2007), A força brutal da globalização contribuiu para o surgimento de uma grande variedade de novos atores sociais.  Também levou às novas estruturas de ação coletiva entre os

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atores sociais tradicionais, incluindo as organizações camponesas. [...] todos estão tentando estabelecer uma presença e esculpir espaços políticos alternativos em que as suas preocupações e demandas possam ser articuladas, negociadas e que se sejam acomodadas em um contexto de uma globalização contestada. (p. 24, tradução nossa4). A construção dos novos espaços políticos esculpidos por esses novos atores sociais também é alvo de ação política da Via Campesina, que, se utilizando das novas estruturas de ação coletiva, apresenta um potencial de transformação da atual realidade camponesa. Claramente, a Via Campesina está preenchendo um vazio importante. Sua existência é a evidência de novas estruturas de ação coletiva no campo; suas estratégias desafiam modelos tradicionais de organização no setor rural, e da magnitude de sua presença internacional - sua natureza dinâmica, a diversidade cultural e a distri4

The brutal force of globalization contributed to the emergence of great variety of new social actors. It also led to new structures of collective action among traditional social actors, including peasant organizations. [...] all are trying to establish a presence and carve out alternative political spaces in which their concerns and demands can be articulated, negotiated, and accommodated in the context of a contested globalization. (DESMARAIS, 2007, p. 24)

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buição geográfica ampla - fala a  suas potencialidades transformadoras. (Desmarais, 2007, p. 09, tradução nossa5). Para tanto, a Via Campesina se baseia numa organização em rede, visto que ela não existe fora das organizações-membros que a constitui. Quando se fala na Via Campesina como uma rede transnacional de movimentos sociais, partimos da perspectiva de que a Via Campesina sofre influências mútuas, partindo elas da esfera local para a esfera global e da esfera global para a esfera local (Simonetti, 2006). Uma das ações políticas da Via Campesina de maior notoriedade são suas campanhas internacionais. Através destas, a organização estabelece estratégias de ação para toda a rede, buscando alcançar outros setores da sociedade de maneira a tornar conhecidas suas demandas. A criação e a promoção de um novo modelo agrícola baseado no conceito de soberania alimentar, conceito esse formulado dentro do âmbito da própria Via Campesina, permitiu o reconhecimento, por parte de outros atores internacionais, da relevância do trabalho desempenhado pela rede em relação aos temas agrícolas. Esse trabalho é fruto de outra percepção de agricultura por parte dos movimentos sociais que são agrupados na

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Clearly, La Vía Campesina is filling important void. Its very existence is evidence of new structures of collective action in the countryside; its strategies defy traditional patterns of organizing in the rural sector; and the sheer magnitude of its international presence - its dynamic nature, cultural diversity, and wide geographical distribution - speaks to its transformatory potential. (Desmarais, 2007, p. 09).

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Via Campesina, sendo ela diversa do modelo proposto pelas organizações internacionais intergovernamentais, como a FAO e a OMC. O modelo da rede vai ao encontro das aspirações daqueles que lidam diretamente com a terra, de modo que se trata de um [...] modelo radicalmente diferente de agricultura, baseado no conceito de soberania alimentar. O movimento camponês acredita que isso só pode ser feito através da construção de unidade e solidariedade entre a grande diversidade de camponeses e organizações de agricultores em todo o mundo. (Desmarais, 2007, p. 26-27, tradução nossa6). O conceito de “soberania alimentar” amplia e aprofunda o conceito de “segurança alimentar”, sendo este último o conceito basilar das políticas alimentares implementadas pela FAO. Para esta organização, a “segurança alimentar” é garantida no acesso aos alimentos em quantidade considerada suficiente para atender todas as necessidades nutricionais dos indivíduos, conforme consta no Plano de Ação da Cúpula Mundial da Alimentação (FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION, 1996), documento assinado juntamente com a Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mun6

[…] main goal of the Vía Campesina is to build radically different model of agriculture, one based on the concept of food sovereignty. The peasant movement believes that this can only be done by building unity and solidarity among the great diversity of peasants and farm organizations around the world. (DESMARAIS, 2007, p. 26-27).

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dial durante a Cúpula Mundial sobre a Alimentação que ocorreu em 1996. Já “soberania alimentar é o DIREITO dos povos, Países ou Uniões de Estados de definir suas políticas agrícolas e alimentares, sem dumping de países terceiros.” (LA VÍA CAMPESINA, 2003). Assim, diferentemente da abordagem da FAO, a Via Campesina entende que os direitos dos camponeses estão diretamente ligados à sua produção agrícola, em consonância com sua própria cultura de cultivo, e ao direito dos povos de se alimentar através dos produtos provenientes de uma agricultura voltada para a produção daquilo que é culturalmente aceito por eles. Uma das mais importantes campanhas internacionais promovidas pela Via Campesina em defesa de seu modelo agrícola alternativo baseado no conceito de “soberania alimentar” foi a “Campanha Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade”. Lançada no ano 2000 durante a III Conferência Internacional da Via Campesina, a rede se opõe “a que se privatizem e a que se patenteiem os materiais genéticos que dão origem à vida, à atividade campesina, à atividade indígena.” (LA VÍA CAMPESINA, 2000, tradução nossa7), visando à proteção do primeiro elo da cadeia produtiva agrícola, a semente. Nesse sentido, respalda-se nos Direitos do Agricultor (FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION, 1989), onde consta que o acesso livre às sementes é um direito dos agricultores.

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“[...] a que se privaticen a que se patenten lo materiales genéticos que dan origen a la vida, a la actividad campesina, a la actividad indígena.” (LA VÍA CAMPESINA, 2000).

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Desse modo, a atuação da Via Campesina está intimamente ligada à soberania alimentar dos povos, esta alicerçada na defesa do status público das sementes. Dessa forma, a rede não se opõe somente ao modelo neoliberal de desenvolvimento, mas propõe um modelo alternativo, baseado na “soberania alimentar”. Uma das principais estratégias da Via Campesina empregadas nessa campanha foi o aprofundamento do conceito de soberania alimentar, ligando-o ao tema da biodiversidade. A Via Campesina apóia esta campanha em um conceito sócio-cultural de biodiversidade, além de apresentar os camponeses como os responsáveis históricos pela manutenção da biodiversidade agrícola e pela melhoria das espécies: o camponês é apresentado como um expert, e o seu conhecimento, valorizado. (Niemeyer, 2006, p. 113). Dessa forma, passa-se a valorizar também o papel desempenhado pelo camponês na preservação e na melhoria dos recursos fitogenéticos8. Assim, podemos perceber que [...] a biodiversidade estaria intimamente ligada à diversidade cultural, que fora responsável pela domesticação diversa das sementes. [...] Essa biodiversidade permite a

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Os recursos fitogenéticos abrangem inúmeras categorias como espécies silvestres, variedades de plantas, linhagens melhoradas, dentre outras.

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autonomia dos povos, pois é base de sua cultura de produção de alimentos, bem como de sua cultura alimentícia. Isso se contrapõe ao posicionamento da FAO, uma vez que ela tem promovido a transgenia. Esse tipo de política permite a privatização do que antes era público e coletivo. Quando se privatiza recursos e o conhecimento, os fluxos da biodiversidade são rompidos, e monopoliza-se o primeiro elo da cadeia produtiva, a semente. Por isso, a diversidade é colocada numa posição basilar para se alcançar a soberania alimentar. (Simonetti; Camargo, 2010). Buscando sair do campo exclusivo da contestação, a Via Campesina tem alicerçado suas demandas em mecanismos legais internacionais, como as resoluções 8/83 (FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION, 1983), que versa sobre recursos fitogenéticos, e a 5/89 (FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION, 1989), que conceituou a noção de direitos dos agricultores (FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION, 2002). Essa postura, assumida pela rede, tem possibilitado uma atuação mais efetiva perante os organismos internacionais, como a FAO. Essas ações demonstram que a Via Campesina vem se projetando nos fóruns mundiais e tem se revelado como um ator de relevância que objetiva uma ampla transformação social, visando o estabelecimento da equidade e da justiça social. Para tanto, vem construindo junto aos movimentos sociais o conceito de “Soberania Alimentar”, em que a

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união do conceito de biodiversidade à valorização da cultura camponesa demonstrou-se uma das principais estratégias utilizadas para projetarem-se na luta contra os grandes oligopólios vinculados à produção alimentícia. A partir disso, a Via Campesina conquistou adeptos a sua luta, na medida em que criou uma atmosfera em torno dos ideais camponeses, indígenas e demais populações originárias de diferentes regiões do planeta. Na V Conferência Internacional da Via Campesina realizada em outubro de 2008, a rede reuniu 600 camponeses, representantes de organizações sediadas em 70 países, na cidade de Maputo, Moçambique, sob o slogan “Soberania Alimentar já! Com a luta e a unidade dos povos.” A conferência aprovou uma declaração, a Carta de Maputo (LA VÍA CAMPESINA, 2008a), cujos trechos reproduzimos a seguir, visto que retratam a posição da Via Campesina diante da crise global. Na referida carta, denominada Agricultura Camponesa e Soberania Alimentar Frente à Crise Global, declaram que O mundo inteiro está em crise. Uma crise multi-dimensional. De alimentos, de energia, de clima e de finanças. As soluções que o poder propõe – mais livre comércio, sementes transgênicas, etc – ignoram que a crise resulta do sistema capitalista e do neoliberalismo, e somente aprofundarão seus impactos. Para encontrar soluções reais, temos que olhar para a Soberania Alimentar que propõe a Via

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Campesina. (LA VÍA CAMPESINA, 2008a, tradução nossa9). Para a Via Campesina, essa crise se deve ao avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. Esse processo ocorre envolvendo Desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos, até a compra da colheita, o processamento dos alimentos, transporte, distribuição e venda ao consumidor, tudo já está em mãos de um número reduzido de empresas. Os alimentos deixaram de ser um direito de todos e todas, e tornaram-se apenas mercadorias. Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo, com alimentos de má qualidade, preços que as pessoas não podem pagar. As tradições culinárias de nossos povos estão se perdendo. (LA VÍA CAMPESINA, 2008a, tradução nossa10). 9

“El mundo entero está en crisis, una crisis de dimensiones múltiples, una crisis de alimentos, de energía, del clima y de las finanzas. Las soluciones que nos ofrecen desde el poder – mas libre comercio, semillas transgénicas, etc. - ignoran que la crisis es producto del sistema capitalista y del neoliberalismo, y solo profundizarán sus impactos. Para encontrar soluciones reales, mas bien hay que mirar hacía la soberanía alimentaria que propone la Vía Campesina.”.( LA VÍA CAMPESINA, 2008a).

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“Desde la privatización de las semillas y la venta de agrotóxicos, hasta la compra de la cosecha, el procesamiento de los alimentos, y su transporte, distribución y venta al consumidor, todo está ya en manos de un número reducido de empresas. Los alimentos han pasado de ser un derecho de todos y todas, a ser una mercancía más. Se están homogenizando nuestras dietas en todo el mundo, con alimentos que son malos

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Para a Via Campesina, a investida do capital sobre os recursos naturais é mais uma faceta da crise dos alimentos, que, junto à crise financeira, tem tornado a situação dos camponeses e populações indígenas insustentáveis. A crise financeira e a crise dos alimentos estão vinculadas à especulação do capital financeiro com os alimentos e a terra, em detrimento das pessoas. Agora, o capital financeiro está desesperado, assaltando os cofres públicos para diminuir seus prejuízos. Os países serão obrigados a fazer ainda mais cortes orçamentários, condenado-os a maior pobreza e maior sofrimento. A fome no mundo segue a passos largos. A exploração e todas as violências, em especial a violência contra a mulher, espalham-se pelo mundo. Com a recessão econômica nos países ricos, aumenta a xenofobia contra os trabalhadores e trabalhadoras migrantes, com o racismo tomando grandes proporções e com o aumento da repressão. (LA VÍA CAMPESINA, 2008a, tradução nossa11). para la salud, tienen precios fuera del alcance de la gente, y estamos perdiendo las tradiciones culinarias de nuestros pueblos.”. (LA VÍA CAMPESINA, 2008a). 11

“La misma crisis financiera y las crisis de alimentos están vinculados por la especulación que hace el capital financiero con los alimentos y la tierra, en detrimento de la gente. Ahora el capital financiero se vuelve mas desesperado, asaltando los erarios públicos para sus rescates, los cuales van a obligar a todavía mayores recortes presupuestarios en los

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Para a Via Campesina, a Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa local faz-se mais necessária do que nunca e defende os pontos que constam na tabela abaixo (Tabela 1): Tabela 1. Temas e propostas da Via Campesina presentes na Carta de Maputo Carta de Maputo Temas

Soberania alimentar

Crises energéticas e climáticas

Propostas “Renacionalizar e tirar o capital especulativo da produção dos alimentos é a única saída para a crise dos alimentos. Somente a agricultura camponesa alimenta os povos, enquanto o agronegócio produz para a exportação e sua produção de agrocombustíveis é para alimentar os automóveis, e não para alimentar gente. A Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa é a solução para a crise.” “Disseminação de um sistema alimentar local, que não se baseia na agricultura industrial nem no transporte a longa distância, eliminaria até 40% das emissões de gases de efeito estufa. A agricultura industrial aquece o planeta, em quanto a agricultura camponesa desaquece. Uma mudança no padrão do transporte humano para um transporte coletivo e outras mudanças no padrão de consumo, são os passos a mais, necessários para enfrentarmos a crise energética e climática.”

países, y mayor pobreza y sufrimiento. El hambre en el mundo sigue su ritmo de crecimiento. La explotación y todas las forma de violencia, en especial contra las mujeres, aumentan. Con la contracción económica en los países ricos, crece la xenofobia en contra de los trabajadores y trabajadoras migrantes, con creciente racismo y represión ...”. (LA VÍA CAMPESINA, 2008a)

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Carta de Maputo Temas

Propostas

Reforma Agrária

“A Reforma Agrária genuína e integral, e a defesa do território indígena são essenciais para reverter o processo de expulsão do campo, e para disponibilizar a terra para a produção de alimentos, e não para produzir para a exportação e para combustíveis.”

Agricultura camponesa sustentável

“Somente a produção camponesa agroecológica pode desvincular o preço dos alimentos do preço do petróleo, recuperar os solos degradados pela agricultura industrial e produzir alimentos saudáveis e próximos para nossas comunidades.”

Violência contra a mulher

“O fim de todos os tipos de violência para com as mulheres, seja ela, física, social ou outras. A conquista da verdadeira paridade de gênero em todos os espaços internos e instâncias de debates e tomada de decisões são compromissos imprescindíveis para avançar neste momento como movimentos de transformação da sociedade.”

Semente e água

“A semente e a água são as verdadeiras fontes da vida, e são patrimônios dos povos. Não podemos permitir sua privatização, nem o plantio de sementes transgênicas ou de tecnologia terminator.”

Criminalização de movimentos sociais

“Sim à declaração dos Direitos dos Camponeses e Camponesas na ONU, proposta pela Via Campesina. Será um instrumento estratégico no sistema legal internacional para fortalecer nossa posição e nossos direitos como camponeses e camponesas.”

Juventude do campo

“É necessário abrir, cada vez mais, espaços em nossos movimentos para incorporara força e a criatividade da juventude camponesa, com sua luta para construir seu futuro no campo.”

Alimentação

“Nós produzimos e defendemos os alimentos de todos e todas.”

Fonte: LA VÍA CAMPESINA, 2008a. Elaborado pelas autoras.

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Através da análise da carta Agricultura Camponesa e Soberania Alimentar Frente à Crise Global, verificamos que os movimentos sociais, aqui representados pela Via Campesina, têm apontado diversas propostas visando à superação da crise global. Podemos perceber também que as propostas elencadas pela rede têm por eixo central o conceito de Soberania Alimentar. Dessa forma, a Via Campesina propõe não somente algumas soluções possíveis para a superação da crise, mas propõe um modelo agrícola diverso do proposto por algumas organizações internacionais intergovernamentais, como a OMC e a FAO. Ao proporem políticas agrícolas baseadas no conceito de Segurança Alimentar, essas organizações privilegiam ações que contemplam os interesses das grandes corporações em detrimento das propostas pelas populações originárias e camponesas, tais como a reserva das melhores sementes e a sua livre circulação. Diferentemente, a Via Campesina baseia suas ações e suas proposições no conceito de Soberania Alimentar. Esse modelo alternativo, emancipatório, de agricultura possibilita aos povos e países a aplicação de modelos próprios de agricultura, valorizando-se, desse modo, as diferenças culturais existentes e o conhecimento local produzido a partir do respeito às suas próprias especificidades. Destarte, para a Via campesina, a crise global, que se deve ao avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo, só será superada respeitando-se a soberania alimentar. Este modelo possibilita que a autonomia e a diversidade cultural dos grupos,

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etnias, populações originárias, camponeses, sejam contempladas nas suas formas de plantar, colher e viver. De modo emancipado, de modo soberano.

Referências DESMARAIS, A. A. La Vía Campesina: globalization and the power of peasants. Black Point: Fernwood Publishing, 2007. FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION. Resolution 5/89. 1989. Disponível em: . Acesso em: 03 mar. 2010. . World food summit. 1996. Plano de ação da cúpula mundial da alimentação. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2010. GOHN, M. da G. Movimentos sociais na atualidade: manifestações e categorias analíticas. In: GOHN, M. da G. Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 13-32. LA VÍA CAMPESINA. Documento da V Conferencia INt. de Via Campesina. 2008a. Disponível em: . Acesso em: 23/12/2011. . Documento de la III Conferencia Int. de Via Campesina. 2000. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2010. . Reunión de la Campaña de Semillas CLOC–VÍA CAMPESINA, 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2010. . Que Es La Soberania Alimentaria, jan. 2003. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2010. . Declaración de Tlaxcala de La Vía Campesina. [1996] 2007. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2010. . La Vía Campesina members. 2008b. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2010. NIEMEYER, C. B. de. Contestando a governança global: a Rede Transnacional de Movimentos Sociais Rurais Via Campesina e suas relações com a FAO e a OMC. Rio de Janeiro, 2006. 190p. Dissertação de Mestrado – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. SANTOS, B. de S. Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SIMONETTI, M. C. L. Entre o local e o global: o movimento dos Sem Terra e a Via Campesina. Simpósio Reforma Agrária e Desenvolvimento: desafios e rumos da política de assentamentos rurais. UNIARA. Disponível em: .

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; CAMARGO, A. S. A internacionalização da agricultura brasileira e as ações daVia campesina pela soberania alimentar. In: CAMARGO; CORSI; VIEIRA. Crise do capitalismo: questões internacionais e nacionais. São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília: Oficina Universitária, 2011.

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