A viagem da perdição - por uma identidade cristã n´A nau dos insensatos, de Sebastian Brant

July 5, 2017 | Autor: Álvaro Bragança | Categoria: German Literature, Narrenliteratur
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A viagem da perdição - por uma identidade cristã n´A nau dos insensatos, de
Sebastian Brant

Viajar é preciso, viver não é preciso

I. INTRODUÇÃO
Talvez uma das mais frequentes constantes na vida humana, em
todos os tempos, tenha sido o gosto por viajar. Como metáfora de uma
independência, como desafio face a aspirações diversas, ao longo da
História descortinam-se inúmeras aventuras, sejam terrestres, marítimas e
até mesmo aéreas, vividas ou imaginadas, que acompanham o trajeto do homem
desde os seus primórdios.
Na Antiguidade, Luciano de Samósata chega a viajar até a Lua em
suas Das narrativas verdadeiras; Ulisses singra os mares em seu atribulado
retorno à Ítaca na Odisséia, enquanto Enéias, eternizado por Virgílio,
parte em uma jornada que culminará, na Eneida, na fundação de Roma. Ao
chegarmos à Idade Média, especificamente entre os séculos XIII e XV,
deparamo-nos, por exemplo, com relatos sobre a terra da Cocanha, e sua
contraparte em alemão, a Schlaraffenland,[1] local de exuberância, de
compensação e mitigação dos camponeses medievos diante das agruras de suas
condições de vida.
Criadas em termos ficcionais, essas narrativas de viagens em
forma de poemas celebravam a vitória do homem ao vencer obstáculos e
alcançar feitos até então inimagináveis. Como produtos textuais abriram
espaço para a imaginação. Os personagens protagonistas de tais viagens
tornaram-se quase arquétipos de mentira confessa – Luciano -, de astúcia –
Ulisses – e de ser pius – Enéias. No século XV, contudo, época de profundas
transformações econômicas e sociais, o sonho de se encontrar o paraíso da
fartura, como era imaginada a Schlaraffenland, tomou conta de muitos.
Todavia, a Alsácia seria o berço da mais representativa obra da Idade Média
Tardia que se configuraria como a jornada por excelência para o fim dos
tempos, quase uma escatologia do mundo medieval.

II. O SÉCULO XV E A NARRENLITERATUR DE SEBASTIAN BRANT
Desde os textos dos místicos[2] alemães[3], a alegoria náutica é
empregada para delimitar a relação do homem com o presente e o porvir.
Johannes Tauler (1300-1361), nas duas primeiras estrofes de seu poema Es
kumpt ein schiff geladen, usa abertamente os substantivos schiff (barco) e
schiffelin (barquinho) para nomear os tipos de embarcação que trazem Jesus
e Maria, respectivamente, até à terra firme. Nesse momento, a chegada de
ambos representa a salvação da humanidade. Um século depois, porém, uma nau
levará seus passageiros e tripulantes à danação eterna.
Com as funestas consequências ainda advindas da Peste Negra, com
a importância adquirida pelas Zünfte - corporações de ofício – dentro do
cenário econômico e social do Sacro Império, com o seu crescente
distanciamento do estamento dos laboratores no campo e com círculos sociais
centrados nas cortes feudais, nas quais a circulação financeira se torna
decisiva para as relações pessoais, tem-se um cenário em que, como afirma
Erwin Theodor (1997, p. 145 apud MONGELLI 1997) "porção considerável da
população camponesa procurou abrigo de seus males nas cidades, sempre em
prejuízo da agricultura, desgraça que até fins do século quinze tornou-se
cada vez mais séria." São tempos de descobertas e alargamento de espaços
geográficos e de horizontes intelectuais, novos valores em que o indivíduo
se exprime singularmente.
O conhecimento de novas regiões do globo terrestre amplia as
possibilidades de interpretação do mundo e da natureza. Desloca-se
lentamente a hermenêutica criacional para a análise factual, empírica.
Abalam-se os alicerces eclesiásticos de fundamentação escolástica. Uma onda
de dúvida e credulidade espalha-se no ambiente citadino e campesino. Como
reação letrada e usando como pano de fundo o mundo náutico, homens e
mulheres "embarcam" em uma viagem sem volta rumo à própria perdição, pois
desviam-se (in)conscientemente das normas do projeto da cristandade. São
"loucos" e "insensatos" a navegar para o abismo![4]
Nascido em 1457 em Straßburg, Sebastian Brant estuda a partir de
1475 Artes Liberais e Direito na universidade de Basel. Em 1489 alcança o
título de Doutor, tornando-se em 1496 professor de Direito Romano e
Canônico daquela universidade. Em 1500 retorna a Straßburg e três anos
depois é nomeado secretário do governo civil, vindo a falecer em 10 de maio
de 1521. Como homem de letras, Brant traduziu para o alemão as máximas
latinas de autoria atribuída a Catão e escreveu também para seu filho um
livro de preceitos morais, em forma de fábulas. Contudo, sue maior legado à
História e à Literatura é sua obra Das Narrenschiff (A nau dos insensatos),
um autêntico best seller em alemão, vertido para o latim com o título
Stultifera navis e para outros vernáculos europeus como o francês, baixo-
alemão, holandês e inglês.[5]
O termo Narr pode ser traduzido como "louco", "bobo", "tolo".
Acrescentamos ainda a essa gama de significados "insensato". Através de um
tipo de composição com versos rimados - Versreden – Brant une a simbologia
a ele remetida[6] à visualização permitida pelas xilogravuras e tematiza as
ações dos Narren centrando-as nos erros/desvios cometidos por membros de
diversas profissões e grupos sociais de então. Hans Rupprich (1970, p.582)
assim define o posicionamento do escritor: o Narr "não é apenas ridículo,
mas também deve ser repreendido e deplorado. Ele é um ser humano moralmente
insuficiente." Já Wolfgang Stammler (1950, p. 204-205 apud BRAGANÇA JÚNIOR,
2010, p. 37) assim define o conceito de Narr do jurisconsulto alsaciano:

A vida é um grande carnaval e como os homens vagueiam
travestidos para o carnaval e se apresentam como loucos,
assim eles, de verdade, geralmente são. Em todos os
estamentos, em todas as idades, sem diferença de sexo, o
autor vê insensatos. Contudo, não somente aqueles que por
ignorância ou estupidez agem de forma tresloucada – mas
também aqueles que faltam ao respeito com os dogmas do
credo cristão, aqueles que cometem faltas contra a moral
humana são insensatos.


O caráter moralizante das estrofes de Brant fica evidente e Hans Rupprich
(1970, p. 582) acentua que, "por trás disso há a opinião, de que os pecados
e os vícios tem suas origens apenas na ignorância e na insensatez, as quais
podem ser suprimidas somente através do ensino e da instrução."
Outros eruditos da época também foram influenciados pela verve de
Brant como Johann Geiler von Kaisersberg (1415-1510), Thomas Murner (1475-
1537) e Hans Sachs (1494-1576) com seu Fastnachtspiel[7] Das Narrenscheiden
(O corte insensato). Murner cita, inclusive, o nome de Brant em sua obra
Die Narrenbeschwörung (O exorcismo dos insensatos):[8] [9]

A Ordem dos Loucos é tão grande,
que enche todos os caminhos e vias,
vilas, cidades, lugares e terras.
A todos esses Sebastian Brant
levara consigo na nau dos insensatos...

Essa embarcação, metáfora do homem insensato e prestes a dirigir-
se à danação eterna, figurava explicitamente aos olhos do homem
tardomedieval, que já ouvira falar de terras além-mar, seres humanos com
características zoomórficas, criaturas monstruosas a habitar terras e
mares. Para a composição desse universo imaginário, a invenção dos tipos
móveis de imprensa por Johannes Gutenberg (c.1368-1468) teve destacado
papel ao possibilitar a visualização dos personagens-tipo presentes em A
nau dos insensatos. Destarte, o uso de xilogravuras na obra é fundamental
para a identificação, por parte do público, dos objetivos didáticos do
texto de Brant.

III. DAS NARRENSCHIFF E SEUS COMPARTIMENTOS
A grande nau que zarpa em direção à Narragônia[10] está
discursivamente organizada em torno de 116 capítulos – compartimentos - com
xilogravuras[11], a saber:
01. Dos livros inúteis
02. Dos bons conselhos
03. Da ganância / avareza
04. De novos modismos
05. Dos velhos insensatos
06. Da correta educação infantil 
07. Dos incitadores de discórdia
08. De não seguir bons conselhos
09. Dos maus costumes
10. Da verdadeira amizade
11. Desprezo pelas Sagradas Escrituras
12. De imprudentes insensatos
13. Do intercurso amoroso
14. Da insolência contra Deus
15. Dos planos insensatos
16. Da gula e da glutonaria
17. Da riqueza inútil
18. De servir a dois senhores
19. Da tagarelice abundante
20. Da descoberta de tesouros
21. Da repreensão e da incorrência no mesmo erro
22. Do ensinamento da Sabedoria
23. De superestimar a sorte
24. Do cuidado em demasia
25. Do pedir emprestado
26. Dos desejos inúteis
27. Dos estudos inúteis
28. Dos discursos contra Deus
29. Dos presunçosos insensatos
30. Dos benefícios em demasia
31. Da busca por ascensão na vida
32. Da proteção às esposas
33. Do adultério
34. Uma vez insensato, sempre insensato
35. Da irritação fácil
36. Da teimosia
37. Do acaso da sorte
38. Dos enfermos desobedientes
39. Das armadilhas reconhecíveis
40. Topar com insensatos
41. Não considerar tudo o que se diz
42. Do escarneador
43. Desprezo pela alegria eterna
44. Barulho na igreja
45. Do infortúnio intencional
46. Do poder dos insensatos
47. Do caminho para a bem aventurança
48. Uma nau das corporações
49. Mau exemplo dos pais
50. Da luxúria
51. Guardar segredos
52. Casamento por interesse
53. Da inveja e do ódio
54. Do não querer ser criticado
55. Da farmacologia insensata
56. Do fim do poder
57. Da Providência divina
58. Do auto-esquecimento
59. Da ingratidão
60. Da vaidade
61. Da dança
62. De cortejar à noite
63. Dos mendigos
64. Das mulheres más
65. Da observação das estrelas
66. Querendo explorar todas as terras
67. Não querendo ser insensato
68. Não entendendo brincadeiras
69. Querendo fazer o mal impunemente
70. Não tendo precaução a tempo
71. Brigando e indo ao tribunal
72. Dos grosseiros insensatos
73. Do tornar-se eclesiástico
74. Das caças inúteis
75. Dos atiradores ruins
76. Da grande ostentação
77. Dos jogadores
78. Dos oprimidos insensatos
79. Bandoleiros e advogados
80. Da mensagem insensata
81. Dos cozinheiros e dos serviçais
82. Das despesas do camponês
83. Do desprezo pela pobreza
84. Da persistência no Bem
85. Não se precavendo contra a morte
86. Do desprezo por Deus
87. Da blasfêmia
88. Da praga e do castigo de Deus
89. Das trocas insensatas
90. Honrar pai e mãe
91. Do tagarelar no presbitério
92. Arrogância da soberba
93. Usura e aprovisionamento
94. Da esperança na herança
95. Da tentação em dia santo
96. Presentear e arrepender-se
97. Da indolência e da preguiça
98. Dos estrangeiros insensatos
99. Da decadência da fé
100. Acariciando o fulvo garanhão
101. Do sopro nos ouvidos
102. Da falsificação e da fraude
103. Do anticristo
104. Omitindo a verdade
105. Impedimento do Bem
106. Descuido com as boas obras
107. Da recompensa da Sabedoria
108. A Nau da Cocanha
109. Desdém da desgraça
110. Difamação do Bem
111. Dos maus costumes à mesa
112. Dos carnavalescos insensatos
113. A escusa do poeta
114. O homem sábio
115. Protesto
116. Fim da Nau dos Insensatos

O simples arrolar dos capítulos permite ao leitor uma depreensão
dos passageiros. Praticamente todos os estamentos sociais estão presentes e
embarcados, o que torna possível a interpretação de ter sido a obra pensada
como um speculum mundi, i.e., um espelho de vícios e comportamentos não
condizentes com uma sociedade pretensamente cristã.
Como Prefácio à obra, o autor assevera que a mesma se destina a
"ser útil e salutar, advertência e êxito da sabedoria, da razão e dos bons
costumes. Também para desprezar e punir a insensatez, a cegueira, o erro e
a tolice em todas as cidades, de homens e mulheres"[12].
Uma classificação tipológica das histórias em Das Narrenschiff,
em que se aponte o descaminho da época, não é, contudo, o escopo destas
reflexões. Ater-nos-emos, sim, à questão da "viagem" de nossos personagens
e como ela é representada através de textos e xilogravuras.

IV. O TEMA DA VIAGEM NAS XILOGRAVURAS D´A NAU DOS INSENSATOS
Manfred Lemmer (1964) ocupou-se detidamente com as xilogravuras da
obra de Brant, desde o original de 1494. Para ele, três foram os
ilustradores que contribuíram decisivamente para o sucesso do texto
brantiano: o mestre principal, Albrecht Dürer (1471-1528), o artista
conhecido como o Mestre 'Haintz-Nar', em que Narr é o insensato retratado
no capítulo 5, "Dos velhos insensatos", e ainda um terceiro mestre, o
Mestre da xilogravura 3, "Da ganância/avareza", denominado como 'Mestre da
Piedade', devido ao fato de, naquela ilustração, encontrar-se um pobre a
esmolar e solicitar 'piedade' a um homem .[13]
Ao verificarmos os textos e xilogravuras que retratam a partida
dos navegantes e a composição da nau com seus tripulantes salientam-se, em
um primeiro momento, as características físicas de todos. Rostos como que
deformados, olhares perdidos ou esbugalhados, vestidos com os típicos
trajes de bobo-da-corte, alguns a alegrar-se freneticamente, outros com
aparência de enjôo – toda essa plêiade humana ruma de vários rincões da
terra em busca de novos ares, com a certeza de poderem alcançar a
Narragônia, ironizada pelo narrador, destino final da viagem. Configura-se,
pois um caráter identitário ao grupo de aventureiros, expresso através das
ilustrações, qual seja, a insensatez que os domina e os impele ao alto mar.

Como primeira amostra temos o frontispício com as ilustrações de
Dürer, representando os preparativos para a viagem e a concentração dos
insensatos junto à nau:
[14]
Nessa gravura percebem-se dois momentos distintos: no plano
superior há uma carroça, na qual estão presentes os Narren a deixar suas
terras e se por em marcha rumo à embarcação. No plano inferior encontra-se
a nau que se destina Ad Narragonien (Para a Narragônia). Dentro dela, os
passageiros a bordo conclamam aqueles que, com botes, se deslocam ao barco,
ao falar har noch (Sigam-nos!) e, mais abaixo, Zu schyff, zu schyff brüder:
es gat / es gat (Embarcar, embarcar, irmãos: vamos partir, vamos partir!).
Do mesmo modo entoa-se o hino Gaudeamus omnes (Alegremo-nos
todos), comum nas viagens marítimas naquela época. Um bedel segura o
estandarte, símbolo da "irmandade" e que se assemelha ao orbe terrestre.
Quase imperceptível, porém de extrema importância na simbologia
presente n'A nau dos insensatos, é o nome Dr. Gryff, podendo este ser
divisado bem embaixo do bedel, no costado da embarcação. O nome, segundo
Lemmer (1964, p. 135), que também aparece nos capítulos 76 e 108, encontra-
se em outras obras literárias da época. No capítulo 76, 'Da grande
ostentação', nos versos 65 e seguintes, surge o nome Dr. Greyff,[15] pois
como sugere Lemmer (1964, p. 135), "ele pega todos os outros insensatos
pelo ouvido (i.e., [ele] os repreende, porque todos estão aferrados aos
graus e títulos acadêmicos, sem, contudo, mostrar mérito pelo seu
correspondente desempenho".
Uma segunda xilogravura atribuída ao Mestre 'Haintz-Nar'
constante do verso da editio princeps repete o motivo da partida da
expedição:
[16]
Lançando mão dos artifícios de versos rimados, o autor alsaciano
fustiga vícios e fraquezas humanas, as personaliza e as reúne em uma nau
pronta a zarpar e guiada pelo mesmo Doctor Gryff, homem de cultura, porém
privado de bom senso. Ao se entoar o hino Gaudeamus omnes (Alegremo-nos
todos), com o estandarte do sábio Gryff a tremular movido pelo vento,
encontramos os Narren, vestidos a caráter, com seus guizos, com os rostos
aparvalhados, rumo à Narragônia. Os versículos do Salmo 106[17], contudo,
são apropriados por Brant para descrevê-los:[18]

Rumo à Narragônia
Aqui estão aqueles que cruzam os mares em naus,
Fazendo comércio em muitas águas[19]
Subiam ao céu e desciam até os abismos:
Suas almas corrompiam-se no mal.
Estão confusos e movem-se como bêbados:
E toda sua sabedoria foi devorada

Uma terceira e última ilustração do mesmo Mestre 'Haintz-Nar'
aparece no capítulo 108. Trata-se da mesma, vista acima, porém com texto
diferente:
[20]
Tradução
Companheiros, venham, sigam-nos
Nós partiremos para a terra da Cocanha,
Contudo estamos presos na lama e na areia.
A nau da Cocanha
Não pensem que nós, insensatos, estamos sozinhos:
Temos irmãos grandes e pequenos;
Em qualquer lugar do mundo
Nosso número não tem fim;
...

As mesmas imagens e textos da xilogravura anterior são vistas no
ambiente pictórico. Contudo, a temática desta xilogravura, contida em 156
versos, prende-se a recorrente fonte da tardomedievalidade, em alemão a
Schlaraffenland. Embora prestes a partir, o narrador diz a todos que estão
"presos na lama e na areia". A embarcação é outra: trata-se da schluraffen
schiff, a nau dos que se dirigem à Cocanha.[21]
Fato curioso, porém, é que eles se autodenominam narren,
insensatos. Atolados em seus próprios devaneios, a imensidão de viajantes,
com recursos econômicos e prestígio distintos – "irmãos grandes e pequenos"
-, é infindável. Um outro tipo de fim todavia os aguarda.

V. PALAVRAS FINAIS – A VIAGEM DA PERDIÇÃO
Como produto de um erudito, Das Narrenschiff de Sebastian Brant
contém inúmeras recorrências a fontes da Antiguidade e da própria Idade
Média, verdadeiras auctoritates eruditas. Elementos fraseológicos, como
máximas, citações e provérbios, assim como pressupostos filosóficos
concernentes ao platonismo[22] evidenciam-se no texto brantiano e
fundamentam seu discurso sobre os erros e desvios de toda sorte existentes
nas camadas sociais de então.
Tendo como pano de fundo a hipotética viagem à Narragônia e
utilizando-se da metáfora da embarcação como veículo condutor da espécie
humana, Sebastian Brant inscreve-se dentro dos escritores de fins do século
XV que melhor tematiza as grandes contradições sentidas em uma época de
substanciais modificações no Sacro Império, em particular. Sendo humanista
e defensor da manutenção do modus vivendi pensado ao longo do medievo pela
Igreja, seus clamores ressoaram como alerta contra aqueles que se dedicavam
a posturas divergentes.
Com base nas três xilogravuras homens e mulheres embarcam rumo
aos seus destinos. Insensatos, tolos e loucos desfilam suas imperfeições
nas páginas do livro. Guiados por pretensos sábios assistirão a derrocada
de seus sonhos. Entrarão em rota de colisão com um modelo social ainda
calcado na cristandade medieval, que teima em não aceitar novos ares, em
desconhecer novos territórios.
O sonho da viagem e a utopia deslocam-se para o alto mar. A
empreitada conjunta forja a identidade daqueles seres humanos que, por
insensatez, se atrevem a ver o mundo com novos olhares. Quase que, como a
alegoria do 'mundo às avessas', em uma espécie de arca de Noé, em vez do
porto seguro a alcançar a Narragônia, a humanidade, travestida em asno e
caracterizada como bobos da corte, chegaria a sua própria destruição. Em um
texto literário de admoestação e crítica contundentes ao estado de coisas
vigente e ao líder da expedição Doutor Gryff, o humanista da Alsácia aponta
erros e falhas, pretendendo fazer retornar a nau para o rumo certo,
capitaneada por quem de direito, Cristo, e tendo a Igreja como piloto.

VI. BIBLIOGRAFIA
BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. O louco e o pícaro: aventuras e
desventuras na sociedade germanófona nos séculos XV e XVI – um retrato
literário. In: ZIERER, Adriana. (Org.) Uma viagem pela Idade Média –
Estudos interdisciplinares. São Luís: Editora da Universidade Estadual do
Maranhão, 2010. p. 35-46.
BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Narr e o pícaro na literatura alemã -
(des) caminhos na sociedade dos séculos XV e XVI. In: III Congresso
Brasileiro dos Professores de Alemão, 1996, Campinas. Anais do III
Congresso Brasileiro dos Professores de Alemão. Campinas : Associação
Brasileira dos Professores de Alemão, 1996. p. 458-466.
BRANT, Sebastian. A nau dos insensatos. Tradução de Karen Volobuef. São
Paulo: Octavo, 2010.
BRANT, Sebastian. Das Narrenschiff. Herausgegeben von Hans-Joachim Mähl.
Stutgart: Philipp reclam Jun., 1995.
BRANT, Sebastian. Das Narrenschiff. Herausgegeben von Manfred Lemmer. 4.
Auflage. Tübingen: Max Niemyer, 2004.
GAIER, Ulrich: "Plato noster": Platonismus im Narrenschiff. In: Roloff,
Hans-Gert/Valentin, Jean-Marie/Wels, Volkhard (Hrsg.). Sebastian Brant
(1457-1521). Berlin: Weidler, 2008.
GLÄSER, Hermann et alii. Wege der deutschen Literatur. 13. Auflage.
Frankfurt am Main, Berlin, Wien: Ullstein, 1976.
LEMMER, Manfred. Die Holzschnitte zu Sebastian Brants Narrenschiff.
Leipzig: Insel-Verlag, 1964.
MONGELLI, Lênia Márcia. Mudanças e rumos: o Ocidente medieval (séculos XI-
XIII). Cotia: Íbis, 1997.
RUPPRICH, Hans. Die deutsche Literatur vom späten Mittelalter bis zum
Barock. Erster Teil. Das ausgehende Mittelalter, Humanismus und
Renaissance. 1370-1520. München: C.H. Beck'sche Verlagsbuchhandlung, 1970.
STAMMLER, Wolfgang. Die deutsche Dichtung von der Mystik zum Barock. 1400-
1600. 2. Auflage. Stuttgart: J. B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung, 1950.
p.204-205. Citação presente em BRAGANÇA JÚNIOR, op. cit., p. 37.





























A viagem da perdição - por uma identidade cristã n´A nau dos insensatos, de
Sebastian Brant

Resumo: a navegação constituiu-se em um dos principais elementos para o
alargamento do conhecimento do e de mundo nos séculos XIV e XV. Em tempos
de mudanças sociais e de pensamento surge na região da Alsácia, então
pertencente ao Sacro Império Romano-Germânico, uma obra, fundadora de um
gênero literário, a Narrenliteratur (Literatura dos Insensatos), cujo
principal objetivo era advertir o homem de então dos perigos de uma nova
instância reguladora do orbe que não a Igreja. Sebastian Brant, utilizando
a alegoria da embarcação, constrói sua Das Narrenschiff (A nau dos
insensatos) como libelo contra os novos tempos e através do uso de
xilogravuras apresenta o discurso de fundamentação eclesiástica que critica
a insensatez e loucura dos participantes da viagem, membros oriundos de
todos os estamentos sociais de então, homens e mulheres, e lançando mão do
motivo da jornada marítima demonstra a nau a conduzir a humanidade para uma
viagem sem possibilidade de retorno para a sua própria salvação.

Palavras-chave: Narrenliteratur; Sebastian Brant; viagens imaginárias;
Sacro Império

The journey of doom – for a christian identity in The ship of fools by
Sebastian Brant

Abstract: navigation was a major factor in broadening the knowledge of the
world and world knowledge in the fourteenth and fifteenth centuries. In a
time that was rife with social change and change in its thought, a work
appeared, in the Alsatian region, then part of the Holy Roman Empire, that
launched a new literary genre, Narrenliteratur (Fool's Literature). This
work's main goal was to caution that period's man against the dangers of a
new regulatory body for the orbe which was not the Church. Sebastian Brant,
using the allegory of the vessel, built his Das Narrenschiff (Ship of
Fools) as a bill of indictment against the new times and, with woodcuts,
introduces his ecclesiastically based discourse criticizing the folly and
madness of the ship's passengers, men and women, who belong to every rung
of the time's society, and, resorting to the sea journey, depicts a vessel
carrying humanity on a journey with no possibility of returning to its own
salvation.


Keywords: Narrenliteratur; Sebastian Brant; imaginary journeys; Holy Roman
Empire.

Autor: Álvaro Alfredo Bragança Júnior
E-mail: [email protected]
Endereço profissional: UFRJ, Faculdade de Letras, Departamento de Letras
Anglo-Germânicas, sala D-204 Av. Horácio Macedo, 2151 - CEP 21941-917
Endereço residencial: Rua General Bruce, 961/202 Rio de Janeiro – RJ CEP:
20921-030










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[1] Em alemão, Schlaraffenland, literalmente "terra dos macacos
preguiçosos". Segundo o imaginário medieval, Cocanha era a terra do leite e
do mel e o paraíso dos glutões e dos beberrões. Na França medieval, a terra
era conhecida como Coquaigne, na Inglaterra, Cocaygne ou Cockayne. Essa
concepção também existiu na Holanda e tornou-se muito popular na região
germanófona do Sacro Império do século XVI.

[2] Misticismo, nome que engloba o fazer literário de eclesiásticos
dominicanos, em especial Mestre Eckhardt, Johannes Tauler e Heinrich Seuse,
caracterizado pelo conceito de unio mystica, união anímica entre Criador e
criatura, em voga até meados do século XIV.
[3] Embora não possamos falar ainda de uma unidade política denominada
"Alemanha" usamos o adjetivo "alemães" como sinônimo de "falantes de
alemão".
[4] Os quatro parágrafos seguintes são adaptados de BRAGANÇA JÚNIOR (2010).
[5] Somente no século XVIII com a publicação d´Os sofrimentos de Werther de
Goethe uma obra em alemão superou a fama do livro de Brant.
[6] Aqui subentende-se o bobo da corte, com sua roupa específica e o capuz
com guizos.
[7] Gênero burlesco, com aspecto e realização teatral, comum no Sacro
Império e originário de Nürenberg no século XV. Em português, "peças
carnavalescas", pois teriam sido primeiramente encenadas no período de
Carnaval. Possuíam tom popular, cômico, porém englobavam tipos e temas do
cotidiano.
[8] Apud GLÄSER, Hermann et alii. Wege der deutschen Literatur. 13.
Auflage. Frankfurt am Main, Berlin, Wien: Ullstein, 1976. p. 72
[9] Para informações sobre os autores citados cf. BRAGANÇA JÚNIOR apud
ZIERER (2010).
[10] Preferimos manter o étimo alemão, aportuguesando apenas o sufixo
–gonien, pois o mesmo já está cristalizado em "Patagônia", e mantivemos a
raiz Narr , que, ao nosso ver, melhor soa em "Narragônia" ao invés de
"Insensatolândia".
[11] Embora haja divergência sobre o número total de capítulos da obra
seguimos a proposta fixada por Junghans e Mähl (1995).
[12] BRANT, Sebastian. Das Narrenschiff (1995, p. 5).
[13] Uma discussão pormenorizada acerca dos artistas que compuseram as
xilogravuras para a obra de Brant é apresentada, como citado anteriormente,
na clássica obra de LEMMER, Manfred, op. cit., p. 126-134.
[14] Disponível em http://www.flickr.com/photos/daan_goor/4228634114/.
Acesso em 23 de março de 2011.

[15] Mais informações sobre o personagem Dr. Greyff in BRANT apud Junghans
und Mähl, 1995, p. 280).
[16] Disponível em http://www.fabelnundanderes.at/sebastian_brant.htm.
Acesso em 20 de março de 2011.
[17] Na Bíblia de Jerusalém é apresentado como Salmo 107 (106), v. 23,26-
27.
[18] Tradução nossa do original em latim.
[19] "Águas" por "lugares".
[20] Disponível em http://www.schloss-alsbach.org/veranstaltungen/ma-
tanz.html. Acesso em 18 de abril de 2011.
[21] Cf. nota 10.
[22] GAIER, Ulrich: "Plato noster": Platonismus im Narrenschiff. In:
Roloff, Hans-Gert/Valentin, Jean-Marie/Wels, Volkhard (Hrsg.). Sebastian
Brant (1457-1521). Berlin: Weidler, 2008.
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