A viagem dos portugueses e a de Sá de Miranda
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21/08/2016
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A viagem dos portugueses e a viagem de Sá de Miranda Márcia Maria de Arruda Franco UFOP Desde o século XV, as viagens portuguesas esperavam por uma narrativa épica que as "imortalizasse". Os latinistas e D. João II conceberamna em latim (Ramalho, 1993 e Matos, 1991). Garcia de Resende, no prólogo do Cancioneiro Geral, de 1516, também suspira por uma epopéia em lingoagem. Esta idéia será obsessivamente repetida entre os poetas da escola nova, Ferreira, Bernardes, Caminha, e só realizada por Luís de Camões. Sá de Miranda manifestou o desejo de ver as Descobertas cantadas em estilo alto na dedicatória a D. João III que precede a Fábula do Mondego, uma obra lusocastelhana. Ao poema pastoril é dado um exórdio épico em que são referidas tanto a gesta dos portugueses e a guerra contra o infiel: Ínclito Rey, que d'este al otro Polo enchistes de trofeos, abriendo al Nilo, desd'el Tajo, luz nueva y nuevo día, mudando en esto la natura estilo: dándoos Neptuno el mar, dándoos Eolo sus vientos, y armas Marte a la porfía. Por la zona que ardía en brava, continuamente, vuestra animosa gente, los Portugueses, a que nada espanta, a vós, Señor, los ojos, y a la santa empresa y lealtad propria y d'abuelos, contra amenaza tanta gran denuedo venció tantos recelos.(Ibidem) A Fábula do Mondego não permanece no registro épico, "reconociendo al tiempo el su poder", senão por listar os signos caracterizadores da região do Mondego ("Ya munda, que es dezir, clara agua y pura"), isto é , Coimbra, em que estão as ruínas da Torre de Hércules (estrofe 6) e o túmulo de Afonso Henriques (estrofe 7). A Fábula do Mondego envereda por uma reflexão sobre a poesia ao gosto do Renascimento (recontase a lenda de Orfeu e Eurídice) e sobre a loucura amorosa, mal de que padecem, como Diego, muitos pastores mirandinos. A possibilidade de, à semelhança de Vergílio (Sá de Miranda, 1976, 75), o gênero pastoril incluir referências ao assunto alto ou épico é feita na terceira estrofe da dedicatória. A obra de Sá de Miranda (Comédias, Cartas e algumas Éclogas em vernáculo) está no início do processo de constituição da moderna poesia portuguesa. É a primeira a trazer para as letras portuguesas os pressupostos formais e conteudísticos da cultura humanística. Isto é feito sem que sejam renegadas a herança cancioneiril peninsular e a prática lusocastelhana, sendo está a mais arraigada tradição ibérica de Sá de Miranda. A sua culta lira soube fazer uma crítica ética à empresa indiana, denunciando o seu ponto chave: a transformação cultural operada pelos novos signos da cultura marítima. As imagens náuticas, que a retórica antiga lia como alegorias do Estado, da situação política, a guerra e/ou a paz (HANSEN, 1987, 13), ganham, por assim dizer, uma determinação histórica, referindose agora às Grandes navegações. Para Sá de Miranda, a aventura portuguesa, como chance ilusória de enriqueimento rápido, atráves do comércio ultramarino, era uma "clara peçonha" que entrava pelos portos (rimando com mortos) portugueses: Entrou, dias há, peçonha clara pelos nossos portos, sem que remédio se ponha: uns dormentes, outros mortos, alguém polas ruas sonha.(Sá de Miranda, 1977,84) O poeta sabe do valor épico da gesta portuguesa. Sua crítica referese à ganância gerada pela aparente riqueza indiana: Fez no começo a pobreza vencer os ventos e o mar, vencer quási a natureza; medo hei de novo à riqueza, que nos venha a cativar.(Ibid.) http://www.geocities.ws/ail_br/aviagemdosportugueses.html
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A Carta a António Pereira Marramaque abre com uma crítica à relação dos Pereiras com os lucros da empresa indiana. O poeta rima "correr pardaus", a circulação da moeda indiana, com "caminhos tão maus": Como eu vi correr pardaus por Cabeceiras de Basto, crescerem cercas e o gasto, vi, por caminhos tão maus, tal trilha e tamanho rasto, ( Ib., 83) Dias Miguel (1980, 148) acha que estes pardaus vieram para as terras do senhor de Basto em 1544, com a morte do seu irmão bastardo Rui Vaz Pereira que permaneceu no Oriente por um quarto de século, envolvido nas lides das armas e no comércio indígena, "engrossando uma fortuna apreciável de pardaus, que, por ser seu herdeiro António Pereira, acabaram afinal por ir parar a Cabeceiras de Basto" (Ibidem). Na seqüência da Carta, Sá de Miranda critica a política ultramarina por despovoar o reino, na famosa quintilha, escrita no melhor do seu estilo concreto: Não me temo de Castela donde inda guerra não soa; mas temome de Lisboa, que, ao cheiro desta canela, o Reino nos despovoa. (Ibidem) O problema político com Castela é minimizado em face do despovoamento de Portugal; o vazio deixado no reino português pelas viagens dos descobridores e dos comerciantes é um vazio de identificação cultural, na medida em que os valores antigos estão sendo transformados, substituídos por valores "alheios". Para Sá de Miranda, o império lusitano assume o sentido de uma empresa econômica arriscada, quer dizer, que colocava o reino em risco. O império marítimo, ao absorver as vontades e os sonhos, revolucionava os costumes ibéricos, tão caros ao poeta e a seus amigos. "O cheiro da canela" uma especiaria indiana "despovoa o reino", desestruturando a orgnização agrária da sociedade portuguesa. Sem camponeses, que todos afluem à Lisboa e ao comércio, fica impossibilitado o prosseguimento da atividade agrícola. O "cheiro da canela", como salienta Maria Vitalina Leal de Matos (1987,154), é transformado em símbolo, sinal motivado dos tempos. Referindose à diferença de costumes entre o presente e a época de Viriato, o poeta se considera um representante da tradição e dos costumes religiosos, trazendo "óleos" e não "perfumes": "Os leitos, mesas e os lumes, / todo cheira: eu óleos trago; / vem outros, trazem perfumes." (Sá de Miranda, 1977, 84). Adiante o trabalho com o signo concreto do "cheiro" reaparece, na mesma clave da crítica ao comércio indiano: Disto o cheiro, disto a cor que preço nam tem igual, milagres de Portugal, cousas de tanto sabor para saberem tam mal! (Ibidem, 86) Os "milagres de Portugal" são vistos ironicamente, isto é, como decorrentes de uma política econômica equivocada, que estocava mercadorias perecíveis, sem organizar a sua venda, "pagando o pato": Onde se há de lançar tanto? Aquilo é pagar o pato! (...) Que contas vão tão erradas! Enfastia o que sobeja; (Ibidem) Em nota, Rodrigues Lapa sugere que "pagar o pato" talvez queira dizer "pagar o prejuízo que outrem fez" (Ibidem) . Por fim, o perigo que Sá de Miranda pressente no abandono do reino por conta das viagens marítimas, levao a atacar a figura do marinheiro, que é ridicularizada: Os marinheiros vadios que vilmente a vida apreçam, polas cordas dos navios volteam como bugios, inda que vos al pareçam.(Ibidem, 98) Está sendo atacada aquilo que se constituirá em arquétipo do português, principalmente para a mentalidade romântica: a figura do navegador é comparada à de um "mico". Escrita no momento em que se iniciava o processo quinhentista de construção da imagem imperial lusíada, a obra mirandina se posiciona criticamente em relação à revolução cultural centrada nos signos do mar. O fausto da empresa indiana, a promessa da riqueza súbita são vistos como um sonho. Em outra carta, a D. Fernando de Meneses, o poeta sintetiza a sua crítica ao devaneio indiano e brasileiro: "Temese dum amigo apoderado, / do tempo, que só sonha Índia e Brasil, / té que cada um de lá torne dourado." (Sá de Miranda, 1977, p. 104). Os amigos em poder dos tempos, isto é, levados pelo sonho indiano, deixam as terras (o cultivo da agricultura) e se dirigem à corte, deixam Portugal e se dirigem para as Índias. Sá de Miranda, por sua vez, não se deixa estar em poder dos tempos: permanece firme em sua argüição severa dos novos valores, ao tentar abrir os olhos de António Pereira que, como senhor feudal, deveria ter uma outra atitude em relação à empresa indiana, não descuidando do cultivo e do governo das suas terras:
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Ao reino cumpre em todo ele ter a quem o seu mal doa, não passar tudo a Lisboa, que é muito o peso, e com ele mete o barco n'água a proa.(Ibidem, 97) O poeta alerta contra a febre indiana: "Destes mimos Indianos / hei gram medo a Portugal" (Ibidem, 52), na carta a João Roiz de Sá de Meneses. Com a crítica feita no calor da hora aos engodos da empresa marítima, o poeta, para o juízo oitocentista, se transforma em vate: prevê a ruína do império português, ainda na primeira metade de quinhentos. Dele dirá Carolina Michaëlis de Vasconcelos:"foi [...] também um dos primeiros que pressentiu o perigo e apontou, propheticamente, para a origem do mal futuro." (Vasconcelos, 1885, V). Por isso, Sá de Miranda, já no século XX, tem sido comparado ao Velho do Restelo, defensor das tradições ibéricas e crítico da aventura indiana:"O Velho do Restelo fustiga a ambição desmedida dos navegantes portugueses, preanunciando, como Sá de Miranda já antes, a ruína econômica de Portugal, de um Portugal já despovoado", comenta Pina Martins (Martins, 1981, XXVI). A aproximação entre o discurso antiindiano de Sá de Miranda e o do Velho do Restelo ainda pode ser depreendida por uma leitura atenta desse episódio do canto épico. Algumas imagens e conceitos evocam certas passagens da obra mirandina, como por exemplo os versos: Deixas criar às portas o inimigo, Por ires buscar outro de tão longe, Por quem se despovoe o Reino antigo, Se enfraqueça e se vá deitando a longe! (Lus., IV, 101) lembram, como indica o editor d'Os Lusíadas, Emanuel Paulo Ramos (2a ed, 1978, p.450), a famosa quintilha acima citada da Carta de Sá de Miranda a António Pereira Marramaque; aquela em que o poeta teme "de Lisboa, que, ao cheiro dessa canela, o Reino nos despovoa". A crítica à artilharia, como um mal uso do fogo, também está presente tanto na fala do Velho do Restelo como na Carta de Sá de Miranda a Pero de Carvalho. Diz Sá de Miranda do "fogo": Deste engenho que diremos, de que nós tais gabos damos, com quem tudo acometemos? quantas vezes dele usamos mal, e como não devemos? Dom do Céu nosso especial, e veo a ser todavia este homem racional tam engenhoso em seu mal, como ontem na artilharia!" (Sá de Miranda, 1977, 6970). E n'Os Lusíadas o Velho lamenta: "Trouxe o filho de Jápeto do Céu / O fogo que ajuntou ao peito humano, / Fogo que o mundo em armas acendeu, / Em mortes, em desonras (grande engano!)." (Lus., IV, 103). Com essa breve aproximação não se pretende afirmar que o velho do Restelo seja uma referência explícita de Camões a Sá de Miranda, mas sim salientar que havia em quinhentos um discurso antiindiano construído a partir de determinados pontoschave: o mal uso do fogo, o despovoamento do reino, a ambição desmedida, etc, pontos que se reencontram tanto no discurso do Velho do Restelo como nas cartas mirandinas. Há um detalhe que opõe o Velho do Restelo a Sá de Miranda, o primeiro amaldiçoa o canto da gesta marítima: "Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, / Nas ondas vela pôs em seco lenho! / Dino da eterna pena do Profundo,/ Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! / Nunca juízo algum, alto e profundo, / Nem cítara sonora ou vivo engenho, / Te dê por isso fama nem memória, / Mas contigo se acabe o nome e glória! (Lus., IV, 102), e o segundo, como poeta que é, toma uma atitude muito diversa. Os signos da aventura marítima serão usados por Sá de Miranda para simbolizar a sua própria gesta de introdutor de um novo metro e de um novo conceito de poesia. A construção do sentido dos poemas deriva de um ato hermenêutico proposto pelo leitor: "Quantos ledores tantas, as sentenças; / c'um vento velas vem e velas vão." (Sá de Miranda, 1977, 287). Para sugerir a dinâmica interpretativa do poético, Sá de Miranda utiliza imagens de navegação. A "Elegia a uma senhora muito lida, em nome de um seu servidor" alude ao saber dessa senhora letrada que parece colaborar com as "descobertas mirandinas", ajudando a limar os primeiros decassílabos mirandinos: Cuidando em vós, senhora, no alto engenho delicado saber, na tanta estima, não sei com que ousadia ante vós venho, Por dom da natureza posta em cima de todo o que aqui vemos descoberto, a que é tam necessária vossa lima.(grifo meu, Ibid., 13) A obra mirandina se posiciona criticamente em relação à aventura marítima e comercial dos portugueses, fundando a escola nova ou mirandina como descobridora de um novo metro (o decassílabo) e de novas formas e gêneros para http://www.geocities.ws/ail_br/aviagemdosportugueses.html
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o poético. A primeira estrofe do Canto V d'Os Lusíadas abre com uma referência ao Velho do Restelo: "Estas sentenças tais o velho honrado / Vociferando estava, quando abrimos / As asas ao sereno e sossegado / Vento, e do porto amado nos partimos" (Lus., V, 1). Em seguida, é retomado um costume dos navegadores portugueses ao largarem do cais: "E, como é já no mar costume usado, / A vela desfraldando, o céu ferimos, / Dizendo: Boa viagem! Logo o vento / Nos troncos fez o usado movimento" (Lus., V, 1). Esta expressão será usada por Sá de Miranda em relação à aventura com o novo metro e as novas formas. Na dedicatória a D. Manuel de Portugal, a encabeçar a primeira écloga vernácula mirandina, Encantamento, o poeta compara a sua gesta de introdutor do novo gosto italiano com a de Horácio, que introduziu o metro grego na língua latina, e também com a gesta dos portugueses. Sá de Miranda abriu os portos da língua aos cantares peregrinos. D. Manuel de Portugal e outros podem seguir a viagem iniciada por Sá de Miranda, que "fez o que pôde": [...] Já que fiz aberta aos bons cantares peregrinos, fiz o que pude, como por si diz aquele, um só dos líricos Latinos; provemos esta nossa linguagem, e, ao dar da vela ao vento: Boa viagem.( Ib.,223)
Bibliografia: 1.CAMÕES, Luís Vaz de, Os Lusiadas, 2a ed, Porto, Porto ed., 1978. 2.GARCIA, Alexandre M, org., Poesia de Sá de Miranda, Lisboa, Comunicação,1984. 3.LAPA, Rodrigues, sel. pref. e notas, Poesias Escolhidas de Sá de Miranda, Belo Horizonte, Itatiaia, 1960. 4.HANSEN, João Adolfo, Alegoria, construção e interpretação da metáfora. 2a ed., São Paulo, Atual, 1987. 5.MARTINS, J. V de Pina, O Humanismo na obra de Camões, Separata dos Arquivos do Centro Cultural Português (XVI), Paris, Fundação Calouste Gulbenkian,1981. 6.MATOS, Luís de, L'Éxpansions portugaise dans la literature latine de la Renaissance, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,1991. 7., Itinerarium Portugallensium, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,1992. 8.MATOS, Maria Vitalina Leal de, Ler e Escrever, Lisboa, Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1987. 9.MIGUEL, António Dias, António Pereira Marramaque, Senhor de Basto, Subsídios para o estudo de sua vida e obra, Paris, Calouste Gulbenkian,1980. 10.SÁ DE MIRANDA, Francisco de, Obras Completas, 4a ed /3a ed, Lisboa, Sá da Costa, 1976/1977. 2 vols. 11.RAMALHO, Américo da Costa, "Os humanistas e a divulgação dos Descobrimentos",In: Congresso Internacional Humanismo Português na época dos Descobrimentos, Actas, Coimbra, Universidade de Coimbra / Fac. de Letras, 1993. 12.VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. Poesias de Francisco de Sá de Miranda. Halle, Max Niemeyer, 1885.
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