\"A vida apenas, sem mistificação\": coragem, ética e educação

August 1, 2017 | Autor: Fabiana Jardim | Categoria: Education, Michel Foucault, Max Weber
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“A VIDA APENAS, SEM MISTIFICAÇÃO”: CORAGEM, ÉTICA E EDUCAÇÃO Fabiana A. A. Jardim Não apenas porque é de praxe, gostaria de iniciar agradecendo aos organizadores do evento, e o faço na pessoa da Simoni que pacientemente respondeu às minhas questões e dúvidas. Confesso a vocês que me senti muito honrada e muito feliz com o convite – tendo nascido numa família de físicos, desde sempre um dos desafios que me esteve colocado foi fazer uma sociologia que não se escondesse de diálogos interdisciplinares num sociologuês: meu padrasto, geofísico, leu praticamente todos os meus primeiros trabalhos de graduação e foi ele quem, em grande medida, me puxava os pés para o chão, me estimulando a manter uma linguagem clara e simples. Vamos ver se, depois de tantos anos, consegui não perder a prática nesse exercício de me fazer entender por outros que não meus próprios pares. A tarefa que me foi dada hoje, nesta mesa, foi a de contribuir para as reflexões sobre ética, ensino e pesquisa a partir do ponto de vista das ciências sociais. Uma tarefa bastante complexa, portanto, pois é direção a qual se pode chegar por inúmeras vias. Dentre todas as que se abriam à minha frente, optei caminhar por algumas veredas abertas pelos trabalhos de Max Weber e Michel Foucault – autores que, embora bastante distintos, podem ser articulados em torno do tema da ética e de certas atitudes com relação ao pensamento e ao presente. Escolhi para minha comunicação um título um pouco estranho: “A vida apenas, sem mistificação”: coragem, ética e educação. A primeira parte do título é o último verso do poema de Drummond – “Os ombros suportam o mundo”. Talvez vocês se lembrem da contundência desse poema, que inicia dizendo “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco”. Como se não bastassem esses versos duros, o poema se encerra afirmando que “Chegou um tempo em que não adianta morrer./ Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./ A vida apenas, sem mistificação”. Para nos consolarmos um pouco, poderíamos nos lembrar que o poema é de 1940, ainda durante os primeiros anos da II Guerra. Mas seria um consolo frágil, pois que o presente parece tornar os versos de Drummond bastante contemporâneos. Há nele uma intensidade no modo como nomeia a sensação subjetiva dos que estamos vivos XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

-2num dado momento histórico: pois cada geração está confrontada com a tarefa de emprestar seus ombros para ajudar a suportar o mundo – suportar usado aqui no sentido de “suporte”, de “apoio”. É sobre nossos ombros, portanto, que o mundo pesa – leve como a mão de uma criança... E vocês vejam que, tendo escolhido esse poema como parte do título, a sequência não poderia falar de outra coisa que não de “coragem”: a coragem necessária para enfrentar a vida como ordem num mundo “desencantado” – desencantado no sentido weberiano que espero esclarecer até o final dessa fala. A reflexão que compartilho com vocês a respeito das possibilidades de articulação entre as dimensões da ética, da pesquisa e do ensino está estruturada a partir do exame de três pontos 1) as relações entre ética e indivíduo moderno; 2) as relações entre experiência escolar e sujeito moderno e 3) finalmente, as relações entre ciência e sujeito moderno. Como já mencionado, farei isto me referindo especialmente a dois autores: Max Weber e Michel Foucault. Ao final, não apresentarei algo que possa ser chamado propriamente de “conclusões”, mas tentarei delinear duas ou três questões que me parecem centrais a respeito das relações entre ética, ensino e pesquisa, que nos confrontam a todos nós que trabalhamos com educação e formação. Começo, então, pelo problema das relações entre ética e indivíduo moderno, pensado a partir das contribuições de Max Weber. Ao lado de Karl Marx e de Emile Durkheim, Weber pode ser considerado como um dos principais pilares do processo de edificação da sociologia como ciência. Seus trabalhos buscaram refletir sobre o que se configurava como sociedade moderna, mas também sobre as próprias condições para a legitimação de um conhecimento de tipo sociológico: ele se ocupou, portanto, com o desenvolvimento da sociologia como teoria e método. Entre esses “três porquinhos” da sociologia, Weber talvez seja o que menos se presta a uma totalização teórica ou metodológica – como Friedrich Tenbruck afirma: “[...] Weber rejeitou expressamente a ideia de uma ciência social sistemática e cumulativa”. O mesmo Tenbruck também afirmava que uma obra como Economia e Sociedade só poderia ser entendida se “[o leitor] tiver em mente que a sociologia não pode e não deve ser circunscrita no interior de um sistema de conceitos”. Ainda que seja comum encontrar autores que, frente a variedade de objetos estudados por Weber, indicam que o tema central do pensamento weberiano deve ser encontrado no “processo de racionalização ocidental”, seguimos aqui as pistas abertas XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

-3pelo já referido Friedrich Tenbruck e por Wilhelm Hennis, que trazem elementos que refutam tal compreensão. Na perspectiva aberta por Hennis, o interesse central de Max Weber seria de algum modo antropológico: o fio vermelho que confere unidade a seu trabalho se apoia na busca por compreender o “desenvolvimento da humanidade” do homem. Isto não significa, de modo algum, que Weber estivesse propondo uma compreensão do “homem universal”, em abstrato: seu interesse, ao contrário, era distinguir – por meio de comparações entre diferentes civilizações e diferentes momentos históricos – a especificidade da forma com que o ocidente constituiu um tipo humano, o indivíduo moderno, “[...] criado pela coincidência de componentes determinados pela religião e também economicamente”. O espaço é curto para a apresentação de todos os desdobramentos históricos e teóricos. Porém, para os objetivos dessa mesa, vale chamar a atenção para o fato de que as pesquisas de Max Weber levam-no a reconhecer – muito antes que a empiria da experiência do século XX tornasse tão visível – a dimensão irracional da história (isto é, o fato de que é impossível imprimir a ela um sentido unívoco de progresso, orientado por valores ou fins), no processo de desencantamento do mundo, cujas origens serão traçadas até o problema da “[...] ‘eticização’ radical da conduta da vida religiosa” – conforme a formulação de Flávio Pierucci. A tendência geral à racionalização se desdobra, assim, não do progresso irresistível do saber e da ciência, mas do “paradoxo das consequências”: para ultrapassar o panteão dos múltiplos deuses e ao tentar oferecer aos fiéis uma imagem coerente de mundo, organizada pela presença de um único deus, a religião teria introduzido na História o germe da “desmagificação” do mundo. No entanto, como sublinha Flávio Pierucci, a racionalização mais importante introduzida pela religião cristã não foi teórica, mas prática, ““a racionalização do agir”, como dizem os franceses. Do agir cotidiano, melhor dizendo, da conduta de vida. Noutras palavras, interessava [a Weber] a racionalidade prática em seus dois leitos ou cursos principais: a racionalização prático-técnica e a racionalização prático-ética”. Tratando das origens religiosas da modernidade, Mariana Côrtes sintetiza a análise weberiana em sua construção de tipos ideais das diferentes direções que as religiões apontam em relação ao mundo: elas podem ser de “afirmação do mundo” ou “negação do mundo”. Enquanto as primeiras não distinguem entre ordem mundana e XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

-4ordem divina (na medida em que elas se encontram mescladas, fundidas na natureza e na cultura), as últimas vão estabelecer com o mundo uma relação sempre tensa, de desvalorização. A autora afirma: “Na história das religiões, apenas as religiões de ‘negação do mundo’ tiveram um papel ativo e fundamental no processo de racionalização do mundo [...]. As religiões de “negação do mundo”, e somente elas, são sempre “religiões de salvação”, no sentido de que a “salvação” só pode aparecer como uma demanda dos fiéis quando há algo do qual ser salvo, ou seja, quando o mundo passa a ser desvalorizado em suas ordens e intenções mundanas, e outro mundo começa a ser construído como um objetivo a ser conquistado”. Vemos aí que as religiões monoteístas de “negação do mundo” introduziram nas práticas e nas ideias uma tensão, de um lado dessacralizando o mundo e, de outro, incitando o desenvolvimento de uma ética ou moral, pois para alcançar a salvação, é necessário adotar determinadas práticas, determinados modos de lidar consigo mesmo e com o mundo – embora nada disso seja, de fato, garantia de salvação, pois que a vontade dessa entidade divina não é nem conhecida, nem controlável. A análise weberiana nos interessa aqui porque nos permite problematizar, em alguma medida, a relação que se estabelece entre as transformações sociais e culturais operadas pela ciência e pela técnica e os dilemas éticos e normativos do presente. Pois Weber nos mostra que – menos do que processo evolutivo e irresistível – a tendência à racionalização é processo de longuíssima duração, que somente em alguns momentos históricos muito específicos, contando com as condições materiais e econômicas adequadas, foi destravado em toda sua potência. Além disso, quando Weber procura mostrar, na Ética Protestante e o “espírito” do capitalismo, que o capitalismo não era pura força econômica, mas para se desenvolver necessitou de um “espírito”, de um corpo de ideais e de formas estabelecidas de condução da vida, ele também nos sugere que a especificidade do Ocidente está nesse estranho paradoxo, por meio do qual a “eticização”

da

vida

religiosa

levou

ao

aprofundamento

do

processo

de

desencantamento do mundo, resultando, ao fim, num novo tipo de politeísmo – o de valores – que condena o indivíduo moderno a intermináveis escolhas. Em certo sentido, poderíamos pensar que o indivíduo moderno, único “lugar” em que é possível conciliar valores oriundos de diversas esferas da vida, encontra-se confrontado todos os dias, a cada escolha, com a necessidade de uma escolha ética. O motivo da angústia é que não há mais bases sólidas nas quais fundar tais escolhas; conforme aponta Schluchter: [...] a XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

-5transição para a modernidade é um processo de internalização e de subjetivação, no qual o caminho para dentro tanto mais demora, quanto mais leva para nós mesmos – e não mais para cima, para deus. Só por causa disso a escolha de valores ganha uma importância existencial: meu destino (na cultura) não é objetivamente fixado com antecedência. Forma-se uma ‘cadeia de decisões últimas’, pela qual, conforme Weber, ‘como em Platão: a alma escolhe seu próprio destino – quer dizer, o sentido da sua ação e da sua existência’”. Passemos, agora, ao segundo eixo de reflexões: a relação entre instituição escolar e sujeito moderno. Partindo da noção de arqueologia tal como desenhada no pensamento de Michel Foucault, os sociólogos Julia Varela e Fernando Álvarez-Uría, em sua Arqueologia da Escola, publicada em 1991, procuraram pensar as condições que tornaram possível a emergência da escola nacional na Espanha – embora possamos pensar que a generalização da experiência escolar permite tomar o processo descrito por eles como uma espécie de “tipo ideal”. Os autores privilegiam cinco eixos de investigação: 1. A definição de um estatuto da infância, isto é, a “invenção” da infância como período distinto da vida, com suas características e necessidades próprias. 2. A emergência de um espaço específico destinado à educação das crianças. Embora relacionado ao processo anterior, nesse caso se trata de sublinhar o aparecimento de um espaço institucional, fechado, cuja racionalidade irá progressivamente impor a separação das crianças por idade e sua diferenciação conforme o desempenho escolar. 3. O aparecimento de um corpo de especialistas da infância dotados de tecnologias específicas e de ‘elaborados’ códigos teóricos. Trata-se aqui de pensar a emergência de novos saberes que terão a infância como objeto privilegiado de sua prática, tais como a Pedagogia e a Psiquiatria. 4. A destruição de outros modos de educação: acompanhando de que maneira se deu a legitimação do ensino formalizado na escola como modelo ideal de transmissão de conhecimentos, o que teve como fator e efeito a deslegitimação das outras formas de ensino e aprendizagem, que passam a ser vistas como insuficientes, inapropriadas etc. Como afirmam os autores: “[...] A partir [do XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

-6momento em que a educação se encerra nos muros da escola] a memória dos povos, os saberes adquiridos no trabalho, suas produções culturais, suas lutas, ficarão marcadas com o estigma do erro e desterradas do campo da cultura, a única legítima porque está legitimada pelo mito da ‘neutralidade’ e da ‘objetividade’ da ciência”. 5. A institucionalização propriamente dita da escola, isto é, a imposição da obrigatoriedade escolar decretada pelos poderes públicos e sancionada pelas leis. Chama a atenção, nesses eixos destacados pelos autores, que três deles se refiram à infância. Tornada visível a partir do contraste com o mundo adulto, a infância será um objeto e um problema privilegiado em torno do qual a instituição escolar se desenvolverá: a formação do homem deixa de estar enraizada na experiência de sua cultura e passa, cada vez mais, a se localizar nos espaços e tempos organizados pela escola. Tal organização, com o desenvolvimento da Pedagogia, será cada vez mais “depurada” do mundo e das contradições do presente, ancorada na ideia de progressão materializada no currículo, de paulatina passagem entre uma instituição pública protegida – a quem cabe socializar nas regras comuns da sociedade – à esfera pública propriamente dita, na qual o indivíduo, ao fim de sua passagem por essa maquinaria escolar, estará finalmente apto do ponto de vista moral e intelectual, a participar do presente como homem e cidadão – essas figuras de razão e autonomia. Tal instituição será marcada desde o início por uma ambiguidade fundamental: dirigindo-se privilegiadamente à infância, a seres “dependentes” e “heterônomos”, a escola deve forjar nos corpos e nas almas das crianças uma segunda natureza, uma natureza social, conforme ideia que articula Kant e Durkheim. Como Mariano Narodowski (1996) apontará, não é à toa que a escola acabará por produzir efeitos contrários a seus objetivos expressos, na medida em que suas práticas (inclusive, ou principalmente, o saber pedagógico) vão passar também a infantilizar tudo o que tocam – quando falamos em processos vitalícios de educação e de seu espraiamento por espaços cada vez mais amplos, é também da generalização dessa relação que localiza o educando nesse espaço infantil da passividade, heteronomia e incompletude. Ao generalizar as relações educativas conforme o modelo escolar, será que não generalizamos também a produção de sujeitos identificados ao alunado?

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-7Autoridade, educação moral, obediência, disciplina são ideias que circulam em torno da instituição escolar. E ela comporta ainda outra ambiguidade: assumida pelos Estados como instrumento de construção da cidadania e estratégia de homogeneização e equalização de oportunidades, a racionalização de suas práticas – conforme descrito por Michel Foucault, em Vigiar e Punir – irá, cada vez mais, reforçar processos de assujeitamento disseminados pelo dispositivo disciplinar (construindo “corpos dóceis” a fim de alcançar as almas) e legitimar desigualdades sociais, agora chanceladas pelo desempenho escolar. A escola sem dúvida ensina a ser aluno, mas será que pode “ensinar” autonomia ou orientar quanto a ações e escolhas éticas? Encontrando um currículo definido, previamente organizado conforme fins e valores que são alheios às crianças que a cada ano ingressam nas escolas, quais chances os alunos têm de se defrontar com a tomada de consciência dos deuses distintos, que concorrem pela orientação de suas ações? Quando, cada vez mais, o que se passa na escola se orienta por fins que lhe são externos e “inescapáveis” (como as avaliações externas, por exemplo), como os indivíduos que se encontram no espaço escolar podem construir significações para as ações e para as relações sociais que se desenvolvem ali dentro? Que possibilidades éticas estão abertas a alunos e a professores, quando os deuses impessoais da burocracia escolar definem seus destinos? Comento tais questões, aqui muito abreviadamente referidas, pois – se Weber nos sugerira que a experiência do indivíduo moderno está marcada pela angústia e pela necessidade de se tornar consciente dos objetivos e valores que orientam suas escolhas – a instituição de educação escolar que emerge do mesmo conjunto de relações sociais modernas não parece contribuir para que os indivíduos possam lidar com tal angústia. Ao invés de contribuir para a consciência da historicidade contingente e para o reconhecimento da necessidade de escolher um destino, o que a instituição escolar faz, muitas vezes, é impedir a irrupção do individual, logo normalizado seja pela correção do desvio, seja pela punição da anormalidade. As práticas adotadas previnem que as finalidades, definidas por esferas de valor, sejam tornadas consciente ou postas em questão. O que se produz aí não é um sujeito ético, mas um sujeito disciplinado ou que se deixa conduzir – sua autonomia reduzida à sua capacidade de atribuir sentido ou acusar a falta de sentido do vivido no espaço escolar – como bem já apontou François Dubet. As angústias, várias, bem pouco têm a ver com a consciência da finitude ou da XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

-8necessidade de escolhas ou mesmo com a possibilidade de reconhecimento da desimportância do que se transmite na escola para oferecer significação à vida: as angústias, de estudantes e professores, estão todas relacionadas com a posição que ocupam em relação às expectativas escolares, estas jamais postas em xeque. Em outras palavras, como agência de modernização, reformadora, a instituição escolar parece bloquear as possibilidades subjetivas e éticas abertas pela modernidade. Cabe agora passar pelo último assunto: as relações entre ética e ciência. Voltemos um pouco a Weber. Em especial, a um de seus textos mais bonitos e conhecidos: a conferência sobre “Ciência como vocação” (conferência proferida em novembro de 1917). Weber falava a estudantes, procurando apresentar a eles suas reflexões sobre o que significaria assumir a pesquisa científica como uma vocação, isto é, como uma tarefa não simplesmente profissional, mas que respondesse a certos anseios e aspectos subjetivos. É verdade que Weber faz o percurso inverso: examina as condições de produção científica em seu tempo e sugere as características que um jovem deve ter para enfrentar uma carreira científica. Além de questões práticas, Weber está atento para a questão da especialização dos campos científicos e para a dimensão de angústia provocada pelo fato de que as contribuições para as áreas vêm, cada vez mais, de pequenos avanços, destinados a serem superados: a fragmentação, afinal, torna o conhecimento científico um empreendimento coletivo, e não se pode esperar a “imortalidade” por meio de uma descoberta já de partida destinada à superação. Há neste ensaio de Weber uma reflexão profunda sobre a ética no ensino e na pesquisa – nas ciências humanas e sociais, mas não apenas. Pois Weber, coerente com sua posição teórica e metodológica, atribui ao homem de ciência vocacionado a capacidade de lidar com o fato de que a ciência não conduz a orientações normativas. Como sintetiza Schluchter: “O homem moderno é forçado, em última instância, a estabelecer uma estrutura interna e externa por meio de uma escolha; para esta escolha não ajudam nem a igreja, nem seitas, nem substitutos religiosos, nem também e antes de tudo “nenhuma ciência”, pois a ciência “não responde” à única pergunta importante para nós: “O que devemos fazer? Como devemos viver?”. Neste ponto Max Weber está seguindo Leon Tolstoi. A ciência que respeita seus limites, seja ela empírica [como a física e a biologia] ou intérprete do sentido [como a filosofia, a economia ou a sociologia] , fica muda diante desta pergunta decisiva, em última instância”.

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-9Mas a impotência da ciência para responder a essa questão fundamental, sobre a significação da vida humana, não significa que a própria ciência seja desprovida de significação cultural. Respeitar os limites da ciência é reforçar sua potência de conduzir à clareza: ela pode contribuir para o enfrentamento com a própria historicidade. Em outras palavras, a ciência pode ajudar a reconhecer os deuses, os valores em disputa em certo momento histórico ou, em sentido contrário, pode contribuir para elucidar as prováveis consequências de determinadas escolhas. A ciência aparece, assim, como importante para a “condução consciente da vida”, desde que se reconheça que ela não pode orientar com relação a fins ou valores. Trata-se, assim, de uma ciência que não pretende substituir a religião como fonte doadora de sentido ao mundo e à vida. A posição de Weber é tanto metodológica quanto ético-prática no que se refere aos pesquisadores. É uma reflexão sobre a ética no ensino, pois, partindo dessa concepção da ciência, Weber afirmará: “[Se] um professor é mesmo prestativo, sua primeira tarefa é ensinar os alunos a reconhecer fatos incômodos – aqueles, quero dizer, que para sua opinião particular sejam incômodos. E para toda opinião particular – até para as minhas, por exemplo – existem fatos altamente incômodos. Acredito que, se o professor acadêmico compelir seus ouvintes a se acostumarem com isso, ele estará realizando mais do que um trabalho apenas intelectual – eu seria tão imodesto a ponto de aplicar aqui a expressão ‘trabalho moral’, ainda que isso possa soar um tanto patético para designar uma tão completa obviedade”. É uma reflexão sobre a ética no ensino também no sentido de que Weber parece abdicar de uma postura reformista em que a ciência deve orientar posturas, escolhas ou visões de mundo: o que a ciência e o professor orientado por tal visão de ciência podem fazer é confrontar cada estudante com “o que está em jogo numa escolha valorativa existencial”. “Ensinar os alunos a reconhecer fatos incômodos”, ou seja, confrontá-los com a existência de uma pluralidade de racionalidades e imagens de mundo que coexistem na modernidade. Mas o texto de Weber também é uma reflexão sobre a ética na pesquisa, pois há uma profunda crítica à ilusão da ciência como controle, como capaz de levar (unicamente) ao progresso ou à felicidade. A ciência não deveria sucumbir à tentação de responder às demandas pela fundamentação de valores, tornando-se assim normativa. A significação cultural da ciência, no mundo moderno desencantado, está em sua contribuição para que reconheçamos os constrangimentos a nosso modo de pensar e ser. XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

- 10 E é neste ponto que temos uma possibilidade de convergência com o trabalho de Michel Foucault (que apareceu por enquanto apenas como ponto de partida para a arqueologia da escola, mencionada na segunda seção). Pois, assim como Weber, também Michel Foucault foi muitas vezes acusado de contribuir para um relativismo generalizado, com consequências para a crise ética contemporânea. Mas, também como Max Weber, Michel Foucault assumiu certa atitude filosófica em relação à história e ao presente que, ao passo que recusava à filosofia a possibilidade de orientar com relação a valores, afirmava sua potência para a produção de uma “ontologia de nós mesmos”, que não apenas contribui para a “condução consciente da vida”, mas para a liberação dos modos por meio dos quais somos constituídos enquanto sujeitos. Aqui, além de clareza, a ciência contribui para que ultrapassemos ou escapemos a determinadas práticas que, ao invés de fazer jus à incitação moderna de autonomia individual, constroem-nos lugares de dependência e governo por outros. O projeto moderno, entendido aqui não como corpus de valores e normas, pode ser então retomado como conjunto de questões que incitam à autonomia e à coragem de assumir uma posição frente à inevitabilidade de uma história já não mais mediada pela crença no progresso – ainda que já tenhamos aprendido muito sobre as ambiguidades de tal projeto e possamos assumir uma atitude também ambígua com relação a ele, em que retomá-lo é também nos liberarmos dele. Os dois autores aqui mobilizados nos oferecem exemplos de uma prática científica pautada por tais valores. Como última nota, e para terminar complicando ainda mais essas reflexões, dois pontos que trazem essas discussões para a nossa realidade, brasileira. O primeiro, uma brevíssima citação de Partha Chaterjee, cientista social indiano, extraída de seu ensaio “Nossa modernidade”: “A nossa é a modernidade dos já colonizados. O mesmo processo histórico que nos ensinou o valor da modernidade também nos tornou vítimas dela. Nossa atitude com a modernidade, portanto, não pode ser senão profundamente ambígua. [...] Mas essa ambiguidade não brota de nenhuma incerteza sobre ser a favor ou contra a modernidade. Antes, a incerteza é devida a sabermos que, para modelar as formas de nossa modernidade, precisamos por vezes ter a coragem de rejeitar as modernidades estabelecidas por outros”. Daí se desdobra uma tarefa para nós e para nossa educação escolar em assumir o projeto moderno e não somente suas agências de modernização. XV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Física – Maresias – 2014

- 11 O segundo, uma menos breve citação da coluna de Eliane Brum, publicada ontem, a respeito do processo eleitoral que se encerrou domingo. Na coluna, intitulada “O longo dia seguinte”, um dos aspectos centrais destacados é a eleição do governador Geraldo Alckmin a despeito (ou por causa) da crise da água: segundo ela, este é o rei nu dessas eleições. A colunista do El País afirma: “[...] Num momento em que a falta de controle parece se expressar com toda sua grandiosidade, como na escassez de água em São Paulo, assim como na corrosão das condições de vida pela degradação ambiental, talvez as certezas, mesmos que falsas e irresponsáveis, tornem-se mais ainda valorizadas. Talvez a virtude encontrada em Alckmin por parte dos eleitores seja a da negação da realidade: ‘Tudo sobre controle. Não vai faltar água’. Uma garantia expressada sem hesitações ou titubeio, em voz firme, quando a água se esvai das torneiras e a vida converte-se literalmente em cinza, uma garantia falsa, parece ainda soar como garantia. [...] Sua vantagem é manter viva a ilusão do controle. Esta seria a cisão [entre realidade e imaginado] para encobrir a fratura maior, a de que os responsáveis não têm responsabilidade. E a de que cada um, que também é responsável pela destruição ambiental, tampouco quer ser responsável, porque isso implicaria mudar de posição e alterar radicalmente seu modo de vida”. O que estas reflexões nos trazem é o reconhecimento do imenso e intenso trabalho ético que se desdobra da retomada do projeto moderno, não como adesão irrestrita a valores gerais, mas como assunção dessa atitude corajosa definida por Kant como condição de esclarecimento: aude sapere. A coragem de conhecer é também a coragem de enfrentar a tarefa da significação de um mundo marcado pela finitude, e por uma historicidade atravessada por múltiplas temporalidades, longe da univocidade do progresso. É a coragem necessária para enfrentar-nos com a vida apenas. Sem mistificação.

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