A Vingança em Medeia, de Eurípedes, e em Kill Bill, de Tarantino: pontos de encontro e desencontro

June 13, 2017 | Autor: Matilde Real | Categoria: Revenge, Quentin Tarantino, Euripides Medea, Medeia de Sêneca, Teatro Grego, Kill Bill
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A Vingança em Medeia, de Eurípedes, e em Kill Bill, de Tarantino: pontos de encontro e desencontro Introdução O tema da vingança é dos mais debatidos da História. Desde o Mundo Clássico até às sociedades contemporâneas que se discute sobre a ética da vingança e da justiça, fazendo com que os gregos da Antiguidade sejam de facto nossos contemporâneos. Os seus mitos, filosofias e questões fundamentais são hoje tão relevantes como o eram há 2500 anos. Tal como nos nossos dias, a vingança foi explorada na Grécia Antiga com muita violência. Em tragédias gregas como A Oresteia, Electra, Medeia, entre outras, a vingança é aplicada como uma forma de justiça que acaba quase sempre em desgraça, independentemente de o protagonista ter atingido o seu objetivo (ex.: a morte de Agamémnon e Clitemnestra em A Oresteia, ou a morte dos filhos de Medeia). Uma das peças mais óbvias para se analisar o tema da vingança é a Medeia de Eurípides, pois a sua reputação sangrenta destaca-a entre as demais. Sendo a vingança um tema que atravessa barreiras temporais, é comum a existência de uma versão da personagem Medeia (ainda que adaptada ao presente) em obras contemporâneas. A impiedosa Medeia, cega pelo desejo de vingança, serviu de inspiração a inúmeros autores. No cinema, essa influência é especialmente evidente na obra de Quentin Tarantino: de Pulp Fiction a Inglorious Bastards e, mais recentemente, Django Unchained, o realizador americano explora o conceito da vingança de forma violenta, remetendo para as tragédias gregas pelos requintes de fúria e crueldade que ela assume. Em Kill Bill: Vol.1 e Kill Bill: Vol.2, a ética da vingança é particularmente visível, sendo possível a identificação de um conjunto de paralelismos com o mito de Medeia fundamentais para a compreensão das influências clássicas presentes no filme. Embora a trama narrativa de Kill Bill se desenrole na contemporaneidade (2003), os temas e rituais evocados existiam já na Grécia Antiga e na cultura de samurais do Japão1. Na Antiguidade, a vingança era uma reação esperada e aceitável. Como recorda Harry Keyishian, já Aristóteles afirmava, em Retórica, que é nobre a atitude da vingança em vez da de conciliação com o inimigo (Keyishian, 1995:94). Nos filmes de Tarantino, a vingança é também esperada com uma naturalidade fora do comum. Como diz Budd no final do primeiro volume, referindose à protagonista, Beatrix Kiddo, “That woman deserves her revenge and we deserve to die” (Kill Bill:1 min 107). Neste trabalho, proponho-me analisar os paralelismos passíveis de serem identificados entre Medeia e Kill Bill no que respeita ao tema da vingança, descrevendo a forma como esta é explorada em cada uma das obras. Para a minha análise, terei em conta as semelhanças, mas também os pontos de divergência entre EmTraditions of Revenge in Quentin Tarantino’s Kill Bill, Suzanne Klatten explora estas semelhanças (cf. Klatten, 2011 : 4). 1

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as duas histórias, já que serão importantes para a leitura que procurarei oferecer do filme de Tarantino. Medeia está presente em Kill Bill tanto nos seus traços gerais como em pormenores quase impercetíveis. Para além disso, como procurarei demonstrar, o tema da vingança excede em muito as ações de Beatrix Kiddo, podendo ser também perspetivado relativamente a Bill, que é o objeto mais visível dos esquemas de vingança da protagonista. Existem ainda outras correspondências interessantes passíveis de serem estabelecidas entre as personagens secundárias, e que procurarei retratar, dando conta da forma como o realizador norte-americano recontou e adaptou este mito, deixando o peso da História e a pujança da Antiguidade Clássica sussurrar aos nossos ouvidos. Medeia A ação desenrola-se em Corinto e segue a história de Medeia, uma feiticeira e princesa grega casada com Jasão. Jasão abandona Medeia e prepara-se para se casar com a filha de Creonte, Rei de Corinto. Receando que Medeia se queira vingar, Creonte bane-a da cidade; cedendo porém às súplicas da princesa grega, ele consente que ela adie a sua partida por um dia. Ao longo desse dia, Medeia fará justiça e concretizará a sua vingança enviando, através dos filhos, dois presentes à noiva de Jasão com o pretexto de pedir que as crianças sejam acolhidas pela família. Contudo, os presentes encontram-se embebidos em veneno, pelo que, quando lhes toca, Glauce morre envenenada, o mesmo acontecendo a Creonte. Ainda não satisfeita, Medeia mata os seus dois filhos para se vingar do marido, que perdeu tudo a que dá valor na sua vida. Apesar de sentir alguma dor pela morte dos filhos, Medeia rejubila de satisfação pela sua vingança e aguarda o julgamento dos deuses.

Kill Bill Kill Bill – Vols. 1 e 2, realizados por Quentin Tarantino respetivamente em 2003 e 2004, relatam a história de Beatrix Kiddo (referida como “The Bride”) e a viagem que empreende para concretizar o objetivo que dá o nome aos filmes: matar Bill. No passado, Beatrix e Bill eram assassinos profissionais e tinham uma relação; contudo, quando soube que estava grávida, Beatrix decidiu fugir para dar uma vida diferente à filha. Bill acabou por dar com o seu paradeiro; quando descobriu que ela se preparava para se casar com outro homem, Bill, juntamente com a sua quadrilha (“The Deadly Viper Association Squad: DiVA”) matou o noivo e a sua família. Atingida na cabeça por um tiro, Beatrix ficou em coma durante quatro anos. Quando acorda, Beatrix decide vingar a morte da filha e toda a tragédia por que passara. A sua jornada de vingança para matar, um a um, os membros da “DiVA”, leva-a até Tóquio, Texas e Califórnia. Beatrix deixa Bill para último e só no final é que descobre que a filha de ambos, BB, afinal não morreu e vive com o seu antigo companheiro. Beatrix e Bill lutam, travando um longo duelo: a morte de Bill permitirá que Beatrix comece uma nova vida com BB.

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Medeia de Eurípides e Medeia de Séneca A versão mais conhecida de Medeia é a de Eurípides, que a escreveu no ano 431 a.C . (Allan 2002:6) Mais tarde, já na era cristã, Séneca adaptou e reescreveu a peça. Apesar de a trama narrativa ser a mesma, as diferenças entre as duas obras são significativas. É difícil eleger uma versão que tenha mais semelhanças com Kill Bill, pois o filme contém aspetos de ambas. Na Medeia de Séneca, a protagonista é mais violenta e tem o desejo de vingança desde o início, ao passo que a Medeia de Eurípides é sofredora, lamentando o seu destino. No filme, Beatrix revela ser uma fusão das duas Medeias, mostrando-se, desde o início, implacável na sua vingança, mas revelando também alguns momentos, ainda que raros, de sofrimento. Beatrix é uma mulher segura, que demonstra ser capaz de controlar o seu destino e estar pronta a desafiar as autoridades que a impeçam de o fazer. A Medeia de Séneca está mais próxima desta imagem, pois questiona os próprios deuses, enquanto que a de Eurípides está sujeita ao seu julgamento. Séneca caracteriza a sua protagonista quase como sobre-humana, com poderes que são desconhecidos ao homem comum. Beatrix também partilha destas características, dispondo de conhecimentos e técnicas especiais, que a colocam num patamar superior. No entanto, Beatrix conserva traços evidentes de humanidade, que se tornam óbvios quando ela se mostra afetada por emoções que enfraquecem a sua raiva, tal como o amor que ainda sente por Bill e pela filha de ambos, uma característica mais explorada na Medeia de Eurípides. Beatrix mostra-se também mais racional do que a Medeia de Séneca na forma como planeia meticulosamente a sua vingança e não se deixa levar em demasia pela raiva. Um importante paralelismo estabelecido entre Kill Bill e a Medeia de Eurípides é a contradição, incorporada pelas protagonistas, de serem assassinas e serem mães. Esta contradição não tem lugar em Séneca, pois, como faz notar Emma Griffiths, a sua Medeia não considera a morte dos filhos como um obstáculo para a realização da vingança, nem se lamenta sobre o destino que lhes deu (Griffiths, 2006: 97). Querendo incluir a dimensão mais humana de Beatrix Kiddo na minha análise, estabelecerei uma comparação entre a Beatrix e a Medeia de Eurípides, já que a justaposição entre os papéis de assassina e mãe se revela mais vincada nesta versão, tendo grande peso na caracterização da protagonista de Tarantino. Embora venha também, no âmbito desta minha exposição, a referir alguns paralelismos com a Medeia de Séneca, o foco da minha análise procurará manter-se-á fiel a Eurípides.

As Vinganças de Kill Bill concentradas em Medeia Se Medeia nos oferece a história de uma vingança, em Kill Bill deparamo-nos pelo menos com três vinganças diferentes. As duas mais importantes são as de Bill e Beatrix (assumindo a de Oren-Ishii um estatuto secundário). Em Traditions of Revenge in Quentin Tarantino’s Kill Bill, Suzanne Klatten afirma que assistimos, em Kill Bill, a uma inversão de papéis: Medeia é abandonada por Jasão, ao passo que Bill é deixado por Beatrix. Medeia mata os filhos de Jasão por vingança; Bill priva Beatrix 3

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da convivência com a sua filha (Klatten, 2011: 72). Na perspetiva de Klatten, Bill deve ser entendido no mesmo plano que Medeia, e Beatrix no plano de Jasão. Permito-me contudo discordar, pelo menos parcialmente, desta interpretação. Na leitura que faço da história, Beatrix e Bill são ambos, e simultaneamente, Medeia e Jasão, já que são concomitantemente os perpetradores e o objeto da vingança. Bill vinga-se de Beatrix por esta o ter abandonado e estar prestes a casar com outro homem. Mata o seu noivo e família, e aparenta matar também a sua filha. Nesta vingança, Bill corresponde a Medeia, aquela que vinga a infidelidade do marido assassinando os seus próprios filhos, e Beatrix corresponde a Jasão, aquele que sofre a vingança e perde todos os que ama: a noiva (Glauce), a família da noiva (Creonte) e os seus filhos (Beatrix perde o noivo, a família do noivo e a filha). Na vingança de Beatrix, no entanto, os papéis invertem-se: Kiddo vinga-se dos responsáveis pela morte da filha, sendo Bill a pessoa mais importante da lista. Bill é visto também como um traidor por ter magoado a mulher que tanto amara no passado (à semelhança de Jasão). Beatrix planeia matar os parceiros (e irmão) de Bill, deixando este último para o fim. Neste caso, é a protagonista do filme quem corresponde a Medeia, sendo Bill aquele que sofre a vingança (e sendo comparável, a este respeito, a Jasão). Beatrix e Bill desempenham pois o papel de Medeia e também o papel de Jasão em cada uma das suas vinganças. No entanto, os atos das personagens de Kill Bill não correspondem totalmente aos de Medeia, pois nem Bill nem Beatrix matam a filha deles com o intuito de fazerem o outro sofrer. A vingança de Medeia não fica completa em Kill Bill, pelos menos no sentido literal. No sentido metafórico, contudo, a vingança é cumprida (tanto por Bill como por Beatrix). Apesar de Bill não matar a filha, o espectador (assim como Beatrix) é influenciado a acreditar que o assassínio foi concretizado, para no fim descobrir que não foi isso que sucedeu. Tarantino explora o facto de Beatrix pensar que a filha foi morta, e nesse caso a vingança de Medeia está completa, pois o efeito que Bill teve em Beatrix foi igual ao de Medeia em Jasão. Paralelamente, ao procurar vingar-se de Bill, Beatrix entra na casa deste e aponta a arma para quem pensa ser Bill, quando de facto se trata de a sua filha, que joga um jogo onde finge morrer à frente dos pais2. Nesta perspectiva, Beatrix mata a filha à frente do pai, e assim a vingança de Medeia fica completa, já tanto Bill como Beatrix matam BB (no sentido metafórico). Bill e Beatrix incorporam diferentes aspetos da vingança de Medeia e também muitas das suas características psicológicas. A personalidade de Medeia está distribuída pelas duas personagens e os seus traços são visíveis nas suas ações no decorrer do filme.

Bill e Medeia 2

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As vinganças de Bill e Medeia são muito semelhantes. Cada um castiga o seu antigo parceiro, matando todos os que ama, incluindo os próprios filhos, mas deixando o objeto da vingança sobreviver. Trata-se de uma vingança motivada por um orgulho ferido, que Bill e Medeia não conseguiam suportar. Uma das semelhanças mais marcantes entre estas personagens é a hubris. Os gregos antigos definiam a hubris como uma ação exagerada cometida por ódio, orgulho ou arrogância, e que vai ter como consequência a desgraça de quem a realizou (Booker, 2004: 329). A distinção entre grandeza e hubris fascinava os gregos. Na sua literatura era transmitida a ideia de que as características que tornam os seres humanos gloriosos são as mesmas que os levam à desgraça (Ibid, 333). Tanto Bill como Medeia cometem a sua vingança motivados por uma arrogância extrema: os seus desejos estão para lá da justiça, querendo vingar o orgulho ferido por terem sido abandonados. As suas ações são de tal maneira exageradas que surpreendem todas as outras personagens, pois ninguém pensava que eles fossem capazes de cometer crimes tão atrozes. Jasão revela o seu choque em diversas ocasiões: “Tais foram os teus princípios. (...). Não há mulher nenhuma na Grécia que queira jamais fazer tal, essas às quais eu te dei preferência como esposa (...)” (Eurípides, 2004: 50). Em Kill Bill, Beatrix exprime também a Bill o seu espanto: “I never thought you would or could do that to me” (Kill Bill:2, min. 118). Depois de chocarem as outras personagens com as suas ações, Bill e Medeia são vítimas dos seus próprios atos: Bill morre e Medeia (para além de perder os filhos) aguarda o julgamento dos deuses. No entanto, nenhum dos dois dá provas de arrependimento, revelando o seu caráter implacável e até masoquista, pois os atos cometidos foram contra os seus amados. Há um outro aspeto em comum entre Bill e Medeia, e que deverá ser assinalado. Pouco antes de concretizar o seu plano de vingança, Medeia dirige-se a Jasão num tom amigável, fingindo não ter ressentimentos e desejando-lhe uma vida feliz com a sua futura noiva. Também Bill fala com Beatrix, dando-lhe a sua bênção para o casamento e simulando alegria pela felicidade da noiva. Pouco depois, Medeia mata Glauce e Bill assassina Tommy Plympton, o noivo de Beatrix. É neste momento que as personagens mais se assemelham, revelando um caráter orgulhoso e vingativo. Julgo que, de todas as semelhanças entre as personalidades de Bill e Medeia, as mais importantes são o orgulho e as estratégias implacáveis utilizadas para a concretização da vingança.

Beatrix e Medeia For those regarded as warriors... When engaged in combat... the vanquishing of thine enemy can be the warrior’s only concern. Suppress all human emotion and compassion... Kill whoever stands in the way, even if that be Lord God, or Buddha himself. (Kill Bill: 1, min. 14) Esta citação de Hattori Hanzo é ilustrativa das vinganças cegas de Beatrix e Medeia e da sua obsessão pela derrota dos seus inimigos. Os meios que utilizam justificam sempre os fins, tendo em mente apenas o objetivo de vingar o sofrimento por que passaram. Beatrix e Medeia desafiam verdadeiramente Deus/os deuses, pois 5

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não dão importância às consequências dos seus atos. Hattori Hanzo diz sobre a missão de Beatrix: “If on this journey you encounter God, God will be cut.” (ibid, min. 54). Também Medeia chega ao ponto de não confiar nos deuses, desafiando-os e até questionando a sua existência num ato de provocação: "Na ausência de deuses, rezo ao próprio Caos" (Séneca, 2011: 37) Medeia aguarda o julgamento dos deuses sem temer o seu destino e Beatrix vence todas as autoridades que se opõem à sua missão, mesmo que se trate de Deus. Beatrix e Medeia são as duas personagens que mais têm em comum, começando pela sua natureza. As duas mulheres são especiais, diferentes de todos os outros humanos. Em ambas as obras são representadas como personagens isoladas, que estão sozinhas numa missão e não precisam do apoio de outros para a realizar. Têm conhecimentos e técnicas ao seu dispor que as tornam particularmente perigosas, tendo poder para derrotar todos os seus inimigos. No final do segundo volume, Bill conta a Beatrix a história do super-homem, de como ele é super-homem por natureza e jamais o poderá negar. A sua máscara é a do homem comum, mas ele nunca poderá ser um homem comum.3 Tal como o super-homem, Beatrix e Medeia são diferentes. Medeia tenta negar a sua natureza ao casar com Jasão, tornando-se mãe de família e ignorando o seu instinto assassino. Da mesma forma, Beatrix quer casar com um homem e ter uma vida calma numa atmosfera segura para criar a sua filha. No entanto, esses alter-egos criados por Medeia e Beatrix são apenas uma máscara, e nenhuma das mulheres consegue verdadeiramente suprimir o instinto de violência com que nasceu. Ao primeiro estímulo (a traição de Jasão e Bill), a máscara cai e ambas assumem a sua verdadeira natureza. Medeia lamenta-se “como eu preferia mil vezes estar na linha da batalha a ser uma só vez mãe!” (Eurípides, 2004: 34), revelando a impossibilidade de negar o seu instinto assassino. Beatrix e Medeia, ao serem diferentes de todos quantos as rodeiam, são consequentemente estrangeiras nas suas terras. Medeia não é originalmente de Corinto, e quando Jasão a abandona é obrigada a exilar-se, dando-se a separação entre a personagem e a cidade. Beatrix é também uma estrangeira. Pertencia ao grupo DiVA (Deadly Viper Assassination Squad); separa-se contudo dele, passando a ser inimiga do clã. Não consegue integrar-se em nenhuma cidade, passando por Tóquio, El Paso, Pasadena, entre outras. Beatrix e Medeia não pertencem a nenhuma terra nem a nenhum grupo, agindo isoladamente e contrastando com todas as outras personagens. Em ambas as histórias há um pequeno detalhe que possibilita o triunfo de Beatrix e Medeia sobre os seus inimigos. Antes de Creonte a expulsar da cidade, num ato de misericórdia, ele autoriza Medeia a ficar um último dia em Corinto. Foi esse momento de compaixão o que possibilitou que Medeia a realizasse a sua vingança, matando Creonte e as suas restantes vítimas. Em Kill Bill, Beatrix está em coma e Bill tem uma oportunidade para a matar. No entanto, no último instante, ordena a Elle (membro dos DiVA) que não o faça. Ambas as mulheres quase foram vencidas, mas devido a dois atos de misericórdia triunfaram nas suas vinganças. É transmitida 3

http://www.youtube.com/watch?v=I_cEoK1mXms

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aqui a mensagem de que a compaixão é um antónimo de vitória. Os próprios gregos condenavam as soberania das paixões, sendo a racionalidade o caminho para a glória. Beatrix e Medeia têm uma racionalidade fora do comum, planeando meticulosamente a vingança e nunca se deixando afetar pela misericórdia ou pelo perdão: “It’s mercy, forgiveness and compassion I lack, not rationality”, afirma Beatrix (Kill Bill: 1, min. 9). As duas mulheres têm naturezas e personalidades muito semelhantes, estando presas num mundo de homens que acabam por ser vencidos. Cada uma pode viver pacificamente atrás da sua máscara, mas acabará por revelar a sua verdadeira natureza “quando no leito ofensa sentir, não há outro espírito que penda mais para o sangue” (Eurípides, 2004: 14).

As Cinco Pessoas Envolvidas nas Vinganças Na Medeia de Eurípides há cinco pessoas que sofrem com a vingança de Medeia: Glauce, Creonte, os dois filhos da protagonista e Jasão. Em Kill Bill são igualmente cinco as pessoas envolvidas: Vernita Green, Oren Ishii, Budd, Elle Driver e Bill. Embora as personagens envolvidas no castigo de Beatrix não correspondam diretamente às personagens de Medeia, é possível reconhecer-lhes algumas características semelhantes. Medeia mata as suas quatro vítimas principalmente para atingir Jasão. Beatrix, apesar de a sua vingança estar diretamente relacionada com os DiVA, vinga-se deles também para afetar Bill (como é exemplificado no fim do primeiro volume, Beatrix quer que Bill tenha conhecimento do sofrimento dos DiVA). Se Bill é mais facilmente comparável a Jasão (aquele que sofre a vingança e para quem toda a violência é principalmente dirigida), Elle poderá corresponder a várias personagens. Poderá, por um lado, corresponder a Jasão, na medida em que, como ele, sobrevive e, como ele, sofre uma perda que a afetará para o resto da vida (Jasão perde aqueles que ama e Elle perde os olhos). Por outro alado, Elle poderá ser também comparada a Glauce. Para além de ter uma relação próxima com Bill (Jasão), Elle mata Budd com veneno (paralelamente, Creonte morre envenenado, por ter abraçado a sua filha Glauce). Neste caso, Elle corresponde a Glauce e Budd a Creonte, na medida em que estas duas últimas personagens não foram mortas diretamente (e respetivamente) nem por Beatrix nem por Medeia. Será possível ainda estabelecer-se um paralelismo entre Budd e Elle, por um lado, e os filhos de Medeia, por outro. Budd e Elle são as personagens mais próximas de Bill (sendo Budd o seu irmão), e por isso as deixa Beatrix para o fim da lista (para as matar antes de Bill), obtendo assim a sua vingança um efeito mais dramático. Oren Ishii e Vernita Green têm correspondências menos óbvias com Medeia. No entanto, Oren poderá ser comparada a Creonte, sendo a “rainha” da máfia de Tóquio, e Vernita aos filhos de Medeia, pois foi morta com uma faca à frente da própria filha (neste caso os papéis estão invertidos). Vemos pois que as personagens de Kill Bill partilham traços interessantes com as de Medeia, não havendo porém correspondências óbvias entre elas (à exceção de Beatrix-Medeia e Bill-Jasão). Há contudo características das personagens de Eurípides 7

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que poderão ser encontradas de forma dispersa nas personagens criadas por Tarantino, observando-se assim um jogo intricado e fascinante de paralelismos que nos reenviam de uma história para a outra.

A Serpente como Instrumento da Vingança Tanto em Medeia como em Kill Bill são detetáveis dois leitmotifs importantes: o veneno e a serpente como instrumentos da vingança. Em Kill Bill, todos os membros da DiVA têm nomes de código de serpentes; porém, apenas a Black Mamba (o nome de código de Beatrix) é venenosa. As vítimas de Beatrix foram então mortas (metaforicamente) por uma Black Mamba e pelo seu veneno. Medeia envenena os presentes de Glauce antes de os enviar à princesa, conjurando um feitiço em que pede “venenos vindos do céu. (...) que desça aqui a famosa serpente que se estende como uma enorme torrente” (Séneca, 2011: 80). Glauce morre envenenada pelo poder da serpente que Medeia usou, constituindo pois os seus presentes uma armadilha. Também Budd morre com o veneno de uma serpente (uma Black Mamba), que estava escondida no fundo de uma mala com dinheiro; foi pois vítima de uma armadilha, tal como Glauce. Beatrix passa ao lado da Black Mamba sem que esta a morda: tal como se passa com Medeia, é óbvia a cumplicidade entre a protagonista e a serpente. No fim da peça, Medeia é levada por um carro puxado por duas serpentes aladas. As serpentes são pois simultaneamente o instrumento que permite a concretização da vingança de Beatrix e Medeia e o seu meio de salvação.

Onde as Histórias Divergem: Vingança vs. Amor Materno Apesar das muitas semelhanças que unem as duas obras, Medeia e Kill Bill divergem na sua conclusão, sendo esta diferença essencial para o desfecho da história. Beatrix e Medeia são confrontadas com a contradição de serem mães e serem assassinas, sendo forçadas a fazer uma escolha. Medeia escolhe ser assassina, matando os filhos para vencer o inimigo. Beatrix escolhe ser mãe, matando o inimigo para salvar a filha. Apesar de ter matado Bill, as suas ações já não motivadas pela vingança pura, tratando-se antes de uma escolha entre a família e tudo o que Bill representava: o mundo do crime. Beatrix escolhe a filha, renegando assim a sua natureza assassina, enquanto que Medeia abraça a sua, o que lhe custa a vida dos próprios filhos. Ao protegerem as respetivas escolhas, Medeia e Beatrix têm o instinto e a violência de duas leoas. De facto, Medeia é referida como uma leoa várias vezes durante a peça. Jasão, por exemplo, descreve-a nestes termos: “(...) tu, que és leoa, não mulher, dotada duma natureza mais selvagem do que a Cila Tirrênica” (Eurípides, 2004: 50)- mas fá-lo no tom pejorativo: na Grécia Antiga, os seres selvagens e irracionais eram considerados perigosos e bárbaros, pelo que esta comparação tinha uma intenção insultuosa em relação a Medeia). Beatrix, por outro lado, é também descrita como uma leoa No seu caso, contudo, a comparação tem a intnção de se constituir como um elogio ao seu instinto maternal. O filme acaba com a seguinte frase: “The lioness has rejoined her cub and all is right in the jungle” (Kill Bill:2 min.124). Medeia e Beatrix são duas leoas, mas duas leoas diferentes: a 8

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primeira mostra a bestialidade do animal através da forma como mata os filhos e a segunda revela o instinto materno e protetor, sendo o amor pela cria colocado acima de tudo o resto.

Conclusão A leitura comparada a que procedi entre Medeia e Kill Bill procurou evidenciar os pontos de contacto entre as duas obras, unidas em torno do tema da vingança. Creio com efeito resultar evidente que as duas principais histórias de vingança do filme são versões da história de vingança de Medeia. Zelando para que esta relação com os textos escritos por Eurípedes e Séneca não passasse despercebida ao leitor, Quentin Tarantino deixou um vasto conjunto de indícios – uns mais evidentes do que outros – que procurei identificar, contextualizar e analisar. Contudo, como salientei na parte final deste trabalho, ao atualizar a história de Medeia para os nossos tempos, Tarantino alterou-lhe o sentido. Julgo, na verdade, que apesar de todas as correspondências passíveis de serem estabelecidas entre os textos da Antiguidade Clássica e o filme, o ponto em que divergem acaba por pesar mais no prato da balança. Controlada pela vingança que se tornou no único objetivo da sua vida, Medeia opta por ser assassina e mata os filhos; já Beatrix, mostrando possuir controlo completo sobre a sua vingança, escolhe ser mãe. Esta opção de Beatrix tem duas implicações claras que deverão ser tidas em conta, e que, na minha perspetiva, nos oferecem a chave para a interpretação do filme de Tarantino. Em primeiro lugar, indica-nos que o tema principal do filme não é a vingança, mas o auto-controle que deverá ter aquele que planeia vingar-se. Hattori Hanzo (a personagem que fazia as espadas) recorda-nos, neste sentido, o passo de Kill Bill em que afirma: “Revenge is never a straight line. It’s a forest. And like a forest it’s easy to lose your way...to get lost... to forget where you came in” (Kill Bill:1 min.106). No final da sua jornada, Beatrix encontra o caminho para fora dessa floresta, desses sentimentos negros que durante tanto tempo a dominaram. A segunda implicação decorre diretamente da primeira, na medida em que ao escolher ser mãe em vez de assassina, Beatrix acede a uma nova fase da sua vida (a segunda escolha da maternidade equivale pois, simbolicamente, a uma segunda vida). Na minha perspetiva, as duas implicações acima mencionadas são cruciais para o entendimento do filme, já que justificam o seu final: Beatrix é de facto Medeia, num primeiro momento, na forma como planeia uma vingança requintadamente cruel para todos quantos a fizeram sofrer; contudo, ela não é Medeia quando escolhe ficar com a filha e educá-la longe do ambiente de violência que BB conheceria se continuasse a viver com o pai. Ao optar por ser mãe, Beatrix deu provas da sua humanidade; através desta personagem, Tarantino reescreveu uma história de vingança mítica e deu-lhe novos contornos, convidando-nos a contemplar a possibilidade de um “final feliz”, ainda que intensamente sofrido.

Bibliografia 9

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1. Allan, William Euripides: Medea, CPU Archive, 2002 2. Booker, Christopher Why We Tell Stories, Continuum, 2004 3. Eurípides Medeia, Civilização Brasileira, 2004 4. Griffiths, Emma Medea, Taylor & Francis, 2006 5. Keyishian, Harry The Shapes of Revenge, New Jersey: Humanities Press, 1995 6. Klatten, Suzanne Traditions of Revenge in Quentin Tarantino’s Kill Bill, University of Utrecht, 2011 7. Séneca Medeia, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos : Universidade de Coimbra, 2011

Filmografia 1. Kill Bill Volume.1, Direção: Quentin Tarantino, Produção: Miramax, Ano:2003, Duração: 105min. 2. Kill Bill Volume.2, Direção: Quentin Tarantino, Produção: Miramax, Ano:2004, Duração: 136min.

Sitiografia 1. Cena onde BB finge que morre à frente dos pais http://www.youtube.com/ watch?v=cCqQ5GvxUpk 2. Monólogo de Bill sobre o Super-homem http://www.youtube.com/watch? v=I_cEoK1mXms

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