A Violência contra a Mulher no Espaço Público

Share Embed


Descrição do Produto

1

A violência contra a mulher no espaço público por Andrea Moreira Streva

Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio) para a obtenção do Título de Bacharel em Direito.

Orientador(a): Adriana Vidal

2013.1

2

“Yes, my consuming desire is to mingle with road crews, sailors and soldiers, barroom regulars — to be a part of a scene, anonymous, listening, recording — all this is spoiled by the fact that I am a girl, a female always supposedly in danger of assault and battery. My consuming interest in men and their lives is often misconstrued as a desire to seduce them, or as an invitation to intimacy. Yes, God, I want to talk to everybody as deeply as I can. I want to be able to sleep in an open field, to travel west, to walk freely at night...” Sylvia Plath

3

Resumo O presente trabalho visa tratar a violência contra a mulher no espaço público de maneira crítica e filosófica. Desta forma, além de abordar o tratamento jurídico dado ao assédio de rua e ao estupro no Brasil, houve a preocupação em traçar conceitos da filosofia de gênero, utilizando autoras como Catharine Mackinnon e Judith Butler para a prestação de importantes esclarecimentos sobre o tema. Além disso, a teoria de Michel Foucault sobre o papel do intelectual foi incorporada como uma ferramenta de resistência ao saber-poder machista ao qual enfrenta toda mulher. A proposta desta monografia, mais do que apresentar soluções, é pôr em debate temas pouco problematizados, como o assédio de rua. Certamente, é difícil analisar os problemas de gênero sem ser interpelado a pensar em soluções. Porém, sabe-se que qualquer prática que vise solucionar essa enorme problemática não será simples, exigindo uma reestruturação política da sociedade como um todo. Isto porque entende-se que o patriarcado só terá fim quando houver um entendimento geral das vantagens de ter a população unida como um todo e, desta forma, elevada em sua potência de agir. Palavras-chave: Violência de Gênero, Assédio de Rua, Estupro, Feminismo, Direitos Humanos.

4

Sumário

Resumo........................................................................................................... 3 Introdução...................................................................................................... 5 Capítulo 1 – Elaborando conceitos: corpo, gênero, patriarcado, sexualidade e violência..................................................................................8 1.1. Corpo, gênero e patriarcado................................................................. 8 1.2. Sexualidade........................................................................................... 21 1.3. Violência contra a mulher................................................................... 27 Capítulo 2 – O tratamento jurídico da violência contra a mulher no espaço público brasileiro............................................................................ 37 2.1. O Estupro na Legislação Penal Brasileira.........................................37 2.2. O Assédio Sexual e o Assédio de Rua na Legislação Penal Brasileira ....................................................................................................................... 46 Capítulo 3 – Repensando a violência de gênero no espaço público e suas possíveis soluções......................................................................................... 52 3.1. A objetificação da mulher.................................................................. 54 3.2. A culpabilização da vítima de estupro pelo Poder Público............57 3.3. A inutilização de instrumentos jurídicos existentes nos casos de assédio de rua...............................................................................................59 3.4. A Convenção Belém do Pará e suas implicações na reconstrução do feminino........................................................................................................ 65 Conclusão..................................................................................................... 73 Bibliografia...................................................................................................76

5

Introdução Viver em uma grande metrópole, como o Rio de Janeiro, traz constantemente à tona o problema da violência urbana. Diariamente, a população carioca é bombardeada pela mídia com notícias de cunho criminal, dando margem à reprodução de uma “cultura da violência” na cidade. Este trabalho, porém, não carrega a pretensão de dar conta de uma análise totalizante da violência urbana. A abordagem aqui traçada se encerra em um tipo de violência bem específico, a violência contra os corpos femininos no espaço público. Entendemos que esta violência assume primordialmente duas roupagens: a do estupro e a do assédio de rua. Mais do que um conjunto de escritos sobre possíveis soluções para a violência contra a mulher no espaço público, este trabalho é uma tentativa de clarificar a importância da luta e militância feminista, ainda no século XXI, como saída à opressão disfarçada que a mulher sofre na sociedade moderna. Há quem defenda nos dias de hoje que o crime de estupro não é um problema de gênero, já que também por mulheres (argumento que também se estende à violência doméstica). É muito comum o uso da exceção como forma de invalidar argumentos feministas, porém se olharmos para a realidade, veremos quão insignificante é a participação de mulheres nessa modalidade de violência. De acordo com a socióloga Heleieth Saffioti, as estatísticas apontam que 90% das vítimas de abuso sexual são mulheres e que o agente ativo da violência tem na presença masculina o montante de 97% e 99%1. O mero acaso explicaria um montante tão desigual? É possível sustentar que o abuso sexual é um crime sem gênero? O mesmo se aplica se pensamos o assédio de rua. Se mulheres e homens possuem o poder da fala e de expressão corporal, por que somente os homens o utilizam para assediar mulheres diariamente nas ruas? Será que apenas os homens são capazes de exteriorizar seus desejos sexuais perante desconhecidas? Ou há uma sociedade que estimula e torna este tipo de 1

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p.19.

6

comportamento plenamente confortável para eles?2 O feminismo do século XXI ainda é alvo de ridicularização e menosprezo por aqueles que julgam que a mulher já conquistou tudo que deveria no meio social. Infelizmente, ainda há uma série de mecanismos que corroboram o patriarcado e a misoginia e que não são visualizados como um problema de gênero. O machismo está cada vez mais disfarçado, cada vez mais enraizado na estrutura de poder que atravessa as mais diversas relações entre pessoas e instituições. É preciso retirar esta máscara e visualizar o estupro e o assédio de rua como uma modalidade de violência de gênero, que põe a mulher em uma posição de vulnerabilidade e risco no meio urbano. Questioná-los e entendê-los como um problema social e estrutural é o primeiro passo para a busca de sua desestruturação. Nesse sentido, o presente trabalho pretende demonstrar, primeiramente, a invisibilização da violência contra as mulheres no espaço público como um tipo específico de violência. O enfoque, como já mencionado, recairá em duas modalidades: a) o estupro, b) o assédio de rua. No primeiro capítulo, será feita uma exposição de conceitos que cercam a literatura dos estudos feministas como: corpo, gênero, patriarcado, sexualidade, violência, etc. A tentativa será de entender o problema de gênero como um conjunto de práticas enraizadas em diferentes níveis da capilaridade social, que tem na figura da mulher seu objeto de atuação. Posteriormente, será feita uma análise do tratamento jurídico dado à violência sexual (estupro e assédio de rua), problematizando sua eficácia e seu modo de aplicação pelo sistema judiciário brasileiro. Além disso, buscar-se-á fomentar a visualização do estupro e do assédio de rua como um tipo específico de violência praticado por homens contra mulheres. Por fim, tratar-se-á da desconstrução da mulher e do feminino como fuga ao sistema patriarcal. A Convenção Belém do Pará será utilizada como instrumento de apoio nesta transição. O último capítulo visa incitar o 2

Em relação ao assédio de rua, o principal objetivo deste trabalho será visualizá-lo como um

problema de gênero, que não deve ser naturalizado ou fomentado pelo Estado.

7

pensamento de saídas para a violência de gênero, sem supor, porém, que o caminho escolhido seja simples ou célere. No que toca à prevenção desse tipo de violência, será colocada a possibilidade de constituição de uma nova política do feminino. No que se refere à repressão, ressaltar-se-á a existência da obrigação positiva do Estado Brasileiro de interferir de forma a garantir a erradicação deste tipo de violência. Portanto, a análise realizada no trabalho como um todo será feita em 3 etapas: 1ª) a elaboração de conceitos chaves para compreensão das raízes da violência de gênero, 2ª) a análise dos instrumentos jurídicos que tratam o tema no Brasil e suas deficiências, 3ª) repensar a violência contra a mulher no espaço público e suas possíveis soluções.

Capítulo 1 – Elaborando conceitos: corpo, gênero, patriarcado, sexualidade e violência Para tratar da violência de gênero é preciso, primeiramente, problematizar o que é ser mulher. Problematização esta que não busca ou pode buscar uma resposta, uma certeza. A figura da mulher, sua criação, sua representação no meio social, seu sexo medicalizado, são estes aspectos que serão analizados e não o enquadramento do que é uma mulher em um conceito fechado. Ora, é claro que não existe uma mulher universal, já que ser mulher no Afeganistão é diferente de ser mulher no Brasil; ser mulher negra é diferente de ser mulher branca; ser mulher pobre é diferente de ser mulher rica. Ser mulher é estar dentro de um grupo minoritário que pode ter sua vulnerabilidade estendida dependendo de quais outros grupos minoritários se enquadra a pessoa em questão. Portanto, é uma tarefa muito delicada expôr os problemas enfrentados pelas mulheres como um todo, sabendo que cada mulher, dependendo do acúmulo de vulnerabilidades ao qual é exposta, enfrenta problemas específicos e distintos. Nesse sentido, é preciso assumir que o presente trabalho se limitou a trabalhar com autoras feministas brancas e de classe média, o que pode ter tornado o trabalho bastante limitado quanto às questões enfrentadas pelas mulheres negras, imigrantes, pobres, etc. Porém, também é preciso salientar que a violência de gênero perpetrada através do estupro e do assédio de rua atinge a todas as mulheres, talvez não com a mesma abordagem ou frequência, mas atinge a todas.

1.1. Corpo, gênero e patriarcado

O corpo humano tem grande importância para o estudo do binômio homem/mulher. Isto porque, através do corpo, o ser humano criou um sistema binário, que, além de diferenciar os sexos, interfere na delimitação

9

dos espaços e atividades destinados a cada um na sociedade. Os órgãos sexuais foram utilizados como base dessa diferenciação. Ou seja, se a criança nasce com o pênis, intitulado órgão sexual masculino, esta é considerada um homem e será educada como alguém do gênero masculino. Se, entretanto, nasce com a vagina, intitulada órgão sexual feminino, será considerada uma mulher e receberá educação e tratamento compatível o gênero feminino. De acordo com Michel Foucault3, o corpo é representação e lugar de poder. O poder, rede produtiva que atravessa todo o corpo social, longe de reprimir o saber, o produz. O saber do corpo, inclusive, foi e ainda é produzido através de um conjunto de disciplinas militares, científicas e escolares. Foi a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico e orgânico sobre ele. Assumindo ser o poder difuso e profundamente enraizado, ele adestra as relações entre os sexos, de forma a criar normas de condicionamento que impregnam características essencialistas aos sujeitos, sendo difícil se desprender de todos os vínculos pelos quais ele se exerce. Esta dificuldade vai além de evitar a repressão de desejos e comportamentos. Isto porque o poder não tem apenas a função repressora, de censura e recalcamento, como um grande superego, mas produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber4. É importante, portanto, focar nos mecanismos quotidianos de exercício do poder na sociedade. Nada mudará se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparatos do Estado, a um nível muito mais elementar, não forem modificados5. Mudar os mecanismos de generificação dos corpos seria uma forma eficaz de permitir uma nova criação da mulher e do feminino. Desta forma, é essencial entender como esses mecanismos operam para pensar em uma nova ordem de 3

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Ed. Graal. Rio de Janeiro, 2001. p. 146-148 Ibid. p. 148. 5 Ibid. p. 150. 4

10

funcionamento. O corpo é alvo de processos de adestramento e docilização através de um complexo mecanismo disciplinar que Foucault chama de bio-poder6. A vida humana é tratada como uma questão política moldada pelos discursos erigidos pela família, pela escola, pela igreja e pelas ciências médicas. É através desses discursos que se dá a educação de gênero, ou seja, é assim que a criança com o sexo masculino aprende como deve ser o comportamento de um garoto e a criança com o sexo feminino a se comportar como uma menina. Todas as demais características do corpo são secundarizadas e o sexo é tomado como fator de diferenciação. Sexo este que é criação médico-social e que é transmitido para população como se preexistente fosse. Qual a razão de tratamentos tão diferenciados com base em uma única parte do corpo? Há, obviamente, uma escolha política quanto a essa diferenciação. Simone de Beauvoir quando escreveu que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”7 abordou justamente a questão do gênero como criação social. Isto porque foi o próprio homem, através das sociedades, que reservou papéis diferentes para as pessoas de sexo feminino e masculino. A problemática do gênero é um drama narrado em diferentes linguagens. Michel Foucault publicou em 1978 as recordações de Herculine Barbin dite Alexia B., único título de uma coleção que ele havia lançado, intitulada “Les vies parallèles”8. Conta o drama de um hermafrodita, considerado mulher pela sociedade, mas que se sentia homem. Herculine obteve o reconhecimento do que era, mas acabou por se suicidar pela dificuldade de viver aquela situação. Fica claro que independente de um reconhecimento jurídico, o poder de repressão exercido pelas diversas camadas sociais sobre o corpo e a mente de Herculine foi fatal frente a sua tentativa de auto definição. Outro exemplo é o filme argentino XXY(2007) que mostra o horror e 6

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Ed. Graal. Rio de Janeiro, 1988. p. 153 7 BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo, v.2. Ed. Círculo do livro. São Paulo, 1949. p. 13. 8 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008. p.62-63.

11

falta de tato da população de um vilarejo da Argentina ao lidar com Alex, indivíduo intersexual (possui órgão sexual feminino e masculino). A dificuldade de identificar o gênero de um ser humano e enquadrá-lo em seu papel social assusta e constrange. Afinal, tudo precisa ser muito bem delineado para que as crianças entrem logo no processo de domesticação pela generificação. Esse processo se dá através de pequenas coisas, como a atribuição de cores: azul para meninos, rosa para meninas, e vai até o desempenho social que cada um deve exercer. Até poucas décadas atrás, a mulher não tinha direito a votar, trabalhar fora de casa, ler, escrever, sair sozinha na rua, etc. E isto simplesmente porque nasceu com uma vagina. Por este simples fato, ela já nasceu condenada a uma série de restrições a que tem que se sujeitar ao longo de sua vida. Em meados dos anos 60, o movimento feminista surgiu e buscou q u e s t i o n a r d i c o t o m i a s c o m o h o m e m / m u l h e r, v i rg e m / p u t a , mãe/trabalhadora. Foi a partir daí que o gênero começou a ser pensado como uma construção da sociedade e não como um fato pré-determinado. Pode-se dizer que a maternidade ainda é a fonte da identidade feminina, o fundamento da diferença reconhecida, mesmo quando não vivida9. O fato de a mulher poder conceber outro ser humano é o argumento central daqueles que defendem a diferenciação de tratamento entre ambos os sexos. Devido ao seu poder de concepção a mulher se viu, ao longo da história, atrelada a uma educação voltada para cuidados com o lar e dependência financeira e emocional de um único homem, seu marido – o patriarca. A mulher foi socializada para “sofrer” a relação sexual, destinada à procriação, não para dela desfrutar ou extrair prazer independentemente de resultar uma gravidez10. Desde pequena é tolerável que a mulher seja frágil, fraca e chorona. Enquanto essas características são fortemente reprimidas nos homens. O que é preciso entender é que durante a infância, época em que o 9

PERROT, Michelle. Op. Cit. p. 68. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. p. 23.

10

12

adestramento dos gêneros acontece mais incisivamente, tanto homens quanto mulheres choravam, temiam, se fragilizavam perante situações pelas quais passavam. Porém, através da instituição familiar e educacional, só os homens eram reprimidos por estes comportamentos. Desta forma, os homens se viam obrigados a ser fortes e insensíveis, a reprimir o choro e o medo dos obstáculos pelos quais passavam. Enquanto às mulheres esse comportamento era explicado como natural ao seu gênero. As brincadeiras infantis entre meninos e meninas sempre foram diferenciadas. Meninas deveriam brincar de casinha, comidinha, bonecas, atividades claramente destinadas a uma vida de dedicação ao lar. Meninos deveriam brincar de carrinho, praticar esportes e jogos dinâmicos. A criança que demonstrasse interesse por brincadeiras não destinadas a seu gênero era repreendida e vista como anormal. No filme francês C.R.A.Z.Y. - loucos de amor (2005), esta repressão é claramente demonstrada na cena em que Zachary é reprimido e chamado de “bichinha” e “viadinho”, pelo irmão mais velho, ao ser visto brincando de boneca com o vestido de sua mãe. O fato de um menino gostar de brincadeiras reservadas a meninas é tido como profundamente vergonhoso e humilhante. Qual construção deve ser feita desse fato? Simplesmente a de que ser mulher é algo profundamente vergonhoso e humilhante e, por isso, quem se equipara a um mulher, de qualquer modo que seja, é merecedor do mesmo tratamento a ela destinado: humilhações, agressões físicas, verbais e sexuais. Esta cena do filme ilustra também como é comum confundir o fato de uma pessoa não se identificar com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento, com o fato de uma pessoa se sentir atraída por alguém do mesmo gênero. Em outras palavras, o fato de um garoto se identificar com comportamentos ditos femininos o transforma automaticamente em alguém homossexual. Identidade de gênero e orientação sexual são diferentes formas de expressão humana que não estão necessariamente ligadas (vide tabela em anexo). Por isso, é possível que alguém se identifique com o

13

gênero oposto e também sinta atração sexual pelo gênero oposto. A compreensão das diferentes formas de expressão humana ainda gera muita confusão entre pessoas que não têm muito contato com estudos de gênero. Apesar de a sociedade exigir pessoas iguais, através de seus padrões discriminatórios: branco, católico, heterossexual e com gênero definido e compatível com seu órgão sexual, a vida real não é tão simples como a teoria. Além da comunidade LGBT, há muitas outras que buscam abarcar os excluídos sociais que não se enquadram nos padrões aceitos. Porém, este é um assunto muito vasto que não se pretende abordar neste trabalho. Através da literatura e teses doutrinárias, é possível a percepção de como o saber sobre o corpo, até o século XXI, é produzido através da visão subjetiva masculina. Um dos polêmicos trabalhos que aborda a questão do sexo feminino, é a obra Sexo e caráter(1903), escrita pelo filósofo austríaco Otto Weininger: A mulher é total e unicamente sexual, uma vez que a sua sexualidade se estende a todo seu corpo, limitando-se em certos lugares, para o dizermos em termos físicos, a ser mais densa do que noutros: é sexualmente afetada e penetrada por todas as coisas, a todo momento e em toda superfície do seu corpo (...)11 O acasalamento é o bem supremo para a mulher, que procura realizá-lo sempre e em toda parte. A sua sexualidade pessoal é simplesmente um caso especial deste instinto universal, genérico e impessoal (...)12 A mulher não é livre: em última instância, o desejo de ser violada pelo homem continua de certo modo a prevalecer nela; a mulher é governada pelo Falo.13

Weininger utiliza o fato de a mulher possuir diversas áreas erógenas para teorizar que ela é sempre sexual-emocional. Esta construção permite pressupor, de acordo com a filosofia da época, que a mulher não se define pelo racional14. Trata, portanto, a mulher como animal desprovido de raciocínio lógico, do qual somente os homens seriam dotados. 11

Sexo e caráter, p.258, apud Slavoj Zizek, As metástases do gozo: Seis ensaios sobre a mulher e a Causalidade. Relógio D'Água Editores, 2006. p. 80. 12 Sexo e caráter, p.260, apud Ibid p. 80. 13 Sexo e caráter, p.274 apud Ibid p. 85. 14 O filósofo Holandês, Baruch de Spinoza, em sua obra Ética, parte IV, já abordava a oposição entre paixão e razão. O ser humano quando afetado de paixões não estaria no governo de sua razão, mas sim do acaso. Muitas vezes, o sujeito sob domínio dos afetos faz o pior achando que está fazendo o melhor.

14

Logo depois, podemos observar que o autor claramente assume que a mulher quer ser possuída sempre e em qualquer lugar pelos homens. Raciocínio este plenamente fomentador da inexistência da violência sexual contra a mulher, já que esta sempre consentiria em entrar em uma relação sexual, sendo este seu desejo permanente. Esta linha de pensamento serve para desculpabilizar qualquer violência contra a mulher, que é entendida como um espaço aonde o homem pode depositar seu sêmen sempre que quiser. Otto, ainda, utiliza a palavra “violada” para definir o desejo feminino, o que só evidencia sua tentativa de legitimação de qualquer violência contra a mulher. Isto significa, portanto, que uma mulher em casa sempre anseia pelo ato sexual, da mesma forma como uma mulher que está na rua também o faz. Em outras palavras, a mulher é definida como indivíduo que só deseja e é útil à prática sexual, sendo o tempo inteiro lasciva. Otto Weininger certamente desejava que assim fosse, porém o autor não deveria confundir seus desejos íntimos com as ânsias femininas, das quais ele certamente nada entendia. Judith Butler, em um artigo publicado no livro Feminist Contentions15, critica esta construção machista de autores como Otto, e afirma que a mulher é construída como ser que sempre anseia ser propriedade de um homem, independente do ambiente no qual se encontre. Dá como exemplo um interrogatório ocorrido nos EUA em que o advogado de defesa pergunta para a vítima do estupro: “Se você já vive com um homem, o que estava fazendo correndo pelas ruas sendo estuprada?”16. Butler dá ênfase a estrutura de frase utilizada pelo advogado, na qual “correndo pelas ruas” se associa diretamente com “sendo estuprada”, de forma que esta última expressão tem o significado de “procurando por, ansiando por”. Ou seja, uma mulher em casa é propriedade do marido, mas quando sai de casa, para dar um passeio, por exemplo, anseia 15

BUTLER, Judith. Feminist Contentions: A philosophical exchange. New York;London: Routledge, 1995. p. 52-54. 16 Ibid. p. 52.

15

imediatamente ser propriedade de qualquer homem que a deseje tomar. Isto porque a mulher, sempre lasciva e sexual, não conseguiria suportar não ser propriedade de alguém, sua vida perderia o sentido se não o fosse. A dose cavalar de cinismo de Butler ao reproduzir esse exemplo é somente uma forma de evidenciar o fato de ainda hoje vivermos em uma sociedade patriarcal, em que a mulher é vista como propriedade de um homem ou de todos eles. A forma de ser possuída é centralmente através das relações sexuais, e indiretamente através de uma série de restrições em seus direitos, como o assédio de rua. Ao longo da história, a mulher foi retratada, por autores como Pitágoras (571a.C-479a.C), Aristóteles (384a.C-322a.C) e Rousseau (17121778), como pessoa não dotada de inteligência, possuidora de corpo frágil, puro, dócil e submisso, relegada à função materna como razão de existir. Friedrich Nietzsche, outro exemplo de filósofo declaradamente machista e contrário à emancipação, também declara a demência da mulher frente ao homem: Se a mulher fosse uma criatura pensante, deveria ter descoberto, na condição de cozinheira há milênios, os fatos fisiológicos mais importantes e, do mesmo modo, teria dominado as artes curativas! Através de péssimas cozinheiras – através da completa ausência de razão na cozinha, o homem foi retardado por muito tempo, prejudicado da maneira mais grave: mesmo hoje as coisas não estão muito melhores. Um sermão para as moças de boa família.17

Ora, a mulher já fadada a uma vida infeliz e desgostosa, em que suas únicas ocupações eram o lar e a família, ainda é culpabilizada por ser uma má cozinheira. Nietzsche vai além e atribui à mulher a culpa pelo retardamento do homem. Ora, Nietzsche só se esqueceu de contextualizar que no século XIX as mulheres não tinham a acesso a métodos de ensino ou a uma vida que lhes permitisse explorar qualquer tipo de conhecimento. Muito fácil é julgar uma mulher, estando em situação vantajosa em relação a ela. Deveria ele complementar sua crítica expandindo para o fato de 17

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. L&PM: Porto Algre, 2008. p. 175.

16

também não existirem boas escritoras, médicas, filósofas, advogadas etc. Isto pelo simples fato de os espaços acadêmicos e profissionais não terem sido reservados a mulheres. Mais conveniente ao mundo patriarcal é concluir que a mulher é desprovida de inteligência e lhe atribuir a culpa por todos os males do mundo – desde Eva e as bruxas até as putas e as vadias. As mulheres foram alvo de diversos debates históricos, mas nunca concebidas como pessoas de ação. Esses debates, por sua vez, serviram especialmente para concretizar as concepções naturalistas que se propunham a evidenciar o caráter de passividade às mulheres e de atividade aos homens, reduzindo os corpos sociais às zonas erógenas e possibilitando uma divisão assimétrica de poder entre os gêneros. A mulher era estudada e explicada de forma semelhante aos criminosos. Servindo aos interesses do higienismo do século XIX, o criminólogo Guglielmo Ferrero fez um trabalho sobre a mulher delinquente, que visava a repressão da prostituição sobre as mulheres e o controle das doenças venéreas. Tratava a mulher como ser inferior até para cometer delitos, já que, segundo ele, a mulher não sente pena e é acometida de tal falta de refinamento que a aproxima do homem atávico. Dentro desta lógica, as poucas mulheres delinquentes eram parecidas com homens.18 Os criminólogos Lombroso e Ferrero traçaram um paralelo entre a delinquência e a prostituição, devido ao fato de as mulheres delinquentes serem consideradas viciosas. Nesse estudo, estipulou-se um cifra global que demonstrava que a mulher – ser atávico, infantil e inferior – delinquia mais do que os homens. A prostituição era explicada por uma predisposição orgânica à loucura moral devido a processos degenerativos nas linhas hereditárias. Alguns pensadores teorizavam a importância desta prática que tinha a função social de válvula de escape da sexualidade masculina, podendo inclusive evitar delitos. Concomitante a essa linha de pensamento, estava a moral cristã condenando as mulheres que se utilizavam dessa prática para 18

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro : Instituto Carioca de Criminologia : Revan, 2008. p. 306.

17

sobreviver, mas nunca os homens que dela se beneficiavam. A mulher, assim, era condenada de ambos os lados, tanto a continuar se prostituindo para satisfazer a lascívia masculina, evidenciando a sociedade sexista na qual estava inserida, quanto a ser considerada um ser inferior e imoral em razão disto. A análise do tratamento criminológico da prostituição e delinquência feminina é só mais um exemplo de como a ciência e os estudos doutrinários serviam a interesses políticos de controle social. Afinal, a prostituição era considerada algo depravado e asqueroso, mas por servir aos interesses masculinos foi tolerada através dos séculos, sendo reprimida apenas moralmente. O estudo da sexualidade feminina, através de uma perspectiva de gênero, foi muito utilizado para justificar o patriarcado – sistema social no qual o homem, no papel de pai ou marido, desempenha a função de chefe, gestor e líder, exercendo sua autoridade sobre sua mulher, filhos e bens. Um dos elementos nucleares do patriarcado reside exatamente no controle da sexualidade feminina, a fim de assegurar a fidelidade da mulher perante o homem19. A estrutura patriarcal se mostra clara e sistematicamente através de dois exemplos. O primeiro, de uma obra literária do escritor português Valter Hugo Mãe: claro que me corria à cabeça a ideia de que abriria perigos novos por trazer a mim tão doce rapariga. Como custaria manter meu território em redor dela, fazer dela algo tanto meu que os outros estafermos não se abeirassem para deitar mão do seu fruto apetecido. E como me seria impossível reconhecer o desgaste desse fruto se era virgem e tão cedo não se acusaria de marcas que o desfizessem aos meus sentidos. Assim estava eu de ansiedades,

a contar as épocas para que

chegasse a promessa e logo o casamento, e entre os prazeres se conhecessem, enfim, as dificuldades. Podia imaginar, assim eu o fazia às outras mulheres comprometidas, algumas profissionais de homens, juntas em casas deles após a viuvez acumulada, como mulheres sem poiso, a viver de andar constantemente à procura de algo que não se encontrava. Eu teria espirito para proteger a minha 19

SAFFIOTI, Heleiteh I. B. Gênero, patriarcado, violência. p. 49.

18 mulher e lhe pôr freios. Ela haveria de sentir por mim amor, como às mulheres era competido, e viveria nessa ilusão, enganada na cabeça para me garantir propriedade do corpo. Invadirei sua alma, pensava eu, como coisa de outro mundo a possuí-la de ideias para que nunca se desvie de mim por vontade ou instinto. E assim me servirá vida toda, feliz e convencida de verdade.20

A ilusão masculina de propriedade sobre o corpo feminino, elemento fundamental do patriarcado, está claramente presente não só nesta passagem, mas ao longo da citada obra do autor português. Ele descreve, através do narrador Baltazar Serapião, como a violência contra a mulher é um mecanismo de garantia e prevenção do direito do marido sobre o corpo e pensamento de sua esposa. A doentia carga de ciúme e a obsessão de Serapião por Ermesinda é extravasada por inúmeras cenas de violência física e psicológica sobre a mesma. O amor de que tanto fala o narrador, só lhe aparece como mecanismo de garantia da propriedade e fidelidade de sua esposa, que é violentada ao longo da trama de todas as maneiras possíveis e imagináveis. O amor romântico aparece como mera criação garantidora do controle da fidelidade da mulher perante seu marido. Outra observação interessante sobre o trecho citado acima é a descrição da mulher viúva como mulher deslocada no mundo, à procura de algo que não existe mais. A mulher, assim, é indivíduo voltado ao casamento, ao marido, ao patriarca. Quando perde este vínculo de pertencimento ao seu mestre, sua vida perde o sentido. Mais uma vez, o patriarcado pode ser identificado. O segundo exemplo, este cinematográfico, é o filme chinês Lanternas Vermelhas(1991). Passa-se na década de 20, retratando a vida de uma jovem mulher que é convencida pela mãe a abandonar a faculdade e aceitar um casamento arranjado, no intuito de garantir uma vida melhor, longe da pobreza. A jovem, no entanto, já é a 4ª esposa do patriarca, que exerce sua dominação sobre suas cônjuges mantendo-as em seu domicílio conjugal sem quaisquer atividades ou perspectivas de vida, a não ser passar 20

MÃE, Valter Hugo. O remorso de Baltazar Serapião. São Paulo: editora 34. p. 23.

19

a noite com ele. Além do vazio existencial da vida dessas mulheres, há uma forte competição entre elas, que são capazes de tudo para serem escolhidas para o ato sexual com o esposo – que exerce sistema de revezamento entre elas. Esta escolha lhes garantia privilégios frente às demais, como a famosa massagem nos pés, o respeito dos empregados, o poder de escolher o cardápio do dia, etc. O regime patriarcal, retratado com perfeição pelo filme, é a típica servidão voluntária em que a mulher se submete ao homem na expectativa de receber privilégios em contrapartida. Os exemplos dados, na literatura e no cinema, ilustram muito bem como a mulher e sua sexualidade sempre foram condicionadas a ser um vazio no qual o homem projetava a si mesmo, já que até os estudos e obras realizados sobre ela sempre serviram a interesses masculinos. Ao longo dos tempos, percebe-se que a mulher não existiu. Tudo que foi escrito e falado sobre ela teve como base a perspectiva masculina. O que sempre permitiu que o homem desejasse a mulher, ignorando sua realidade e permitindo sua idealização, foi a mordaça que a oprimiu e calou. O importante a reter é que a base material do patriarcado não foi destruída. O pilar econômico e político do patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em sua marginalização de importantes papéis econômicos e político-deliberativos, mas também no controle da sua sexualidade, e, consequentemente, do poder sobre seu próprio corpo21. O controle continua nas mãos dos homens. Isto fica claro ao constatar que o número de mulheres no comando político e econômico no mundo é ínfimo. Entre os detentores de maior fortuna mundial 22, há apenas uma mulher, Christy Walton, figurando a 9ª posição, sendo seu título derivado da herança da fortuna de seu marido. Uma simples análise da história política do Brasil permite constatar que uma única mulher, Dilma Russef, figura entre todos os 33 presidentes 21

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Op. Cit. p. 106. Disponível em Acessado em 29 de jan. 2013. 22

20

da república elegidos, ou impostos através de ditaduras, desde 1889. Na América Latina o desenrolar político não se deu de maneira muito diferente. A maioria dos países só teve uma única mulher ocupando o cargo da presidência, sendo a Argentina o único país que teve duas mulheres presidentas: María Estela Martínez de Perón (1974-1976) e Cristina Kirchner (2007). Segue abaixo quadro23 com o nome das mulheres presidentas da America Latina – dados recolhidos em 2010: As mulheres presidentes na América Latina Presidentes País María Estela Martínez de Argentina Perón Violeta Chamorro Nicarágua Janet Jagan Guiana Mireya Moscoso Panamá Michelle Bachelet Chile Cristina Kirchner Argentina Laura Chinchilla Costa Rica Presidentes interinas País Lidia Gueller Tejada Bolívia Ertha Pascal-Trouillot Haiti Rosalia Arteaga Equador

Período 1974-1976 1990-1997 1997-1999 1999-2004 2006-2010 20072010Período 1997 1991 1997

Fonte: Observatório de Gênero - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República

Pelos dados de uma pesquisa realizada pela revista Valor Econômico24 em dezembro de 2012, mulheres ocupam apenas 16,6% das vagas de conselhos administrativos das empresas listadas na Fortune 500. Entre cargos executivos de alto escalão, como vice-presidências e presidências, a porcentagem de mulheres é ainda menor, de 14,3%. Se a população brasileira tem mais mulheres que homens e se as mulheres são maioria nas universidades do país25, com quais parâmetros os homens são sempre escolhidos para figurar os melhores cargos em empresas e na administração do país? Como isto se explica senão devido a base patriarcal de nossa sociedade que reserva somente ao homem o papel de chefe? 23

24

25

Disponível em Acessado em 29 de jan. 2013. Disponível em Acessado em 29 de jan. 2013. Disponível em Acessado em 25 de abril. 2013.

21 1.2. Sexualidade

A sexualidade é um termo recente, que aparece apenas no século XIX. A palavra existia no jargão técnico da biologia e zoologia já em 1800, mas somente ao final deste século ela veio a ser usada no sentido em que a conhecemos hoje, ao que o Oxford English Dictionary se refere como “a qualidade de ser sexual ou possuir sexo”26. A definição atual, tão abstrata, não demonstra o real interesse na abordagem da sexualidade ao longo dos séculos. Se a atividade sexual entre os seres humanos sempre existiu, é curioso que apenas no início do século XIX surja um interesse em tratar do assunto. Michel Foucault, em uma análise histórica, expõe já no início de sua História da Sexualidade uma explicação para essa questão: Se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível com uma colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse dissipar-se nos prazeres, salvo naqueles, reduzidos ao mínimo, que lhe permitem reproduzir-se?27

Importante adendo é que a crítica de Foucault à construção da sexualidade não distingue a forma como certos engendramentos políticos atingiram a mulher de maneira diversa que o homem. Será utilizada, portanto, apenas como introdução ao tema. A criação e o crescimento de teorias sobre a sexualidade humana nada mais são que o fruto da interferência de um tipo de poder sobre os corpos e prazeres. Como já vimos, o corpo só passou a ser alvo de produção de saber quando sobre interferência de determinado poder. Este poder, durante muito tempo, gerou, por exemplo, a noção de que os hermafroditas eram criminosos, por possuírem composição anatômica que embaraçava a lei responsável pela distinção entre os sexos e sua conjugação.28 O controle da sexualidade só foi possível através de diversas instituições de poder do Estado unidas por este fim. A família desempenha papel crucial nesse controle, através dos rígidos métodos de vigilância 26

GIDDENS, Anthony. A transformação da sexualidade – sexualidade, amor e erotismo nas Sociedades Modernas. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1993. p. 33 27 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. p. 12 28 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 45.

22

utilizados pelos pais, que prosseguem nas escolas e em outras instituições estatais. Durante muito tempo, a verdade sobre o sexo foi limitada à forma discursiva. A confissão surge como exemplo do poder performativo das palavras. É através dela que a sociedade oferece as mais diversas formas de purificações contra os pecados da carne. Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com sujeito do enunciado; é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem na presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõem-na, avalia-a, e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e resistências que teve que suprimir para poder manifestar-se; enfim, um ritual onde a enunciação em si, independente de suas consequências externas, produz em quem as articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas falhas, libera-o, promete-lhe a salvação.29

No século XIX, o modelo da confissão é deslocado a um projeto de discurso científico, que procura tratar daquilo que escapa ao sujeito e não mais daquilo que o sujeito busca esconder. O poder em relação ao sexo só se estabelece de forma negativa: rejeição, exclusão, recusa ou ocultação e mascaramento. Ainda não havia um sistema de produção do saber ou indução do prazer. O poder nada podia contra o sexo e os prazeres, salvo dizer-lhes não, produzindo apenas ausências e falhas.30 Passando da introdução foucaultiana e adentrando na questão de gênero, é preciso atentar que o poder sobre a sexualidade se desenvolveu de forma muito diferenciada entre os sexos. A mais plausível explicação para isto é o fato de os detentores do poder, em sua forma representativa, terem sempre sido do gênero masculino. O poder que aparecia como puro limite traçado à liberdade, ganha força através de uma série de mecanismos positivos de internalização, impostos com muito mais rigor às mulheres do que aos homens. A sexualidade, ainda hoje, é construção social do poder masculino: definida pelo homem, imposta à mulher e constituinte do gênero. Neste 29 30

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. p. 71. Ibid. p. 93.

23

contexto, fica clara a privação sofrida pela mulher de sua própria experiência e dos termos nos quais ela se insere. O sexo sempre tido como tão essencial em nossa sociedade é fonte de dominação e submissão da mulher.31 A mulher é definida pelo que o desejo masculino requer para excitação e satisfação. Em uma análise foucaultiana, Catharine Mackinnon diz que o significado do sexual não se dá primeiramente através de palavras e textos, mas em relações sociais de poder através das quais o processamento do gênero também é realizado.32 Segundo ela, a dominação erotizada tem a figura masculina enquanto a submissão erotizada tem a figura feminina. Junto a essa submissão, há a restrição, o contorcionismo, a servilidade, o exibicionismo, a automutilação, a passividade, a humilhação e a auto apresentação como algo belo compondo o conteúdo do que seria o comportamento sexual destinado às mulheres.33 Sendo a sexualidade uma forma e uma dinâmica da desigualdade de gênero, a redução da mulher ao papel de objeto sexual é necessário para sua concretização. O detentor do poder precisa do seu subordinado para exercê-lo de forma “plena e satisfatória”. Mackinnon atenta para o principal instrumento definidor da sexualidade hoje: a pornografia. Sendo sexo uma construção social, o homem faz sexo com a imagem de uma mulher. A pornografia é a forma com que um objeto sexual acessível do que é a sexualidade no homem e na mulher é criado34. Sendo sua principal mensagem: sexual é tudo que dá ereção a um homem. O mercado da pornografia apresenta as mais diversas formas de excitar um homem: mulheres violentadas, abusadas, agredidas, submissas, humilhadas, menores de idade, etc. Quase a totalidade dos filmes pornôs é voltada ao público masculino, apresentando sempre mulheres com atributos 31

MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. Harvard University Press. USA, 1989. p. 127. 32 Ibid. p. 129. 33 Ibid. p. 130. 34 Ibid. p. 140.

24

que possam atrair o maior público. É quase inexistente produtoras que façam filmes pornôs direcionados às mulheres. Desta forma, a sexualidade imposta pela pornografia é aquela em conformidade aos desejos masculinos. Muitos desses desejos, inclusive, já são considerados normais e corriqueiros. Esta naturalização de um certo tipo de sexualidade é problemática, já que imposta pelos representantes do sexo masculino, que através da pornografia, criaram um modelo ideal que deve ser utilizado por todos. Sendo uma elaboração social que opera dentro dos campos de poder, e não simplesmente um conjunto de estímulos biológicos, a sexualidade quando confinada às áreas técnicas de discussão era uma forma de censura de fato. Tal censura afetava tangivelmente mais as mulheres que os homens, já que os homens se iniciavam na vida sexual na adolescência através de contato com cortesãs. Muitas mulheres casavam-se virtualmente sem qualquer conhecimento sobre sexo, exceto o de que ele estava relacionado aos impulsos indesejáveis dos homens e tinha de ser suportado. Assim, era comum uma mãe dizer para sua filha, “Depois do seu casamento, minha querida, coisas desagradáveis vão lhe acontecer, mas não tome conhecimento delas; eu jamais tomei”.35 O prazer sexual feminino, quando possível, estava intrinsecamente ligado ao medo de gestações indesejáveis, e, por isso, da morte, dada a substancial proporção de mulheres que morriam no parto ou que adoeciam através de infecções oriundas de abortos clandestinos. Ainda hoje, muitas mulheres são vítimas de abortos malsucedidos, principalmente as de baixarenda que não podendo optar por um serviço médico confiável em decorrência da proibição do aborto no Brasil, facilmente são vítimas de hemorragias e infecções fatais. O Ato de Deficiência Mental, promulgado em 1913, permitia que as autoridades locais autuassem, e mantivessem indefinidamente presas, as mulheres solteiras grávidas que fossem pobres, desamparadas ou apenas 35

GIDDENS, Anthony. Op cit., p. 34. APUD. Carol Adams, Ordinary Lives, London: Virago, 1982, p. 129.

25

“imorais”. Visto que era amplamente sustentada a idéia de que a gravidez ilegítima era em si um sinal de subnormalidade, as mulheres solteiras de origens mais abastadas que ficavam grávidas podiam, às vezes, fazer abortos ilegais – como também poderia fazê-los as mulheres mais pobres, mas com um risco de vida considerável – e do contrário tornavam-se efetivamente párias. A ignorância sobre o sexo e a reprodução era assumida como subnormalidade, mas era ampla. Uma mulher, nascida em 1918 em Londres, entrevistada em um estudo da história oral realizado por Joy Melville, recorda que sua mãe surrava-lhe toda noite quando ela ia dormir, que não deveria fazer sexo antes do casamento, senão ficaria louca. Ela não questionava por que as mães solteiras eram postas em asilos; apenas pensava, “Bem, elas mereceram; fizeram sexo, e enlouqueceram”.36 Este tipo de tratamento direcionado às mulheres pela grande maioria das sociedades ocidentais tinha uma função muito clara: impedir que elas entrassem em relações sexuais, senão com seus maridos. Garantir um controle social da propriedade masculina sobre o corpo feminino. O comportamento esperado das mulheres só corrobora a estrutura patriarcal da nossa sociedade. Hoje as raízes da repressão sexual feminina são muito evidentes se analisarmos a coerção exercida pela comunidade masculina sobre as mulheres com uma vida sexual ativa fora de relacionamentos estáveis. A igreja católica ainda exerce sua influência sobre os fiéis, se posicionando, por exemplo, contra o uso da camisinha e da pílula anticoncepcional. Ou seja, impedindo que a mulher tenha uma vida sexual ativa sem o medo da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis. No Brasil, mais especificamente, na cidade do Rio de Janeiro, uma mulher que tem uma vida sexual ativa variando de parceiros com frequência sofre rígido preconceito por grande parte da comunidade masculina – um exemplo disto é a rotineira comparação entre mulheres que variam de 36

MELVILLE, Joy. “Baby Blues”, New Statesman and Society. 3 de Maio de 1991, p. 2.

26

parceiros com freqüência e mulheres que se prostituem: ambas taxadas de “putas”. Esta troca informação sobre a vida sexual da mulher e a classificação de inferioridade da mulher conforme varie de parceiros é muito reproduzida até hoje. Qual seria a explicação para este tipo de comportamento? Obviamente o que parece justificar isto são os dados históricos da repressão feminina, estando muito ligados a dicotomia virgem/puta que o movimento feminista atual tenta desmistificar. Não é suportável ver a mulher, que antes só poderia se relacionar com um único homem – seu marido – ter relações com diversos indivíduos. A mulher ainda é vista como propriedade, como objeto, que com o uso vai perdendo seu valor. Ainda vivemos em uma sociedade em que a mulher depois do ato sexual sem compromisso é tida como usada. O desejo da mulher não conta, mas somente a sua castidade corporal. É extremamente questionável que em um Estado onde a mulher não pode se relacionar com o número de pessoas que quiser, usar as roupas que quiser, falar do modo que quiser, sem ser recriminada, se diga democrático. É ainda mais problemático afirmar que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, quando um homem de short é visto como um homem com calor, enquanto uma mulher de short é vista como uma mulher pedindo para ser estuprada. O que se procura ressaltar aqui é a sexualidade da mulher ainda é vista em função do desejo masculino sobre ela; que o feminismo ainda tem razão de existir; que os direitos materiais devem ser efetivados; que a lei é apenas um papel se não há poder que a faça cumprir. Desta forma, enquanto as mulheres continuarem sendo subjugadas pelos seus desejos, há um problema. E além de procurar resolvê-lo, deve-se entendê-lo. As razões da repressão tanto da sexualidade quanto de alguns direitos civis das mulheres têm cunho histórico e deve ser pensada como conseqüência de centenas de anos de desigualdade e subordinação. Fruto dela também é a violência contra a mulher, que se trata de uma espécie de crime de ódio contra a mulher; ódio contra a concretização de seus desejos

27

e direitos. 1.3. Violência contra a mulher If women were to escape the culturally stereotyped role of disinterest in and resistance to sex and to take on an assertive role in expressing their own sexuality, rather than leaving in to the assertiveness of men, it would contribute to the reduction of rape... First, and most obvioulsy, voluntary sex would be available to more men, thus reducing the “need” for rape. Second, and probably more important, it would help to reduce the confounding of sex and aggression.37

Há muitos equívocos quando o assunto é a violência contra a mulher. Alguns deles estão no pequeno trecho com o qual abro este tópico. Primeiramente, o autor trata a recusa sexual por parte da mulher como uma inibição fruto de sua ausência de expressão sexual. E justamente por isso propõe que a mulher expresse sua própria sexualidade, pois assim ficaria mais fácil para o homem diferenciar sexo e agressão. Em momento algum o estupro é pensado como oriundo da força masculina frente à mulher, mas sim tendo como causa a resistência feminina. Parece que, mais uma vez, a mulher é responsabilizada pela violência da qual é vítima. É como se o autor dissesse “se a mulher não resistisse, o homem não seria obrigado a utilizar-se da violência”. A recusa sexual é vista como uma restrição a um direito natural do homem, o de sua atividade sexual. E por isso, ele dispõe que o homem estupraria menos se houvessem mais mulheres disponíveis para o ato sexual. Os condicionamentos sociais induzem a acreditar na incontrolabilidade da sexualidade masculina38. Se assim fosse, haveria sexo, ou mesmo estupro, em todos os lugares públicos, como praças, avenidas, praias, etc. Obviamente, tanto homens quanto mulheres conseguem controlar seus impulsos sexuais. E a maioria o faz, seguindo normas estabelecidas em cada sociedade. Porém, as normas sociais, diferentemente das leis da física, 37

M. Straus, Sexual Inequality, Cultural Norms, and Wife-beating, Victimology: An International Journal I (1976) p. 54-70) APUD MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. p.133. 38 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. p. 27.

28

são passíveis de transgressão. Ora, estas ideias são disseminadas pelo “rape-free” cujo lema é “our women never resist”39. Se não há resistência, não há estupro. Desta forma, o estupro não é visto como uma forma de violência, mas simplesmente como “sexo sem consentimento” que o homem tem direito a realizar caso a mulher não “cumpra seu papel” e resista. Esta posição se torna ainda mais problemática se levarmos em conta a presunção social de que sexo é uma coisa boa. Ora, então o estupro, como sexo sem consentimento, não pode ser algo ruim. Esta é a lógica que minimiza o horror e violência que é o estupro. Em momento algum é esclarecido que o fato de uma violência vir através do sexo, não a transforma em sexo. Ou que sexo é conhecido e naturalizado através da pornografia, sua fonte fundadora, do que seria a sexualidade nos moldes da supremacia masculina. Nestes termos, dizer que estupro é uma forma de sexo é aceito socialmente, já que muitos homens e mulheres crescem em contato com material pornográfico em que a mulher passa por situações sexuais erotizadas semelhantes a violência. Mulheres que possuem atributos que normalmente fixam a atenção masculina, como seios grandes, são vistas como cheias de desejos sexuais. As mulheres, alvo do desejo masculino, são culpabilizadas por incitarem o desejo sexual. Dentro desta lógica: mulheres estupradas estavam pedindo por isto40. Milhões de mulheres fingem orgasmos porque os homens demandam que elas apreciem a penetração vaginal exercida por eles41. Nestes termos, fica claro a menor valia da sexualidade feminina quando a relação sexual se limita somente à satisfação masculina – tanto no que se refere à obtenção do prazer físico, quanto na satisfação psicológica frente a ilusão de estar dando prazer. O sexo, como já dito, tem que ser uma coisa boa. Esta lógica, por incrível que pareça, não foge aos casos de estupro, se levarmos em conta 39

MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. p. 134. Ibid. p.141. 41 Ibid. p. 141. 40

29

que no imaginário masculino a mulher, mesmo que não demonstre, anseia sempre pelo ato sexual quando desejada por um homem. A dor e humilhação da mulher, como tão rotineiro na pornografia, também é fonte de prazer masculino. A maioria dos homens que assediam sexualmente as mulheres, dizem que, primeiramente, foram assediados por elas. Isto tendo os Estados Unidos da America uma taxa de 85% de mulheres trabalhadoras assediadas no trabalho42. Mackinnon traz, em Toward a Feminist Theory of the State, taxas assustadoras quanto ao assédio por parte dos homens. Um em cada três homens declararam que estuprariam uma mulher se soubessem que sairiam impunes. Apenas 5% dos estupradores são classificados como psicopatas43. Os outros 95% seriam considerados homens “normais”, que compartilham o meio social com mulheres diariamente. Não há muitas explicações para estas taxas, senão assumir que o sexo se tornou uma forma erotizada do ódio à mulher e a misoginia uma dinâmica sexual de excitação44. O conceito de violência difundido e aceito pela nossa sociedade é a ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual e integridade moral 45. A violência contra a mulher abrange a totalidade do conceito de violência moderno, tendo como seus principais representantes a violência sexual e física. O abuso sexual começa, muitas vezes, no lar da criança através do incesto. As mulheres representam 90% das vítimas desta prática. Mas, obviamente, ela foi explicada por um homem, Sigmund Freud, que definiu os abusos sexuais perpetrados contra elas como suas próprias fantasias derivadas do desejo de serem possuídas pelo pai, destronando, assim, suas mães46. Muito da violência convergida em sexo se dá através da pornografia e é comumente utilizada pela lei para negar a realidade da violação da 42

Ibid. p. 143. Ibid. p. 145. 44 Ibid. p. 146. 45 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Op. cit., p. 17. 46 Ibid. p. 19. 43

30

mulher47. Nos Estados Unidos, numa tentativa de diferenciar sexo de violência, foi utilizada uma nova definição de estupro: o “assalto sexual”. Esta nomenclatura ajuda a entender que o consentimento não é o mais importante na definição de estupro, mas sim o uso de violência ou ameaça. Isto porque muitas vezes não há o poder de consentir por parte da mulher. Por muito tempo, e ainda hoje em alguns países, subentendia-se que as prostitutas e mulheres casadas sempre deveriam consentir ao ato sexual; enquanto as meninas menores de idade e solteiras nunca o deveriam. Dentro deste quadro, qual seria o poder de consentir destas mulheres? Quais mulheres não se enquadrariam nestes papéis? Mackinnon aborda a problemática desse quadro de presunção de consentimento destinado às mulheres. Primeiramente, há uma erotização das meninas menores de idade, já que são consideradas proibidas ao mundo sexual. Esta proibição, longe de ser meramente moral, é estipulada por lei, que presume de forma absoluta que o sexo com meninas menores de idade é estupro, desvalorizando, desta forma, o poder de consentimento delas. Apesar da lei, a porcentagem de meninas que são vítimas de abuso sexual na infância é de quase 40%48. Se determinados atos sexuais são forma de objetificação da mulher como pode-se esperar que elas pensem como indivíduos com habilidade de resistir ou escapar ou de viver suas próprias significações da realidade ao invés de ilusões?49 Não se deve analisar o consentimento ou as reais intenções do agente, mas sim se houve o uso de força ou ameaça à vítima. Não é preciso dizer “não” para haver estupro se já há violência ou grave ameaça anterior a qualquer reação por parte da mulher. Quando um homem usa da sua força para obrigar uma relação sexual indesejada, há estupro; quando este mesmo homem ameaça uma mulher para ter com ela atos libidinosos indesejados, há estupro. A analise deve ser direcionada para a conduta do agente; houve 47

MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. p. 174. Ibid. p. 177. 49 Ibid. p. 180. 48

31

ameaça ou violência? E não para a conduta da vítima; houve consentimento? Ser estuprável é uma posição ocupada pelas mulheres, não biologicamente, mas socialmente50. Ao longo dos séculos, foram sempre as mulheres vítimas deste crime. Invadiam um povoado, estupravam as mulheres daquele povoado. Roubavam uma casa, estupravam as mulheres daquela casa. Compravam escravos, somente as mulheres eram usadas para “favores sexuais”. Samurais ao devastarem fazendas e cidades, estupravam as mulheres. O fato de sempre as mulheres serem alvo desta violência têm uma explicação sociológica: o patriarcado e a misoginia. O estupro é ato de subordinação da mulher ao homem, servindo para expressar e reforçar a desigualdade de gênero. Por isso, é alarmante observar a falta de celeridade estatal em tratar esta questão: a Alemanha só transformou esta prática em crime em 1997; o Haiti em 2006. Em países como Paquistão, Quênia e Bahamas o estupro ainda é legal. E ainda nos países que o tipificaram como crime há uma falta de vontade em processar os criminosos: o Japão e a Polônia foram especialmente criticados por organizações defensoras dos direitos humanos por suas baixas taxas de condenação51. Esta impunidade em relação à violação da mulher em seu corpo e mente faz dela, ainda hoje, uma cidadã de 2ª classe. A outra modalidade de violência contra a mulher no espaço público que será analisada neste trabalho é o “assédio de rua”. Este tipo de violência se caracteriza pela intimidação com ofensa à dignidade humana da mulher por meio de palavras e/ou expressão corporal, de cunho sexualpornográfico, por parte dos homens, em qualquer ambiente do espaço público. Entende-se, para fins da definição do assédio de rua, como dignidade humana o conjunto de idéias que a pessoa tem de si mesma, assim como o que lhe permite a afirmação de sua potência enquanto indivíduo social. A escolha da nomenclatura “assédio de rua” deve-se à interpretação 50 51

MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. p. 178. MORAN, Caitlin. Como ser mulher. São Paulo: Paralela, 2012. p. 129.

32

restritiva do “assédio sexual” – limitando-se ao assédio no ambiente de trabalho. Alguns autores, como Luiza Nagib Eluf, admitindo que o conceito de “assédio sexual” ainda está em fase de estruturação, informa que “assediar alguém, em princípio, consiste em fazer propostas de caráter sexual, de forma impositiva ou ameaçadora, importunando ou constrangendo a vítima”.52 Porém, a definição penal do “assédio sexual” no direito brasileiro, como demonstra Laerte53, restringe-se ao constrangimento criminoso, manifestado única e tão somente em um contexto laboral, por parte do chefe, patrão ou superior hierárquico contra o empregado subordinado, com o objetivo de auferir vantagem sexual. Existe no facebook uma página destinada ao desabafo e revolta feminina frente ao assédio de rua. A dinâmica é que cada uma conte seu caso, ainda que anonimamente, e que o restante comente e dê o seu recado frente à violência sofrida. É um interessante instrumento da internet que permite ver a dimensão e reação de milhares de mulheres que se expõe na intenção de publicizar esta prática como violência inadmissível que deve ter um fim. Cito um caso: 635 - "Todos os dias de manhã pego o circular da USP até o metrô butantã. Hoje quando passava pela frente do metrô, vi que tinha um cara descendo as escadas me olhando daquele jeito esquisito de que vai te engolir só de olhar, até aí passo por isso todos os dias, assim como todas nós, mas dessa vez não parou por aí ou no "oi princesa", o cara pulou na minha frente com o rosto a menos de 5 cm do meu e disse "vem cá cachorra". Na hora só consegui gritar um "vai se foder", acho que se tivesse mais 2 segundos pra reagir tinha dado um bom chute no saco dele. Fiquei completamente em pânico, minha vontade era de chorar a hora que entrei no ônibus. Quando cheguei em casa a tarde comentei com meu pai que contou pra minha mãe, pra minha surpresa, ela que geralmente tem idéias super machistas sobre tudo veio super preocupada me perguntar sobre isso e ainda disse que eu deveria ter ido reclamar com a segurança do metrô sobre esse homem que estava assediando mulheres na rua e ficou feliz de eu ter gritado com o cara."54

Ora, palavras não são meramente palavras quando carregam os efeitos de atos, independente do local em que são proferidas. A injúria não se separa dos atos verbais que intimidam, ofendem ou ridicularizam uma 52

ELUF, Luiza Nagib. Crimes contra os costumes e assédio sexual. Ed. Condensada. São Paulo: Jurídica Brasileria, 1999. p. 126. 53 JUNIOR, Laerte I. Marzagão. Assédio sexual e seu tratamento no direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 66. 54 Disponível em Acessado pela última vez em 07 jun. de 2013.

33

pessoa. Um ambiente hostil foi reconhecido pela Suprema Corte dos Estados Unidos como uma forma de assédio55. Seria o espaço público um ambiente hostil quando uma mulher é assediada por um grupo de homens que lhe dirige olhar animalesco e lhe pronuncia diversas palavras de cunho sexual e pornográfico? Quando uma mulher se depara com um discurso de caráter sexual, como na pornografia, ela está sendo afetada por um ato sexual. A sexualidade é a dinâmica central do gênero. Então quando um discurso é uma forma de ofensa voltada para uma pessoa representante de um grupo, isto não pode deixar de ser considerado como uma forma de discriminação, que no caso da mulher é discriminação de gênero56. Desta forma, é correto pensar em palavras de assédio de rua como sinônimo de atos de abuso sexual. Esta modalidade de discurso ofensivo é conseqüência do molde de sociedade em que vivemos. Assim como a linguagem modela a realidade social, a realidade social da linguagem em uso determina o que ela converge, significa e seus efeitos. Portanto, dizer que determinadas palavras usadas em um discurso de ofensa sexual não tinham aquele significado ou o poder de causar determinado efeito é dizer que aquela realidade social não existe57. O que seria absurdo, já que o patriarcado e a misoginia se afirmam através do próprio assédio de rua contra as mulheres. Se não houvesse a supremacia masculina e se esta não fosse sexualizada, certamente não haveria a injuria do assédio sexual. Isto porque as palavras não trabalham sozinhas, ou melhor, o dano causado pelo assédio sexual não pode ser realizado apenas por meio de significados expressivos58. Ora, a questão do assédio sexual das mulheres é um reflexo da realidade social em que vivemos. Mas, além disso, é também uma prática fomentadora desta realidade. Trata-se, portanto, de um instrumento de mão dupla. 55

MACKINNON, Catharine. Only Words. Cambridge, Massachusetts. USA, 1993. p. 49. Ibid. p. 52. 57 Ibid. p. 59. 58 Ibid. p. 60. 56

34

A codificação social da sexualidade como intimidade e prazer é essencial para visualizar a diferença e intrusão do assédio de rua. Um homem que se dirige a uma mulher, com quem não tem intimidade, fazendo comentários pornográficos, não espera que ela goste daquilo que ouve. Isto porque o assédio sexual não é elogio. As mulheres não devem aos homens seu tempo ou conversação para serem abordadas na rua como se fossem um mero objeto do prazer masculino. Como seres humanos que são, elas têm o direito de selecionar com quem desejam se relacionar ou dividir seu tempo. O assédio de rua não é meramente uma situação desagradável do dia a dia, pela qual a mulher deve passar. Mas uma forma de amedrontar e subjugar a mulher. É mais uma maneira que o patriarcado utiliza para dizer às mulheres que elas são vistas como seres submissos, fracos e de cunho meramente sexual. Não se trata de mero desrespeito, mas é uma forma de violência contra a mulher. Há uma enorme diferença entre falar sobre sexo, que pode ser uma forma de discurso, e o assalto sexual, ou seja, fazê-lo por meio de palavras. Por isso, o assédio de rua causa seu dano como ato de abuso sexual59. Há um cunho de ódio muito forte na maneira e na seleção das palavras utilizadas no assédio de rua. Há uma invasão da intimidade da mulher por meio das palavras. E se trata claramente de um problema de gênero, já que o assédio de rua é direcionado somente às mulheres. Não se vê mulheres direcionando discursos erotizados aos homens na rua. Mas o inverso é algo que já se tornou corriqueiro, principalmente se a mulher estiver sozinha. Ora, é de se questionar a preferência por mulheres desacompanhadas. Seria uma maneira mais fácil de amedrontar essa mulher, já que os índices de estupro estão cada vez mais divulgados pela mídia como algo crescente? A rua se tornou um ambiente de fato hostil, se você é uma mulher. Além de se preocupar com todo tipo de violência patrimonial, roubo, furto, sequestro, deve-se ter em mente a possibilidade de ser agredida sexualmente através do estupro e do assédio de rua. A mensagem 59

MACKINNON, Catharine. Only Words. p. 68.

35

subliminar seria: “Mulheres fiquem bem escondidas em casa, e, se precisarem sair na rua, não saiam desacompanhas ou com roupas que chamem a atenção masculina. Lembrem-se deste conselho, e não reclamem se algo lhes acontecer, afinal, a culpa é de vocês”. Em um levantamento de boletins de ocorrência da Delegacia de Policia de Defesa a Mulher (DPDM) no município de São Paulo, realizado entre agosto e dezembro de 1985, o número de casos de violência contra a mulher é assustador. Dos 2038 boletins: 714 eram de lesão corporal dolosa, 537 de desinteligência, 528 de ameaça, 80 de estupro, 21 de atentado violento ao pudor, 62 de sedução, etc60. A grande maioria dos casos aconteceu em relações domésticas. Se o espaço público é um ambiente hostil para a mulher, o que seria a sua casa então? Onde as mulheres estariam seguras? O espaço público é o lugar de interação social e construção de identidades coletivas61, de forma que é necessário que se ofereça um suporte físico para as atividades cotidianas se desenvolverem sem oprimir ou descriminar ninguém. Ora, como desenvolver um espaço democrático se não houver a superação da subordinação histórica da mulher, expressada em sua falta de acesso ao poder político, religioso e econômico, que está intimamente ligada à violência de gênero? A existência da violência de gênero no espaço privado é inegável, e apesar de sua visualização ser produto de um processo social, é uma violência que normalmente não é registrada ou percebida como delito, já que nem sempre se denuncia. E quando se denuncia, é banalizada tanto pelas autoridades públicas como pela sociedade, evidenciando sua naturalização e consequentemente o ocultamento deste fenômeno62. A dicotomia público-privado atua de tal forma que a violência urbana, muitas vezes, é pensada somente como a partir do espaço público, excluindo o 60

Fundação SEADE, Conselho Estadual da condição feminina. Um retrato da violência contra a mulher: 2038 boletins de ocorrência. São Paulo: SEADE, 1987. p.12. 61 VARGAS, Virginia. Programa Regional Ciudades sub Violencia hacia las Mujeres, Ciudades Seguras para Todas y Todos. UNIFEM Brasil y países del Cono Sur, 2008. p. 17. 62 Ibid. p. 26.

36

espaço privado da preocupação social. É claro que para superar a subordinação feminina frente ao homem a mudança deve ocorrer em ambos os espaços. Isto porque a criminalidade no espaço público acaba sendo um reflexo do comportamento no espaço privado. A institucionalização da violência de gênero como algo naturalizado em nossa sociedade é a condição e razão de sua permanência. Todas as formas de restringir o desenvolvimento pleno, a mobilidade ou a autonomia das mulheres, seja por temor ou restrições reais em sua cidade, devem ser questionadas e pensadas como forma de violência contra a mulher 63. Nada deve ser tido como natural a seu gênero.

63

Ibid. p. 26.

Capítulo 2 – O tratamento jurídico da violência contra a mulher no espaço público brasileiro

O espaço público brasileiro, como assegura nossa Constituição Federal, deveria ser um lugar de livre acesso, de livre locomoção, de livre associação e, principalmente, de livre expressão. Estas liberdades, porém, quando relativas às mulheres, são restritivas e em alguns casos, apesar da possibilidade, desaconselhadas. A poetisa estadunidense Sylvia Plath já declarava o seu desejo de andar livremente pelas ruas à noite, sem o medo de ser estuprada, assassinada, assediada, etc. Um homem sozinho à noite tem menos a temer que uma mulher. Afinal, não há o temor masculino de ser violado em seu direito mais íntimo, o de dispor do seu corpo e de sua libido somente com quem lhe interessar. Neste capítulo, a intenção é investigar as razões de o espaço público ser um ambiente tão hostil a uma mulher e como a legislação brasileira vem tratando o assunto no que se refere ao estupro e ao assédio de rua. Será organizado em dois tópicos: a) o estupro na legislação penal brasileira, b) o assédio sexual e o assédio de rua na legislação penal brasileira. 2.1. O Estupro na Legislação Penal Brasileira

O crime de estupro foi tipificado pela primeira vez no Código Penal Brasileiro em 1830. Apareceu dentro do capítulo “Dos crimes contra a segurança da honra”, que, com a promulgação do Código Penal de 1890, teve sua estrutura mudada e como título recebeu o nome “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. No código de 1940, criado durante o período do Estado Novo de Getúlio Vargas, o nome do título foi novamente modificado para “Crimes contra os bons costumes”. Em 2009, através da Lei 12.015, teve seu título finalmente modificado para “Crimes contra a dignidade sexual”. A

38

importância do acompanhamento histórico da mudança do tratamento da violência sexual é simplesmente a tradução do pensamento da época quanto ao crime de estupro, que somente em 2009 foi tratado como violador da dignidade sexual feminina. Em 1830, período em que no Brasil regia o império de Dom Pedro II, o crime de estupro tinha como bem jurídico tutelado a honra do marido e familiares da mulher. Em outras palavras, era para assegurar a castidade das mulheres que existia este crime. Sabendo que o direito penal é a última ratio e que, desta forma, só deve ser utilizado quando os demais ramos do direito não puderem dar uma resposta compatível com a ofensa ao bem jurídico protegido pelo ordenamento jurídico, conclui-se que tomar a honra do marido como a real razão da criminalização do estupro, em 1830, é confirmar a inexistência de proteção ao corpo, escolhas e liberdade da mulher naquela época.

O estupro aparece como a tradução de uma

sociedade patriarcal, que visava a proteção dos bens da sociedade masculina, estando a mulher entre eles. Em momento nenhum se falava em dignidade e liberdade sexual da mulher. A punição ao crime de estupro não era um direito das mulheres, mas de seus maridos e familiares. Para uma analise mais detalhada, analisar-se-á o inteiro teor da secção que continha o crime de estupro no código penal de 183064: CAPITULO II -DOS CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DA HONRA SECÇÃO I -ESTUPRO Art. 219. Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos. Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a deflorada, por um a tres annos, e de dotar a esta. Seguindo-se o casamento, não terão lugar as penas. Art. 220. Se o que commetter o estupro, tiver em seu poder ou guarda a deflorada. 64

Disponível em Acessado pela última vez em 30 de janeiro de 2013.

39 Penas - de desterro para fóra da provincia, em que residir a deflorada, por dous a seis annos, e de dotar esta. Art. 221. Se o estupro fôr commettido por parente da deflorada em gráo, que não admitta dispensa para casamento. Penas - de degredo por dous a seis annos para a provincia mais remota da em que residir a deflorada, e de dotar a esta. Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida. Se a violentada fôr prostituta. Penas - de prisão por um mez a dous annos. Art. 223. Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando dôr, ou algum mal corporeo a alguma mulher, sem que se verifique a copula carnal. Penas - de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade do tempo, além das em que incorrer o réo pela offensa. Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezasete annos, e ter com ella copula carnal. Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um a tres annos, e de dotar a esta. Art. 225. Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas.

Primeiramente, a seção referente ao estupro abarca muitos conceitos, sem haver diferentes nomenclaturas para cada um deles. O artigo 219 define como estupro qualquer relação sexual com mulher virgem, menor de 16 anos. Não se fala em momento algum no consentimento da mulher ou na violência e ameaça por parte do agressor. O estupro é conceituado como penetração vaginal de mulheres virgens e menores de 16 anos. O peso da palavra estupro, como ato de violência, humilhação e ódio à mulher, é ocultado devido ao seu tratamento como uma questão de honra masculina. As condições para o enquadramento como agente do crime do art. 219 é qualquer homem e para vítima qualquer mulher virgem, menor de 16 anos. Se a mulher tiver menos de 16 anos, mas não for virgem ou se a

40

mulher for virgem e maior de 16, não há enquadramento no tipo previsto no art. 219. O casamento aparece como a chave para a não aplicação da pena, tanto para o artigo 219, como para o 222, 223 e 224. Isto significa que se uma mulher for desvirginada ou abusada sexualmente por um homem, para que a honra dela e de seus familiares não seja ferida, ela deve casar-se com ele. Qual é o sentido nesta lógica? Obrigar a mulher a limitar-se sempre a um único homem, controlando desta forma sua sexualidade. O conceito de honra, fruto da moral cristã, só serve para amarrar ainda mais a mulher a uma sociedade na qual seus desejos nada contam ao regime estabelecido. O outro artigo que chama atenção é o de número 222, que aborda, pela primeira vez, a questão da violência ou ameaça à mulher finalizando sua redação com o vocábulo “mulher honesta”. Mas, afinal, o que é uma mulher honesta? Este conceito, além de moralista e preconceituoso, é extremamente vago. Não há definição legal para mulher honesta. Através de uma analise literária do século XIX, percebe-se uma confusão entre moralidade e honestidade da mulher. Senão vejamos, o trabalho “Retratos de mulheres brasileiras na literatura do século XIX”, de Silvana Fernandes Lopes: Os romances do século XIX revelam a extrema submissão da mulher em relação ao grupo familiar e às normas sociais em geral. Como exemplo, a mulher não deveria sair desacompanhada de parentes ou escravos. Quando isso acontecia, sua moralidade poderia ser colocada sob suspeita: Aurélia era órfã; e tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade. Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina.65 Adelaide e D. Branca, personagens do romance Tentação, saem sozinhas para “uma volta na Rua do Ouvidor”. Os passageiros olhavam-nas com esse olhar curioso e indiscreto que às vezes confunde uma mulher honesta com uma horizontal.66

A honestidade aparece atrelada à questão da repressão sexual: “andar sozinha” equivaleria a “estar procurando por desonra(muito provavelmente, 65

66

ALENCAR, 1973, p. 11 apud LOPES, Silvana Fernandes. “Retratos” de Mulheres brasileiras do século XIX. Revista Plures Humanidades. Ribeirão Preto, 2011. ano 12, n.15. p. 126. CAMINHA, 1979, p. 77 apud Ibid p. 126.

41

através de envolvimentos sexuais com homens)”. Mulher honesta é a mulher sempre sob vigia, sem vida sexual ativa e não emancipada. A imposição da dicotomia virgem-puta fica muito evidente se analisarmos a diferença de pena entre o estupro de mulher honesta, de três a doze anos, e de prostituta, de um mês a dois anos. Fica claro que a desonestidade da prostituta está no fato de esta ter uma vida sexual ativa, compartilhada com muitos homens. Como proteger a honra de uma mulher desonrada? Por este fato, a sociedade do século XIX, considera o crime contra prostituta menos reprovável e lhe atribui pena consideravelmente menor. A redação deste artigo faz uma analise do perfil da vítima e não da conduta do agente. Muitos operadores do direito ainda hoje focam no comportamento da vítima, como que imputando a ela a culpa do estupro. Corrobora-se, portanto, que a violência contra a mulher é irrelevante, o que está em jogo são os valores morais que a sociedade atribui a ela. O Código Penal de 189067 mantém o conceito de mulher honesta em sua redação, dispensando, contudo, a exigência de virgindade. O tratamento diferenciado entre a “mulher honesta” e a “mulher pública ou prostituta” se mantém. Há, entretanto, diminuição da pena máxima de estupro da “mulher honesta” para seis anos. Senão vejamos: TITULO VIII - Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das familias e do ultraje publico ao pudor CAPITULO I - DA VIOLENCIA CARNAL Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena – de prisão cellular por um a seis annos. § 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena – de prisão cellular por seis mezes a dous annos. § 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte. Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violencia de uma mulher, seja virgem ou não. Por violencia entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios 67

Disponível em Acessado pela última vez em 30 de janeiro de 2013.

42 que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcoticos.

Há, neste código, um importante avanço em termos de legalidade, pois pela primeira vez, houve uma definição legal clara, do que seria o crime de estupro. Sendo o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher. É certo que este conceito apresenta problemas, já que nem sempre é necessário o uso de violência para que se caracterize o estupro, bastando o constrangimento da vítima – por meio de ameaça. O código traz também a conceituação do que seria violência. Esclarece que esta não se dá somente pelo viés físico, mas também qualquer fraude que prive a mulher de sua capacidade psíquica. Não se fala ainda em ameaça como meio de provocar o estupro. O Código Penal de 194068, em sua primeira redação, apresentava o crime de estupro como “constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça”. De acordo com seu título, citado anteriormente, seria uma ofensa aos bons costumes estuprar uma mulher. Ora, tratar a violação da liberdade sexual da mulher como uma questão de bons costumes é retirar qualquer seriedade da análise da questão. O estupro não é uma questão de etiqueta ou ética, da qual se deve esforçar para seguir na risca. Trata-se de um crime de violência que traça os aspectos misóginos de uma sociedade, que deixa cicatrizes na alma das vítimas. O fato do estupro ainda estar restrito a vítimas mulheres não é devido a uma proteção estatal em prol delas, ou, pelo fato de quase a totalidade de crimes de violência sexual serem cometidos contra mulheres, mas devido ao conceito doutrinário de conjunção carnal, que se restringe à penetração vaginal, e, também, devido à herança das gerações passadas do entendimento de estupro como crime contra a honra do marido e familiares. Os homens que sofressem violência sexual estariam enquadrados no crime de “atentado violento ao pudor”, cuja pena era tão severa quanto a do 68

Disponível em Acessado pela última vez em 30 de janeiro de 2013.

43

estupro. O primeiro trabalho jurídico no Brasil que considerava a possibilidade de o crime de estupro ser pratica por parte do marido à esposa se deu em 1968, pelo professor e jurista João Mestieri. Em sua obra, Mestieri a aborda a tendência da doutrina moderna da época em limitar o poder, antes tomado como absoluto, do marido sobre a esposa, filhos e criadagem. Cito Mestieri: A ilicitude do estupro por marido é o último reduto do absolutismo do chefe do domus, em que pesem os malabarismos jurídicos com que se procura, mesmo nos dias de hoje, justificar semelhante despropósito (…) Referem não ser possível o delito de estupro entre cônjuges, Nelson Hungria, H.C. Fragoso, Chrysolito de Gusmão, Cuello Calón, Maggiore, Carrara, Manzini, G. Laredo, Osório, Mendoza Durán e Chauveau e Hélie. 69

A base de sustentação dessa gama de autores era o fato de o estupro pressupor cópula ilítica, sendo a cópula intra matrimonium um dever recíproco entre os cônjuges. Este tipo de argumento era muito utilizado e corroborado pelo direito canônico que possuía o princípio expresso no Cânon 1.013, § 1º, cujo fim primário do matrimonio exclui a antijuridicidade do crime de estupro. Hoje, porém, não há dúvidas quanto ao fato de o casamento não legitimar qualquer tipo de violência contra a mulher, pelo contrário, a violência doméstica ganhou um tratamento especial pela Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06). Outra lei importante para o tratamento do delito estupro foi a 12.015/09, que, além de mudar o título de seu capítulo para “Crimes contra a dignidade sexual”, modificou também o conceito de estupro, que passou a abranger o de atentado violento ao pudor, ou seja, não só o constrangimento à conjunção carnal é estupro, mas à pratica de atos libidinosos também. Foi só em 2009 que os homens passaram a ser legalmente possíveis vítimas do crime de estupro. Durante 179 anos, de 1830 a 2009, a lei reservou o crime de estupro às mulheres. A razão disso é simples: elas é que sempre foram o alvo deste tipo de violência. A lei 8.072/90 deu ao estupro tratamento de crime hediondo. Desta 69

MESTIERI, João. Estudo sobre o tipo básico do delito estupro. Rio de Janeiro, 1968. p. 44 e 45.

44

forma, este crime não fazia jus a concessão de indulto, graça ou anistia, além do considerável aumento do prazo para o livramento condicional e progressão de regime. Na doutrina surgiram posicionamentos contrários a aplicação do tratamento mais severo, referente aos crimes hediondos, para o estupro e atentado violento ao pudor na modalidade simples. Segundo Nucci70, levava-se em consideração que o artigo 1º, V e VI da lei 8.072/90 mencionava “estupro(art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)” e “atentado violento ao pudor(art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único)”, entendendo, desta forma, que só seriam crimes hediondos se na modalidade qualificada. O Supremo Tribunal Federal chegou a aplicar esta interpretação, que foi muito criticada, por fazer vista grossa ao fato de o legislador ter exposto claramente que tanto era crime hediondo o previsto nos artigos 213 e 214 como também as suas formas qualificadas pelo resultado. Desta forma, este posicionamento não prevaleceu no Pretório Excelso, que além de passar a aplicar o tratamento de crime hediondo para os crimes do art. 213 e 214 na modalidade simples, também aplicou quando havia violência presumida. A lei 12.015/09 alterou a redação do art. 1º, V e VI da lei 8.072/90, tornando claro que tanto o estupro simples como o qualificado são crimes hediondos, assim como o estupro de vulnerável, que era o anterior “estupro com presunção de violência”. Uma questão tratada pelo Nucci71 é se a “justa ameaça” desconfiguraria o crime de estupro. O posicionamento dominante é que pouco importa a justiça da ameaça. Cita Hungria: O agente pode ter a faculdade ou mesmo o dever de ocasionar o mal, mas não pode prevalecer de uma ou outro para ter a posse sexual da vítima contra a vontade desta. Não se eximiria à acusação de estupro, por exemplo, o agente de polícia que anulasse a resistência da vítima sob ameaça de denunciar crime que saiba tenha ela praticado (art. 66, I, das Contravenções Penais).72

70

71 72

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral, parte especial. 8ª ed. Ed. Afiliada. São Paulo, 2012. p. 828-829. Ibid p. 830 Comentários ao Código Penal, v.8, p.122 apud ibid p. 831.

45

Apesar de grande parte da doutrina se posicionar desta forma, é preocupante que ainda hoje este tipo de questão seja levantada. Qual é o conceito de justiça em uma ameaça de denúncia criminal em troca de sexo? Por que sexo é tudo que uma mulher pode oferecer a um homem? Ora, um chantageador pediria dinheiro para não denunciar um homem. Mas quando se trata de vítima mulher, há ainda hoje uma objetificação erotizada do que seria uma mulher. Este tipo de ameaça à mulher, a que visa o ato sexual, é apenas um reflexo disso. Outra questão levantada é a medição do grau de resistência da vítima. Isto porque não basta a violência ou a ameaça contra a mulher, a vítima ainda tem que resistir. Ensinam Scarance Fernandes e Duek Marques: a tendência, contudo, é de não se exigir da ofendida a atitude de mártir, ou seja, de quem em defesa de sua honra deva arriscar sua própria vida, só consentindo no ato após ter-se esgotado toda sua capacidade de reação. É importante, em cada caso concreto, avaliar a superioridade de forças do agente, apta a configurar o constrangimento através da violência.73

Ora, novamente, a análise se volta a conduta da vítima e não do agressor. O que configura estupro é a violência ou grave ameaça para a realização do ato sexual, e não o fato da vítima ter resistido ou não. A questão da resistência é muito pessoal. Sob a situação de horror e violência como é a do estupro, cada pessoa reage de um jeito. E esta forma de reação não pode ser utilizada contra a vítima para menosprezar a violência sofrida. A falta de resistência não significa consentimento, já que o consentimento, no direito penal, tem de ser livre. O que se verifica através das construções doutrinárias analisadas acima é que, ainda no século XXI, há uma má vontade por parte das autoridades na análise e condenação do crime de estupro. A abordagem dos delegados de polícia é muitas vezes sugestiva de que o estupro se deu por culpa da vítima, seja pela roupa que vestia, pelo uso de bebidas alcóolicas ou flerte anterior. Este tipo de comportamento por parte das autoridades públicas foi alvo de protestos, como o realizado pela Marcha das vadias, 73

Estupro, enfoque vitimológico, p. 268 apud ibid p. 831.

46

movimento que será abordado no item 3.2. do capítulo 3. 2.2. O Assédio Sexual e o Assédio de Rua na Legislação Penal Brasileira

O crime de assédio sexual só apareceu no Código Penal Brasileiro em 2001, através da lei 10.224. Figura o art. 216-A do CP, que dispõe: Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena - detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

O projeto de lei apresentava ainda um parágrafo único, que foi vetado pelo congresso por estar em incompatibilidade com o art. 226, que previa para a mesma hipótese, um aumento de pena. O assédio sexual no Brasil ainda se limita a uma situação empregatícia, excluindo, portanto, o assédio de rua. É claro que o reconhecimento do assédio sexual no trabalho foi um passo importante na luta feminista, já que só passou a ter visibilidade através de sua criminalização. Porém, o assédio sexual tem muitas faces, sendo o ambiente de trabalho apenas um de seus cenários. Em 1995, o Brasil ratificou a convenção Belém do Pará, que tem como finalidade a erradicação de todos os tipos de violência contra a mulher. Engloba expressamente o assédio sexual no espaço público, ou seja, o assédio de rua, como espécie de violência de gênero. Porém, como será analisado no item 3.4 do capítulo 3, nenhuma medida de inibição desta prática foi adotada pelo poder público brasileiro até hoje. Não houve criação de qualquer lei ou mecanismo estatal para erradicar o assédio de rua, omissão esta que merece crítica. O assédio de rua é um fenômeno muito recorrente. Toda mulher, independente de sua cor ou classe social, provavelmente, já experienciou este tipo de assédio. É um fenômeno que atinge a totalidade das mulheres brasileiras, bastando sair a rua – e sendo mais dirigido às mulheres desacompanhadas. Será isto um reflexo das gerações passadas que viam

47

como honradas apenas as mulheres que saiam acompanhadas de seus parentes ou empregados? Será uma tentativa masculina de intimidar as mulheres que se recusam à dependência alheia e submissão? Bom, fora estas especulações, atualmente, é impossível manter as mulheres reclusas ao lar. Isto porque elas se iniciaram no mercado de trabalho e adquiriram assim sua independência econômica. Este foi um passo importante para enfraquecer o patriarcado. Porém, o medo continua sendo espalhado através do assédio sexual, seja no trabalho, seja na rua. De todos os lados há ameaças a uma mulher independente. A legislação brasileira já deu tratamento ao assédio sexual no ambiente de trabalho. Sua aplicação, porém, ainda é problemática, já que o temor de perder o emprego impede que a denúncia do crime seja realizada. Este tipo de criminalidade permanece na “malha negra”. O presente trabalho, entretanto, não visa problematizar o assédio sexual previsto no código penal, mas pensar o assédio de rua como uma forma de violência contra a mulher que também merece tratamento – jurídico e/ou social. Charles R. Lawrence III já se referia ao discurso racista como “assalto verbal” discorrendo que o efeito deste discurso na vítima é “como receber um tapa na cara”. A injúria é instantânea 74. Assim, é possível concluir que a injúria, também sob a forma do assédio de rua(discurso misógino), não é apenas um instrumento de violência, mas uma violência em si mesmo. Pensar o assédio de rua como uma prática que deve ser inibida pode parecer ir de encontro com o princípio da liberdade de expressão. Tudo se trata, entretanto, do meio de inibir esta prática. Apenas impedir que os homens externalizem seus pensamentos, não os impedirá de pensá-los e propagá-los entre suas famílias e amigos. A verdadeira questão aqui é muito mais mudar a forma de pensar a mulher do que impedir que homens externalizem suas idéias preconceituosas. Ora, os homens devem se 74

MACKINNON, Catharine A. Only Words. p. 4.

48

expressar, isto é uma garantia constitucional que assegura a essência do homem: o poder-falar. A dificuldade presente é que o discurso, embora devendo ser livre para todos, não é valorado da mesma maneira entre as redes sociais. Não existe um livre mercado de idéia em uma sociedade desigual. Não há realidade nas discussões entre grupos oprimidos e opressores. É certo que a liberdade de expressão é um tema delicado para se tratar em um país que viveu tantos anos em regime ditatorial. É comum o debate entre alunos de graduação em Direito de que é preciso defender o do discurso mais abominável para que os outros também estejam protegidos; ou de que uma ofensa através do discurso deve ser combatida com mais discurso e não com proibições; e citam, por exemplo, a resposta de Brizola à Rede Globo75. Devemos analisar, no entanto, que o poder do discurso não está dividido igualmente entre a população. Isto impede um real debate entre ofendido e agressor. Fora o fato de que certos discursos de ódio não são passíveis de uma discussão racional, por serem derivados de preconceitos irracionais. O poder daqueles que detém o discurso se torna cada vez mais exclusivo, violento e coercitivo, na medida em que a lei se propõe a protegê-los mais e mais76. A autora francesa, Elisabeth Badinter, simplifica a discussão afirmando que “quem só concebe as mulheres como vítimas a serem protegidas não imagina que elas podem dizer “não”, dar um par de bofetadas, em suma, se defender-se nos planos físico e moral” 77. Ora, não há o menor grau de realidade em solucionar o problema do assédio de rua com um par de bofetadas ou um simples “não”. Como já dito, a desigualdade de força no discurso de uma mulher frente a um homem é notável, se tornando em muitos casos fonte de agressão física. A pressão e o medo que uma mulher sente ao ser assediada em ruas 75

76 77

Disponível em Acessado pela última vez em 25 de abril de 2013. MACKINNON, Catharine A. Only Words. p. 72. BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 134-135.

49

desertas e escuras impede que ela reaja. Isto a faz sim uma vítima das circunstâncias, já que reagir ao assédio significa sofrer violência ainda maior. E mesmo em assédios de rua durante o dia, uma mulher que dá “um par de bofetadas” no agressor se arrisca a levar um soco ou um tapa ainda mais forte e violento de volta. É por isso que a mulher se resume a seguir seu caminho e ignorar ao assédio; não meramente pelo fato de ser concebida como vítima, mas por ser uma vítima. A liberdade de expressão não é um direito constitucional absoluto, e, portanto, deve estar em harmonia com o direito à igualdade e à dignidade da pessoa humana, por exemplo. Quando aquele é utilizado de modo a violar outros direitos fundamentais, deve haver uma ponderação de forma a analisar qual deve prevalecer em cada caso. Ora, a forma clássica de ponderação da liberdade de expressão aparece na questão do discurso de ódio. Cito MacKinnon: Este mútuo “lado-único” na lei torna virtualmente impossível criar na comunidade a compreensão de que há um relação, por exemplo, entre o uso do epiteto “preto”78 e o fato que um número desproporcional de crianças que vão para a cama com fome toda noite neste país são afro-americanas; ou o uso da palavra “buceta”e o fato de que a maioria das prostitutas são mulheres.79

Deve ser tolerada a propagação de um discurso que visa deslegitimar e ofender uma classe de indivíduos? Ter uma opinião racista, homofóbica, misógina é diferente de se utilizar da linguagem para violentar estes grupos de pessoas. Não seria o assédio de rua uma maneira de manter um discurso de ódio contra as mulheres, fomentando assim uma sociedade opressora e discriminadora de gênero? Enquanto o assédio de rua for visto como algo sem importância ou como um elogio à mulher, realmente não faz sentido pensar em maneiras de desfazê-lo. A questão aqui é dar ao assédio de rua sua real forma, a forma de violência que amedronta e intimida milhares de mulheres diariamente. 78

“Nigger” em inglês. Este epiteto é muito utilizado no filme Killer of Sheep (1977), que retrata um bairro negro de Los Angeles - EUA, na década de 70, em que a maioria da população vivia na pobreza – as poucas pessoas que possuíam uma situação financeira melhor eram os que entravam para o mundo da criminalidade. 79 MACKINNON, Catharine A. Only Words. p. 74.

50

Isto porque o assédio de rua serve de prenúncio ao estupro e transparece uma retificação do papel meramente sexual da mulher no patriarcado. É, em si mesmo, uma violência que quebra com a divisão metafísica de “mente” e “corpo”80, já que sendo o ser humano dotado de um corpo falante81, todas as afecções realizadas entre corpos o atinge em sua totalidade, e não em partes separadas (mente-corpo). Os efeitos da linguagem não se restringem à mente, sendo esta uma só e mesma coisa junto ao corpo. O poder de ofensa do assédio não depende apenas das palavras utilizados pelo agressor, mas também da maneira como ele as utiliza. Uma injúria só carrega o poder de ofender uma pessoa pelo fato de a própria pessoa ser constituída de linguagem82. Desde que alguém nasce, é determinado por nomes e adjetivos. O sujeito se constitui através desses nomes, pelos quais é chamado ao longo de sua vida, o que também o inicia em sua vida social. A pessoa se identifica como sujeito não apenas pelo modo como é reconhecido por outro sujeito, mas pelo fato de ser reconhecível83. Desta forma, ser injuriado é uma maneira de desconstituir um sujeito, de modificar a visão que este tem de si mesmo e que a sociedade tem dele. Aí está o problema de discursar sobre uma classe de pessoas minimizando sua forma de expressão. O assédio de rua só demonstra que as mulheres ainda são vistas como objetos sexuais pelos quais os homens não têm qualquer respeito ao se dirigirem com cantadas e propostas sexuais nas ruas. Desta forma, minimizar uma mulher à sua função sexual e de objeto de desejo masculino pode constituí-la como objeto que serve meramente a essa função. Não há aqui a esperança de trazer uma solução simples ao problema 80

A quebra da dicotomia corpo-alma, divisão esta muito utilizada pela igreja católica para legitimar o castigo corporal em prol da salvação da alma, não é recente. O filósofo holandês Baruch de Spinoza, no século XVII, já defendia em seus manuscritos que corpo e alma são uma única e mesma coisa, não havendo hierarquia entre um e outro. Sendo tudo feito da mesma substância, corpo e mente são apenas modos de expressão de um mesmo todo. Desta forma, não faz sentido diferenciar uma violência através do discurso ou de agressão física, já que ambas provocam danos na integridade do homem – no seu corpo e em sua mente. 81 BUTLER, Judith. Excitable Speech: A politics of the Performative. New York & London: Routledge, 1997. p. 11. 82 Ibid. p. 2. 83 Ibid. p. 5.

51

do assédio de rua. Este, além de ser ainda um problema pouco visível, é muito delicado em sua teoria. Uma lei desacompanhada de educação e conscientização é meramente um pedaço de papel. Visando sua eficácia, é preciso que a população compreenda e respeite o que está sendo proposto. Caso contrário funcionaria meramente em sua forma repressiva, sem realmente atingir seu objetivo de modificar a sociedade a longo prazo. Necessário seria, portanto, investir em projetos educacionais que demonstrassem o real significado do assédio à mulher, o atual papel da mulher na vida social e que incentivassem o respeito entre os sujeitos sociais. Criminalizar o assédio de rua talvez não seja a melhor solução. O direito penal é a última ratio e só deve se encarregar de matérias impassíveis de resolução pelos outros ramos do direito. O importante é tornar o assédio de rua visível como um problema, como uma situação que deve ser inibida em suas raízes. O ordenamento jurídico poderia servir a estes propósitos no intuito de reprimir o assédio já existente. Porém, não seria eficaz se funcionasse meramente como mecanismo de inibição e censura à transmissão do pensamento. É a construção deste pensamento que precisa ser modificada. Para isto, apenas com apoio das instituições estatais seria possível prevenir que os jovens se desenvolvam de maneira diferente, fugindo ao estereotipo de adultos discriminadores de gênero e inconscientes do papel da mulher e do respeito a ela devido.

Capítulo 3 – Repensando a violência de gênero no espaço público e suas possíveis soluções O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a ‘consciência’ das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade. Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder - mas de desvincular o poder das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade.84

Inicio o presente capítulo com a noção foucaultiana que deve permeá-lo até seu fim. Ou seja, a tentativa será pensar em uma nova política da verdade, em que o termo mulher não traga consigo todas as estigmatizações que geram sua subjugação e desvalorização. Tratando o termo “verdade” pelo conjunto de procedimentos regulados de produção: a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados 85. Assim, repensar a violência contra a mulher no espaço público vai além de meramente enxergar e criticar este tipo de violência como um modelo patriarcal e misógino que persiste fortemente até os dias de hoje. A tentativa aqui será a de buscar uma nova ordem de utilização dos mecanismos de poder enraizados socialmente. Ao digitar a palavra estupro no google, o número de notícias midiáticas sobre o tema se atualiza de minuto a minuto. Somente no início desta semana, 05/05/2013, pelo menos dois casos considerados relevantes foram divulgados pela mídia: 1) o do pastor Marcos Pereira que está sendo 84

85

Foucault, Michel. Microfísica do poder. p. 14. Ibid. p. 14.

53

investigado por pelo menos 20 estupros em igreja evangélica no Rio de Janeiro, entre outros crimes86; 2) o do adolescente que, além de ter estuprado uma moça no ônibus, debochou dela durante o reconhecimento na delegacia87. O estupro em ônibus, inclusive, está se tornando uma prática comum na cidade do Rio, já que o caso deste adolescente só veio somar-se a um número já preocupante. Quanto ao assédio de rua, sua frequência dispensa comentários, já que é de notório saber público a submissão das mulheres a este tipo de situação. O grande problema do assédio de rua é exatamente o fato de ele ser tolerado como algo natural a que a mulher tem que passar diariamente. Chega a ser uma prática ridicularizada pelos próprios homens, que defendem que a mulher deveria ficar lisonjeada com tantos elogios diários. Lamentável que esses “elogios” só digam respeito aos dotes físicos e sexuais das mulheres. Apesar do que muitos tentam afirmar, as mulheres são mais do que meros objetos de cunho sexual. As problematizações levantadas ao longo dos capítulos anteriores são relevantes exatamente por tratarem de alguns dos principais mecanismos que mantém o patriarcado através da violência de gênero. Esta, seja sob a forma do estupro ou do assédio de rua, é um importante instrumento de fomentação do papel reservado à mulher no patriarcado, o de objeto de satisfação sexual masculina. Repensar este papel é repensar a forma como a mulher é vista socialmente e as áreas de sua atuação na sociedade. Algumas mudanças são visíveis, conforme analisamos anteriormente; como o crescimento da participação feminina na política e economia mundial. Entretanto, este avanço ainda é lento, tendo números ainda ínfimos, se compararmos com a participação masculina nestas mesmas áreas. A principal função da mulher ainda é vista como de cunho sexual e reprodutivo. Esta luta por direitos iguais e liberdade de escolha, sobre 86

Disponível em Acessado pela última vez em 8 de maio de 2013. 87 Disponível em Acessado pela última vez em 8 de maio de 2013.

54

questões como o aborto, por exemplo, ainda é um problema que vai muito além dos direitos civis concedidos em abstrato às mulheres. Destruir os mecanismos que mantém o patriarcado seria o primeiro passo nesta luta contra a violência de gênero. O segundo passo, que não será tratado com profundidade no presente trabalho, seria a elaboração de um livre mercado de ideias e instrumentos igualitários de discursos de poder. Acredita-se que com a conjugação destas duas ações afirmativas, o modelo patriarcal estaria fadado a um fim próximo. Este capítulo tratará de meios possíveis de derrubar alguns dos principais mecanismos de manutenção da violência de gênero no espaço público: a) A objetificação da mulher, b) A culpabilização da vítima de estupro pelo Poder Público, c) A inutilização de instrumentos jurídicos existentes nos casos de assédio de rua. Por fim, tratar-se-á dos modos de reconstrução do conceito “mulher”, como saída à opressão e submissão: d) A Convenção Belém do Pará e suas implicações na reconstrução do feminino. 3.1. A objetificação da mulher Olhe, você pode gritar para os seus irmãos: vejam em quem estou enfiando minha vara: numa mulher que é manequim de classe! Tenho de graça aquilo por que outros pagam mais de trezentos dólares.88

Este pequeno trecho de literatura estadunidense exemplifica perfeitamente a prática machista de reduzir a mulher a mais um objeto de consumo masculino. O fato de os homens conseguirem, através do dinheiro, manter relações sexuais com uma mulher, independentemente de a vontade sexual ser mútua entre ambos, subverteu a prática sexual em um simples jogo financeiro, que existe não só na prostituição (onde é transparente), mas em muitos modelos de relacionamentos modernos. Se analisarmos, ainda, o número de mulheres em profissões que se 88

ROTH, Philip. O complexo de Portnoy. Ed. Circulo do Livro. São Paulo: 1980. p.163.

55

utilizam de sua sexualidade com fins lucrativos, como a prostituição e a pornografia, a gama é tão esmagadora em relação aos homens, que gera, em quem consome e em quem não consome este tipo de serviço, um modo de pensar patriarcalista muito presente. Senão vejamos, não é preciso ler Marx para entender que o dinheiro é a chave da vida em sociedade no sistema capitalista, sendo o meio de aquisição de coisas e status sociais. Mesmo antes do sistema capitalista se instalar oficialmente, o fato de o homem ser o detentor dos meios de subsistência da família dava a ele um poder de controle sobre a mulher e seus filhos. Este controle aumenta consideravelmente conforme o valor do dinheiro aumenta. Ainda hoje, conforme já analisado anteriormente, a renda mundial está concentrada majoritariamente em mãos masculinas. Ora, faz-se necessário relembrar que as mulheres só se inseriram no mercado de trabalho há pouco mais de 30 anos. As mudanças são lentas e o que hoje pode parecer muito comum, as mulheres almejarem um emprego fora de casa, era impensável há algumas décadas. Esta situação, sustentada por tantos anos pelo patriarcado, garantia ao chefe de família total controle sobre sua mulher. Afinal, como se rebelar contra quem garante o seu sustento, se a você é vedado o trabalho? As mulheres do século XXI, apesar de trabalharem, ainda recebem menos que os homens, sofrem preconceito em entrevistas de emprego, são diariamente subvertidas em mais um objeto de consumo do homem com dinheiro. Esta objetificação e a consequente comercialização das mulheres é um fator essencial para compreensão da violência de gênero. Através da redução da mulher a um objeto que pertence a um proprietário, o tratamento dado a ela se reduz ao tratamento dado a uma coisa, que está sujeita a ser descartada quando considerada inútil ou desagradável. Retira-se da mulher a condição de ser humano, sujeito a variação de emoções e desejos. O desejo do proprietário é o único que importa numa relação em que ele contribui com o dinheiro. Como consequência, cria-se a fantasia do direito de propriedade

56

sobre a mulher, sem limites. Nestes termos, a violência aparece como ação acima do bem e do mal por parte do proprietário. Resolver o problema da violência de gênero tendo a mulher a imagem social de objeto, enquanto em essência é ser humano, é pesaroso. Enquanto a objetificação da mulher, já tão enraizada em nossa sociedade, não for desconstruída, a violência não se erradicará. Isto porque este tipo de violência é elemento de fomentação e naturalização do papel feminino. A mulher é suscetível ao estupro, por ser objeto. Pois enquanto ser humano, ela só seria suscetível a relações sexuais desejadas. O adestramento dos gêneros impede a humanização da mulher, enquanto transmite às crianças que as mulheres devem se submeter a uma servidão voluntária, em prol de homens que as vêem como objetos sexuais. A construção do gênero precisa ser feita de outro modo. O sistema patriarcal só se mantém com mulheres que acreditam ser propriedade masculina. Enxergar a real dimensão do que é ser mulher é essencial para lutar contra o sistema. A tomada de consciência da não limitação do papel feminino e a garantia de um espaço público com mecanismos de efetivação dos direitos da mulher, desestruturaria o patriarcalismo. Estas saídas, porém, não têm uma forma certa e única de serem efetivadas. Só não se deve simplificar o problema ou sua solução. A mera restrição da fala machista, por exemplo, não parece ser um caminho eficaz. Como dito por Foucault, definir os efeitos do poder pela repressão é, além da negativa de sua natureza-redeprodutiva, dar ao poder definição meramente jurídica, identificando o poder a uma lei que diz “não”. O fundamental é a força que mantém a proibição através da produção de coisas, indução do prazer, formação do saber e produção do discurso89. Desta forma, censurar a fala do sujeito machista além de não permitir uma desconstrução de seu discurso,

possibilita a

criação de um tabu. Enquanto o poder se concentrar nas mãos de um grupo, o discurso 89

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. p. 8.

57

entre a população não será equilibrado. Pensar em formas de reorganizar essa divisão talvez seja a maneira mais eficaz de permitir uma mudança no debate. Esta mudança seria a possibilidade de desconstrução da figura “mulher” e de sua conseqüente redefinição em outros termos. 3.2. A culpabilização da vítima de estupro pelo Poder Público

O problema da culpabilização da vítima de estupro é um consequência de um engendramento de fomentação do machismo. Imaginemos: a vítima, ao se dirigir à delegacia para relatar um fato tão delicado como uma agressão a sua dignidade sexual, sofre ainda preconceito ao ser questionada quanto ao seu vestuário, escolha do local, horário etc. Ora, o espaço público, em qualquer horário, por mais ermo que seja, não pode servir como justificativa para a prática de crimes. Muito menos a escolha feminina de qual roupa deseja vestir. Independente do motivo, esta discricionariedade quanto ao vestuário cabe tão somente a mulher e não diz respeito a qualquer grau de julgamento das autoridade públicas. Este tipo de decisões pessoais não pode servir para justificar a ação do estuprador. As mulheres não podem ser culpabilizadas pelo fato de um homem as violentar. Isto, por mais ridículo que possa parecer, acontece com frequência em delegacias de polícia. O tom de voz dos delegados, suas perguntas impertinentes, todo este mecanismo, que não deixa de ser a longa manus do Estado, serve como mecanismo de desrespeito e humilhação à figura feminina. Fica claro o reforço da idéia de que a mulher é vista como propriedade, objeto, ser desprovido de direitos. Ao invés de receber tratamento compatível com o art. 5º, caput, da Constituição Federal, sofre deboche pelo agente do Estado que deveria resguardar seus direitos, ao relatar a prática de um crime contra sua dignidade sexual. A ridicularização de situações como a do estupro gera um sentimento

58

de impunidade e insegurança jurídica por parte das mulheres, que, não têm nos poderes executivo e judicial a garantia seus direitos fundamentais. O fato de o estupro ser criminalizado no Brasil não é suficiente para que este tipo de violência seja levado a sério. O tratamento do estupro não deve se esgotar na esfera do legislativo. O poder de polícia do Estado deve fazer sua parte na efetuação imparcial dos inquéritos criminais, assim como o poder judiciário, na seriedade com a qual deve dirigir o processamento das ações. Os casos de vítimas de estupro que deixam de levar o caso ao poder público com medo de serem culpabilizadas é grande não só no Brasil. A estadunidense Jaclyn Friedman foi estuprada em uma festa, quando ainda cursava a universidade. Declarou que tanta gente dizia que ela seria culpabilizada, por estar na festa, por estar bebendo, por se vestir como ela se vista, que desistiu de levar o caso ao judiciário. 90 O caso dela é muito recorrente entre vítimas de estupro; mas poucas reagem como ela, que posteriormente se tornou ativista feminina, liderando uma das primeiras Marchas das Vadias em Boston. Seu discurso foi muito aplaudido pelas feministas envolvidas no movimento: Porque nós vivemos um mundo de mentiras, sempre ouviremos que devemos ser obedientes, discretas, disponíveis e nunca agressivas – se o formos, viramos putas, e essa palavra é usada para nos pôr na linha. O movimento SlutWalk surgiu no Canadá, como um protesto feminista frente à orientação de um policial: “Se a mulher não se vestir como uma vadia, reduz-se o risco de ela sofrer um estupro”.
 Esta frase pronunciada por uma autoridade pública canadense repercutiu em movimentos de revolta em vários países, inclusive no Brasil, que só no Rio de Janeiro já teve duas edições da Marcha das Vadias. A Marcha luta contra a “cultura de estupro” que a sociedade patriarcal quer naturalizar. Considerar o estupro um crime menor ou provocado pela vítima, é uma forma de ridicularizar a dor e o trauma sofridos por milhares de mulheres que são diariamente violentadas em sua 90

Acessado pela última vez 14/05/2013 em

59

dignidade sexual. Os comentários de pessoas públicas como Paulo Maluf, que se pronunciou "tá bom, tá com vontade sexual: estupra, mas não mata" 91 , de Marta Suplicy reproduzindo parte do ditado popular “se o estupro é inevitável, relaxa e goza”92, ou do comediante Rafinha Bastos que defende a idéia de que mulheres feias deveriam agradecer pelo estupro 93, traduzem o raciocínio. A Marcha das Vadias é o movimento mundial mais significativo no combate à culpabilização das vítimas de estupro pelo poder público. Além de ser uma forma de agência do vocábulo “puta”, numa tentativa de resignificar esta palavra tão temida pelas mulheres. Na Marcha todas se autodenominam “putas”, já que ser puta é ser livre de uma parcela da opressão machista, é uma possibilidade de se autoconstruir sem as limitações impostas ao gênero feminino (castidade, fragilidade, docilidade). A organização e conscientização das mulheres quanto ao seu papel e suas escolhas é um dos principais pleitos do movimento, que é uma forma muito significativa de combater o sistema machista em que vivemos. 3.3. A inutilização de instrumentos jurídicos existentes nos casos de assédio de rua

O assédio de rua ainda é tratado como piada, já que além de não ser pensado como um problema, é considerado um elogio do qual a mulher deveria se sentir agradecida. Os casos de cantadas grosseiras e com entonação sexual são corriqueiros, como podemos observar na página do facebook “Cantada de rua: conte o seu caso” em que mulheres anonimamente narram a infelicidade que é sofrer este tipo de assédio. Cito 91

92

93

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=VVY1ksZw-XE Acessado pela última vez em 14 de maio de 2013. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=MQXoJCDow2Q Acessado pela última vez em 14 de maio de 2013. Disponível em Acessado pela última vez em 14 de maio de 2013.

60

alguns casos: 561- Eu sou gorda, sim, eu sei disso, e por ter muita bunda eu tinha o costume mesmo no verão de usar casaco ou uma camisa comprida que escondesse os braços e a bunda. Neura minha. Mas ano passado fez um calor demoníaco na minha cidade, e esse dia eu resolvi andar na rua sem essa camisa bendita. Era quase fim de tarde e fui com minha amiga na farmácia, só que na volta já havia escurecido. Íamos andando pra casa dela, era uns 10 minutos e o bairro é movimentado. Fomos andando pela calçada e passava um cara andando de roller atrás da gente. Até que ele gritou: - 'Que moreninha show ein, parece uma boneca que saiu da caixa'. (Se referindo a minha amiga) Apressamos o passo e ele de volta : - 'Que rabo ein? Se rebolar na minha pica fica maior ainda'. (Se referindo a mim) Apressamos mais ainda o passo e ignoramos. Mas eu senti, obviamente, nojo repulsa e vergonha. Fora a raiva de não ter colocado uma bendita camisa por cima. Não foi a primeira vez que isso aconteceu, e todas as vezes eu sinto a mesma coisa, repulsa, raiva,etc. (…) 551- Hoje quando estava no ponto de ônibus, em cerca de dez minutos foram 3 buzinadas de caminhão, um assobio de um pedestre e um bom dia daqueles asquerosos, que a gente bem conhece... Mas a protagonista da história de hoje não sou eu, e sim minha roupa: blusa de manga comprida e saia acinturada e abaixo do joelho, "acima de qualquer suspeita"... Qual seria a justificativa agora??? Minha roupa fechada demais instigou a curiosidade dos meus assediadores??? Apenas escrevo isso pra afirmar mais uma vez, não é a nossa roupa, não somos nós!!! São eles, é o machismo que faz isso! (…) 549 - Hoje eu tinha uma prova muito importante às 8hs da manhã. Virei a madrugada toda estudando, literalmente não dormi. Fui com uma amiga e meu namorado tomar café da manhã em um quiosque próximo à entrada da faculdade. Estava acabada, sem dormir, stressada com roupa de praticamente pijama, cabelo despenteado - aquela aparência que uma pessoa virada de um dia pro outro à base de café tem - ou seja, nada atraente. Quando nos aproximávamos do quiosque vi que um homem que comia em uma das mesinhas na calçada me olhava com aquele olhar nojento, escroto que nos intimida e me faz pensar que seria bom cair uma burca dos céus pra me livrar de servir de visão para aquele ser. Não hesitei. Esperei me aproximar dele e perguntei: -Algum problema, moço? E ele de cabeça baixa: -Não, não, moça -Ah bom, pensei que estivesse cagada! Nem olhei pra ver a reação dele, entrei no quiosque e ignorei. Já tinha preocupações suficientes naquele momento.O que me incomodou foi a reação das outras pessoas, me olhando como se eu fosse de outro planeta. Um cara me olhar daquele jeito é aceitável, mas eu reagir da forma que desejo não é?(...) 548 - Oi, queria contar um caso, dentre vários que acontecem e eu me sinto do mesmo jeito, mas nesse específico eu fiquei com muito medo! Não me foi dita uma palavra, foi dentro de uma estação de metrô, eu estava indo pro trabalho quando um cara parou do meu lado, me olhou de cima a baixo, deu uma piscada e mordeu o lábio. Parece bobagem falando assim, coisa a toa, mas eu vi um olhar ameaçador no cara, parecia um maníaco, fiquei morrendo de medo de ele me seguir e fazer alguma coisa. Nesse momento eu vi o metrô chegando em outra plataforma, fui correndo e entrei. Tive que descer na estação seguinte pra seguir meu caminho pro trabalho. Resolvi contar isso porque perto daquele dia eu tinha ouvido de alguém que achava que cantada era elogio, que a mulher deveria se sentir super gostosa e desejada. Não. Me senti ameaçada, amedrontada, apavorada! Estou compartilhando pra ser mais uma voz a dizer que cantada não é elogio!94

94

Disponível em Acessado em 8 de maio de 2013.

61

Estes quatro casos trazem situações diversas de assédio de rua. A primeira moça, ao narrar que pelo fato de ter nádegas grandes se encobre com roupas largas, mostra como a sociedade machista compele a mulher a se sentir culpada pelo seu próprio corpo, tendo que escondê-lo para não dar vazão ao assédio. Ora, como alguém pode ser culpada por algo natural e sobre o qual não possui qualquer gerência de escolha? Não deveria ser a mulher o sujeito a se esconder, mas o homem o indivíduo a respeitar a individualidade de cada um se abstendo de estigmatizações eróticas. Um homem que só enxerga um “rabo” ao ver uma mulher passar e que faz questão de mostrar isto a esta mulher, é um homem machista e misógino que corrobora para que o patriarcado nunca chegue ao fim. É através destas repetições que mulheres como esta se oprimem cada dia mais e continuam se enxergando como um objeto sexual na visão alheia. O caso seguinte traz uma moça vestida de forma conservadora e que ainda assim foi molestada na rua. Neste assédio não foi proferida uma frase literalmente erótica, mas um simples “bom dia” combinado com um tom sexual. Isto já basta para oprimir. A linguagem não se limita às palavras, como já visto. Tudo é composto de linguagem, sendo a expressão corporal uma forma bem incisiva dela. Novamente, bate-se na tecla de que a roupa não é um fator determinante para o assédio. O problema não está na maneira da mulher se vestir, mas na padronização da imagem da mulher como um ser limitado a função sexual. Os homens que costumam assediar mulheres em ruas e locais públicos em geral com cantadas ou qualquer tipo de linguagem de conotação erótica, não enxergam mulheres com rosto e identidade, mas objetos para o saciamento sexual deles. Esta é a visão que precisa ser repensada, não o vestuário feminino. O caso 549 traz um aspecto muito interessante quanto a forma de lidar com o assédio de rua. A moça ao se sentir assediada através da maneira de olhar do assediador se dirigiu a ele questionando se havia algo

62

errado com ela. Ela se utilizou da ironia para mostrar ao assediador o seu incômodo com a situação. É importante observar, entretanto, que nem sempre as mulheres se sentem na liberdade deste tipo de questionamento. Esta moça estava acompanhada de sua amiga e do namorado dela; estar sozinha numa situação de assédio gera maior temor da reação do assediador, e acaba inibindo a vítima. Outro fator importante mencionado pela vítima foi a surpresa das pessoas que estavam no local do assédio quanto a atitude dela. Realmente, as mulheres costumam ignorar e reprimir sua repulsa por este tipo de situação. A reação ao assédio deveria sim ser naturalizada, mas isto só acontecerá quando as mulheres não sentirem medo de se expressar e sofrerem reprimenda ainda maior. O último caso traz um exemplo muito comum de assédio no transporte público. O assediador não se expressou verbalmente, mas através do olhar e gestos corporais. É importante reprisar que isto também é assédio de rua, já que é forma direta e intencional de intimidação da mulher e acontece em um espaço público. No caso, a mulher se sentiu tão intimidada que mudou o trajeto. Este é um claro exemplo de como o assédio de rua muitas vezes serve como prenúncio a uma violência sexual física. Frente à afirmação diária de que a violência de gênero em espaços públicos longe de estar reduzindo-se, está cada vez mais frequente e naturalizada, faz-se necessário apontar alguns instrumentos previstos no ordenamento jurídico brasileiro que, apesar de se adequarem ao assédio de rua, nunca foram usados pelas mulheres para tratar o assunto. Não porque as mulheres não se sintam agredidas por este tipo de violência, mas pelo sistema machista que corrobora e naturaliza este tipo de agressão à dignidade da mulher. No Código Penal vigente em nosso ordenamento jurídico há previsão dos “Crimes contra Honra” nos arts. 138 a 145. O que se pretende questionar aqui é: sendo o assédio de rua um mecanismo de possível ofensa

63

à honra da mulher, por que ele nunca foi enquadrado como crime de injúria, por exemplo? Ora, o tipo penal de injúria é “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”. A honra é considerada um bem constitucionalmente inviolável, vide o art. 5º, X, da Constituição Federal. A ofensa à honra é algo extremamente subjetivo, podendo atingir ou não as mesmas pessoas dependendo de cada situação. Devido a esta relativização da honra de pessoa para pessoa, o sentimento de um possível ataque a ela depende muito da sensibilidade e grau de formação do ofendido. O estudo penal sobre a honra se divide em seu caráter objetivo e subjetivo. O primeiro é o “juízo que os demais formam de nossa personalidade e através do qual a valoram”95. O subjetivo refere-se à imagem que a pessoa tem de si mesma, dos valores que ela se auto atribui e que são maculados pelo comportamento ofensivo do agente 96. Emiliano Borja Jiménez esclarece o tema: A pessoa humana se caracteriza tanto por sua individualidade como por sua sociabilidade. Como ente social, o ser humano se integra na comunidade, se relaciona com seus semelhantes na família, na escola, no trabalho, nos centros de lazer etc. Essa abertura do sujeito até os demais leva acompanhado não somente seu reconhecimento pessoal pelo grupo, senão também que cada um dos indivíduos fique identificado por nosso trabalho, nossa capacidade, nossa bondade ou maldade, por nossa cultura, etc. Quer dizer, junto a nossa imagem física, que constitui o primeiro dado de nossa identidade que oferecemos à comunidade, se encontra nossa imagem social, que vem constituída por um conjunto de valorações sobre distintos aspectos de nossa personalidade e nosso comportamento. Quanto mais positiva seja essa imagem social, maiores condições terá o indivíduo para desenvolver livremente sua personalidade e ser feliz. E, vice-versa, quanto mais negativa seja dita imagem, maiores problemas encontrará o sujeito para levar a cabo sua vida em comum com seus semelhantes, e possivelmente seja mais desgraçado.97

Resta claro que há a possibilidade de incidência do assédio de rua em alguma modalidade de crimes contra a honra, principalmente no tipo da injúria, que não exige a imputação de um crime à vítima, nem de uma ação concreta relacionada a ela. 95 96 97

FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de derecho penal, v. IV, p. 398. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial, ii. p. 396. Jiménez (apud GRECO, 2008, p. 415).

64

Entretanto, apesar do número de mulheres que se sentem violadas diariamente e deixam seus relatos em blogs e páginas do facebook, não há na jurisprudência brasileira um caso de enquadramento do assédio de rua em algum crime contra a honra. Os possíveis motivos são muitos. A dificuldade de levantamento dos dados do assediador, a ridicularização por parte dos delegados e membros do Ministério Público, a naturalização do assédio de rua como algo que não deve ser levado a sério, etc. Mas o que este fato mais evidencia é a estrutura machista e patriarcal do Estado que dificulta e inibe a resolução de conflitos quando a vítima é uma mulher. Ora, ainda há grande tolerância por parte das autoridades públicas, conforme demonstrado anteriormente, no processamento dos casos de estupro. Em relação ao assédio de rua isto fica muito evidente, primeiramente, por não ser um tema problematizado. Em decorrência disto, por inibir as vítimas de se utilizar de mecanismos jurídicos que poderiam tratar a questão. É importante atentar que esta inibição não é óbvia e direta. Ela acontece através de pequenas ligações de poder na sociedade, com suas instituições e laços sociais sempre evidenciando a irrelevância do assédio de rua, seu caráter lisonjeiro, etc. Enquanto isso, as mulheres continuam sendo assediadas diariamente. Elas se ofendem ao receber

a constante

mensagem de que são vistas como meros objetos sexuais. Isto é fator relevante para a desconstrução de um trabalho individual de personalidade e autoimagem. Mas parece que este retrocesso na vida de milhares de mulheres não é relevante o suficiente para que o assunto seja problematizado devidamente. Realmente, a criminalização da exposição do pensamento é algo que não deveria existir. Como já apontado, a solução eficaz seria uma reeducação, que a longo prazo surtisse efeito no modo de pensar dos homens e mulheres. Porém, o instituto dos crimes contra honra existe e ainda é utilizado para casos de brigas de família e relações interpessoais.

65

O problema não é a inexistência de meios proibitivos aos danos à honra, mas sua existência e inaplicação aos casos de assédio de rua. O que só evidencia, mais uma vez, a estrutura patriarcal em que vivemos. Tratar o assédio de rua com os remédios jurídicos existentes seria uma forma de minimizar o sistema patriarcal e garantir um meio de externalizar os danos deste tipo de violência contra a honra da mulher brasileira. 3.4. A Convenção Belém do Pará e suas implicações na reconstrução do feminino

Adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) no dia 09 de junho de 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Convenção de Belém do Pará, foi ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 199598. Dezoito anos se passaram desde de sua ratificação e a violência de gênero aumenta cada dia mais sem qualquer erradicação por parte do poder público. A pesquisa “A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado” da Fundação Perseu Abramo, do ano 2001, estimou que 2,1 milhões de mulheres são espancadas por ano no País, 175 mil por mês, 5,8 mil por dia, 243 por hora, 4 por minuto, uma a cada 15 segundos 99. Muito além da agressão física, o número de crimes de homicídio contra mulheres

só vêm aumentando no país, que nos últimos 30 anos

(1980-2010) teve o assombroso número de 92 mil mulheres assassinadas, 43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465 por ano, representando aumento de 230%100. Fica claro que a violência de gênero longe de se restringir ao estupro e ao assédio de rua, atinge larga escala criminal. Apesar da ratificação da Convenção Belém do Pará pelo Brasil em 98

99

100

Disponível em Acessado em 18 de maio de 2013. Disponível em Acessado em 18 de maio de 2013. Disponível em Acessado em 18 de maio de 2013.

66

1995, uma pesquisa101 realizada com dados recolhidos entre 2006 e 2010, aponta o Brasil como 7º lugar, dentre os 84 países analisados, em número de homicídios de mulheres, tendo 4,4 homicídios em cada 110 mil mulheres. A tabela102 abaixo aponta que a violência sexual em vias públicas só é inferior à residencial.

Uma porcentagem de 59% das mulheres entrevistadas não confiam na proteção jurídica e policial nos casos de violência doméstica, sendo 52% de opinião que juízes e policiais desqualificam o problema103. A tolerância das autoridades públicas quanto a questões de violência de gênero é em si uma violência de gênero104, devendo ser punida pelo Estado. Este descaso público engloba situações já narradas, como a culpabilização da vítima, falta de celeridade processual, etc. Resta, portanto, o dever positivo de 101

Disponível em Acessado pela última vez em 18 de maio de 2013. 102 Tabela disponível em: 103 Dados retirados da Pesquisa Percepções sobre a Violência Doméstica contra a Mulher no Brasil, realizada pelo Instituto Avon / Ipsos entre 31 de janeiro a 10 de fevereiro de 2011, em que 1,8 mil pessoas de cinco regiões brasileiras foram entrevistadas. Trata-se do segundo estudo realizado pelo Instituto Avon. 104 Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção Belém do Pará), Art. 2: Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

67

investigar e julgar com seriedade e imparcialidade os casos de violência de gênero. Frente ao avanço da violência contra a mulher, uma conclusão que se pode chegar é que o conceito “mulher” precisa ser desconstruído. A razão desta necessidade é devido ao fato de o vocábulo “mulher” carregar um teor de opressão, vitimização e submissão tão fortes que impedem que a partir dele algo seja renovado. Desconstruir esta imagem da mulher frágil, dócil, coquete, submissa e vítima é essencial para garantir um novo começo a todas as mulheres brasileiras. Ora, se somos todos construídos através do discurso, com ele podemos também resignificar e desconstruir. A mulher pode se entender de forma diferente, e garantir assim uma maior atuação em todas as esferas sociais. O processo de domesticação das crianças deve mudar de forma a permitir que as mulheres possam se enxergar de maneira igual e livre em relação aos homens. Esta mudança seria uma forma de efetivar o artigo 6, 'b', da Convenção Belém do Pará105 e deveria ser incentivada através de mecanismos estatais. É claro que muitas mulheres conseguiram individualmente desconstruir esta imagem do feminino fraco, sensível, coquete e objetificado. Entretanto, este processo de desconstrução seria mais eficaz e construtivo se fosse realizado de modo conjunto, permitindo a elaboração de um discurso entre as próprias mulheres. O Estado não pode se omitir deste processo. A partir do momento que um dos liames da nossa Constituição Federal é a igualdade e a liberdade106, o poder estatal deve unir suas forças para alcançar tais objetivos impostos pela Carta Magna. Além disto, resta o dever estatal de efetivar a Convenção Belém do Pará, já adotada pelo Brasil em seu direito 105

106

Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção Belém do Pará), Art. 6: O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros: b) o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação. Constituição Federal, art. 5º, caput: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade (...)

68

interno, e sem grandes avanços na questão feminista. É importante ressaltar que com o advento da Emenda Constitucional 45 de 2004 a Carta Magna em seu art. 5º, §3º, CRFB, passou a garantir aos tratados internacionais de Direitos Humanos um processo de aprovação idêntico ao das emendas constitucionais. Ou seja, sua internalização terá status de norma constitucional. Se aplicarmos o princípio tempus regit actus, os tratados de direitos humanos incorporados antes da EC45 também teriam o mesmo status. Daí se extrai a importância que a Convenção Belém do Pará tem em nosso ordenamento jurídico. A Convenção impõe a erradicação da violência contra a mulher, englobando neste conceito, conforme o art. 2, 'b', da Convenção, toda violência física, sexual e psicológica: ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local.

O assédio de rua se enquadra perfeitamente dentro do conceito de violência de gênero que o Estado deve combater, já que a Convenção, diferentemente da legislação penal interna, não restringe o assédio sexual ao ambiente de trabalho ou escolar, mas a qualquer local em que ele aconteça. Ainda sobre o assédio de rua é importante ressaltar a possibilidade de encaminhar petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, já que não é necessário o esgotamento dos recursos internos quando não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alega terem sido violados, vide art. 46, § 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O art. 7 da Convenção 107 impõe uma série de obrigações de fazer aos 107

Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: a)abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação; b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como

69

Estados que adotaram a Convenção. O Estado Brasileiro vem sendo omisso frente à Convenção, deixando de tomar quaisquer medidas frente ao assédio de rua108, que nem sequer é tratado por nenhuma esfera dos poderes da federação e também em relação ao estupro, que, além de ser ridicularizado por parte das autoridades públicas, ainda possui taxas elevadas para um Estado que se diz pró-igualdade e libertário. Enfim, só é possível construir algo novo desconstruindo o velho. Para que isto seja possível, é preciso não só que a mulher se questione, mas que o espaço público ofereça instrumentos de mudança social e política. Alguns exemplos de intervenção estatal em prol da igualdade de gênero seriam: a criação de mecanismos que incentivem uma nova construção do gênero feminino nos institutos de educação de ensino fundamental e médio, a inserção do tema nos meios de mídia nacional, a promoção de atividades reflexivas sobre a importância da luta de gênero no país e no mundo, etc. Frete a passividade com que o Estado Brasileiro vem tratando a questão da discriminação de gênero presente na Convenção Belém do Pará, um mecanismo adequado para pressionar a tomada de medidas é: a) Enviar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (só a Comissão e os Estados-Partes podem enviar casos à Corte, desde que o Estado denunciado reconheça a sua competência jurisdicional); b) Elaborar novo relatório dando novo prazo para o Estado. Se ainda assim o Estado não cumpre com as recomendações, a Comissão publicará o relatório final, o adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis; d ) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade; e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher; f) estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos; g) estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher sujeitada a violência tenha efetivo acesso a restituição, reparação do dano e outros meios de compensação justos e eficazes; h) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência desta Convenção. 108

Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Convenção Belém do Pará), Art. 6: O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros: a) o direito da mulher a ser livre de todas as formas de discriminação;

70

qual será́ incluído no seu Relatório Anual para a Assembleia Geral da OEA.109 Fica claro que há mecanismos de cobrança de uma postura positiva do Estado Brasileiro em relação à Convenção Belém do Pará. Não devendo, portanto, as vítimas se manterem caladas ante a violência sofrida, escondendo o seu caso. O espelhamento da cultura machista e patriarcal pelos espaços de poder, como a polícia e o poder judiciário, deve ser punido. Não mais deve a mulher temer se expor, por vergonha, por culpa, por sentir-se responsável pela violência sofrida. O espaço público deve ser um local de segurança e de busca de proteção por parte dos cidadãos. A impunidade dos agressores, a falta ou insuficiência de leis e políticas públicas devem ser erradicadas, de forma a permitir um tratamento humano das vítimas de gênero. Um segundo ponto, que deve necessariamente ser abordado, é a possibilidade real de desconstrução do feminino em nossa sociedade. A Convenção Belém do Pará é um marco no que diz respeito ao gênero e à tentativa de igualdade e respeito entre homens e mulheres. Porém, é preciso compreender a necessidade de uma base material para a aplicabilidade desses parâmetros de forma eficaz. Ora, primeiramente, em uma visão sistemática da sociedade podemos concluir que a criação estatal de mecanismos de ódio entre os cidadãos de uma população serve aos interesses oriundos da demofobia 110 governamental. O parágrafo único do artigo 1º de nossa Constituição Federal apresenta o seguinte texto: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Os sistemas políticos sempre buscaram limitar o poder do povo, ao invés de fortalecê-lo. Como exemplo, podemos observar os conflitos religiosos, o racismo e o machismo como ferramentas de ruptura e ódio entre as pessoas, o que possibilita um controle mais efetivo da 109 110

Art. 49 a 51 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos Demofobia, do grego antigo δῆμος – demos: 'povo' e ϕόβος – fóbos: 'temor'.

71

população. Se a força está na união, o povo só poderia exercer de forma mais efetiva seu poder enquanto conjunto constituinte. Spinoza, já no século XVII, criou a teoria de que um indivíduo em conformidade com outro só tem benefícios a usufruir. Isto, explicado de modo simplificado, se deve ao conatus, a essência de todos os seres, ser o esforço de perseveração em seu próprio ser. Por possuirem idênticas naturezas111, conclui-se que um ser humano nunca encontrará outro ser mais em conformidade com sua natureza do que outro ser humano. Desta forma, estar em conjunção com outras pessoas é elevar a potência de cada uma ao número de pessoas presentes no grupo. A partir disso, conclui-se que nada é mais útil para um ser humano do que outro ser humano112. A segregação hierarquizada entre homens e mulheres se mostra prejudicial a este raciocínio, no momento em que diminui a potência de um todo que poderia muito mais se estivesse em conjunto. A lógica spinozana parece, também, ser de conhecimento de quem governa e teme o povo como fonte do mais potente poder. Como dito anteriormente, a misoginia figura como um importante mecanismo político de quebra da união popular, ao segregar homens e mulheres estabelecendo um grupo superior ao outro. A discussão quanto à dicotomia dos sexos já traz violência e enfraquece a população como um todo há milênios. Resta a percepção de que este mecanismo só será quebrado quando os seres humanos internalizarem o quão útil é estarem juntos, sem segregações e preconceitos. A partir disto, haverá a quebra deste ridículo mecanismo de separação das pessoas em graus hierárquicos de sexualidade, possibilitando, assim, a existência de 'n' sexos, conforme existam e perseverem. A reconstrução do feminino só é possível através desta quebra. A mudança é certamente de ordem política e muito complexa, de forma que 111

112

Em Spinoza, o homem é composto por dois modos de expressão da mesma substância, Deus: modo de extensão e de pensamento. Sua natureza está intrinsicamente ligada a sua essência, aquilo que se dado, a coisa é necessariamente posta e que, se retirado, a coisa é necessariamente retirada. SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 168-169.

72

não há aqui a pretensão de esgotar o tema. O fato de a eficácia desta desconstrução estar atrelada a uma compreensão em âmbito geral pela sociedade, não deve servir de óbice à militância feminista e à utilização dos mecanismos jurídicos existentes, que hoje são as formas mais significativas de conscientização das inúmeras possibilidades do papel que uma mulher pode exercer. Enfim, não há a possibilidade de, enquanto mulher, sentar e esperar a sociedade mudar. Ser objetificada, diariamente, sofrendo violências verbais, físicas e sexuais no espaço público e privado, não é o tipo de situação que um Estado democrático de direito deve permitir e que uma mulher deve tolerar. O problema é tangível e oprime o sexo feminino de maneira a limitar sua potência de ação e formação pessoal. Desta forma, não há como só pensar em uma solução a longo prazo, apesar de esta ser a mais eficaz. O Estado deve responder pelas violações aos direitos de gênero, assim como os homens agressores devem responder por seus crimes nos casos em concretos, na seara judiciária. O movimento feminista não deve parar, já que a discussão não é de embate entre homens e mulheres, mas entre o direito de ser livre para exercer sua potência ou não.

Conclusão Vivemos em uma era em que se fala em direitos humanos com a boca cheia de palavras vazias, cheia de significantes que buscam esconder a realidade individualista em que as pessoas só se chocam após o fim do massacre ou quando ele lhes atinge diretamente. Nossa constituição federal diz que o poder emana do povo, mas que povo é esse que não é constituinte? Seriam as mulheres parte desse “povo”, se constantemente afastadas dos papéis político-sociais de seu país? Essa estrutura social que, ao longo dos séculos, criou e recriou saberes e mecanismos de ódio entre as pessoas para diminuir sua força, ainda é muito presente no sistema capitalista atual. A demofobia enraíza o pensar individualista na população, exatamente para impedir o pensar constituinte, que concentra toda potência estatal no povo. Esta derrubaria qualquer força que fosse contra sua natureza, a natureza social, o que é bom para todos. Ora, é preciso visualizar o problema de gênero como um ponto que impede a união e, consequentemente, a potência popular. Problema este que só deixará de existir com uma conjuntura social que trabalhe para rompê-lo. E isto vai além de compreender que o gênero é uma criação social que serve aos interesses patriarcais. Ultrapassa a crítica aos mecanismos jurídicos que tratam com parcialidade a violência que atinge as “cidadãs de 2ª classe”. E é essencial para a reconstrução da figura da mulher e do feminino em nossa sociedade. O entendimento da potência do povo como ferramenta desta reconstrução é assunto a ser melhor desenvolvido em um futuro próximo. O primeiro passo foi dado: estabelecer uma crítica à construção atual da figura da mulher, de seu gênero e sexualidade. Buscou-se também a compreensão dos mecanismos utilizados no espaço público que, sob esta ótica, fomentam a violência de gênero. Um caminho para solucionar o problema começou a ser traçado aqui. Porém, necessário é o desenrolar

74

temporal para que estas idéias atinjam um grau de maturidade e aprofundamento teórico. Sem pretensões mágicas, se conclui quanto à necessidade de compreensão da lógica de segregação hierárquica usada pelo Estado, lógica esta que busca opor os agentes sociais, na intenção de reduzir o poder popular. Faz-se necessário, portanto, romper não somente com o patriarcado, mas com a demofobia que há muito assola os sistemas políticos. Certamente esta conclusão foge aos padrões, por apresentar uma série de indagações ao invés de respostas concretas. Mas pensar na trajetória das mulheres até hoje gera muitas dúvidas e temores. Tantos milênios de massacre, estupro, repressão e submissão da mulher, para no século XXI ler no jornal que o Estatuto do Nascituro 113 (PL 478/07) foi aprovado na Comissão de Finanças e Tributação114. Será que algo mudou, afinal? Ou agora, além de suportar a dor do estupro, a mulher ainda terá que manter relações cordiais com o homem que a violentou? Quiçá, casar com ele e retornar à solução oferecida pelo Código Penal de 1830? Ser mulher, seja lá o que isso possa significar, ainda é ser uma cidadã de segunda classe. Esperar a compreensão dos benefícios da união entre os seres humanos não é uma opção para a parcela da população que continua sofrendo violações diárias em seus direitos mais íntimos. Há a necessidade de continuar lutando, desconstruindo o discurso patriarcal, denunciando a violência de gênero, enfim, buscando pela voz feminina em uma sociedade opressora e machista.

113

114

Disponível em < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra? codteor=718396&filename=SBT+1+CSSF+%3D%3E+PL+478/2007> Acessado em 12 de junho de 2013. Disponível em < http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOSHUMANOS/444083-COMISSAO-DE-FINANCAS-APROVA-O-ESTATUTO-DONASCITURO.html> Acessado em 12 de junho de 2013.

75

Bibliografia ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia : Revan, 2008. 943 p. BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 174 p. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo, v.2. São Paulo: Círculo do livro, 1949. 500 p. BENHABIB, Seyla et al.. Feminist contentions: A philosophical exchange. New York; London: Routledge, 1995. 176 p. BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990. 172 p. BUTLER, Judith. Excitable Speech: A politics of the Performative. New York & London: Routledge, 1997. 185 p. ELUF, Luiza Nagib. Crimes contra os costumes e assédio sexual. São Paulo: Condensada, 1999. 2138 p. FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de derecho penal, v. Buenos Aires: Abeledo-perrot, 1996. 378 p. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 176 p. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001. 295 p. GIDDENS, Anthony. A transformação da sexualidade – sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1993. 228 p. JUNIOR, Laerte I. Marzagão. Assédio sexual e seu tratamento no direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2006. 160 p. MÃE, Valter Hugo. O remorso de Baltazar Serapião. São Paulo: Editora 34, 2010. 197 p. MACKINNON, Catharine. Only Words. Cambridge, Massachusetts. USA: Harvard University Press, 1993. 152 p.

76

MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. USA: Harvard University Press,1989. 330 p. MESTIERI, João. Estudo sobre o tipo básico do delito estupro. Rio de Janeiro: Apex Gráf., 1968. 116 p. MORAN, Caitlin. Como ser mulher. São Paulo: Paralela, 2012. 240 p. NIETZSCHE, Frederich. Além do bem e do mal. L&PM: Porto Algre, 2008. 251 p, PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008. 192 p. ROTH, Philip. O complexo de Portnoy. São Paulo: Circulo do Livro, 1980. 224 p. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. 151 p. SEADE, Fundação; Conselho Estadual da condição feminina. Um retrato da violência contra a mulher: 2038 boletins de ocorrência. São Paulo: SEADE, 1987. 69 p. SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 238 p. VARGAS, Virginia. Programa Regional Ciudades sub Violencia hacia las Mujeres, Ciudades Seguras para Todas y Todos. Brasília: UNIFEM Brasil y países del Cono Sur, 2008. 75 p. ZIZEK, Slavoj. As Metástases do Gozo: Seis Ensaios sobre a Mulher e a Causalidade. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2006. 285 p.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.